Nesta quinta-feira, 18, em sessão plenária, o STF reconheceu, por unanimidade, a existência de racismo estrutural e de violações sistemáticas a direitos da população negra.
Prevaleceu, no entanto, o entendimento de que não há estado de coisas inconstitucional. Ficaram vencidos, neste ponto, a ministra Cármen Lúcia e os ministros Edson Fachin e Flávio Dino, que defendiam o reconhecimento desse quadro.
O relator, ministro Luiz Fux, havia inicialmente votado nesse sentido, mas reajustou o voto na sessão desta quinta-feira para acompanhar a corrente majoritária, afastando a declaração de estado de coisas inconstitucional.
Apesar disso, o tribunal determinou a adoção de uma série de providências estruturais a serem implementadas pelo Estado no enfrentamento ao racismo institucional.
Confira o placar:
Determinações
O Tribunal determinou que o Poder Executivo promova a revisão do Planipir - Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial, instituído pelo decreto 6.872/09, ou, a seu critério, elabore um novo Plano Nacional de Combate ao Racismo Institucional, em caráter autônomo, observadas as seguintes diretrizes:
"1. Conteúdo material do plano
A revisão do Planapir ou a elaboração de plano autônomo deverá contemplar, em caráter exemplificativo, as seguintes medidas:
a) Providências concretas de combate ao racismo estrutural, especialmente nas áreas de acesso à saúde, segurança alimentar, segurança pública e proteção da vida;
b) Medidas reparatórias em razão de graves violações de direitos humanos relacionadas à raça ou cor, incluindo ações de construção da memória, valorização do papel das populações discriminadas na formação étnico-cultural do País, inserção no sistema educacional formal e atendimento institucional humanizado;
c) Revisão dos procedimentos de acesso por cotas a oportunidades de educação e emprego em razão de raça ou cor, com o objetivo de evitar baixa efetividade decorrente de metodologias inadequadas ou da criação de obstáculos indevidos;
d) Instituição de instrumentos de monitoramento e avaliação de cada elemento da política nacional de combate ao racismo, com definição de métodos e prioridades;
e) Criação de protocolos de atuação e atendimento de pessoas negras pelos órgãos do Poder Judiciário, Ministérios Públicos, Defensorias Públicas e autoridades policiais, para aprimorar o acolhimento institucional e enfrentar disparidades raciais;
f) Estabelecimento de mecanismos de difusão do conteúdo do plano junto a órgãos e entidades governamentais e não governamentais;
g) Capacitação de professores, inclusive em cooperação com universidades do continente africano, para o ensino da história e cultura afro-brasileira, nos termos da Lei nº 10.639/2003 e do Estatuto da Igualdade Racial;
h) Determinação para que o Poder Executivo, por intermédio da Secretaria de Comunicação (Secom), realize campanhas na mídia comercial contra o racismo e o preconceito contra religiões de matriz africana, estendendo-se a mesma diretriz às TVs institucionais e mídias sociais dos três Poderes;
i) Orientação para que a Lei Rouanet e as leis estaduais de incentivo à cultura priorizem projetos com presença relevante de pessoas negras;
j) Ampliação do Programa Nacional de Agentes Territoriais de Promoção da Igualdade Racial;
k) Ampliação dos Agentes Territoriais do Plano Juventude Negra Viva e monitoramento semestral da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, nos termos do art. 7º do Estatuto da Igualdade Racial.
2. Governança e participação social
a) O plano deverá contar com a participação ativa dos órgãos do Poder Executivo federal, conforme suas atribuições legais, incluindo: Casa Civil, Ministério da Saúde, Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Ministério da Justiça, Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania e Advocacia-Geral da União;
b) Deverá ser assegurada ampla participação da sociedade civil, com a coleta de contribuições de organizações representativas da temática, respeitada a representatividade regional, bem como a participação efetiva de organizações de crianças e mulheres negras, do movimento quilombola e dos povos de terreiro;
c) O Governo Federal deverá estruturar consultas e audiências públicas previamente à revisão do plano, garantindo ampla manifestação social durante todo o processo, até sua conclusão;
d) Para cada medida adotada, a União deverá fixar objetivos, metas, indicadores de monitoramento e avaliação, prazos, recursos existentes e necessários, bem como matriz de risco, prevendo mecanismos de monitoramento, avaliação e revisão periódica, com divulgação pública de dados e resultados, assegurada a compatibilidade com o planejamento e a programação orçamentária.
3. Prazo, homologação e fiscalização
A revisão do Planapir ou, a critério do Governo Federal, a elaboração de plano autônomo deverá ser ultimada no prazo de 12 meses, contados do trânsito em julgado da decisão, submetendo-se o plano à homologação do STF.
Fica delegada ao Conselho Nacional de Justiça, por intermédio do Observatório de Direitos Humanos do Poder Judiciário, a fiscalização do cumprimento do plano.
Caberá ainda ao CNJ, entre outras medidas que julgar necessárias:
a) Formular mecanismos de monitoramento, avaliação e revisão periódica, com divulgação pública de dados e resultados, das políticas de ação afirmativa no ingresso de servidores e magistrados no Poder Judiciário, bem como dos delegatários de serviços públicos vinculados ao Judiciário;
b) Adotar mecanismos de monitoramento e reavaliação contínua nas promoções e remoções de magistrados, magistradas, notários e registradores negros e negras, com o objetivo de reforçar a igualdade de acesso e progressão na carreira."
Veja o momento em que foram lidas as determinações:
O caso
A ação, proposta por PT, PSOL, PSB, PCdoB, Rede, PDT e PV, aponta ações e omissões estatais que, segundo os partidos, resultam na violação dos direitos à vida, saúde, segurança e alimentação digna da população negra.
Entre os pedidos, está a elaboração de um Plano Nacional de Enfrentamento ao Racismo Institucional e à política de morte dirigida a esse grupo.
Omissão estatal
Nesta quinta-feira, 18, ministro Gilmar Mendes acompanhou a divergência parcial inaugurada por Cristiano Zanin, reconhecendo a existência de racismo estrutural e de omissão inconstitucional do Poder Executivo Federal no enfrentamento do racismo institucional, mas afastando a declaração de estado de coisas inconstitucional.
Gilmar destacou a atuação do STF em processos estruturais. Segundo o decano da Corte, o Supremo tem adotado mecanismos decisórios flexíveis, voltados à procedimentalização da jurisdição constitucional e à indução de políticas públicas, sem substituir integralmente a arena política.
O ministro evocou o chamado "pensamento de possibilidades", inspirado na doutrina de Peter Häberle, para defender uma jurisdição constitucional aberta, não absolutista, capaz de estimular alternativas institucionais e evitar soluções binárias.
Nesse contexto, sustentou que os processos estruturais não buscam a implementação integral e imediata de direitos, mas sim restabelecer dinâmicas de diálogo político, permitindo o encerramento do processo quando houver condições mínimas de funcionamento autônomo das instâncias estatais.
Ao tratar da execução e do monitoramento das decisões estruturais, Gilmar ressaltou a importância de instituições não judiciais, como Defensorias, MP, CGU e TCU, bem como a possibilidade de delegação de competência a magistrados de instâncias inferiores, com base no art. 102, I, m, da CF.
Ao final, votou pela declaração de inconstitucionalidade por omissão do Poder Executivo Federal, determinando que a União elabore, no prazo de 12 meses, um Plano Nacional de Enfrentamento ao Racismo Institucional, em coordenação com Estados, DF, municípios e organizações da sociedade civil.
O plano deverá prever metas, etapas e mecanismos de monitoramento, podendo ser estruturado e homologado pelo STF.
Os demais pedidos formulados na ação foram rejeitados.
- Leia a íntegra do voto.
Estados de coisa inconstitucional
Ministro Edson Fachin acompanhou integralmente o voto do relator, Luiz Fux, reconhecendo a existência de racismo estrutural e institucional no Brasil e defendendo a declaração de estado de coisas inconstitucional em razão das violações sistemáticas e persistentes de direitos fundamentais da população negra.
Fachin destacou que o estado de coisas inconstitucional é um instituto teórico e jurisprudencial desenvolvido pela Corte Constitucional da Colômbia, já incorporado à jurisprudência do STF no julgamento da ADPF 347, que tratou do sistema prisional.
Segundo o presidente do STF, sua configuração exige a presença cumulativa de quatro elementos: violação massiva e generalizada de direitos fundamentais, persistência da situação ao longo do tempo, insuficiência de soluções individuais ou fragmentadas e necessidade de atuação coordenada de múltiplos órgãos estatais.
No caso concreto, o ministro afirmou estarem plenamente caracterizados todos esses requisitos, ressaltando que a população negra - que representa mais da metade da população brasileira - sofre, de forma contínua, violações em áreas como educação, saúde, moradia, trabalho, renda, participação política, além de letalidade policial e encarceramento desproporcionais, pobreza estrutural e sub-representação nos espaços de poder.
Fachin situou essas desigualdades em um processo histórico de longa duração, iniciado no período escravocrata e aprofundado no pós-abolição, marcado pela ausência de políticas reparatórias, por políticas estatais de branqueamento e pela criminalização da população negra.
Criticou o mito da democracia racial, que, segundo S. Exa., contribuiu para invisibilizar o racismo e dificultar a formulação de políticas públicas efetivas.
O ministro ressaltou que a Constituição de 1988 instituiu um programa constitucional antirracista, ao eleger a dignidade da pessoa humana, o pluralismo e a igualdade como fundamentos da República, criminalizar o racismo e fixar como objetivos a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades.
Mencionou ainda compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, como a Declaração e o Programa de Ação de Durban, a Convenção Interamericana contra o Racismo e a Década Internacional de Afrodescendentes, observando que, apesar desses marcos, as políticas adotadas ao longo das últimas décadas foram insuficientes para reverter o quadro estrutural de desigualdade racial.
Ao tratar da dimensão institucional do problema, Fachin diferenciou racismo institucional - expresso em normas, práticas e culturas organizacionais que produzem resultados desiguais - e racismo estrutural, entendido como sistema enraizado nas estruturas sociais, econômicas, políticas e jurídicas.
Citou precedentes do STF e decisão recente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que reconheceu a responsabilidade internacional do Estado brasileiro por falhas motivadas por racismo.
Diante desse cenário, o ministro concluiu que o quadro brasileiro preenche integralmente os pressupostos do estado de coisas inconstitucional, votando para determinar que a União revise e atualize, no prazo de 12 meses, o Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial, transformando-o em Plano Nacional de Enfrentamento ao Racismo Estrutural e Institucional, com homologação pelo STF e monitoramento por órgão a ser definido pelo colegiado, como o CNJ ou instâncias de direitos humanos.
Fachin sugeriu ainda a fixação de objetivos, metas, indicadores, previsão orçamentária e mecanismos de transparência, além da adoção, no âmbito do Poder Judiciário, de políticas de monitoramento das ações afirmativas, da promoção e movimentação na carreira de magistrados, notários e registradores negros, em consonância com os parâmetros da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Veja o voto na íntegra.
- Processo: ADPF 973