O ministro Gilmar Mendes, do STF, concedeu habeas corpus para trancar a ação penal movida contra Leonardo Gryner, ex-diretor de operações e marketing do COB – Comitê Olímpico Brasileiro, denunciado no âmbito da Operação Unfair Play 2.
O relator entendeu que não há justa causa para a persecução penal, pois a equiparação a funcionário público não encontra respaldo legal, à luz do princípio da taxatividade penal, o que afasta a aplicação de crimes funcionais.
"A questão, portanto, não é de percepção ética sobre a gravidade dos fatos. Trata-se, ao revés, de respeitar os contornos da legalidade penal, que, no sistema constitucional brasileiro, não se confunde com juízos morais ou expectativas sociais de punição. A Constituição é categórica ao estabelecer que não há crime sem lei anterior que o defina."
Entenda o caso
A Operação Unfair Play 2 investiga suposto pagamento de propina para compra de votos com o objetivo de eleger o Rio de Janeiro como sede dos Jogos Olímpicos de 2016.
Segundo a denúncia, o então governador Sérgio Cabral teria solicitado e aceitado promessa de vantagem indevida do empresário Arthur Soares, no valor de US$ 2 milhões, destinados a dirigentes internacionais do esporte.
De acordo com o Ministério Público, a intermediação do esquema teria sido realizada por Carlos Nuzman e Leonardo Gryner, que teriam articulado o pagamento e viabilizado as negociações.
O parquet argumentou que ambos agiram como funcionários públicos por equiparação, nos termos do art. 327, §1º, do CP, o que embasou a imputação dos crimes de corrupção passiva e organização criminosa.
A defesa, por sua vez, sustentou a atipicidade das condutas, argumentando que Gryner exercia função em entidade de direito privado, sem vínculo com a Administração Pública.
Além disso, destacou que o ordenamento jurídico brasileiro não tipifica a corrupção em âmbito privado e que a equiparação pretendida violaria o princípio da reserva legal.
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As teses defensivas foram rejeitadas em primeiro grau e pelo TRF da 2ª região. Posteriormente, recurso em habeas corpus no STJ foi considerado prejudicado em razão da superveniência de sentença condenatória, entendimento mantido pela 6ª turma, o que levou a defesa a recorrer ao STF.
Equiparação penal exige lei expressa
Ao analisar o habeas corpus, o ministro Gilmar Mendes ressaltou que o trancamento da ação penal é medida excepcional, admissível apenas quando evidentes a atipicidade da conduta, a extinção da punibilidade ou a ausência de justa causa, circunstância que, segundo ele, ficou configurada no caso.
O relator destacou que o Comitê Olímpico Brasileiro é entidade de direito privado, integrante do subsistema esportivo privado, conforme previsto na lei Geral do Esporte (lei 14.597/23).
Embora o COB represente o País em eventos esportivos internacionais e mantenha interlocução com o poder público, isso não o transforma em ente da Administração Pública, nem autoriza a equiparação de seus dirigentes a servidores públicos para fins penais.
"Em razão de sua natureza jurídica privada, os colaboradores e dirigentes do COB não podem ser equiparados a funcionários públicos para fins de aplicação da legislação penal, uma vez que a equiparação prevista no art. 327, §1º, do CP exige que a entidade seja empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública, requisito que não se aplica ao COB, cuja atuação, embora relevante para o esporte nacional, decorre de sua natureza associativa privada e não de delegação de função estatal."
Princípio da taxatividade
O ministro também afirmou que, ainda que haja debate legítimo sobre a necessidade de tipificar condutas lesivas à moralidade no âmbito privado, não se pode ampliar tipos penais sem autorização legislativa prévia, clara e inequívoca.
"Ainda que se reconheça a existência de discussão legítima sobre a necessidade de tipificar condutas lesivas à moralidade no âmbito privado — especialmente em setores que, embora formalmente alheios à Administração Pública, desempenham funções de relevo social —, não se pode perder de vista que a introdução de novos tipos penais ou de hipóteses de equiparação funcional exige autorização legislativa prévia, clara e inequívoca."
Gilmar Mendes lembrou ainda que a analogia não pode ser admitida para prejudicar o réu, devendo a equiparação funcional ser interpretada de forma restritiva, sob pena de violação ao princípio da taxatividade.
"Nesse contexto, impõe-se recordar que a analogia não é admitida para prejudicar o réu. E a equiparação prevista em lei deve ser interpretada restritivamente, sob pena de violação ao princípio da taxatividade. A atuação em eventos esportivos internacionais ou a interlocução com o poder público não basta, por si só, para converter um agente privado em servidor público para fins penais."
Por fim, o relator reforçou que a gravidade ética dos fatos não autoriza a punição criminal sem base legal expressa, destacando que a criação de novos tipos penais ou hipóteses de equiparação funcional depende de opção legislativa, e não de interpretação judicial ampliativa.
"A questão, portanto, não é de percepção ética sobre a gravidade dos fatos. Trata-se, ao revés, de respeitar os contornos da legalidade penal, que, no sistema constitucional brasileiro, não se confunde com juízos morais ou expectativas sociais de punição. A Constituição é categórica ao estabelecer que não há crime sem lei anterior que o defina. E essa exigência se estende, por evidente, à definição do sujeito ativo dos delitos funcionais."
Com esse entendimento, o ministro concedeu a ordem para trancar a ação penal em trâmite na 7ª vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, apenas em relação a Leonardo Gryner.
O escritório Crissiuma Advogados atua no caso.
- Processo: HC 218.107
Leia a íntegra da decisão.