"A crise climática não é apenas ambiental, mas 'uma crise de desigualdades' que atinge com mais força os mais pobres, as comunidades tradicionais e as populações vulnerabilizadas".
Foi com esse alerta que o conselheiro Guilherme Guimarães Feliciano, presidente da Comissão Permanente de Sustentabilidade e Responsabilidade Social do CNJ, abriu sua conferência na "2ª Conferência Internacional para a Sustentabilidade" no sistema de justiça, realizada no TRT-8, em Belém/PA, no contexto da COP30.
No mesmo ato, Feliciano foi agraciado pelo TRT-8 com a medalha da ordem do mérito "Jus et Labor", no grau Comendador, em reconhecimento à sua trajetória e à contribuição à Justiça do Trabalho e à agenda de sustentabilidade no sistema de justiça brasileiro.
COP30 na Amazônia e a centralidade da justiça climática
Ao saudar autoridades como o ministro Edson Fachin, presidente do STF e do CNJ, a presidente do TRT-8, desembargadora Sulamir Palmeira Monassa de Almeida, a ministra Maria Elizabeth, do STM, e representantes da Defensoria Pública e da sociedade civil, Feliciano sublinhou o caráter histórico do momento: a realização da COP30 "em terras amazônicas" e a opção do CNJ por sediar, em Belém, a segunda conferência internacional dedicada à sustentabilidade no sistema de justiça.
"O palco da COP30 reflete a urgência do problema", afirmou, ao destacar os impactos já sentidos na Amazônia: alteração nos regimes de chuva, aumento das temperaturas, secas mais longas e intensas, com efeitos diretos sobre a biodiversidade, a agricultura, a segurança hídrica e as comunidades ribeirinhas e indígenas. A seca histórica de 2023 foi citada como exemplo "doloroso" da vulnerabilidade da região.
Para o conselheiro, a justiça climática é o eixo central dessa agenda, pois a crise do clima "não é justa" e agride de forma mais feroz justamente os mais vulneráveis. "A crise climática é, inegavelmente, também uma crise de desigualdade, que aprofunda as assimetrias entre o Norte e o Sul global, construídas sobre séculos de emissões", afirmou.
Feliciano reforçou que esta "tem de ser a COP dos resultados, já não mais a COP dos princípios", defendendo compromissos concretos para limitar o aumento da temperatura média global a 1,5 °C, como previsto no Acordo de Paris.
Isso exige, segundo ele, "redução drástica das emissões de gases de efeito estufa e um aumento substancial no financiamento climático, especialmente para as nações em desenvolvimento".
Marco normativo do CNJ para a sustentabilidade e a justiça socioambiental
Ao longo da conferência, o conselheiro apresentou a evolução do marco normativo do CNJ para a sustentabilidade e a justiça socioambiental. Entre os principais instrumentos, destacou:
- Resolução CNJ 400/21 – que institui diretrizes de gestão sustentável no Poder Judiciário, com base em quatro pilares: ações ambientalmente corretas, socialmente inclusivas, economicamente eficientes e culturalmente diversas. "Sem esses quatro pilares não há, de fato, sustentabilidade", resumiu;
- Resolução CNJ 433/21 – que consolida a Política Nacional do Poder Judiciário para o Meio Ambiente e integra a agenda ambiental à agenda judiciária e à atividade jurisdicional;
- Resolução CNJ 462/22 – que trata do parcelamento e uso do solo urbano e rural em áreas de risco e de preservação permanente, orientando a atuação do Judiciário em regularização fundiária sustentável;
- Nota Técnica CNJ–PNUD (2024) – voltada ao fortalecimento de capacidades para acesso à justiça por populações vulnerabilizadas, com foco especial nas enchentes do Rio Grande do Sul.
Feliciano lembrou ainda o Programa Justiça Carbono Zero, instituído pela resolução 594, que prevê a neutralidade de carbono em todas as estruturas do Poder Judiciário até 2030. Os tribunais já tiveram de informar ao CNJ ao menos três medidas de redução de emissões de gases de efeito estufa e, até fevereiro de 2026, deverão apresentar medidas de compensação, além de completar, até julho do mesmo ano, seus inventários de emissões.
"Chegaremos ao carbono neutro em 2030? Acredito que sim", afirmou, condicionando o êxito ao engajamento efetivo de todos os tribunais e à integração entre gestão administrativa e responsabilidade climática.
Protocolo para emergências socioambientais e continuidade da função jurisdicional
Um dos pontos centrais da exposição foi a apresentação da resolução CNJ 646/25, que institui o protocolo do Poder Judiciário para emergências socioambientais. O normativo foi elaborado, segundo Feliciano, a partir de episódios recentes, como a crise climática no Rio Grande do Sul, que chegou a interromper a prestação jurisdicional em determinadas localidades.
"O Poder Judiciário percebeu que, para atender adequadamente à litigiosidade ambiental, ele próprio precisa estar preparado como estrutura, como instituição", disse. "Não se trata apenas de ter um juiz especializado em direito ambiental ou uma jurisprudência afinada, mas de garantir a continuidade institucional em cenário de crise".
A resolução define "crise socioambiental" como situação de degradação ou desequilíbrio ambiental, agravada por vulnerabilidades sociais e institucionais, que ameaça direitos fundamentais e a própria prestação jurisdicional, ainda que não caracterizada formalmente como desastre. A origem da crise – natural, antrópica ou mista – é indiferente para fins de atuação do protocolo.
Entre os objetivos, Feliciano destacou:
- Garantir a continuidade da função jurisdicional em eventos climáticos extremos;
- Prevenir e mitigar impactos sobre a infraestrutura judicial e os serviços prestados;
- Assegurar acesso à justiça para populações vulnerabilizadas, "duplamente sacrificadas pela condição socioeconômica e pelo evento climático extremo";
- Fortalecer a cooperação institucional com órgãos como Defesa Civil, Ministério Público, Defensorias, Forças Armadas e governos locais.
"Em muitas situações, o primeiro dinheiro que chegou aos municípios atingidos foi o dinheiro do Judiciário, a partir de decisões e resoluções que permitiram destinar recursos de ações civis públicas às regiões afetadas", lembrou, ao citar a atuação conjunta de CNJ e CNMP na crise gaúcha.
Desafios da justiça ambiental: complexidade técnica, morosidade e captura regulatória
Feliciano também fez um diagnóstico crítico dos obstáculos à efetivação da justiça ambiental no Brasil. Entre eles, apontou a complexidade técnica dos processos, que frequentemente demandam múltiplas perícias e diversas especialidades para dimensionar danos ambientais, sanitários, ecológicos e socioeconômicos, como no caso de contaminação de recursos hídricos.
Esse cenário contribui para a morosidade das ações: o tempo médio de tramitação de uma ação ambiental até decisão definitiva foi citado em cerca de sete anos e meio, com índices de congestionamento que podem superar 30% em alguns tribunais.
Outro gargalo é a insuficiência de varas e unidades especializadas em matéria ambiental e em meio ambiente do trabalho, o que compromete a capacidade de resposta à crescente litigiosidade climática. "Convenhamos, ainda é pouco diante da dimensão dos desafios que estão se avolumando", observou.
O conselheiro alertou ainda para pressões exógenas – econômicas e políticas – que podem comprometer a qualidade das políticas ambientais, por meio da "captura de subjetividades" e da "captura regulatória". "Teremos de ter isto em vista se quisermos uma regulação eficiente, que não seja distorcida por interesses circunstanciais", afirmou.
Como respostas a esses desafios, Feliciano listou a necessidade de:
- Aperfeiçoar a regulação, com normativos debatidos democraticamente e ouvindo a sociedade civil;
- Investir em capacitação contínua de magistrados e servidores;
- Usar tecnologia e dados, como o painel Sirene Jude, para embasar decisões "em evidências e não em percepções";
- Ampliar a cooperação interinstitucional;
- Estimular a participação social na construção das soluções.
"Em tempos de fake news, isto precisa estar baseado em evidências, e não em impressões. Sem informação precisa, não há política judiciária eficiente", sentenciou.
Papel transformador do Judiciário e dignidade ambiental
Ao tratar da evolução do papel das instituições, Feliciano defendeu que a jurisdição "é muito mais do que concretizar a vontade da lei" e deve assumir uma função transformadora na vida das pessoas e das comunidades.
Reforçando fala do presidente Fachin, destacou que a questão ambiental e climática está "no cerne dos direitos humanos" e deve orientar a interpretação das normas de forma a consolidar a dignidade ambiental e climática como dimensão da dignidade humana.
No campo da política de sustentabilidade, criticou visões fragmentadas que associam "trabalho verde" apenas ao produto final, ignorando condições degradantes de trabalho ao longo da cadeia produtiva.
"Dizer que corte manual de cana é green job, porque dali teremos biodiesel e etanol, é fechar os olhos para o fato de que se trata de uma das piores formas de trabalho penoso, para não dizer degradante", exemplificou.
A lógica a ser perseguida, defendeu, é a da prevenção e da precaução, a clássica máxima in dubio pro natura. Quando o sistema chega à fase de reparação, "é porque o modelo já não funcionou idealmente".
"O futuro será verde ou não será?"
Ao encerrar sua exposição, Feliciano recorreu à literatura e à poesia para sintetizar a dimensão simbólica e concreta da agenda climática. Primeiro, citou o poeta paraense Paulo Vieira: "Que vós sejais como cem mil borboletas que arrastam para o fundo da terra tratores e motosserras", evocando a força das mobilizações sociais em defesa da floresta.
Depois, lembrou versos do poeta Firmo da Paz, nascido em Santarém e falecido em Campinas, sobre a semente que, lançada à terra, germina e oferece abrigo sem nada pedir em troca, imagem utilizada para representar a construção de um "abrigo verde dos povos" e a luta pela justiça climática para as presentes e futuras gerações.
Por fim, citou o ex-vice-presidente norte-americano Al Gore para resumir o desafio histórico colocado à COP30 e ao sistema de Justiça:
"O futuro será verde ou não será. Este é o dilema da nossa encruzilhada histórica".
"Pelo abrigo verde dos povos e pela justiça climática para as atuais e futuras gerações, que assim seja", concluiu o conselheiro, antes de devolver a palavra ao cerimonial e de ser saudado pelos participantes da conferência em Belém.
O evento contou com o apoio oficial do Instituto Global ESG e com as participações, ora na palestra técnica com Sóstenes Marchezine, sócio-diretor da Arnone Advogados Associados em Brasília, ora com Alexandre Arnone, sócio-nominal da Arnone Advogados Associados, que proferiu a conferência magna de encerramento da programa oficial do Poder Judiciário, ao lado do procuradora-chefe da Pronaclima/AGU.