Durante o julgamento de habeas corpus na 6ª turma do STJ nesta terça-feira, 9, os ministros Rogerio Schietti e Antonio Saldanha Palheiro protagonizaram um debate interessante acerca da fidelidade da própria turma à jurisprudência da 3ª seção.
Em debate estava a aplicação do Tema 1.258, que definiu ser inválido o reconhecimento feito sem observância do art. 226 do CPP e que, mesmo um reconhecimento formalmente regular, não pode, sozinho, embasar condenação.
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Diante da escala da discussão, o ministro Carlos Pires Brandão pediu vista e suspendeu o julgamento.
Entenda o caso
O debate ocorreu no julgamento do HC 846.138, impetrado em favor de homem condenado por roubo majorado (art. 157, § 2º, II e VII, do CP) à pena de 7 anos, 4 meses e 20 dias de reclusão, em regime fechado.
A defesa alegou nulidade do reconhecimento fotográfico e pessoal por inobservância do art. 226 do CPP. O TJ/SE rejeitou a preliminar e manteve a condenação, afirmando que o dispositivo contém “meras recomendações” e que a vítima reconheceu o réu tanto na fase inquisitorial quanto em juízo.
Em decisão monocrática, o relator, ministro Antonio Saldanha Palheiro, já havia denegado a ordem, ressaltando que o reconhecimento teria sido realizado pessoalmente em audiência e confirmado em juízo sob o crivo do contraditório.
Pano de fundo: Tema 1.258
Em junho deste ano, a 3ª seção do STJ, fixou teses do Tema 1.258, entre elas:
- As regras do art. 226 do CPP são de observância obrigatória, tanto na fase policial quanto em juízo, sob pena de invalidade da prova de reconhecimento;
- Reconhecimento fotográfico ou pessoal inválido não pode servir de lastro para condenação, denúncia, prisão preventiva ou pronúncia;
- Poderá o magistrado se convencer da autoria delitiva a partir do exame de provas ou evidências independentes que não guardem relação de causa e efeito com o ato viciado de reconhecimento.
- Mesmo o reconhecimento pessoal válido deve guardar congruência com as demais provas existentes nos autos.
Foi justamente essa exigência — a necessidade de prova adicional além do reconhecimento — que polarizou o debate entre Schietti e Saldanha. Confira:
Reconhecimento não pode servir de único fator para condenar
Ao divergir do relator, ministro Rogerio Schietti criticou o acórdão do TJ/SE por tratar o art. 226 como recomendação:
“A decisão do Tribunal de origem reconhece a falta de observância do reconhecimento fotográfico, insistindo naquela tese que nós já superamos há anos, de que se trata de uma mera recomendação seguir o art. 226.”
Lembrando o Tema 1.258, o ministro afirmou: “mesmo que tenha sido observado o procedimento, se é a única prova, não pode servir de único fator para condenar".
Schietti ainda enfatizou que o reconhecimento é uma prova baseada na memória da vítima, sujeita a diversos condicionamentos internos e externos, o que justifica a postura mais cautelosa:
“Todo o nosso repetitivo, o Tema 1.258, se baseia nisso. São duas coisas: o art. 226, se não observado, gera nulidade da prova. Mas, se observado, ainda há uma questão a decidir, que é o valor epistêmico dessa prova, porque é uma prova feita com base na memória da vítima, que é sujeita a uma série de condicionamentos.”
Questionado por Saldanha sobre que outras provas seriam possíveis em casos de roubo, Schietti citou alternativas como dados de celular, geolocalização, apreensão de bens e testemunhas.
“Como exigir que os tribunais cumpram a jurisprudência se nós a descumprimos?”
O debate se intensificou quando Schietti apontou que o voto do relator contrariaria diretamente o Tema fixado pela 3ª seção:
“Como é que nós podemos pedir para os tribunais cumprirem a nossa jurisprudência se nós estamos aqui com uma total violação ao precedente da 3ª seção? (...) Sinceramente, com todas as vênias, é inacreditável que, de uma hora para outra, em uma sessão da turma, a gente simplesmente jogue fora toda a jurisprudência da seção.”
Saldanha fala em “revitimização” e defende suficiência do reconhecimento
O relator refutou a leitura de Schietti sobre o Tema e afirmou que, no caso concreto, o reconhecimento observou o art. 226 e foi judicializado:
“Houve o reconhecimento na forma do art. 226 e ainda foi ratificado em juízo. Mas Vossa Excelência pondera que, pelo Tema repetitivo 1.258, apenas o reconhecimento, ainda com as formalidades legais, não é suficiente para a condenação. Foi a única prova. Mas, no caso de roubo, que outra prova a gente pode exigir? É difícil, não é?”
Saldanha sustentou ainda que afastar a suficiência do reconhecimento equivaleria a revitimizar a vítima:
“Inacreditável. Eu sou roubado e ainda tenho que fazer prova de que o ladrão é aquele que eu reconheci", afirmou o ministro. (...) Você (ministro Schietti) reiteradamente fala em revitimização da vítima. Isso é revitimização. Eu fui roubado, reconheci o agente, e ele sai solto.”
Distinguishing
Em resposta às críticas de descumprimento de jurisprudência, Saldanha disse: “nós somos os primeiros que descumprimos a nossa jurisprudência. Nós somos um péssimo exemplo".
Schietti rebateu, dizendo que a 6ª turma poderia, eventualmente, realizar distinguishing em casos específicos, mas não descumprir frontalmente a jurisprudência da 3ª seção:
“Nós podemos eventualmente fazer um distinguish, mas jamais descumprimos a jurisprudência da seção. (...) Então me diga qual é o distinguish aqui neste caso, que permite que nós não sigamos a jurisprudência?”
Com o aquecimento do debate, fruto provavelmente do cansaço natural de fim de ano, ministro Brandão pediu vista, suspendendo o julgamento.
Entre culpados e inocentes, salvaram-se todos. Menos o réu, que permanece preso.
- Processo: HC 846.138