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O dano-morte: a experiência brasileira e a proposta do common law

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Atualizado às 08:34

"Não tema a morte porque - se houver morte - você não está lá e - e se você estiver lá - não há morte" 
Epicuro

No Direito Civil brasileiro não há previsão legal para o chamado dano-morte. O dano que provoca a morte de uma pessoa é escassamente discutido pela doutrina e sumamente ignorado pela jurisprudência. Contudo, esta não é originalmente uma lacuna brasileira. Há muito, importantes doutrinadores europeus tentam dar uma explicação ao aforismo do filósofo Epicuro. A sua advertência é clara: se a pessoa não mais existe, consequentemente não existe compensação pela privação de sua vida.

Qual é o nosso cenário jurídico atual? Inexiste indenização pelo dano-morte, diante da supressão ilícita uma vida. O fundamento para tanto consiste na própria falta da pessoa a quem a perda do bem possa estar ligada e, em cujo espólio, a indenização possa ser consolidada. O paradoxal é que é se torna economicamente muito mais vantajoso matar uma pessoa instantaneamente do que lentamente e, de fato, mais barato matar rapidamente do que feri-la gravemente.

Face à impossibilidade jurídica da indenização pelo dano-morte, qual é a alternativa? Dúvidas não existem quanto à compensação do dano moral aos familiares das pessoas falecidas. O Código Civil defere o dano extrapatrimonial in re ipsa ao cônjuge ou qualquer parente, como um direito próprio dos familiares - não adquirido por via sucessória -, com base na lesão a sua esfera existencial (par. único, art.12, c/c art. 943, ambos do CC) pela morte do entre querido. Apesar do rol taxativo dos beneficiários, os tribunais ampliam este direito em favor de companheiros, e mesmo para pessoas que não tenham vínculos de parentesco, desde que na concretude do caso fique provado o real vínculo afetivo com o falecido.

Por outro lado, o sofrimento inerente ao luto pode por vezes gerar um comprometimento psíquico duradouro. Embora estudos empíricos comprovem que a morte inesperada e súbita de um ente querido seja a mais frequente experiência traumática e uma importante questão de saúde pública, por razões desconhecidas não existe responsabilidade civil por acometimentos psiquiátricos causados pela perda repentina da pessoa próxima. Os tribunais ressaltam que a conduta ilícita é uma só, e suas consequências não podem variar de acordo com as particularidades de cada vítima que sofre o dano reflexo ou por ricochete.

Em reforço a este dado, ao contrário do que ocorre no direito alemão, no Brasil não se concede aos familiares do falecido o chamado "dano de choque nervoso" (schockschaden), que é fruto de uma interpretação elástica dos tribunais sobre o conceito de dano à saúde, contido no §823 do BGB1. Ou seja, por aqui não contamos com uma reparação autônoma em favor de familiares que presenciaram o momento da morte e efetivamente sofreram um abalo psíquico pelo evento em si, fato que transcende a perda pelo falecimento do ente querido, igualmente experimentada pelos demais parentes ou pessoas de sua intima relação. Enfim, em razão do receio quanto à indiscriminada abertura de comportas para múltiplas indenizações por danos consequentes à imediata verificação de um único evento, os tribunais optam por restringir o número de demandantes.

Haveria então espaço para a lapidação da indenização autônoma pelo dano-morte no ordenamento brasileiro? A Constituição consagra o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento de proteção dos direitos da personalidade, enquanto o direito à vida se coloca como premissa necessária para que qualquer pessoa desfrute de sua privacidade, honra, imagem e tenha liberdade para o exercício de suas escolhas patrimoniais e existenciais. Portanto, embora natural, a cessação do ciclo vital jamais poderá ser ilicitamente abreviada por terceiros. Justamente por isto, diferentemente do Brasil, o art. 496, 2. do Código Civil de Portugal expressamente prevê o dano-morte como um dano autônomo, de caráter extrapatrimonial.

No Código Civil Brasileiro, a norma que merece uma interpretação cuidadosa é a do art. 948. Inicialmente, ao prever o pagamento das despesas com o tratamento da vítima e seu funeral, o preceito se refere à compensação de danos patrimoniais relativos aos cuidados com o falecido no período entre a lesão e o seu enterro. Abrange todos os gastos para mantê-lo vivo e os desembolsos efetuados para as últimas homenagens. Já a expressão "luto da família" corresponde ao mencionado dano moral dos parentes pela morte do ente querido. Em complemento, quando a parte final da norma se refere à "prestação de alimentos", cuida da repercussão do dano experimentado pelo falecido na esfera material de alguém que dele era dependente e receberá uma pensão mensal, como espécie de lucros cessantes, cujo valor será fixado de acordo com as possibilidades econômicas do ofensor e as concretas necessidades dos dependentes do falecido.

O paradoxo surge ao analisamos os dispositivos seguintes (arts. 949 e 950, CC). Em ambos os casos, o Código Civil concede indenização pelos danos provocados à integridade física do lesado que não morreu com o fato danoso, incluída uma pensão atribuída a ele em caso de incapacitação para o trabalho. Soa incongruente que uma lesão que ofenda a integridade corporal acarrete uma indenização, sem que nenhuma referência se faça à uma compensação nos casos extremos em que a lesão física tenha levado à morte.

Porém, retornando ao caput do art. 948 do Código Civil, frisa-se na parte final: "sem excluir outras reparações". Surge aqui uma abertura para que os tribunais possam admitir a indenizabilidade do dano-morte como um dano autônomo nos casos em que o ilícito ceifou a vida da vítima, tendo como fundamento a ofensa corporal que cessou com a morte, ou seja, o dano pré-morte.

É importante lembrar que a morte - sob qualquer circunstância - é um fato jurídico que produz não apenas consequências econômicas - v.g abertura de herança e pagamento do seguro de vida - mas também acarreta projeção existencial "post mortem", com proteção da memória do morto por parte dos que estão vivos, ou seja a tutela da sua imagem, nome e honra. Portanto, e isto é fundamental, o dano não pode ficar com quem o sofre, sendo a morte um fato que deve desencadear uma indenização autônoma, transferindo-se o dano ao patrimônio do ofensor.

O dano-morte é um dano a um bem supremo do indivíduo, objeto de um direito absoluto e inviolável garantido primariamente pelo ordenamento jurídico, e, portanto, prescinde da consciência do lesado sobre a sua morte. Ou seja, tanto faz se o fato ilícito acarretou a morte instantaneamente, ou a vítima sobreviveu por tempo suficiente para pressentir a inexorável chegada da morte.

Portanto, a indenização pelo dano-morte é claramente distinguível da compensação pelo dano da perda da relação destinado ao cônjuge e parentes, assim como de um dano moral "terminal ou catastrófico", ou seja, o dano que consiste no sofrimento da vítima que testemunha claramente a extinção de sua vida, quando houver prova da existência de um estado de consciência no intervalo entre o evento dano e morte, com a consequente aquisição de um pedido de indenização, transmissível aos herdeiros. Assim, o dano-morte só pode ser admitido dentro da função compensatória da responsabilidade civil como uma espécie de dano abstrato, isto é, uma exceção ao princípio da irreparabilidade do dano-evento e da reparabilidade exclusiva do dano-consequência, pois a morte tem como consequência o fim de tudo. 

Nos casos em que a morte ocorre no imediatismo do evento lesivo, se perseverarmos no viés da responsabilidade civil como remédio destinado ao reequilíbrio da posição patrimonial da vítima, realmente não haverá compensação hereditária, pela razão elementar da ausência física de um sujeito com capacidade legal, que é conditio sine qua non para atrair qualquer direito ao seu "patrimônio" (incluindo o direito à compensação pela privação de sua existência). Se falta a pessoa natural, não haverá sequer uma entidade legal capaz de "consolidar" a si mesma e depois transmitir o direito à compensação por uma súbita privação da vida.

Portanto, se não quisermos raciocinar em termos de regra/exceção, parece-nos que a indenização pelo dano-morte não deva ser justificada pela função compensatória da responsabilidade civil, que se tornaria incoerente, diante da impossibilidade lógica de uma condenação pecuniária restituir a vítima falecida ao momento anterior ao ilícito.

"Thinking outside the box", creio que a lacuna legislativa e a própria oscilação quanto ao tema, convidam a doutrina brasileira a visitar uma diferente função da responsabilidade civil, discutida nas jurisdições da "common law", e mais conhecida pelo rótulo de "vindicatory damages". Ilícitos acionáveis per se desempenham há muito tempo um papel fundamental na proteção de direitos básicos dos indivíduos, seja a liberdade em razão de prisões indevidas, direito de propriedade protegido contra invasão ou direito a própria integridade psicofísica protegida contra agressão. Quando direitos protegidos são infringidos, sem que haja justificativa legal, tal violação será retificada com substantial damages - ou seja, uma indenização substancial e não apenas nominal.

Em uma tradução aproximada, a "indenização reivindicatória", não é uma condenação pecuniária que tenha como objetivo compensar danos, dissuadir ilícitos ou punir comportamentos ultrajantes. É algo diferente: trata-se de uma indenização cuja finalidade é a de reivindicar direitos que foram violados, independentemente de suas consequências.  Tal como no direito romano - onde surgiu a figura da "vindicatio" de tutela à propriedade a despeito de qualquer prejuízo sofrido pelo seu titular -, no dano-morte a pretensão exercida contra o réu atua como como um substitutivo para a violação ao direito. Isto é, ao se exigir que o autor do homicídio não apenas pague uma importância X pelos danos infringidos aos parentes do falecido (de natureza compensatória), mas que também seja condenado a uma soma y, por abreviar uma vida, a sentença se afasta do princípio da "restitutio in integro" e passa a exprimir o elemento moral do ordenamento jurídico.

Como explica o mais proeminente autor no campo dos vindicatory damages, Jason Varuhas: "Para ilícitos onde a vindicação de direitos é a função primária, a indenização é deferida pelo fato da interferência indevida sobre o interesse protegido de per si. Esta indenização compensa por um dano que é "normativo" por natureza, objetivamente avaliado, e deferido ao demandante independente de seu sofrimento ou qualquer impacto psicológico negativo, ou mesmo efeitos econômicos decorrentes do ilícito"2.

Ao contrário de indenizações por perdas materiais (factual loss), a indenização normativa compreende um dano construído abstratamente no mundo jurídico, sem correlação  com os efeitos sentidos no mundo real. Desta maneira, a condenação sinaliza de forma tangível que o comportamento do réu foi um ilícito perante o falecido e que, ao mesmo tempo, o direito à vida não é apenas algo a ser exercido pelo "de cujus", porém um direito fundamental que se afirma abstratamente contra qualquer um em sociedade e, concretamente, contra aquele ofensor que a ceifou por um ato antijurídico.

Enfim, surge uma excelente oportunidade de alargar as funções da responsabilidade civil brasileira, pela autonomização da finalidade de vindicação de direitos, perante a tradicional reparação de danos patrimoniais e extrapatrimoniais. Ao invés de corrigirmos as consequências do ilícito, retifica-se o próprio ato ilícito por uma indenização, a despeito do que teria acontecido se o ilícito não fosse produzido. No que tange ao dano-morte, independentemente de qualquer repercussão moral ou econômica na esfera de terceiros, o ilícito de abreviar a vida de alguém é uma violação a integridade psicofísica da própria vítima, por parte de quem intencionalmente ou não, omitiu o dever geral de cuidado, sendo a sua conduta a causa adequada para o abrupto decesso da vítima. Neste contexto a indenização pelo dano-morte transmite a importante mensagem de reforço do dever moral de preservação da vida humana.

Podemos traçar um paralelo na função vindicatória da indenização, pela simetria entre o fim e o início da vida. De forma análoga ao dano-morte, na "wrongful conception", também vislumbramos fundamento para uma indenização reivindicatória. Basta pensarmos na condenação de um médico a uma obrigação de indenizar por mala práxis, ou seja, a violação da leges artis por uma conduta negligente em processo de esterilização que acarretou gravidez e nascimento indesejado de filho. A indenização representará o reconhecimento da violação de um direito, a par de qualquer consequência negativa. A final, cogitar a vida de um filho como um dano em si ou uma fonte de danos, é uma ideia ruim e contradiz a própria intangibilidade da dignidade humana.

É compreensível e aceitável que os pais sejam indenizados por despesas adicionais que terão pela criação do filho. Para além do mencionado dano patrimonial, é defensável que sejam os pais compensados pelo dano da privação de sua autonomia, como oportunidade perdida de viver sua vida da maneira que se desejou e planejou. Percebam: a "perda da autonomia" não é uma perda no sentido consequencial. O nascimento de uma criança, não obstante uma fracassada tentativa de esterilização de um dos pais, não é idealmente uma consequência adversa. Portanto, uma indenização pela privação da autodeterminação dos pais atua como um substitutivo à violação ao seu direito fundamental ao planejamento familiar. Se um filho vem ao mundo por uma falha em um método anticonceptivo, proporcionando um impacto maravilhoso sobre a vida da família, subsiste o direito dos genitores à uma indenização, posto privados de sua liberdade de escolha. Se compararmos o mundo como ele é agora, com o mundo como deveria estar, ausente o ilícito, posso não estar pior, mas ainda assim posso reivindicar os meus direitos.

No julgamento da Suprema Corte da Inglaterra do caso Rees V Darlington Memorial Hospital, a demandante, pessoa com deficiência, submeteu-se à esterilização pois temia dificuldades adicionais em exercer o papel de mãe. Contudo o procedimento falhou e tempos depois ela teve um filho. Na decisão que concedeu a indenização, Lord Bingham descreveu que a sua finalidade não se pretende compensatória, por não se tratar de um produto de um cálculo, porém não seria meramente uma indenização nominal, muito menos um prêmio irrisório. Pelo contrário, ela deve proporcionar alguma medida de reconhecimento pelo ilícito3.

Se um dia a indenização pelo dano-morte for respaldada em nossos tribunais, seja na visão consequencialista da compensação de um dano, seja na alternativa de um ilícito indenizável como reação à violação de um direito, necessariamente o próximo passo será a avaliação quanto à extensão desta indenização. No dito popular, quando resolvemos um problema, sempre surge uma família de novos problemas. O debate quanto à quantificação de uma eventual indenização é tão importante quanto o próprio reconhecimento do dano morte, haja vista que se mantido o padrão nacional de condenações por valores irrisórios, na prática qualquer indenização corresponderá a uma não indenização.

*Nelson Rosenvald é professor do corpo permanente do doutorado e mestrado do IDP/DF. Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Pós-doutor em Direito Civil na Università Roma Tre (IT-2011). Pós-doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra (PO-2017). Visiting Academic Oxford University (UK-2016/17). Professor Visitante na Universidade Carlos III (ES-2018). Doutor e mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Associado Fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados (IAPD).

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1 Seção 823 - "Responsabilidade por danos (1) A pessoa que, intencionalmente ou por negligência, lesar ilegalmente a vida, o corpo, a saúde, a liberdade, a propriedade ou outro direito de outra pessoa é responsável por indenizar a outra parte pelos danos daí decorrentes".

2 VARUHAS, Jason. The Concept of 'Vindication' in the Law of Torts: Rights, Interests and Damages.

3 House of Lords, SESSION 2002-03 [2003] UKHL 52. REES V DARLINGTON MEMORIAL HOSPITAL NHS TRUST: HL 16 OCT 2003.