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Direito Privado no Common Law

Discutir as novidades legislativas, jurisprudenciais e doutrinárias do Direito Privado na Inglaterra, USA, Canadá e Austrália, dialogando com as alternativas atuais no Direito Civil brasileiro.

Nelson Rosenvald, Daniel Dias, Pedro Fortes e Thaís G. Pascoaloto Venturi
Em 2020, Deborah Laufer, moradora da Flórida, diagnosticada com esclerosa múltipla, cadeirante e com deficiência visual, visitou o site do Acheson Hotels, que na época administrava o hotel The Coast Village Inn em Wells (Maine), e constatou que a home page consultada não detalhava informações a respeito das condições de acessibilidade das instalações, exigidas pela Lei dos Americanos com Deficiência (ADA - Americans with Disabilities Act). Mesmo não pretendendo se hospedar no referido hotel, Laufer ajuizou uma ação contra o estabelecimento. Sua legitimidade ativa para a referida demanda se justificaria a partir de sua atuação como "tester", vale dizer, uma pessoa que averigua se os sistemas de reservas online dos hotéis cumprem com os parâmetros legais relacionados à "Regra da Reserva".1 A função de "tester de discriminação" há muito é reconhecida nos EUA como relevante para a fiscalização da aplicação das leis de direitos civis em benefício das pessoas com deficiência. Desde de 1990, a Lei dos Americanos com Deficiência (ADA) exige que as instituições públicas e privadas - como restaurantes, lojas de varejo, escolas e hotéis - sejam acessíveis às pessoas com deficiência. Quando da oferta de serviços de alojamento, com base na ADA, extrai-se que os proprietários e operadores de hotéis devem oferecer informações suficientes através dos seus serviços de reservas para permitir que potenciais clientes com deficiência decidam se o negócio satisfaz as suas necessidades.2 De acordo com o professor Michael Ashley Stein, da Harvard Law School, "a ADA existe há 33 anos e a exigência é que você publique as informações relativas ao acesso no site para que as pessoas possam saber. A ADA, e os direitos civis em geral, determinam que as pessoas com deficiência, tal como qualquer outra pessoa, devem poder ir a hotéis, restaurantes, clubes ou o que quer que seja, tal como todas as outras pessoas."3 O problema central da discussão sobre a atuação dos testers gira em torno da viabilidade de se qualificar a inexistência de condições de acessibilidade (ou a falta de informações adequadas a respeito) como um dano em si (um "dano estigmático"4), derivado de uma presunção de que tanto o tester como outros indivíduos com deficiência não seriam bem-vindos nesses lugares. Nesse sentido, os tribunais norte-americanos estão divididos quanto à interpretação do Título III da ADA, precisamente na definição sobre ser ou não ser um dano indenizável a formal violação da norma que determina não apenas condições especiais de acessibilidade como informações adequadas a respeito. Se um hotel não possui condições de acessibilidade, ou não publica informações adequadas a respeito em sua publicidade, é possível afirmar a ocorrência de uma lesão estigmática? De acordo com Stein, "o Segundo Circuito considera que o mero tratamento desigual ou violação da norma não demonstra necessariamente discriminação, enquanto o Sétimo Circuito é, na verdade, mais progressista nesse aspecto. Mas os circuitos concordam unanimemente que uma violação legal no caso de exclusão de indivíduos com base na raça é uma lesão estigmática reconhecível. Então, uma questão que surge é: por que não está tudo bem no caso da raça, mas de acordo com alguns circuitos, está tudo bem, ou pelo menos não é reconhecível como uma lesão estigmática, no contexto da deficiência?"5 Para além da fundamental discussão substancial envolvida, há ainda outra de ordem processual: muitas das demandas judiciais fundamentadas na lesão estigmática das pessoas com deficiência vem sendo instauradas como parte de uma notória agenda de judicialização em série - especialmente na Califórnia e na Flórida -, visando a obtenção de lucros. Especificamente no caso de Laufer, foram identificados mais de 600 hotéis por ela processados nos últimos cinco anos. No caso Acheson Hotels, LLC v. Laufer, o tribunal distrital recusou-se a processar a ação com base na ilegitimidade da autora, na medida em que ela sequer revelou qualquer interesse concreto de se hospedar no hotel demandado, e, portanto, não seria apta a deduzir qualquer pretensão alegando danos decorrentes da falta de informações adequadas no site da empresa. Subsequentemente, o Tribunal de Apelações do 1º Circuito dos EUA decidiu por reativar o processo, sob o fundamento de que a legitimidade ativa de Laufer decorreria de seu direito à adequada informação sobre as condições de acessibilidade omitidas pelo site do hotel. A partir daí, iniciaram-se as tentativas de submissão do caso à Suprema Corte dos EUA. Representando a Acheson, o advogado Adam Unikowsky instou os Justices a admitirem a revisão do caso, concentrando-se na questão processual envolvida a respeito da (i)legitimidade de Laufer. A pretensão da rede hoteleira é obter decisão da Suprema Corte que iniba iniciativas dos testers, desestimulando ações semelhantes. Por sua vez, Laufer também requereu a admissão do caso pela Suprema Corte, a fim de se resolver o conflito entre os tribunais de recurso sobre a questão pendente.6 Contudo, posteriormente Laufer desistiu da ação em razão de um grupo de juízes federais ter recomendado que o advogado que a tinha representado noutros casos envolvendo o cumprimento da ADA fosse suspenso de exercer a advocacia em Maryland, devido a repetidas violações éticas. As discussões sobre a admissão do caso pela Suprema Corte, a fim de se determinar a questão da legitimidade dos testers para demandar alegando discriminação Em outubro de 2023, a Suprema Corte dos Estados Unidos recebeu os argumentos orais do caso para decidir a respeito da atuação dos testers. Em específico, a análise envolvida reporta-se à possibilidade de um tester, arrogando-se na condição de defensor de pessoas com deficiência, deter legitimidade ativa para processar um estabelecimento por suposta violação da Lei dos Americanos com Deficiência - mesmo que ela não tenha se hospedado no estabelecimento.7 De um lado, a Acheson insistiu na tese de que, para a legitimidade ativa ser reconhecida, o requerente deve necessariamente ter sofrido lesão estigmática resultante diretamente do fato de ter lhe sido negado tratamento igual. Embora a Acheson reconheça que o não atendimento das necessidades das pessoas com deficiência no acesso aos seus hotéis possa efetivamente constituir discriminação, afirma que, no caso concreto, a Coast Village não discriminou Laufer ao negar-lhe o acesso às suas instalações, na medida em que ela nunca teve a real intenção de se hospedar no hotel. Por outro lado, Laufer sustentou que a Suprema Corte deve reconhecer a lesão por ela sofrida, em virtude do tratamento discriminatório ocorrido no caso concreto, como uma lesão ao Artigo III da ADA. Assim, a autora tester teria legitimidade para a causa, mesmo tendo se exposto voluntariamente ao tratamento discriminatório justamente para demandar judicialmente a discriminação ilegal da empresa ré. Laufer sustentou que o Congresso dos EUA promulgou a ADA para integrar as pessoas com deficiência em todos os aspectos da sociedade, e que a Coast Village não reconheceu a dignidade dessas pessoas, inibindo-as de usufruir dos seus serviços de reservas online - conduta essa que estigmatizaria os membros de grupos desfavorecidos, tratando-os como cidadãos de segunda classe. Na apreciação desses argumentos, a Suprema Corte fez menção a um emblemático precedente gerado no julgamento do caso Havens Realty v. Coleman (1982). Na ocasião, o Tribunal decidiu a favor de uma organização de direitos civis (a Housing Opportunities Made Equal - HOME), que enviou duas mulheres (uma negra e uma branca) como testers, para tentar alugar um apartamento em um condomínio da Havens Realty Corp., organização proprietária de um complexo de apartamentos em um subúrbio de Richmond, Virgínia. A HOME se qualificou como uma corporação sem fins lucrativos, que tinha como objetivo "tornar a igualdade de oportunidades na habitação uma realidade na Área Metropolitana de Richmond". Para tanto, por via das testers enviadas, buscou determinar se a Havens efetivamente praticava discriminação racial. Como resultado do teste, a tester negra (Coles) foi informada falsamente pela Havens de que não havia mais apartamentos disponíveis. Por outro lado, à tester branca foram ofertadas diversas unidades para locação. Diante disso, a tester negra (Coles) e a organização de direitos civis (a HOME) processaram a Havens, tendo a Suprema Corte, à época, decidido pela legitimidade de Coles para mover uma ação por discriminação habitacional porque, apesar da ausência de real intenção de locação de um apartamento, ela sofrera um "dano particularizado", na medida em que a locação lhe foi recusada por causa de sua raça.8 Apesar do precedente citado, o Justice John G. Roberts Jr. o distinguiu do caso de Laufer. Segundo o magistrado, em Havens Realty Co. v. Coleman houve "discriminação real" contra a tester, o que não teria ocorrido no caso de Laufer. Segundo Roberts, a discriminação decorrente da falha em fornecer informações sobre acessibilidade no site da empresa ré não implica a legitimidade de Laufer "porque ela realmente não precisa das informações sobre o site, ela não vai usá-las".9 Por sua vez, o Justice Samuel Alito reconheceu que, devido à contradição dos julgamentos já ocorridos sobre o tema nos tribunais de apelação, seria útil e conveniente que a Suprema Corte fornecesse orientação sobre esta questão. Ainda que, a respeito do caso concreto, observou Alito, "está morto como um prego", não só porque Laufer expressamente requerera a desistência da ação no tribunal distrital, mas também porque a Acheson já revisara o seu website,10 o que conduziria à necessidade de extinção da demanda por prejudicialidade, invocando-se a doutrina "mootness".11 Já o Justice Clarence Thomas, a respeito da legitimação ativa, sugeriu que "seria mais fácil simplesmente discutir isso e esperar por um processo que ainda está pendente para outra rodada" para decidir a questão.12 O Justice Neil Gorsuch indagou sobre o que Laufer teria que fazer para ostentar legitimidade para processar a empresa ré por uma violação da regra de reserva. O advogado da ré (Unikowsky) sustentou que ela teria que ter "planos de viagem concretos", para que a falha em fornecer informações de acessibilidade tivesse "consequências posteriores".13 Contra esse argumento, a Justice Sotomayor ressaltou que "não é assim que as pessoas viajam". Segundo Sotomayor, as pessoas muitas vezes olham para uma variedade de hotéis como parte do processo de decidir para onde querem viajar. Se a informação sobre acessibilidade não estiver disponível online, continuou ela, as pessoas com deficiência não poderão decidir concretamente pela hospedagem. 14 A Justice Amy Coney Barrett também simpatizou com o argumento de Unikowsky, no sentido de que o Tribunal deveria aceitar se manifestar sobre o caso, no intuito de resolver a contradição dos julgamentos dos demais tribunais inferiores, e também porque "recursos significativos já foram investidos neste caso".15 O Justice Brett Kavanaugh, por fim, sugeriu que o Tribunal decida pela admissão da discussão a respeito da legitimidade ativa dos testers, mas que o faça em uma outra oportunidade, em outro caso que chegue à Suprema Corte. Aguarda-se a decisão da Suprema Corte. Como se percebe, o tema principal a ser enfrentado - do qual depende a própria definição da legitimidade ativa dos testers para ações indenizatórias por discriminação -, está relacionado à compreensão do que efetivamente corresponda a um dano estigmático.   Trata-se de tema ainda não enfrentado pela doutrina brasileira, sobre o qual em breve nos dedicaremos nesse espaço. -----  Referências 1 JUSTIA US LAW. Acheson Hotels, LLC v. Laufer. Disponível em: https://law.justia.com/cases/federal/appellate-courts/ca1/21-1410/21-1410-2022-10-05.html. Acesso em 11 de novembro de 2023. 2 Americans with Disabilities Act. Disponível em: https://www.ada.gov/. Acesso em 12 de novembro de 2023. 3 Harvard Law Today. A test for the Americans with Disabilities Act. Disponível em: https://hls.harvard.edu/today/supreme-court-preview-acheson-hotels-llc-v-laufer/. Acesso em 11 de novembro de 2023. 4 "A stigmatic injury is an injury that one suffers because one is a member of some group. The injury itself is by definition neither personal nor individual because every member of the group would suffer the same injury under the same circumstances." Cornell Law School. Legal Information Institute. Acheson Hotels, LLC v. Laufer. Disponível em: https://www.law.cornell.edu/supct/cert/22-429. Acesso em 12 de novembro de 2023. 5 Harvard Law Today. A test for the Americans with Disabilities Act. Disponível em: https://hls.harvard.edu/today/supreme-court-preview-acheson-hotels-llc-v-laufer/. Acesso em 11 de novembro de 2023. 6 SCOTUS BLOG. Acheson Hotels, LLC v. Laufer. Disponível em: https://www.scotusblog.com/case-files/cases/acheson-hotels-llc-v-laufer/. Acesso em 12 de novembro de 2023. 7 OYEZ. Acheson Hotels, LLC v. Laufer. A questão submetida ao juízo de admissibilidade dos Justices é: "Does an ADA "tester" have Article III standing to challenge a hotel's failure to provide disability accessibility information on its website, even if she has no plans to visit the hotel?" Disponível em: https://www.oyez.org/cases/2023/22-429. Acesso em 11 de novembro de 2023. 8 JUSTIA U.S. SUPREME COURT. Havens Realty Corp. v. Coleman, 455 U.S. 363 (1982). Disponível em: https://supreme.justia.com/cases/federal/us/455/363/. Acesso em 11 de novembro de 2023. 9 OYEZ. Acheson Hotels, LLC v. Laufer. Disponível em: https://www.oyez.org/cases/2023/22-429. Acesso em 11 de novembro de 2023. 10 Idem. 11 Cornell Law School. Legal Information Institute. Acheson Hotels, LLC v. Laufer. Disponível em: https://www.law.cornell.edu/supct/cert/22-429. Acesso em 12 de novembro de 2023. 12 OYEZ. Acheson Hotels, LLC v. Laufer. Disponível em: https://www.oyez.org/cases/2023/22-429. Acesso em 11 de novembro de 2023. 13 Idem. 14 Idem. 15 Idem.
Em 2022 foi introduzida nos EUA a Lei de Responsabilidade Algorítmica (Accountability Algorithmic Act). A AAA aborda as crescentes preocupações públicas sobre o uso generalizado de sistemas de decisão automatizados (ADS). Propõe que as organizações que implementam tais sistemas tomem várias medidas concretas para identificar e mitigar os riscos sociais, éticos e legais. Como um esforço legislativo para regular os ADS em todos os setores, a AAA dos EUA é um marco numa tendência mundial para complementar ou substituir a autorregulação neste domínio por legislação. O exemplo mais influente dessa tendência é a Lei de Inteligência Artificial proposta pela Comissão Europeia (2021). Porém, não ficamos por aqui. Os EUA têm agora a sua política oficial de inteligência artificial mais abrangente. Na semana passada o presidente Biden assinou uma histórica ordem executiva que exige novos padrões federais para segurança, proteção e confiabilidade da IA. O estatuto lida com várias facetas da gestão de riscos e desenvolvimento da IA, estabelecendo novos padrões para tutela da privacidade dos americanos, promovendo direitos civis, defendendo consumidores e trabalhadores e incentivando a inovação e a concorrência. A ordem ampla, com quase 20.000 palavras, utiliza o termo "inteligência artificial" para se referir a software automatizado preditivo, perceptivo ou gerador que pode imitar certas habilidades humanas. A rápida ascensão da inteligência artificial - especificamente, sistemas generativos de IA, gerou intensa preocupação e receios existenciais sobre riscos concretos e demonstráveis no presente. Ilustrativamente, os modelos de IA agravam claramente o problema da desinformação através de deepfakes visuais e da produção instantânea de texto. Os algoritmos de aprendizagem automática codificam preconceitos que ampliam e automatizam os padrões de discriminação existentes, podendo influenciar o comportamento humano a longo prazo. Existem ameaças à privacidade nos vastos volumes de dados recolhidos através de sistemas de IA - incluindo software de reconhecimento facial - e utilizados para treinar novos modelos generativos de IA. A inteligência artificial também poderá tornar-se uma grande ameaça à segurança nacional; por exemplo, modelos de IA poderiam ser utilizados para acelerar o desenvolvimento de novas armas químicas. A nova ordem executiva conduz os EUA a uma governança mais abrangente da IA, pois, diversamente das ações anteriores, transcende princípios e diretrizes, na medida em que algumas seções exigem ações específicas por parte das empresas de tecnologia e agências federais. A Ordem Executiva orienta as seguintes ações: a) Novos padrões para segurança e proteção de IA À medida que as capacidades da IA se intensificam, também aumentam os seus riscos potenciais e as implicações para a segurança e proteção dos indivíduos. Daí a exigência sobre desenvolvedores de sistemas de IA para que compartilhem resultados dos testes de segurança e outras informações críticas com o governo dos EUA. Isto é, a Ordem Executiva exige que empresas que desenvolvam qualquer modelo básico que represente um sério risco à segurança nacional notifiquem o governo federal ao treinar o modelo e compartilhem os resultados de todos testes de segurança. Estas medidas garantem que os sistemas de IA sejam seguros, protegidos e confiáveis antes que as empresas os introduzam no mercado. Especificamente, o requisito aplica-se a modelos contendo "dezenas de milhares de milhões de parâmetros" que foram treinados em dados abrangentes. Esta regra de transparência provavelmente se aplicará à próxima versão do GPT da OpenAI, o grande modelo de linguagem que alimenta seu chatbot ChatGPT. b) Desenvolvimento de padrões, ferramentas e testes para garantir que os sistemas de IA sejam seguros, protegidos e confiáveis. O Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia estabelecerá padrões rigorosos para garantir a segurança antes da divulgação pública. O Departamento de Segurança aplicará esses padrões aos setores de infraestrutura crítica e estabelecerá o Conselho de Segurança e Proteção da IA. Além das infraestruturas críticas, serão enfrentados os riscos químicos, biológicos, radiológicos, nucleares e de segurança cibernética. c) Proteção contra fraudes ensejadas pela IA, estabelecendo padrões e melhores práticas para detectar conteúdo gerado por IA e autenticar conteúdo oficial. O Departamento de Comércio desenvolverá orientações para autenticação de conteúdo e marcas d'água para rotular claramente o conteúdo gerado por IA. As agências federais utilizarão estas ferramentas para que os americanos saibam facilmente que as comunicações que recebem do seu governo são autênticas. d) Estabelecimento de programa avançado de segurança cibernética para desenvolvimento de ferramentas de IA capazes de detectar e corrigir vulnerabilidades em softwares crítico, inclusive garantindo que a comunidade militar e de inteligência dos Estados Unidos utilize a IA de forma segura, ética e eficaz nas suas missões, direcionando ações para combater o uso militar da IA pelos adversários. O fato é que, sem salvaguardas, a IA pode colocar ainda mais em risco a privacidade dos americanos. Afinal, a IA não só facilita a extração, identificação e exploração de dados pessoais, mas também aumenta os incentivos para o fazer, porque as empresas utilizam dados para treinar sistemas de IA. Assim, a Ordem Executiva apela ao Congresso para que aprove uma legislação sobre privacidade de dados para proteger todos os americanos, especialmente as crianças, orientando as seguintes ações: a) acelerar o desenvolvimento e o uso de técnicas de preservação da privacidade - Incluindo aqueles que utilizam IA de ponta e que permitem treinar sistemas de IA preservando a privacidade dos dados de treinamento. b) fortalecer a pesquisa que preserva a privacidade e tecnologias, tais como ferramentas criptográficas que preservam a privacidade dos indivíduos. A National Science Foundation trabalhará com esta rede para promover a adoção de tecnologias de ponta de preservação da privacidade por agências federais. O processo de desenvolvimento envolverá "red-teaming", ou seja, hackers benevolentes trabalharão com os criadores do modelo para analisar preventivamente as vulnerabilidades. c) avaliar como as agências federais coletam e utilizam informações comercialmente disponíveis que contenham dados de identificação pessoal, reforçando as orientações de privacidade para que prestem contas dos riscos de IA. Relativamente à promoção de direitos civis, o uso irresponsável da IA pode aprofundar o preconceito e outros abusos na justiça, na saúde e na habitação. A Ordem Executiva orienta as agências a combater a discriminação algorítmica, ao mesmo tempo que direciona as autoridades a fornecer orientações claras ao mercado para evitar que algoritmos de IA sejam usados para exacerbar a discriminação. Para garantir a justiça em todo o sistema de justiça criminal, busca-se desenvolver as melhores práticas sobre o uso de IA em sentenças, liberdade condicional e liberdade condicional, libertação e detenção antes do julgamento, avaliações de risco, vigilância, previsão de crimes e policiamento preditivo, e análise forense. A outro giro, a IA pode trazer benefícios reais aos consumidores -tornando produtos melhores, mais baratos e disponíveis. Contudo, a IA também amplia o risco de lesar, enganar ou prejudicar de outra forma o consumidor. Para proteger os consumidores e ao mesmo tempo garantir que a IA possa melhorar a situação dos americanos, orienta-se o uso responsável da IA nos cuidados de saúde e no desenvolvimento de medicamentos acessíveis. Em reforço a Ordem Executiva molda o potencial da IA para transformar a educação, criando recursos para apoiar educadores na implantação de ferramentas educacionais habilitadas para IA. Lado outro, a IA altera radicalmente o mercado de empregos e locais de trabalho da América, oferecendo a promessa de melhoria da produtividade como também os perigos de uma maior vigilância no local de trabalho, preconceitos e deslocação de empregos. Para mitigar estes riscos, apoiar a capacidade dos trabalhadores de negociar coletivamente e investir na formação e desenvolvimento da força de trabalho que seja acessível a todos, orienta-se o desenvolvimento de princípios e melhores práticas para mitigação de danos e maximização de benefícios da IA para os trabalhadores, evitando que empregadores subcompensem a força de trabalho, avaliem injustamente as candidaturas a empregos ou interfiram na capacidade de organização dos trabalhadores. Relativamente à promoção da inovação e da concorrência, a Ordem Executiva garante que os EUA liderem o caminho da inovação e da concorrência, catalisando pesquisas de IA nos Estados Unidos por uma ferramenta que fornecerá aos pesquisadores e estudantes acesso aos principais recursos e dados de IA em áreas vitais como saúde e mudanças climáticas. O objetivo consiste em promover um ecossistema de IA justo, aberto e competitivo, proporcionando aos pequenos desenvolvedores e empreendedores acesso a assistência técnica e recursos, auxiliando as pequenas empresas a comercializar avanços em IA, bem como expandindo a capacidade de imigrantes qualificados para estudar e trabalhar nos Estados Unidos, modernizando e simplificando critérios de vistos, entrevistas e avaliações. Tendo em consideração que os desafios e oportunidades da IA são globais a Ordem Executiva quer expandir os compromissos bilaterais, multilaterais e multissetoriais para colaboração na IA, gerindo os seus riscos e garantindo que a tecnologia seja segura, confiável e interoperável. A Administração dos EUA trabalha com aliados e parceiros em um quadro internacional forte de governança sobre o desenvolvimento e a utilização da IA, colaborando com Austrália, Brasil, Canadá, Chile, União Europeia, França, Alemanha, Índia, Israel, Itália, Japão, Quênia, México, Holanda, Nova Zelândia Zelândia, Nigéria, Filipinas, Singapura, Coreia do Sul, Emirados Árabes Unidos e Reino Unido. Enfim, são muitos primeiros passos em muitas direções. Embora a policy em si não seja propriamente uma regulamentação, é um grande avanço para uma iminente regulamentação porque recolhe uma quantidade vultosa de dados através de todos os grupos de trabalho dedicados à IA e de investigação e desenvolvimento das agências. A coleta dessas informações é fundamental para os próximos passos, a final, para regular, primeiro é preciso entender o que está acontecendo. Contudo, por mais ampla que seja a nova política, ainda existem lacunas notáveis. A ordem executiva nada diz sobre a proteção específica da privacidade dos dados biométricos, incluindo varreduras faciais e clones de voz. Também existem lacunas quando se trata de abordar o uso de IA pelo governo em aplicações de defesa e inteligência. Mesmo naquilo que a ordem aparenta ser eficiente, pode haver uma desfasagem considerável entre o que os decisores políticos esperam e o que é tecnicamente viável. A "marca d'água" é um exemplo disso. A nova política ordena que o Departamento de Comércio identifique as melhores práticas para rotular o conteúdo gerado por IA nos próximos oito meses - mas não existe um método técnico robusto e estabelecido para fazê-lo. Portanto, a ordem executiva por si só é insuficiente para resolver todos os problemas colocados pelo avanço da IA, posto inerentemente limitada em seu poder e facilmente revertida. Por isso, a própria ordem pede ao Congresso que aprove legislação sobre privacidade de dados.  Contudo, não se pode negar se tratar de um avanço significativo que preenche uma lacuna política. A União Europeia tem trabalhado publicamente para desenvolver a UE AI Act - que está perto de se tornar lei - sem que os EUA consigam alcançar progressos semelhantes. Com a ordem executiva, há esforços a seguir e mudanças no horizonte. As questões difíceis que precisam ser enfrentadas concernem a quais critérios de decisão e provas devem ser considerados legítimos - ou pelo menos socialmente aceitáveis - para diferentes processos de tomada de decisão públicos e privados. Responder a estas questões exige uma visão positiva do que devem ser as sociedades futuras. Os decisores políticos devem ir além das tentativas de garantir uma responsabilidade algorítmica "mínima", concentrando-se, em vez disso, na concepção de mecanismos de governança pública que permitam às organizações atingir compromissos justificáveis dentro dos limites da permissibilidade legal.
Introdução Na minha última coluna apresentei as ideias presentes no importante livro More Than You Wanted to Know: The Failure of Mandated Disclosure, escrito por Omri Ben-Shahar (Uni. Chicago) e Carl Schneider (Uni. Michigan). Eles apresentam uma crítica poderosa a uma das técnicas regulatórias predominantes: os deveres de informar. Ben-Shahar e Schneider argumentam que informar não funciona e que isso não pode ser corrigido. Os legisladores deveriam, portanto, abandonar esta técnica regulatória ineficaz (e, por vezes, prejudicial) e tentar outras abordagens, ou mesmo não fazer nada. Na minha última coluna disse que essas ideias são inovadoras, mesmo disruptivas, e que merecem divulgação no Brasil. Disse que elas são também desoladoras e que deixam os leitores inconformados, em busca de uma saída. Pois então, na presente coluna, vou apresentar uma saída potencial. Em 2015, um ano após a publicação do livro, Oren Bar-Gill (Harvard) escreveu uma resposta a Ben-Shahar e Carl Schneider, defendendo as divulgações inteligentes, ou os deveres de informar de forma inteligente: "Defending (Smart) Disclosure: A Comment on More Than You Wanted to Know", publicado no vol. 11 da Jerusalem Review of Legal Studies. Bar-Gill começa dizendo que a sua defesa não é de todos, ou mesmo da maioria, dos deveres de informar. A sua defesa é restrita a uma pequena fração do vasto domínio dos deveres de informar, que são os deveres de informar de maneira inteligente (smart disclosures). Segundo o próprio Bar-Gill, a verdade é que ele concorda com quase tudo o que Ben-Shahar e Schneider escrevem em seu livro. Em particular, concorda que a "informação completa" falhou, uma vez que os consumidores não vão ler as mensagens contendo informações longas e detalhadas exigidas por tantas leis e regulamentos. Bar-Gill concorda também que "linguagem simplificada" e "apresentação simplificada" não ajudam. A discordância de Bar-Gill começa quando os autores discutem e criticam as "pontuações" (scores). Isso pode parecer uma questão menor. Mas Bar-Gill argumenta que esta questão - a simplificação utilizando "pontuações" - pode ser a chave para uma transmissão eficaz de informações em contextos importantes. Pontuações (scores) Então, em primeiro lugar, o que são pontuações (scores)? Uma pontuação é um resumo unidimensional de um ou mais recursos do produto ou serviço. Por exemplo, a taxa anual efetiva global (TAEG) é um agregador unidimensional do custo do crédito. Uma classificação de higiene de restaurante é um resumo unidimensional do nível de segurança alimentar no restaurante. O bom das pontuações é que os consumidores não precisam entender como uma pontuação é formulada. Eles precisam apenas entender que uma pontuação mais alta é melhor do que uma pontuação mais baixa. Ou, no caso de pontuações de preços ou custos como a TAEG, que uma pontuação mais baixa é melhor do que uma pontuação mais alta. Isto significa que, mesmo os consumidores que nunca lerão as "informações completas", poderão atentar para as pontuações e ser influenciados por elas. Naturalmente, isto também significa que os reguladores que concebem estas divulgações do tipo pontuação (score-type disclosures) devem garantir que a pontuação fornece de fato um resumo útil da informação subjacente. Benefícios das pontuações (scores) Para defender a utilidade das pontuações, Bar-Gill inicia apresentando os benefícios e custos desse tipo de divulgação. As pontuações fornecem dois benefícios principais. Primeiro, facilitam a comparação entre empresas e produtos. Suponhamos que a TAEG representa de fato o custo total do crédito - "uma suposição heroica, pelo menos para alguns produtos de crédito". O consumidor ao escolher um empréstimo, com preço multidimensional, simplesmente escolheria o empréstimo com a TAEG mais baixa. E, se os consumidores comprarem com base na TAEG, os credores competirão para oferecer empréstimos com TAEG baixas, ou seja, empréstimos de custo mais baixo. A fixação de preços de crédito multidimensionais desencoraja a comparação e prejudica a concorrência. A TAEG unidimensional pode resolver esse problema. O segundo benefício das pontuações é que evitam os problemas mais importantes com os deveres de inormação: o problema da sobrecarga e o problema da acumulação. É fácil ver como uma pontuação unidimensional evita o problema da sobrecarga. Quanto ao problema da acumulação, Ben-Shahar e Schneider destacam um custo importante dos deveres de informação que até agora escapou à análise sistemática - a externalidade que uma informação impõe à outra, uma vez que ambas competem pela atenção limitada dos indivíduos. As pontuações evitam o problema de acumulação. As pontuações são análogas ao preço de etiqueta do produto. O preço será inevitavelmente divulgado a cada venda. Uma pontuação é como um preço. Pode ser divulgado juntamente com o preço ou em vez do preço - como um preço mais abrangente (como a TAEG). Bar-Gill não pensa que exista um problema de acumulação com divulgações unidimensionais de preços. Na verdade, Ben-Shahar e Schneider reconhecem que as pontuações "moderam alguns problemas de sobrecarga e acumulação".  Custos das pontuações (scores) As pontuações proporcionam benefícios reais, mas não são isentas de custos. Em primeiro lugar, quando são utilizadas pontuações, perde-se informação. Uma pontuação unidimensional não consegue capturar todas as informações previstas pela divulgação completa. Mas, como a divulgação completa é basicamente inútil, não estamos realmente perdendo nada. A comparação relevante é entre uma divulgação parcial que fornece alguma informação útil (a pontuação) e uma divulgação completa que não fornece nenhuma informação útil. Ainda assim, o ideal da "divulgação completa" é sacrificado. E isso precisa ser reconhecido. Além disso, como as pontuações implicam divulgação seletiva, é necessário atentar para o processo de seleção. Os legisladores decidem quais informações são incluídas na pontuação e como a pontuação é construída e implementada. Isto implica que os legisladores têm um grave ônus sobre os seus ombros. A divulgação completa é relativamente fácil - "apresente todas as informações que você possui". As divulgações do tipo pontuação são muito mais complicadas de serem projetadas. Elas exigem que os legisladores exerçam julgamento. Para além do desafio "técnico", a discricionariedade inevitável associada à concepção das pontuações significa que a divulgação, através das pontuações, é mais paternalista do que os divulgadores podem querer admitir. Apesar dos custos, as pontuações proporcionam benefícios reais. É necessária uma análise custo-benefício caso a caso. Por isso, Bar-Gill recorre a exemplos específicos. Pelos limites da presente coluna, vamos nos restringir a um: a classificação de higiene dos restaurantes. Exemplo: classificação de higiene dos restaurantes. As classificações de higiene dos restaurantes fornecem um exemplo proeminente de divulgação do tipo pontuação. Um sistema de classificação de higiene alimentar é uma forma de avaliar e pontuar os padrões de higiene de uma empresa alimentar. As classificações baseiam-se numa inspeção das instalações, do processo de manipulação e preparação dos alimentos e dos sistemas globais envolvidos nas suas operações alimentares. Normalmente, o sistema de classificação usa uma faixa de 0 a 5, sendo 0 o mais baixo e 5 o mais alto. Ben-Shahar e Schneider criticam as pontuações de higiene e identificam problemas com este sistema de classificação. Bar-Gill concorda com as premissas da crítica, mas resiste à conclusão de que as classificações e pontuações estejam fadadas ao fracasso. O primeiro problema identificado por Ben-Shahar e Schneider é a captura política. Argumentam que os restaurantes têm influência sobre os inspetores de higiene e utilizam essa influência para obter uma nova inspeção rápida e assim "consertar" uma nota baixa. Bar-Gill reconhece ser evidente que este tipo de influência interfere na eficácia do sistema de classificação. Mas o problema da captura política é muito geral. Ocorre em todas as formas de regulamentação, não apenas regulamentação de divulgação e não apenas pontuações. O segundo problema com as classificações de higiene decorre da discricionariedade que os inspetores têm quando implementam o sistema de classificações. Especificamente, as medidas de limpeza estão sujeitas ao critério do inspetor. Ben-Shahar e Schneider argumentam, corretamente, que a discricionariedade conduz a uma falta de consistência, o que, mais uma vez, interfere com a eficácia do sistema de classificação. Mas, tal como acontece com a captura, a discricionariedade - e a inconsistência - são onipresentes. Qualquer sistema judicial ou regulatório deve conceder discricionariedade a alguns atores. E a inconsistência segue-se inevitavelmente. Decisões inconsistentes sobre sentenças têm sido uma fonte de preocupação contínua. No entanto, ninguém pensa que o direito civil ou penal devam ser abolidos. Finalmente, Ben-Shahar e Schneider argumentam, de forma convincente, que as classificações de higiene são uma pontuação imperfeita - que não captam fielmente a informação subjacente que interessa aos consumidores. Em particular, Ben-Shahar e Schneider argumentam que a limpeza é um indicador (proxy) imperfeito da segurança alimentar. Na verdade, indicadores perfeitos são raros. Mas a incapacidade de projetar indicadores perfeitos e de primeira linha não deveria prejudicar os segundos melhores indicadores. Divulgação, incluindo a divulgação do tipo pontuação, implica necessariamente certos custos. Os primeiros dois custos (ou problemas) analisados acima são comuns a muitas (todas?) formas de regulação e, portanto, não devem ser usados para prejudicar as pontuações; ou deveria ser usado para condenar toda a regulação. O terceiro problema - a ausência de indicadores perfeitos - é exclusivo das divulgações do tipo pontuação. Mas a resposta é mais geral: não devemos evitar a segunda melhor solução apenas porque a primeira melhor é inatingível.
Introdução Algumas de minhas colunas anteriores discutiram decisões recentes da Suprema Corte dos Estados Unidos, que tiveram repercussão grande nos meios jurídicos e nos debates sociais brasileiros por tratarem de questões relevantes também para o nosso debate sobre direitos fundamentais, especialmente o reconhecimento dos programas de ação afirmativa e dos direitos reprodutivos das mulheres. Em Students for Fair Admissions v. Harvard, 600 U.S. 181 (2023), os precedentes estadunidenses sobre a constitucionalidade de uso de critérios de identidade racial como parte do processo seletivo de admissão para universidades foram radicalmente alterados.1-2-3 Por sua vez, no julgamento de Dobbs v. Jackson Women's Health Organization, 597 U.S. (2022), foram derrubados os precedentes constitucionais que reconheciam a existência de um direito fundamental à realização voluntária de aborto para interrupção de gravidez por mulheres no primeiro trimestre após a concepção.4-5-6-7 Esses dois casos são relevantes para o debate brasileiro porque o Supremo Tribunal Federal também é constantemente provocado para interpretar o conteúdo jurídico dos direitos fundamentais em casos difíceis semelhantes a esses dois julgamentos. Nesse sentido, a presente coluna apresenta para o público brasileiro a primeira parte do livro How To Interpret The Constitution, recém-lançado pelo Professor Cass Sunstein, em que o Professor de Harvard se propõe a elaborar um guia para os perplexos com relação às interpretações da Constituição dos Estados Unidos após essas novas decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos.8 Teorias de Interpretação Segundo Recente Obra do Professor Cass Sunstein O catálogo de possíveis teorias da interpretação constitucional se inicia pela escola do textualismo, cujo ponto de partida é a ideia de que interpretar se inicia pela adesão ao texto da Constituição. Cass Sunstein afirma que todos concordam que o texto deve ser cumprido, mas que existem discordâncias sobre o significado da Constituição que tipicamente ocorrem porque o texto parece vago ou ambíguo. Não raro, existem confusões entre a ideia do compromisso de seguir o texto com o compromisso de compreender o texto de certas maneiras. É por isso que existem pessoas que rejeitam a escola do textualismo, "não porque não sigam o texto, mas porque elas pensam que o texto deixa todas as questões difíceis em aberto".9 A verdade é que o texto também não exaure os princípios constitucionais.10 Uma outra teoria de interpretação constitucional nos Estados Unidos é o Originalismo Semântico, que considera que o texto da Constituição deve ser interpretado de modo consistente com o significado semântico original de suas palavras.11 Como essa teoria ainda deixa o conteúdo dos termos muito abertos para a interpretação, uma corrente mais conservadora abraça uma vertente de originalismo que é mais restritiva por se basear na ideia das intenções autorais a partir da pergunta sobre o que os seus autores pretendiam? Para os defensores dessa forma de originalismo, a chave de interpretação é histórica. Em sua forma moderna, contudo, o originalismo nasceu como um movimento político e uma resposta consciente da direita para uma série de decisões da Suprema Corte sob a Presidência do Justice Warren que agradaram a esquerda.12 Para Cass Sunstein, contudo, existe uma outra vertente do originalismo que merece destaque por ter sido acolhida pelos magistrados conservadores da Suprema Corte dos Estados Unidos, como o falecido Antonin Scalia e atuais membros da corte como Clarence Thomas, Neil Gorsuch, Amy Coney Barrett, Samuel Alito Jr e Brett Kavanaugh. Trata-se da Escola do Significado Público Original, que considera que tal critério seria objetivo e não subjetivo, tornando fáceis a maioria das questões constitucionais a partir de um contexto público compartilhado.13 O catálogo de escolas originalistas inclui ainda as vertentes de defesa do 'direito original'14, dos 'métodos originais'15 e das 'expectativas originais'16, mas sem a mesma relevância prática da vertente do Significado Público Original. Dentre as perspectivas não-originalistas, por sua vez, destacam-se a Teoria Protetora da Democracia, o Tradicionalismo, a Leitura Moral, Thayerismo, Constitucionalismo da 'Common-Law' e Constitucionalismo do Bem-Comum. A Teoria Protetora da Democracia é como Cass Sunstein se refere à tese defendida por John Hart Ely no seu célebre livro Democracy and Distrust, também denominada de 'controle de constitucionalidade fortalecedor da democracia'.17 Por um lado, o Poder Judiciário deve exercer um papel firme de proteção contra os déficits democráticos, assegurando as pré-condições para o auto-governo e também o exercício da liberdade de expressão e de discurso político. Por outro lado, o Poder Judiciário também deve exercer um papel firme na proteção de minorias discretas e vulneráveis, conforme a tradição jurisprudencial dos Estados Unidos desenvolvida a partir da nota de rodapé número 4 da decisão da Suprema Corte no caso United States v. Carolene Products, 304 U.S. 144 (1938). Ao desenvolver essa teoria, John Hart Ely defende a jurisprudência da Corte Warren (1953-1969), mas silencia e não defende a decisão da Suprema Corte em Roe v. Wade, 410 U.S. 113 (1973).18 O Tradicionalismo - inspirado pelas ideias do líder político inglês Edmund Burke - considera que os juízes devem interpretar cláusulas constitucionais ambíguas com referência específica às práticas recorrentes que são herdadas dos antepassados em vez de valores em evolução ou novas compreensões sobre liberdade e igualdade.19 Os tradicionalistas preferem o conhecimento do passado às novas ideias. Por sua vez, a Leitura Moral está diretamente relacionada com as ideias de Ronald Dworkin e sua concepção de 'integridade' como critério para que os princípios sejam aplicados da melhor maneira aos casos concretos. Os juízes estão em uma posição privilegiada para o desenvolvimento dos princípios constitucionais, na medida em que têm o dever de realizar julgamentos morais para decidir os casos difíceis, interpretando e dando sentido ao texto constitucional.20 Em contraste com outras escolas de interpretação, Cass Sunstein salienta que para os adeptos da Leitura Moral, "o arco da história se curva na direção da justiça e juízes deveriam ser uma parte da história".21 Thayerismo é uma escola de interpretação inspirada pelos ensinamentos de um Professor de Harvard no século XIX chamado de James Bradley Thayer e que defendia um papel extremamente limitado para as cortes judiciais em uma sociedade democrática. Somente nos casos em que não existisse nenhuma dúvida da inconstitucionalidade de uma lei é que os juízes deveriam derrubar atos do Poder legislativo.22 O Constitucionalismo da 'Common-Law' defende um processo de desenvolvimento da jurisprudência através do processo decisório caso-a-caso, como foco nos detalhes do caso concreto e respeito pelo precedente e recurso a princípios de nível mais setorial do que pela invocação de teorias abstratas sobre liberdade e igualdade, tal como elaborado por David Strauss em sua obra The Living Constitution sobre 'constitucionalismo vivo'.23 Finalmente, o Constitucionalismo do Bem-Comum, desenvolvido pelo Professor de Harvard Adrian Vermeule, toma emprestado o método Dworkiniano de leitura moral, mas considera que o bem comum está associado a uma série de práticas recorrentes decorrentes das tradições, o que aproxima essa teoria do Tradicionalismo quanto ao seu conteúdo.24 Considerações finais O presente artigo apresentou um catálogo de teorias de interpretação da Constituição dos Estados Unidos, que servem de ponto de partida para a reflexão do Professor Cass Sunstein sobre 'como interpretar a Constituição'. Apesar de o leitor brasileiro estar familiarizado com as ideias Dworkinianas da 'leitura moral', o presente artigo contribui para apresentar uma série de outras escolas que não são de conhecimento do grande público. A próxima coluna deverá explicar mais o argumento do livro sobre como as teorias importam para a proteção dos direitos e como se deve escolher dentre as teorias de interpretação, segundo a recente obra do Professor Cass Sunstein. __________ 1 Disponível aqui.  2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui.  4 Disponível aqui.  5 Disponível aqui.  6 Disponível aqui.  7 Disponível aqui.  8 SUNSTEIN, Cass R. How to Interpret the Constitution. Princeton University Press, 2023. 9 Id, p. 22. 10 Id, p. 24. 11 Id. 12 Id, p. 28. 13 Id, p. 30. 14 Id, p. 34-35. 15 Id, p. 35. 16 Id, p. 36. 17 Id, p. 37. 18 Id, p. 37-41. 19 Id., p. 41-43. 20 Id., 43-47. 21 Id., p. 47. 22 Id., p. 48. 23 Id., 56-58. 24 Id., 58-59.
A Comissão Federal de Comércio (F.T.C., na sigla em inglês), representada por sua presidente, Lina KHAN, juntamente com os Procuradores Gerais de 17 Estados norte-americanos, recentemente ajuizaram demanda contra a gigante do comércio eletrônico Amazon, por práticas irregulares de comércio.1 Na ação ajuizada, os autores acusam a Amazon da prática de monopólio do mercado virtual, na medida em que domina esmagadoramente o comércio online, ostentando uma fortuna estimada em US$ 1,3 trilhão. Dentre os pedidos deduzidos na ação incluem-se a emissão judicial de ordens para: (i) adoção de medidas estruturais pela empresa ré, no intuito de reparar e prevenir a recorrência das violações da Amazon às diversas leis federais e estaduais e (ii) para restaurar a concorrência leal e remediar os danos causados pelas violações da lei por parte da Amazon. Para além das structural reliefs, pede-se ainda a condenação monetária equitativa das Amazon pelos danos causados a cada um dos requerentes pelas práticas de monopólio e eliminação da concorrência. A influência da Amazon sobre o comércio online moldou a vida dos comerciantes em todo o mundo, estabelecendo novas condições de trabalho para mais de um milhão de trabalhadores. Conhecido como uma "loja de tudo" pela vasta gama de produtos que vende e pela velocidade com que os entrega, a Amazon adota práticas comerciais de aniquilamento dos pequenos comerciantes para favorecer os seus próprios serviços.  A demanda proposta pelo governo federal norte-americano e outros 17 Estados nada mais reflete do que o já aguardado confronto entre a Amazon e Lina KHAN (presidente da F.T.C.) que, em 2017, quando ainda estudante de direito em Yale, publicou um artigo chamado  "O Paradoxo Antitruste da Amazon", no Yale Law Journal.2 No referido artigo, KHAN defendeu que a Amazon não deveria ignorar o comportamento anticompetitivo apenas para satisfazer seus clientes com a promessa de preços mais baixos. Sustentou que as leis de combate ao monopólio, outrora robustas, foram marginalizadas, permitindo à Amazon acumular um poder estrutural que lhe viabiliza exercer um controle crescente sobre muitas partes da economia. O argumento da tese de KHAN objetivou quebrar um certo consenso até então estabelecido nos círculos antitruste, que remonta à década de 1970, quando a regulamentação foi redefinida com o claro escopo de alcançar primordialmente o bem-estar do consumidor, via preço.3 Segundo a autora, todavia, os reguladores dos monopólios que se concentram tão somente na meta de melhores preços aos consumidores estariam a pensar apenas a curto prazo. Na opinião de KHAN, uma empresa como a Amazon - que vende coisas, compete com outras que vendem coisas e é dona da plataforma onde os negócios são feitos - tem uma vantagem inerente que prejudica a concorrência leal. Os interesses a longo prazo dos consumidores incluem não apenas preços mais baixos, mas também a qualidade, variedade e inovação dos produtos - fatores melhor promovidos através de um processo competitivo robusto e de mercados abertos. Na conclusão da tese, a ensaísta afirma que "como consumidores, como usuários, amamos essas empresas de tecnologia", mas como cidadãos, como trabalhadores e como empresários, reconhecemos que o seu poder é preocupante. Precisamos de um novo quadro, um novo vocabulário sobre como avaliar e abordar o seu domínio."4 A publicação desse artigo ajudou a incitar o debate sobre a necessidade de modernização das leis antitruste dos EUA para controlar as gigantes da tecnologia, transformando Lina KHAN em uma verdadeira celebridade improvável nos corredores de Washington. A publicação do artigo no Yale Law Journal obteve 146.255 acessos, um grande best-seller no mundo dos tratados jurídicos. Tamanha popularidade trouxe também muitas críticas. Diversos e importantes acadêmicos encontraram falhas nas propostas de Lina KHAN para reviver e expandir a regulação antitruste, rotulando suas propostas como "Hipster Antitrust", na medida em que "tudo que era velho voltou a ser legal."5 Dentre os críticos, Timothy Muris (ex-presidente da F.T.C) e Jonathan Nuechterlein publicaram um artigo ("Antitruste na Era da Internet") em resposta ao movimento de reforma antitruste, versando a respeito da A&P - rede varejista que praticamente inventou o supermercado moderno na década de 1920. Com os seus preços baixos e uma ampla gama de produtos, a cadeia tornou-se líder de mercado em sua época.6 A rede A&P possuía 70 fábricas e eliminou intermediários, o que lhe permitiu manter os custos baixos. No entanto, segundo concluiu o artigo de Muris e Nuechterlein, a própria popularidade da A&P desencadeou uma reação negativa que culminou no fechamento da empresa anos mais tarde. O governo investigou a A&P por práticas violadoras da regulação antitruste durante a década de 1940, instigado por concorrentes que não podiam competir. Após décadas de declínio, a A&P fechou suas portas definitivamente em 2015. A analogia com o caso da Amazon parece óbvia: "Não deixem o governo perseguir a Amazon da mesma forma que perseguiu a A&P", alertaram Muris e Nuechterlein, na medida em que a Amazon agregou centenas de bilhões de dólares em valor à economia dos EUA, revelando-se um inovador brilhante cujas descobertas "ajudaram a lançar novas ondas de inovação nos setores retalhista e tecnológico, para grande benefício dos consumidores". A Comissão Federal de Comércio (F.T.C.) vem investigando a Amazon por possível conduta anticompetitiva há vários anos, averiguando desde o mercado da empresa e seu serviço de assinaturas Prime, até as fusões corporativas e seu braço de computação em nuvem. O marketplace da Amazon é o coração das operações de comércio eletrônico da empresa. Os comerciantes terceirizados - que agora respondem por mais da metade das vendas on-line da empresa -, pagam uma comissão sobre cada venda e têm a opção de também pagar à Amazon por serviços de armazenamento, remessa e publicidade. Segundo as investigações, a Amazon impede que os vendedores ofereçam preços mais baixos em outros sites, política essa que, segundo a F.T.C., restringe a concorrência on-line na medida em que força os vendedores a aumentar os preços em plataformas concorrentes (como a Walmart) por medo de ter seus produtos reprimidos nos resultados de pesquisa da Amazon. Na demanda judicial apresentada, o F.T.C. argumenta que a Amazon abusou de um impulsionador de vendas conhecido como Buy Box - o espaço valioso em seu site e aplicativo que solicita aos clientes "Compre agora" ou "Adicione ao carrinho". Os conflitos entre a Amazon e a F.T.C. se intensificaram desde que Lina KHAN assumiu a agência, em junho de 2021, quando o presidente Biden a nomeou à presidência.  Semanas depois de sua posse, a Amazon solicitou à agência que ela fosse impedida de atuar em investigações antitruste relacionadas à empresa. Mas não foi apenas nos Estados Unidos que as práticas nocivas à concorrência adotadas pela Amazon foram e vem sendo investigadas. No âmbito da União Europeia isso também ocorre, desde a entrada em vigor de nova regulação que impõe maior transparência no acesso a dados e nas plataformas de publicidade e comércio eletrônico, bem como nos algoritmos de recomendação. A Lei de Mercados Digital (DMA) e a Lei de Serviços Digitais (DSA) objetivam evitar o monopólio do setor e limitar crimes on-line de disseminação de notícias falsas e de violação da privacidade, além de tutelar menores de idade. De acordo com a DMA, empresas com mais de 45 milhões de usuários ativos mensais e uma capitalização de mercado de 75 bilhões de euros são consideradas "gatekeepers", que fornecem serviços de plataforma central. Essas empresas serão obrigadas a permitir a inter-operabilidade de seus aplicativos de mensagens com concorrentes e a permitir que os usuários escolham quais aplicativos desejam pré-instalar em seus dispositivos.[vii] Uma lista de seis grandes empresas de tecnologia globais (designadas como "gatekeepers" de serviços online) terão que se adequar às novas regras do bloco para serviços e mercados digitais. As Big Techs relacionadas são a Alphabet (Google), a Amazon, a Apple, a ByteDance (controladora do Tik Tok), a Meta (Instagram e WhatsApp) e a Microsoft. O objetivo da UE é reforçar a regulamentação das Big Techs e estimular a competição no setor. Embora referidas empresas tenham seis meses para se adaptar às novas regras, elas precisam nomear imediatamente um responsável pelo cumprimento, subordinado diretamente ao Conselho, e informar a Comissão Europeia sobre quaisquer fusões ou aquisições planejadas. Em caso de descumprimento das regras, as companhias podem ser multadas em até 10% do faturamento global. Como se percebe, está em curso um movimento global no sentido de se modernizar e densificar a regulação das práticas antitruste na economia mundial, a partir da adequada compreensão do novo modelo empresarial imposto pelas Big Techs.  Regulação antitruste: o cerco às Big Techs Pelo cenário descrito, é interessante perceber o evidente movimento do governo norte-americano no combate ao monopólio em relação à Amazon e às demais empresas de tecnologia que ameaçam dominar o mercado. Uma comissão nomeada pela Câmara dos Deputados dos Estados Unidos investigou práticas comerciais abusivas cometidas pela Amazon, pela Apple, pelo Google e pelo Facebook, concluindo que tais empresas detêm um poder de monopólio que as levou a cobrar taxas excessivas, excluir rivais e impedir a competição com aquisições. A partir de uma profunda investigação, foi publicado um relatório final do subcomitê antitruste que acusa essas empresas de práticas anticoncorrência, monopólio no mercado e intimidação de rivais. O relatório recomenda mudanças nas leis antitruste e a edição de novas regras que dificultem a compra de empresas menores por parte das gigantes de tecnologia, além de separar algumas unidades de negócios para impedir práticas monopolistas no mercado.8 Entre outras sugestões, os membros do Comitê recomendaram que novas leis sejam aprovadas para proibir as empresas de darem vantagem aos seus próprios produtos nas plataformas que controlam, citando listagens no mecanismo de busca do Google e o marketplace da Amazon, que prioriza produtos da sua própria marca nas buscas, como exemplos de comportamento monopolista.  O texto também recomenda que as empresas tornem seus serviços compatíveis com os concorrentes e permitam que os usuários transfiram seus dados. Para ampliar a fiscalização, os democratas pedem um aumento no orçamento da Comissão Federal de Comércio para que o órgão consiga monitorar adequadamente as gigantes de tecnologia.  Especificamente no caso do Facebook, dentre a ampla gama de práticas e condutas analisadas, afirma o relatório que a empresa "manteve seu monopólio por meio de uma série de práticas de negócios anticompetitivas", dentre as quais, "adquirir potenciais rivais e escrever suas normas de forma a propiciar vantagem aos seus serviços, e sufocar iniciativas alheias". O estudo determinou que, depois de sua aquisição pelo Instagram, em 2012, empresa cresceu tanto que terminou em larga medida concorrendo contra si mesma, e não contra outros rivais no mercado.9  O Google, por sua vez, domina esmagadoramente o mercado de pesquisas on-line em geral. Dados disponíveis publicamente sugerem que a empresa captura mais de 87% das pesquisas nos EUA e mais de 92% das consultas em todo o mundo. A empresa foi acusada de manter o monopólio de pesquisa por via de práticas abusivas, como obter dados de terceiros, sem permissão, para melhorar os resultados de busca, além de manipular seu serviço de busca a fim de destacar seus produtos.10 No que diz respeito à Amazon, o relatório conclui que vendedores que recorrem ao mercado da empresa se sentem incapazes de protestar contra as taxas e regras impostas porque dependem demasiadamente de seus serviços. O relatório também afirma que a companhia emprega rotineiramente dados obtidos de terceiros a fim de melhorar e vender seus produtos.11 No caso da Apple, o relatório afirma que "na ausência de competição, o poder de monopólio da Apple sobre a distribuição de software para dispositivos iOS resultou em danos aos concorrentes e à competição, reduzindo a qualidade e a inovação entre os desenvolvedores de aplicativos e aumentando os preços e reduzindo as opções para os consumidores".12 O relatório aponta ainda que a Apple dificulta a distribuição de aplicativos de software em dispositivos iOS e impõe barreiras a seus concorrentes ao controlar seu sistema operacional e a App Store, beneficiando seus próprios produtos. A regulação das práticas que induzem o monopólio e a consequente eliminação da concorrência, como se percebe, assume novos contornos em um movimento global, na medida em que se normaliza o modelo negocial imposto pelas Big Techs. O grande desafio com o qual a virtualizada sociedade de massa do século XXI passa a conviver diz respeito à equalização dos múltiplos objetivos de uma regulação que deve buscar a melhor tutela dos direitos individuais e sociais, sem ignorar a realidade e a relevância das grandes empresas de tecnologia para as relações sociais contemporâneas. ___________ 1 United States District Court.  Western District of Washington.  Disponível aqui. Acesso em 08 de outubro de 2023. 2 KHAN, Lina. Amazon's Antitrust Paradox. The Yale Law Journal 126, n. 03, Jan. de 2017, 710-805. Disponível aqui. Acesso em 08 de outubro de 2023. 3 Idem. 4 Idem. 5 The New York Times. Amazon's Antitrust Antagonist Has a Breakthrough Idea. Disponível aqui. Acesso em 08 de outubro de 2023. 6 Muris, Timothy J. and Nuechterlein, Jonathan E., Antitrust in the Internet Era: The Legacy of United States v. A&P (May 29, 2018). George Mason Law & Economics Research Paper No. 18-15. Disponível aqui ou aqui. Acesso em 09 de outubro de 2023.     7 Parlamento Europeu. A Lei dos Mercados Digitais e da Lei dos Serviços Digitais da UE em detalhe. Disponível aqui. Acesso em 15 de outubro de 2023. 8 Investigation of Competition in Digital Markets.  Majority staff report and recommendations subcommittee on antitrust commercial and administrative law of the committee on the judiciary. Disponível aqui. Acesso em 16 de outubro de 2023. 9 Ibid., p. 142-144. Um estudo interno do Facebook, conhecido como Memorando Cunningham, aconselhou o presidente-executivo da empresa, Mark Zuckerberg, em outubro de 2018, sobre como a empresa poderia continuar a promover o crescimento tanto do Facebook quanto do Instagram sem que um deles chegasse a um "ponto de inflexão" no qual passaria a roubar usuários do outro. Um executivo do Instagram descreveu essa abordagem como "conluio, mas dentro de um monopólio interno". 10 Ibid., p. 177. 11 Ibid., p. 250. 12 Ibid., p. 333.
O mundo do trabalho está passando por uma revolução digital. A crescente utilização de ferramentas digitais e tecnológicas nas últimas décadas tornou possível trabalhar em qualquer lugar e a qualquer hora. A pandemia de Covid-19 apenas aumentou o ritmo deste desenvolvimento. Embora a digitalização do trabalho e a expansão do teletrabalho apresentem vantagens potenciais em termos de flexibilidade, produtividade e conciliação, estas tendências também podem resultar numa intensificação do trabalho, em longos horários de trabalho, na indefinição dos limites entre trabalho e tempo de descanso ou no aumento do stress resultante desde vigilância contínua e monitoramento de desempenho e produtividade. Esses fatores podem, por sua vez, afetar negativamente a saúde física e psicológica dos colaboradores. Consequentemente, parece necessário regulamentar alguns aspectos do novo ambiente de trabalho digital com o objetivo de compensar pelo menos alguns dos impactos negativos decorrentes da utilização frequente de ferramentas de trabalho digitais. É neste contexto que o direito à desconexão (R2D) torna-se relevante. Os dez princípios fundamentais (Princípios Orientadores) definidos pelo ELI (European Law Institute) estabelecem uma base regulamentar equilibrada para o R2D na Europa. Os Princípios Orientadores, que se destinam a todos os sistemas jurídicos europeus, têm um âmbito propositadamente amplo. Na medida em que o problema da conectividade excessiva se estende por toda a Europa, parece restritivo limitar a análise à UE. Tanto a legislação nacional como os documentos legislativos e políticos da UE são importantes fontes de inspiração mundo afora, inclusive para o Brasil. Particularmente desafiador é o nível em que as regras sobre desconexão devem ser aplicadas e as pessoas que devem visar. A subsidiariedade, a articulação das fontes e do âmbito são, portanto, aspectos fundamentais a considerar. A tensão entre uma regulação aplicável em larga escala e a necessidade de adaptar ao R2D às especificidades de cada país, setor e empresa, a fim de garantir a sua aplicação eficiente e harmoniosa, está refletida nestas Diretrizes. Foi dedicada especial atenção à articulação cuidadosa das fontes reguladoras, a fim de combinar flexibilidade e adaptabilidade com princípios de proteção claros. Assim, embora o R2D se destine a ser aplicado uniformemente em toda a Europa, as regras e modalidades específicas para a sua implementação são deixadas principalmente à negociação coletiva ou, na falta desta opção, a serem regulamentadas a nível da empresa ou dos trabalhadores. A ideia é responder às realidades de cada local de trabalho. Contudo, isto não impede a introdução de regras claras que garantam a implementação eficaz do R2D. O resultado é, um equilíbrio delicado entre princípios e implementação. No que diz respeito ao âmbito (Princípio Orientador 2), as Diretrizes propõem um R2D que se aplica a todos os trabalhadores, conforme definido na legislação da UE e na legislação nacional. Isto é coerente com os seus objetivos: a proteção da saúde dos trabalhadores e a consecução de um melhor equilíbrio entre vida profissional e pessoal. Isto implica que o R2D não se limita a categorias específicas de trabalhadores: aplica-se a todos aqueles que exercem as suas atividades sob condições de controle e subordinação, o que incluirá, de forma crítica, os falsos trabalhadores autônomos. Por outro lado, são incluídos os quadros dirigentes, na medida em que se encontrem numa posição comparável à dos trabalhadores. Porém, mesmo que um gestor deva usufruir do R2D, em princípio, da mesma forma que os seus subordinados, o âmbito e os termos de tal direito não serão os mesmos. mesmo, devido às peculiaridades de suas responsabilidades e atividades. Por último, deve ser dada especial atenção à correspondência entre as exigências e expectativas impostas aos empregadores e a realidade econômica. É importante considerar a dimensão das empresas em causa e garantir que as suas obrigações não representam um fardo excessivo. A adaptação das suas obrigações (Princípio Orientador 3), bem como as negociações coletivas sobre o R2D (Princípio Orientador 5) são suscetíveis de salvaguardar os interesses dos empregadores, independentemente da sua dimensão e recursos. Estes Princípios Orientadores são o resultado de reflexões e discussões coletivas, que conduziram a determinadas propostas e escolhas. O objetivo global é conciliar os interesses de todas as partes e, em particular, os imperativos de proteção e flexibilidade, garantindo ao mesmo tempo uma ampla aplicação do R2D a todos aqueles que dele necessitam. Nas últimas décadas, os avanços tecnológicos levaram a uma revolução nas tecnologias de TI, abrindo novas oportunidades para o mundo do trabalho. As ferramentas digitais permitem comunicar em qualquer lugar e a qualquer hora, permitindo infinitas possibilidades de teletrabalho e trabalho remoto, contribuindo assim para o desaparecimento do conceito de local de trabalho como espaço físico. Estes desenvolvimentos podem resultar em benefícios e vantagens económicas e sociais, tais como maior flexibilidade e autonomia, potencial para melhorar o equilíbrio entre vida profissional e pessoal e redução dos tempos de deslocação, mas também trazem potenciais problemas e desvantagens, em especial para algumas profissões. Entre estes problemas, destaca-se o potencial das ferramentas digitais que levam à intensificação do trabalho e ao alargamento do horário de trabalho, confundindo as fronteiras entre o trabalho e a vida privada. Quando conduzem a uma cultura "sempre ligada", a utilização de ferramentas digitais no mundo do trabalho tem efeitos prejudiciais na limitação do tempo de trabalho, com um impacto negativo no equilíbrio entre vida profissional e pessoal, bem como na saúde física e mental dos trabalhadores. Além disso, a cultura "always on" está em contradição com as políticas de sobriedade digital que perseguem objetivos de proteção ambiental. Os problemas acima mencionados foram agravados pelas mudanças resultantes da pandemia de COVID-19 e, em particular, pelo aumento do teletrabalho, que até então era um fenómeno minoritário na UE. A investigação da Eurofound revela alguns resultados reveladores: mais de um terço dos trabalhadores em toda a UE começaram a trabalhar a partir de casa durante a fase de confinamento da pandemia, em comparação com 5% que normalmente trabalhavam a partir de casa, e houve um aumento substancial na utilização de ferramentas digitais para fins de trabalho. Exige-se, portanto, uma melhor aplicação da legislação existente sobre o tempo de trabalho e/ou intervenção regulamentar, com vista a proteger os trabalhadores dos efeitos negativos da utilização excessiva de ferramentas de trabalho digitais. Na UE, O R2D não está explicitamente regulamentado. Alguns Estados-Membros introduziram disposições legais sobre R2D nas suas ordens jurídicas, outros, baseiam-se principalmente na negociação coletiva para regular a questão, e a maioria não tendo adotado qualquer medida. Um risco desta fragmentação é que a regulamentação equilibrada das relações laborais em toda a Europa esteja ameaçada. Isto acontece apesar de o tempo de trabalho ter sido regulamentado a nível da UE, estabelecendo períodos mínimos de descanso aplicáveis, como regra geral, em toda a União. Dado que o estabelecimento de regras adequadas em matéria de R2D não pode ser suficientemente realizado pelos Estados-Membros individualmente, mas, devido à sua fundamentação, escala e efeitos, ser mais bem alcançado a nível da União, a ação da UE em matéria de R2D parece adequada, estando em conformidade com os princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade consagrados no artigo 5.º do Tratado da União Europeia (TUE). Não surpreendentemente, o Parlamento Europeu apelou a uma proposta de diretiva para garantir que os trabalhadores sejam capazes de exercer eficazmente o R2D. Esta diretiva complementaria a Diretiva 2003/88/CE relativa a certos aspetos da organização do tempo de trabalho, a Diretiva (UE) 2019/1152 relativa a condições de trabalho transparentes e previsíveis, a Diretiva (UE) 2019/1158 sobre o equilíbrio entre vida profissional e familiar para pais e cuidadores, e Diretiva 89/391/CEE do Conselho relativa à segurança e saúde dos trabalhadores. Uma intervenção regulamentar em nível da UE também está em linha com a Declaração Europeia sobre Direitos Digitais e Princípios para a Década Digital de 2023, emitida pela Comissão, Parlamento e Conselho da UE (Declaração Europeia, 2023). Esta declaração menciona explicitamente o R2D na sua seção sobre condições de trabalho justas e equitativas, onde afirma que a UE está empenhada em "garantir que todos possam desligar-se e beneficiar de salvaguardas para o equilíbrio entre vida profissional e privada num ambiente digital". O R2D deve ser vista como uma medida concreta para garantir que "todas as pessoas tenham direito a condições de trabalho justas, equitativas, saudáveis e seguras e a uma proteção adequada no ambiente digital, bem como no local de trabalho físico, independentemente do seu estatuto profissional, modalidade ou duração", como se pode ler na declaração. Além disso, o R2D, enquanto direito específico, ajuda a definir os limites entre o tempo de trabalho e o tempo de descanso. O respeito pelo tempo de trabalho e a sua previsibilidade é considerado essencial para garantir a saúde e a segurança dos trabalhadores e das suas famílias. Nesse sentido, o R2D visa proteger a saúde e a segurança dos trabalhadores no trabalho, bem como alcançar um melhor equilíbrio entre vida profissional e pessoal, o que, por sua vez, tem um impacto no género. Uma condição prévia para uma compreensão e aplicação adequadas do R2D implica, portanto, uma regulamentação consistente do tempo de trabalho, incluindo, em particular, o horário máximo de trabalho, períodos mínimos de descanso e definições claras de modalidades de trabalho, como períodos de "prontidão" e "de plantão". Nos termos da Diretiva 2003/88/CE, os trabalhadores da UE têm direito a requisitos mínimos de segurança e saúde relativos a certos aspectos da organização do tempo de trabalho. Neste contexto, a diretiva prevê o descanso diário, as pausas para descanso, o descanso semanal, a duração máxima do trabalho semanal e as férias anuais remuneradas, e regula certos aspectos do trabalho noturno, do trabalho por turnos e dos padrões de trabalho. De acordo com o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), o tempo de permanência, durante o qual o trabalhador é obrigado a estar fisicamente presente num local especificado pelo empregador, deve ser considerado como "tempo de trabalho integral [...] ], independentemente do fato de, durante os períodos de permanência, o interessado não exercer continuamente qualquer atividade profissional". Tempo de permanência, no sentido em que o trabalhador é obrigado a estar à disposição do empregador e não têm a possibilidade de dispor livremente do seu tempo, também deve ser considerado como tempo de trabalho. Além disso, o TJUE interpretou os períodos mínimos de descanso como "regras de direito social comunitário de particular importância, das quais todos os trabalhadores devem beneficiar como requisito mínimo necessário para garantir a proteção da sua segurança e saúde". No entanto, a Diretiva 2003/88/CE não prevê expressamente o R2D de um trabalhador, nem exige que os trabalhadores estejam disponíveis fora do horário de trabalho, durante os períodos de descanso ou outros períodos não laborais, mas prevê o direito a períodos de descanso diário, semanal e anual ininterruptos, durante os quais o trabalhador não deve ser contactado ou contactável. Os Princípios Orientadores contidos no documento do ELI procuram delinear os principais alicerces para uma regulamentação comum sobre R2D em toda a Europa. Estes Princípios são o resultado de uma análise da regulamentação existente a nível nacional. Em grande medida, correspondem também aos subjacentes à proposta de 2021 do Parlamento Europeu (PE, 2021). No entanto, em aspectos específicos, os Princípios Orientadores fornecem reflexões mais extensas ou análises mais abrangentes, com exemplos nacionais, incluindo de Estados não pertencentes à UE. As jurisdições nacionais ou subnacionais analisadas para este efeito são Bélgica, França, Alemanha, Grécia, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Espanha, Suécia, Suíça, Polónia e Portugal, algumas das quais não têm regras legais expressas em vigor no R2D. Finalmente, os Princípios Orientadores incorporam ideias e resultados de pesquisas em curso sobre teletrabalho e sua regulamentação. São propostos dez Princípios Orientadores que fornecem o conteúdo básico de um verdadeiro "direito à desconexão". Cada Princípio é comentado para explicar seu contexto e justificativa. A íntegra do trabalho com os 10 princípios orientadores se encontra aqui.
Há algumas semanas recebemos em aula do mestrado Omri Ben-Shahar, professor da Universidade de Chicago. A aula tinha o objetivo de debater o livro Mais Do Que Você Queria Saber (no original More Than You Wanted to Know), de autoria dele e de Carl E. Schneider (Uni. Michigan), lançado pela Princeton University Press em 2014. Segundo os autores, "talvez nenhum tipo de regulação seja mais comum ou menos útil do que os deveres de informação" - impor que uma parte de uma contratação forneça informações à outra. Os deveres de informação estão por toda parte. São os termos de uso do iTunes com os quais você concorda, o formulário de consentimento do médico que você assina, a pilha de papéis que você recebe com sua hipoteca. A leitura dos termos, do formulário e dos papéis deveria prepará-lo para escolher bem sua aquisição, seu tratamento e seu empréstimo. Mais Do Que Você Queria Saber examina as evidências e descobre que os deveres de informação raramente funcionam. Mas, questionam os autores, como poderiam funcionar? Quem lê essas informações? Quem as compreende? Quem as utiliza para tomar melhores decisões? Ben-Shahar e Schneider "colocam o problema regulatório em termos humanos. A maioria das pessoas acha as informações complexas, obscuras e enfadonhas." Elas fazem escolhas eliminando informações, e não acumulando-as. A maioria das pessoas acha que pode ignorar com segurança a maior parte das informações e que, de qualquer forma, não tem domínio necessário para analisá-las. E tantas informações são obrigatórias que ninguém poderia prestar atenção a todas elas. Outro aspecto é que tudo isto não pode ser alterado para formas mais simples numa escrita mais clara, uma vez que questões complexas não podem ser simplificadas através de uma redação melhor. Além disso, a divulgação é uma panaceia para os legisladores, pelo que estes tendem sempre a impor novos deveres e a expandir os antigos, muitas vezes em vez de assumirem o árduo trabalho de regular com firmeza. Mais Do Que Você Gostaria de Saber é "oportuno e provocativo". O livro enfrenta a forma de regulação que encontramos diariamente e questiona se devemos encontrá-la de todo. A base de toda essa crítica é quase trivial, uma vez que as razões expostas são compartilhadas ou ao menos intuídas por muitas pessoas. No entanto, mesmo diante de uma vasta e convincente análise de dados (inclusive empíricos), é chocante o alto nível com que Ben-Shahar e Schneider estão dispostos a abrir mão dos deveres de informação como técnica regulatória. Parece que mesmo em grande parte convencidos da tese, não estamos dispostos a isso sem que antes tenhamos outra "coisa" para colocar no lugar. Esse ponto é descrito pelos próprios autores no livro: Ao escrever este livro, conversamos com muitos colegas, críticos, estudantes e reguladores sobre nossas ideias. Raramente ficam surpreendidos com as nossas evidências ou com o nosso argumento de que as informações geralmente não conseguem atingir os seus objetivos. Mas então perguntam o que deveria substituir o dever de informação. Essa é a pergunta errada - na verdade, uma pergunta ruim. Isso implica que o dever de informação estava fazendo algo que precisa ser substituído. Nosso argumento tem sido que ele realiza tão pouco que eliminá-lo negaria alguma coisa a poucas pessoas. Este livro foi escrito para persuadir os legisladores a não usarem um método regulatório fracassado. Esse é certamente um objetivo suficiente para qualquer livro. Se a regulação não funciona, se faz mais mal do que bem, não deve ser utilizada, mesmo que não haja alternativa melhor. Se os informados não se beneficiam com as informações, é um erro regulatório pagar pela obrigatoriedade e administração do regime. Durante dois mil anos, a sangria foi a panaceia dos médicos. Quando suas falhas ficaram claras, a maioria das doenças para as quais foi usada não pôde ser curada. Isso, no entanto, não foi argumento para persistir com a sangria. O mesmo acontece com o dever de informação. (p. 183-184) No debate durante a aula do mestrado, nós brasileiros reagimos como os interlocutores americanos descritos pelos autores. Embora convencidos das falhas dos deveres de informação, não parecíamos dispostos a abrir mão deles enquanto algo melhor não fosse oferecido no lugar. Durante o debate, questionamos e desafiamos como pudemos as ideias presentes no livro, enquanto Ben-Shahar defendeu as próprias ideias com uma assertividade de quem domina o tema. Essas ideias merecem maior divulgação no Brasil. É até estranho que um livro lançado há quase 10 anos com uma tese tão disruptiva (para usar uma palavra da moda) e tão bem fundamentada não tenha tido ainda alguma repercussão entre nós. Seja para concordar ou para discordar, esse livro precisa ser lido e debatido no Brasil, pois o seu conteúdo certamente não é mais (nem menos) do que aquilo que queremos saber.
Introdução Minhas últimas duas colunas descreveram o processo de derrubada da ação afirmativa pela Suprema Corte dos Estados Unidos, apresentando comentários da sessão de sustentação oral, analisando a opinião pública, de analistas e políticos, bem como apresentando a opinião majoritária da Suprema Corte a partir da fundamentação formulada pelo seu Presidente, o Chief Justice John Roberts.  Como se trata de uma decisão de 237 páginas, era impossível que uma única coluna apresentasse os termos da recente decisão judicial e a presente coluna encerra uma trilogia de textos com o objetivo de apresentar uma síntese dos termos do debate para o público brasileiro. É necessário alertar o leitor para o fato de que as colunas são sintéticas, sendo inviável reproduzir todas as nuances analíticas sobre o contexto em que a decisão foi tomada e sobre as opiniões da maioria e da minoria. As demais opiniões majoritárias Em primeiro lugar, além do voto do Presidente John Roberts, outros magistrados conservadores fizeram questão de apresentar opiniões independentes, além de terem aderido aos termos da fundamentação vencedora. Assim é que Clarence Thomas apresentou uma longa argumentação originalista de 59 páginas em defesa de uma "Constituição Cega às Cores" ('Colorblind Constitution'), concluindo que tem consciência de todo o sofrimento sofrido por sua raça, mas que também tem esperança de que os Estados Unidos estejam à altura dos princípios enunciados na Declaração de Independência e na Constituição de que todos são criados iguais, são cidadãos iguais e devem ser tratados com igualdade perante a lei. Por sua vez, Neil Gorsuch apresentou um argumento predominantemente textualista, afirmando que a proibição de discriminação com base em raça não permitiria o reconhecimento de programas de ação afirmativa. Além disso, Brett Kavannaugh formulou uma opinião curta de nove páginas com uma explicação que o programa de ação afirmativa sempre teria sido controvertido diante do escrutínio estrito para classificações raciais e que seria melhor interrompê-lo do que o ampliar.   As opiniões minoritárias. Já as opiniões minoritárias foram adotadas pelas magistradas Sonia Sotomayor, Elena Kagan e Ketanji Brown Jackson. Além de serem mulheres, todas essas magistradas possuem origem familiar relacionada a minorias étnico-religiosas, eis que são provenientes das comunidades latina, judaica e negra respectivamente. A magistrada Sonia Sotomayor elaborou uma longa narrativa histórica com considerações sobre a escravidão e sobre a segregação racial, com o objetivo de colocar em perspectiva a reforma constitucional e legislativa após a guerra civil no século XIX e o movimento pelos direitos civis no século XX. Sua opinião valoriza o legado educacional dos precedentes da Suprema Corte desde Brown v. Board of Education of Topeka, considerando que a opinião da maioria representa um retrocesso para uma sociedade endemicamente segregada e subverte a garantia constitucional da proteção da igualdade ao aprofundar a desigualdade racial na educação, que seria a própria fundação do governo democrático e de uma sociedade pluralista. Em sua análise dura, Sonia Sotomayor critica que a corte considera em sua nova opinião que somente indiferença para a raça é que seria o meio constitucional permitido para se alcançar igualdade nas admissões universitárias. Sua opinião salienta as desigualdades e desvantagens sistêmicas das minorias raciais sub-representadas, que incluem restrições a recursos acadêmicos e maior probabilidade de ser disciplinado ou preso por ser latino ou negro. Além disso, Sonia Sotomayor alerta para o fato de que as universidades de Harvard e da Carolina do Norte possuem ambas um legado de exclusão racial, tendo sido financiadas com recursos de proprietários de escravos, reproduzido as dinâmicas de segregação e discriminação racial e - no caso da Universidade da Carolina do Norte - ter sido um bastião da supremacia branca e da Ku Klux Klan. Para ela, contudo, as instituições acadêmicas mudaram e criaram um ambiente plural que pode promover a educação de indivíduos de minorias, mas a jurisprudência nova da Suprema Corte desconsideraria os precedentes anteriores e o fato de que os programas de ação afirmativa seriam elaborados sob medida para atender aos parâmetros rigorosos do escrutínio estrito. Sonia Sotomayor afirma que a verdadeira objeção da Suprema Corte aos programas de ação afirmativa parece ser que alcançam aquilo que se pretende, ao equalizar oportunidades e ampliar o efetivo acesso de um número maior de estudantes de minorias sub-representadas nas universidades. São esses estudantes que irão sofrer as consequências da nova decisão. Para ela, a concessão de que, em certas situações, os candidatos poderão fazer referências à raça nos seus textos de apresentação da candidatura corresponde a uma "tentativa de colocar batom em um porco", já que a corte "não pode se negar a reconhecer que a raça importa para a vida das pessoas e apresenta uma falsa promessa para tentar se safar e se apresentar como se estivesse conectada com a realidade, mas não engana ninguém". Apesar de considerar que a decisão é destrutiva e pode ter um efeito devastador, Sonia Sotomayor cita Martin Luther King Junior na conclusão de sua opinião para proclamar que - apesar dos esforços judiciais em sentido contrário - os arcos da justiça moral irão se curvar na direção da justiça racial. Elena Kagan e Ketanji Brown Jackson aderiram a essa opinião, com a ressalva de que essa última se considerou impedida em participar do julgamento relativo à Universidade de Harvard devido aos seus vínculos com aquela instituição acadêmica.    Por sua vez, a magistrada Ketanji Brown Jackson fez questão de apresentar uma opinião minoritária independente com relação ao caso relativo à Universidade da Carolina do Norte, em que ecoou todos os pontos já apresentados pela Justice Sotomayor e acrescentou alguns elementos adicionais. Por exemplo, Ketanji Brown Jackson afirma que aqueles que consideram que todos são vítimas dos programas de ação afirmativa ignoram todas as evidências documentadas da 'transmissão intergeracional da desigualdade". Como evidência de que as circunstâncias de vida das minorias raciais continuam diferentes e impactam as oportunidades pessoais, Ketanji Brown Jackson apresentou dados empíricos relativos ao percentual muito maior de mortes de negros do que de brancos em decorrência de COVID-19. Para ela, ajudar minorias ajuda a todos e ajuda a economia dos Estados Unidos. Em sua análise final, afirma que somente o tempo irá revelar os resultados dessa decisão, mas critica que a corte defende a igualdade no estilo de Dom Quixote, percebendo-se na vanguarda, mas contrariando os melhores critérios adotados por instituições acadêmicas de primeira linha para assegurar a diversidade de seus corpos discentes. Ao final, a obstrução do progresso coletivo para a realização da igualdade é, para a magistrada Ketanji Brown Jackson, uma tragédia.  Considerações finais O presente artigo encerra uma trilogia sobre a decisão recente da Suprema Corte dos Estados Unidos, apresentando os termos dos demais votos majoritários e minoritários. O tema da ação afirmativa é de interesse brasileiro também, na medida em que as universidades brasileiras têm adotado critérios identitários como parte de seus programas de admissão. O Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de analisar e considerou tais programas constitucionais, sendo certo que se ampliou o acesso de minorias ao sistema universitário brasileiro nas últimas décadas. Nesse contexto, os textos apresentados nas últimas colunas buscaram explicar os termos do debate estadunidense atual, de modo a torná-lo acessível ao grande público para que saiba mais sobre o conteúdo da opinião da corte e das demais opiniões majoritárias e minoritárias sobre esse tema.
Em nossa mais recente coluna, apresentamos o caso envolvendo o acordo pelo qual a poderosa empresa norte-americana de mídia Fox News concordou em pagar U$787 milhões à empresa Dominion Voting Systems, a fim de encerrar a demanda judicial instaurada. A ação movida pela Dominion Voting Systems contra a rede de televisão e entretenimento Fox News tinha por base a alegação de danos causados por difamação propagada pela Fox, pela disseminação de falsas alegações no sentido de que "as urnas eletrônicas [de votação] da Dominion foram usadas para roubar a Casa Branca durante as eleições presidenciais dos EUA de 2020".1 Nos EUA, a solução consensual do caso Dominion Voting Systems v. Fox News tem gerado diversas discussões e críticas crescentes, sobretudo em função da confidencialidade - que obscurece os termos do acordo, bem como a supressão da chance da adjudicação estatal num caso de notório interesse público. Soma-se à não revelação da íntegra dos termos do acordo, ainda, a ausência de uma "responsabilização pública" da Fox News perante os eleitores norte-americanos, também vitimados pelas dolosas fake news que, em muitos casos, podem tê-los feito optar pelo então candidato à presidência, Donald Trump. Segundo alguns analistas, a afetação de terceiros (os eleitores americanos) constituiria óbice à confidencialidade do acordo. Em que pese o registro histórico do impressionante acordo firmado entre os envolvidos que encerrou o litígio - sobretudo pelas cifras acertadas -, não restou decidido ao longo da demanda judicial um requerimento apresentado pelo The New York Times que buscava revelar parte do conteúdo submetido ao regime de confidencialidade pela Fox e pela Dominion.2 Dentre outras informações, o Times e um consórcio de organizações de mídia requereram ao juiz do processo judicial a divulgação de textos e trocas de e-mails - supostamente forjados -, que foram apresentados como provas pela Fox News no processo de difamação movido pela Dominion Voting Systems. Apesar da solução consensual que encerrou o processo cível por difamação, os advogados que representam o Times insistem na deliberação judicial desse requerimento - direcionado ao juiz Eric M. Davis, do Tribunal Superior de Delaware, sustentando remanescer interesse público na pretendida divulgação, mesmo tendo sido o processo judicial arquivado. Segundo o Times, "há um forte precedente legal, o interesse do público em ter um registro preciso e completo dos documentos apresentados ao tribunal", sendo "imperativo para a compreensão da natureza das reivindicações das partes e das bases do tribunal para as muitas decisões que tomou antes do acordo".3 De acordo com as leis do Estado de Delaware, onde a disputa judicial estava sendo processada, as partes devem demonstrar justa causa para manter as informações processuais sob sigilo. As razões justificadoras do sigilo geralmente envolvem a proteção de dados financeiros, segredos comerciais ou outras informações sensíveis às partes. Segundo a Fox News argumentou, a revelação de dados do processo representava uma ameaça às suas finanças e à sua reputação. Para além da demanda indenizatória proposta pela Dominion e solucionada consensualmente, a Fox News ainda enfrenta outra ação por danos decorrentes de difamação, com pedido indenizatório de US$ 2,7 bilhões, movida pela Smartmatic USA - também uma empresa de software de votação. Até que ponto as provas produzidas no processo anterior poderão ser aproveitadas pela Smartmatic para alicerçar suas próprias reivindicações contra a Fox é questão que já desperta discussões.4 A Primeira Emenda x escudo de desinformação As demandas indenizatórias propostas contra a Fox News despertaram debates para muito além dos danos causados pela difamação empreendida contra as empresas de tecnologia que forneceram urnas eleitorais para as eleições presidenciais de 2020 nos EUA. Acima de tudo, trata-se de analisar as múltiplas causas e consequências da "mídia no banco dos réus". Como se sabe, a extrema importância da imprensa no quadro constitucional norte-americano está enraizada no texto da Primeira Emenda à Constituição dos EUA, segundo a qual "o Congresso não fará nenhuma lei. restringindo a liberdade de expressão ou de imprensa". Observa-se nítida divisão no referido texto, que alude à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa, reconhecendo-se um papel crítico desempenhado pela imprensa na sociedade americana.5 A especial proteção deferida à imprensa objetiva o cumprimento de um papel essencial na democracia, na medida em que atua como um "grande intérprete entre o governo e o povo". A imprensa atua como um agente pelo qual o público recebe o livre fluxo de informações e ideias indispensáveis ao autogoverno inteligente.6 Cumprindo com o objetivo traçado pela Primeira Emenda, a imprensa serve como um "antídoto poderoso para quaisquer abusos de poder por parte de funcionários governamentais. A opinião pública informada é a mais poderosa de todas as restrições ao desgoverno, por esta razão, a supressão ou a redução da publicidade proporcionada por uma imprensa livre só pode ser encarada com grande preocupação".7 Muito embora seja discutível se o teor das informações sigilosas que o Times pretende venham a público no caso Fox News x Dominion  seria suficiente para estabelecer o padrão de "malícia real"8- como no histórico e famoso precedente NY Times v Sullivan julgado pela Suprema Corte dos EUA para estabelecer a difamação de figuras públicas - resta claro que tais evidências poderiam demonstrar que a rede Fox não tinha qualquer compromisso em desempenhar os princípios fundamentais da Primeira Emenda relativos à importância da imprensa para o funcionamento eficaz da democracia americana.9 As garantias de proteção da imprensa e da liberdade de expressão, consagradas pela Primeira Emenda, foram alvo de interessante estudo realizado pela Harvard University, que tomou por base a relação entre a Fox News e Donald Trump, objetivando avaliar seu impacto prejudicial na democracia americana. O estudo concluiu que, nos meses anteriores à eleição de 2020, o Comitê Nacional Republicano e o pessoal da campanha de reeleição de Trump enviaram mensagens repetidas nos mesmos momentos em que os tweets do então presidente Trump sugeriam "uma campanha de desinformação institucionalizada e não individual" sobre fraude eleitoral pelo correio. Esta campanha de desinformação institucionalizada foi apoiada pelos "meios de comunicação de direita, principalmente pela Fox News e pelas rádios, funcionando como uma imprensa partidária".10 O estudo apontou, ainda, que os principais canais de comunicação para propaganda partidária envolvendo a falsa narrativa sobre fraude eleitoral vieram da Fox News. Esta propaganda foi integrada numa estratégia institucional e política de contencioso e ações administrativas destinadas a impedir ou suprimir o voto por correspondência e a limitar o acesso ao voto durante as eleições de 2020.11 Uma das conclusões mais significativas do estudo de Harvard foi que, ao contrário da maioria das análises contemporâneas dos esforços de desinformação no ecossistema de informação americano, a campanha de desinformação envolvendo fraude eleitoral por correio - que manipulou as opiniões dos eleitores americanos -, não teve origem em redes sociais, meios de comunicação social ou através da Rússia ou de algum outro adversário estrangeiro. Na verdade, o estudo de Harvard apontou que a campanha maliciosa foi liderada pelo então Presidente Trump e fomentada por membros proeminentes do Partido Republicano e da Fox News, tendo desempenhado as redes sociais um papel secundário e de apoio. Estas descobertas são consistentes com um estudo separado realizado pelos mesmos investigadores (entre 2015 a 2018), que concluiu que a Fox News e a campanha de Trump foram muito mais influentes na propagação de falsas notícias do que os trolls russos ou os "artistas clickbait" do Facebook. Como se percebe, o sigilo dos termos do acordo travado entre a Fox News e a Dominion na demanda indenizatória por difamação acabou privando o público de ter conhecimento sobre as operações deliberadas e tendenciosas da Fox News objetivando comprometer o processo eleitoral norte-americano. O acordo milionário que encerrou a disputa, aliás, suscita fundadas críticas a respeito da suposta mais valia dos meios consensuais de solução de conflitos, sobretudo em casos nos quais a adjudicação estatal parece ainda ser imprescindível à tutela do interesse público. Nesse sentido, alguns analistas acreditam que a Dominion perdeu uma grande oportunidade de levar adiante o julgamento do caso contra a Fox News, na medida em que, por ocasião do pre-trial, fora negado o requerimento de inadmissão da demanda. O Tribunal de Delaware rejeitou os argumentos da demandada, que tentava justificar suas publicações sobre a pretensa fraude eleitoral com base na alegação de "neutralidade da reportagem" e na "liberdade de opinião", admitindo como verossímeis as acusações imputadas à Fox sobre a ocorrência de dolo na veiculação das fake news.12 Por fim, a opção pelo acordo, apesar de ter respondido à pretensão reparatória da Dominion, obscureceu a oportunidade de um adequado e necessário escrutínio jurisdicional a respeito do papel dos meios de comunicação social no apoio (e no enfraquecimento) do sistema democrático.13 ------------------------------- 1 JUSTIA. The Superior Court of The State of Delaware.  Disponível aqui. Acesso em 09 de setembro de 2023. 2 The New York Times. Times Asks Judge in Fox-Dominion Case to Rule on Redactions. Disponível aqui. Acesso em 08 de setembro de 2023. 3 Idem. 4 REUTERS. Fox resolves Dominion case, but $2.7 billion Smartmatic lawsuit looms. Disponível aqui. Acesso em 09 de setembro de 2023. 5 The First Amendment guarantees freedoms concerning religion, expression, assembly, and the right to petition. It forbids Congress from both promoting one religion over others and also restricting an individual's religious practices. It guarantees freedom of expression by prohibiting Congress from restricting the press or the rights of individuals to speak freely. It also guarantees the right of citizens to assemble peaceably and to petition their government. 6 The International Forum For Responsible Media Blog. The Relationship Between Fox News and the Republican Party Undermines the First Amendment and is Poisoning American Democracy. Disponível aqui. Acesso em 08 de setembro de 2023. 7 Idem. 8 Dentre outras informações, o Times pretende sejam divulgadas as comunicações internas entre funcionários da Fox News demonstrando que sabiam da inveracidade das notícias divulgadas pela empresa sobre as urnas da Dominion. 9 JUSTIA U.S. Supreme Court. New York Times Co. v. Sullivan, 376 U.S. 254 (1964). Disponível aqui. Acesso em 08 de setembro de 2023. 10 Berkman Claim Center. For internet & Society at Harvard Univesity. Mail-In Voter Fraud: Anatomy of a Disinformation Campaign.  Disponível  em https://cyber.harvard.edu/publication/2020/Mail-in-Voter-Fraud-Disinformation-2020. Acesso em 08 de setembro de 2023. 11 Idem. 12 JUSTIA. IN THE SUPERIOR COURT OF THE STATE OF DELAWARE. Disponível aqui. Acesso em 09 de setembro de 2023. 13 JUSTIA. Verdict. What's So Special About the Fox/Dominion Settlement? Less Than You'd Think. Disponível aqui. Acesso em 09 de setembro de 2023.
Todos os sistemas jurídicos compartilham um desafio comum: como reagir diante de um comportamento humano danoso? Qual é a linha que se deve estabelecer entre a repressão de condutas antissociais que ameaçam a ordem social e a compensação das vítimas? Cada ordenamento deve delimitar as fronteiras entre a responsabilidade civil e a criminal. Algumas vezes estas linhas são firmes, por outras obscurecidas e, por vezes sequer existem. Algumas tendências gerais podem ser identificadas em torno das diversas legislações: a) o direito penal é centrado no réu enquanto o direito civil foca na vítima; b) o ponto de partida para a intervenção legal no direito penal é o comportamento do agente, enquanto no direito civil são as consequências da conduta; c) o direito criminal é centrado na pessoa e em uma conduta antijurídica que se enquadra em uma moldura fixada em lei, enquanto a justiça cível quer compensar por certos atos, que não são necessariamente atos ilícitos. Se alguns sistemas oferecem contornos nítidos entre as responsabilidades civil e criminal, em outros o cenário é embaçado e as tensões mais evidentes. Todavia, mais importante do que extrair distinções, importa considerar como estas diferenças podem ser levadas em consideração, retirando-se lições e oferecendo explicações para o estado da arte no direito brasileiro e para onde caminha, conforme a sua história e tradição legal. Espanha: As obscurecidas fronteiras entre a responsabilidade civil e a criminal O direito espanhol intencionalmente persegue uma total erradicação entre as distinções das responsabilidades civil e criminal. Como petição de princípio, todo ato ou omissão tipificado como crime que causa dano gera responsabilidade civil. Em razão de um longo processo histórico,1 as regras de compensação de ilícitos que sejam simultaneamente comportamentos antijurídicos civis e crimes estão contidas no Código Penal e não no Código Civil. Em razão da conexão factual das duas consequências legais, dentro do procedimento criminal o Ministério Público está obrigado a ajuizar a ação civil em prol da pessoa que sofre danos derivados do crime, mesmo que a vítima não solicite essa providência formalmente. Ou seja, automaticamente o promotor de justiça subsidia a reparação de danos ao pedido de condenação pela conduta típica, a menos que a vítima expressamente atravesse um pleito de renúncia à indenização ou expresse a sua preferência por ingresso na justiça cível tão logo termine o procedimento criminal, sendo-lhe vedada essa alternativa antes da decisão penal.2 Note-se que o promotor de justiça não é um representante daquele que sofreu um dano, pois exercitará a ação civil mesmo nos casos em que a vítima atue como parte civil no processo criminal. Também não se trata de um substituto processual, pois não defende o direito de um terceiro em seu próprio nome ou interesse. Lado outro, vítimas podem agir como promotores privados nos casos em que o Ministério Público se oponha à persecução penal, pois a reserva de ações civis em processos penais precedentes, não impede um processo civil posterior contra pessoas não acusadas nem condenadas penalmente.3 Em síntese, a corte criminal assume jurisdição "por adesão" para decidir a ação civil e sua competência para tanto é garantida secundum eventum litis: ou seja, apenas se alcança a questão reparatória se o réu for condenado criminalmente. Isso necessariamente não exclui a responsabilidade civil, questão que será decidida na jurisdição civil. Um dos mais questionáveis resultados deste embaçamento entre as responsabilidades é um excesso de criminalização. Casos tipicamente resolvidos pela justiça cível em outras jurisdições da civil law e common law terminam nas cortes criminais, porque os demandantes optam por registrar queixas criminais independentemente da posição do promotor e justiça em casos de violações contratuais, danos ambientais, reparações por produtos defeituosos, dentre outros. Isto se explica pelo fato de que no sistema espanhol o direito penal captura a maior parte das tarefas da justiça cível, de uma forma mais fácil, rápida, com menos risco e maior efetividade. Some-se a isto a possibilidade de juízes investigadores abrirem casos por iniciativa própria e a ausência de um instituto semelhante ao modelo das class actions,4 o que acaba direcionando vítimas de ilícitos multitudinários para a justiça criminal. Em adendo, a prática constata que muitas condenações duvidosas são produzidas unicamente para que a vítima seja indenizada, mesmo que o magistrado tenha consciência da injustiça da decisão e acabe substituindo a pena de prisão por uma multa ou prestação de serviços comunitários. Problemas adicionais surgem para a vítima quando o promotor de justiça estima os danos em um valor inferior ao por ela desejado - nada restando a ser feito pela parte civil - ou quando a indenização é adequada, porém o ofensor não possui condições de ressarcir, o que acarreta uma complexidade adicional ao processo criminal e, mesmo um atraso ao seu desfecho. Neste sentido, a hibridização entre as responsabilidades acarretou uma "monetarização" da justiça criminal e a fragilização de sua capacidade de regulação social, uma expressiva função do direito penal. Se o direito criminal deve lidar apenas com as mais notórias transgressões a valores comunitários, o ato de "carimbar" com a marca criminal aquelas decisões que lidam apenas com questões civis fragiliza a expressiva função do direito criminal. Se tudo for direito penal, então nada será direito penal.5 França - A Parte Civil Diversamente do que sucede na ação penal na Espanha - onde o Ministério Público compulsoriamente inaugura a demanda cível a despeito da vontade da vítima - em França, à vítima de um crime com efeitos danosos é deferida uma escolha procedimental entre o juízo cível e o criminal: se ela optar por um requerimento indenizatório na justiça criminal, esta possuirá jurisdição para decidir sobre a existência de um crime agora acrescida da responsabilidade civil do réu. Esta jurisdição foi pioneira na criação do conceito de parte civil ("partie civile"), permitindo a vítima se tornar um player no processo criminal, não só por perseguir uma compensação na justiça criminal com por contar com amplos poderes procedimentais. Os conceitos de vítima/parte civil nem sempre coincidem, pois enquanto a vítima é a pessoa que sofre o dano causado pelo ilícito criminal a parte civil é a pessoa cuja ação tenha sido admitida pela corte criminal. A ação civil mantém a natureza "civil" na justiça crimina, ostentando dupla perspectiva: é uma ação indenizatória como também uma demanda com propósitos extrapatrimoniais, fundamentada no desejo da vítima de corroborar o interesse público subjacente à persecução e ver estabelecida a culpa do réu.6 Neste sistema opt-in, a parte civil poderá intervir em uma ação penal já iniciada pelo Ministério Público, ou então ajuizar ação a demanda perante um magistrado criminal mesmo que o promotor não tenha iniciado uma ação penal (v.g por inação ou por entender que as evidências eram insuficientes). Neste caso, a vítima constrangerá o Ministério Público a abrir a ação penal e o juiz decidirá tanto esta, como a pretensão de natureza reparatória. Esta possibilidade, sob uma perspectiva política, fortalece a vítima, aproveitando ao seu interesse no resultado do processo, beneficiando-a pessoalmente.7 Nada obstante, enquanto no direito espanhol inexistem implicações ou riscos em iniciar a ação civil (pois compensar danos é parte da obrigação estatal), perante a lei francesa a aptidão para a parte civil constranger um procedimento é excepcional, daí se este se revelar abusivo ou dilatório poderá a parte civil ser multada e obrigada a indenizar. A Alemanha também normatizou o processo de adesão, contudo optamos pela referência à França considerando que naqueles país raramente as vítimas se servem do processo criminal para a obtenção de compensação civil.8 Responsabilidade civil e criminal possuem caracteres distintos no direito francês: um sistema objetivo na responsabilidade civil, generoso com as vítimas ao propiciar indenização independente da existência de culpa. Todavia, o modelo da parte civil adiciona um link entre as duas responsabilidades, consistindo, simultaneamente em uma maneira de respeitar os propósitos do direito penal e de abrir uma oportunidade para a compensação de danos no processo criminal, cujo resultado nesta parte será o alcance de uma sentença cível e uma execução igualmente civil. Através desse procedimento, o viés subjetivo e moral da lei penal - direcionado à punição do ofensor - levará em consideração às necessidades das vítimas, aplicando regras da responsabilidade civil.9 Inglaterra - A completa separação A distinção entre as responsabilidades civil e criminal na Inglaterra foi há muito delineada. Se por um lado as formas de ação não permitiam que uma demanda fosse etiquetada como "civil" ou "criminal", desde 1200 já se realizava a distinção entre "tort" e "crime", a primeira objetivando compensação e a segunda, punição. Portanto, o direito inglês sempre relutou em envolver as cortes criminais em uma condenação esplêndido isolamento recíproco até que na década de 70, os juízes criminais passaram a ordenar compensação. Atualmente, ACT 2000 - Powers of Criminal Courts -, permite que o tribunal determine uma ordem de compensação para danos e lesões pessoais.10 Desta forma, o direito inglês passou a aceitar um liame entre as responsabilidades civil e criminal, frequentemente atingindo o que considera um equilíbrio pragmático. Incluir a compensação no âmbito do direito penal foi um "trade-off", pois se executada por meios civis envolveria uma corte criminal concedendo uma ordem civil e transferindo ao demandante todo o peso da execução. Assim, a ordem compensatória é um híbrido, pois detém natureza criminal, efetivada por mecanismos punitivos mesmo que a vítima não esteja envolvida no processo. Consequentemente, a compensação será obtida pela vítima de uma forma mais fácil que em França, onde a execução é um mandado civil. Como contrapartida, dentro das garantias penais e, diversamente do que ocorre no juízo cível, a corte criminal não se servirá do critério da reparação integral para "esvaziar os bolsos" do condenado, mas com base em sua aptidão econômica restringe o teto compensatório ao valor de £ 5.000 (cinco mil libras), permitindo-se que a vítima busque o restante perante a justiça cível. Ademais, a ordem compensatória é cabível mesmo que não exista responsabilidade civil, pois a corte criminal tem a discricionariedade de deferir o remédio unicamente com base na capacidade econômica do ofensor e a conveniência moral de fazer o réu pagar, independentemente da aferição das perdas financeiras da vítima, aspecto que é relegado ao campo da responsabilidade civil. Por fim, a compensação pode ser negada naqueles casos complexos que demandarão tempo, energia e expertise para a resolução de fatos incertos, sem que isto exclua a possibilidade do demandante se dirigir ao juízo cível posteriormente.11 A execução também difere. Se o demandado (ou o seu segurador) não puder pagar, ele até poderá ser submetido à falência, mas não encarcerado ou punido, pois a prisão não pode ser uma via oblíqua para sancionar àqueles que não possuem condições de cumprir as suas obrigações. Esta medida extrema só se aplica se os juízes tiverem evidências sobre a capacidade econômica do ofensor. Aliás, a ordem compensatória é proibida quando o réu possui capacidade econômica debilitada, privado de condições de ofertar o pagamento imediatamente, ou em prestações por um período razoável. A Diretiva 2012/29/EU A Diretiva 2012/29/UE estabelece standards mínimos sobre direitos, apoio e proteção às vítimas de crime. Ela coloca a vítima no centro do sistema de justiça criminal que em muitos Estados-Membros europeus se concentrava principalmente no papel da acusação, do juiz e nos interesses do Estado em geral. De acordo com o seu artigo 16, "1. Os Estados-Membros garantirão que, no curso de processos criminais, as vítimas têm o direito de obter uma decisão sobre indenização pelo infrator, dentro de um prazo razoável, salvo nos casos em que a legislação nacional preveja tal decisão feitos em outros procedimentos legais. 2. Os Estados-Membros promoverão medidas para incentivar infratores a fornecer uma compensação adequada às vítimas".12 Um total de 24 Estados-Membros transpôs o direito a uma decisão sobre indemnização das vítimas em processo penal, embora nem todos especifiquem que o dinheiro deve ser retirado do infrator. O direito a uma decisão sobre compensação é mais claro nos casos de mediação ou justiça restaurativa, quando a vítima é claramente informada de seus direitos. Alternativamente, existem esquemas de compensação estatal na maioria dos Estados-Membros (o que não se encontra no escopo da diretiva), que justificam que determinado Estado não aplique a diretiva. Em alguns Estados há um modelo de compensação indireta, no qual a vítima é indenizada antecipadamente pelo Estado e os custos são cobrados ao infrator. Em alguns países, há disposições legais que autorizam o juiz a impor condições específicas para garantir que a vítima receba indenização (v.g. Bélgica, França). O estado pode congelar ou apreender a propriedade da pessoa acusada se houver receio de que ela não compense a vítima (Bulgária). Em outros casos, o Estado impôs um teto indenizatório que pode ser devolvido à vítima (por exemplo, 15.000 euros na França).13 Destaca-se a Autoridade sueca de compensação e apoio a vítimas de crimes, cujo objetivo é o de promover os direitos das vítimas de crimes. A autoridade administra o fundo como um mecanismo único para as vítimas de crimes: é financiado principalmente com dinheiro pago pelos infratores, além de doações, contando com um aporte de cerca de 2,7 milhões de euros por ano. Um conselho conectado à autoridade determina quem receberá o dinheiro. Policiais e promotores são obrigados a fornecer informações à vítima sobre as possibilidades de receber compensação por crimes, que precisam ser apresentadas ao tribunal pela promotoria, se a vítima solicitar. __________ 1 O direito criminal espanhol foi originariamente codificado em 1822, ao contrário da codificação civil que veio apenas em 1889 em razão de tensões com o direito privado Catalão e Basco. O segundo código criminal (1848), incluiu uma série de regras de responsabilidade civil proveniente de crime, em razão do vácuo na codificação civil. O posterior Código Civil manteve esta sistemática no artigo 1.092, "As obrigações civis que nasçam dos delitos se regerão pelas disposições do código penal". A norma segue em vigor no mesmo Código Civil apesar de nove diferentes códigos penais terem se sucedido no tempo. 2 Código Penal Espanhol: Artículo 109. 1. La ejecución de un hecho descrito por la ley como delito obliga a reparar, en los términos previstos en las leyes, los daños y perjuicios por él causados. 2. El perjudicado podrá optar, en todo caso, por exigir la responsabilidad civil ante la Jurisdicción Civil. 3 In Código Civil, 18. ed. Madrid: Colex, 2012. 4 Um dos mais famosos casos na justiça criminal Espanhola, o "caso de la Colza" tratou de comercialização de óleo industrial pela empresa Colza como se fosse azeite para consumo humano. Em 1981, dezenas de pessoas morreram e milhares sofreram lesões. Em 1997, o Supremo Tribunal da Espanha considerou comprovada a relação causal entre a ingestão de óleo de Colza desnaturado e os eventos fatídicos, condenando os industriais responsáveis pela distribuição e comercialização a milhões de euros em compensações as 30.000 vítimas. Um servidor público espanhol também foi condenado por contravenção, o que acarretou também a responsabilidade civil subsidiária do estado (Sala Segunda do STS de 26 de setembro de 1997). 5 BACHMAIER L; GOMEZ-JARA C.; RUDA, A. Blurred borders in Spanish tort and crime. In: DYSON, M.Comparing tort and crime. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. p. 223-270. 6 MALABAT, Valérie; WESTER-OUISSE, Véronique. The quest for balance between tort and crime in French law. In: DYSON, M. Comparing tort and crime. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. As autoras explicam que em termos procedimentais existem diferenças práticas que tornam o exercício da ação civil mais efetivo na justiça criminal do que na cível, em razão do princípio penal da "liberdade de prova", que aceita um amplo leque de evidências probatórias comparativamente ao juízo cível. Ademais, quanto ao ônus probatório, enquanto no juízo cível a vítima tem que provar o nexo causal entre a culpa do ofensor e o dano, no juízo criminal é o Ministério Público que se encarregará desta prova, da qual se servirá a parte civil para consubstanciar a sua pretensão reparatória. DYSON, M. Comparing tort and crime. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. p. 81. 7 Além do conceito de parte civil, duas outras regras procedimentais relativas à relação responsabilidade civil/ criminal são tributárias do direito francês: a) a força da coisa julgada, conferindo precedência às decisões criminais face às civis; b) a suspensão de uma ação civil que lida com os mesmos fatos, na pendência de um processo criminal. Todavia, nos últimos cem anos um importante rol de princípio substantivos impactou nesta relação, sobremaneira a existência de punitive damages. 8 Nas seções 403 a 406 do Código Alemão de Processo Penal de 1987 (atualizado em 2014) intitulada "compensação para a pessoa ofendida", há um procedimento de adesão semelhante ao francês que permite o julgamento de compensação de danos na sentença criminal. Pelo adhäsionsverfahren (método de adesão) a vítima (ou o parente) traz as evidências dos anos e pleiteia uma quantia - sem limite a priori - que será o teto do que o magistrado poderá estipular. Apesar do processo seguir as regras criminais, o ônus da prova seguirá standards civis, não se aplicando à compensação o in dubio pro reo e haverá possibilidade de acordo, de forma a não se diferenciar dos procedimentos civis. A execução da decisão condenatória quanto à compensação será regida pelas disposições aplicáveis ao Processo civil, com jurisdição do tribunal civil. 9 Esses caminhos tendem a se entrelaçar cada vez mais, diante das últimas novidades do direito francês. A reforma do processo penal de 15 de agosto de 2014 introduziu a noção de justiça restaurativa e o projeto de reforma da parte de responsabilidade civil do Código Civil oficialmente institui uma forma de pena civil. Outrossim, essa aproximação gera um fato sem precedentes comparatistas: o direito criminal é classificada como parte do direito privado para cargos nas universidades francesas, sendo a expressão "direito público" reservada ao direito constitucional e administrativo. 10 De acordo com o PCC(S)A 2000, s.130 "Criminal courts are able to award compensatio order for any personal injury, loss or damage resulting form that offence or any other offence which is taken into consideration by the court in determining sentence". 11 DYSON, Matthew; RANDALL, John. England's splendid isolation. In: DYSON, M. Comparing tort and crime. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. p. 56. 12 Antes da Diretiva 2012/29/EU, O Conselho da União Europeia já havia expedido a Decisão-Quadro do Conselho de 2001 relativa ao estatuto da vítima em processo penal. Conforme o Artigo 9. "O Direito a indemnização no âmbito do processo penal 1. Cada Estado-Membro assegura às vítimas de infracção penal o direito de obter uma decisão, dentro de um prazo razoável, sobre a indemnização pelo autor da infracção no âmbito do processo penal, salvo se a lei nacional prever que, em relação a determinados casos, a indemnização será efetuada noutro âmbito. 2. Cada Estado-Membro toma as medidas necessárias para promover o esforço de indemnização adequada das vítimas por parte dos autores da infracção. 3. Salvo necessidade imposta pelo processo penal, os objetos restituíveis pertencentes à vítima e apreendidos no processo ser-lhe-ão devolvidos sem demora". 13 Em 2017, o Parlamento Europeu publicou o "European Implementation Assessment", com as informações sobre a efetividade da Diretiva 2012/29 nos Estados membros. A Diretiva de Direitos das Vítimas faz parte de um «pacote de direitos das vítimas» adotado após 2009, que também inclui o Regulamento 606/20-3 - relativo ao reconhecimento mútuo de medidas de proteção em matéria civil - e a Diretiva 2011/99/UE, relativa à decisão europeia de proteção em matéria penal, cujo objetivo é garantir o direito de as vítimas continuarem a se beneficiar de medidas civis e/ou de proteção ao se mudarem para outro Estado-Membro. Paralelamente a este pacote sobre os direitos das vítimas, foram criadas várias outras diretivas da UE para fortalecer os direitos das vítimas de crimes específicos: uma diretiva relativa ao tráfico de seres humanos; uma diretiva sobre abuso sexual e a diretiva adotada sobre o combate ao terrorismo.
Em caso de ofensa à saúde da qual resulte defeito que incapacite o ofendido para exercer o seu ofício ou profissão, mas ainda possa exercer outros ofícios ou profissões, incumbe a ele utilizar-se da sua força de trabalho remanescente sob pena de redução do valor da indenização? A experiência estrangeira é rica. No direito inglês, o ofendido que não é capaz de retornar para o seu emprego anterior ao acidente, terá de tentar arranjar outro trabalho. Se ele se recusar, a sua indenização corresponderá à diferença entre o que ele é capaz de ganhar e o que ele ganharia senão fosse pelo acidente1. De maneira análoga, no direito anglo-americano, em caso de dispensa ilícita (wrongful dismissal), o ex-empregado tem de adotar medidas razoáveis para encontrar outro trabalho, sob pena de o tribunal reduzir a sua indenização no valor do dano que ele poderia ter evitado sofrer, ou seja, no montante da remuneração que ele poderia ter obtido em outros empregos2. Na Alemanha, em caso de ofensa à saúde que elimine ou reduza a capacidade de trabalho do ofendido, esse tem direito a indenização prestada por meio do pagamento de pensão (§ 843, BGB). O valor dessa pensão deve corresponder à perda ou diminuição de renda que o ofendido sofreu concretamente em decorrência da ofensa à sua saúde. Se o ofendido tiver uma redução na sua capacidade de trabalho constatada clinicamente, mas mesmo assim continuar apto a exercer sua antiga atividade remunerada, sem perda de rendimentos, então não haverá dano (material) a ser indenizado. Aplica-se o mesmo entendimento se o ofendido custeava até então o seu sustento a partir do seu patrimônio ou de outras fontes de renda e não exercia atividade remunerada, desde que esses rendimentos continuem disponíveis apesar do evento danoso. Se o ofendido perdeu apenas parcialmente a sua capacidade de trabalho, trata-se de saber em que medida ele ainda pode usar sua capacidade de trabalho restante. Se, como resultado da ofensa, ele mudar de profissão ou emprego, as remunerações obtidas devem ser deduzidas de sua pensão3. Nesse cálculo, leva-se ainda em conta a incumbência do ofendido de mitigar o próprio dano, prevista no § 254, II, BGB. Com base nesse dispositivo, doutrina e jurisprudência alemãs reconhecem que o ofendido tem de empregar a sua capacidade de trabalho remanescente da melhor maneira possível para fins remuneratórios. Incumbe ao ofendido tentar achar um novo trabalho e aceitar mudanças em sua atividade profissional. E se for necessário mudar de profissão, cabe a ele participar do processo de reabilitação profissional4. Se o ofendido não se esforçar, dentro do razoável, para empregar a sua capacidade de trabalho remanescente, é deduzido da sua pensão o valor da remuneração que ele poderia ter obtido. Por outro lado, se o ofendido obtiver ganhos com um trabalho substitutivo que não lhe era exigível, por ser, por exemplo, excessivamente difícil e extenuante, esse valor não é deduzido do valor da indenização5. Na França, a jurisprudência encorajava a reabilitação profissional, decidindo pela redução da indenização em casos em que o ofendido poderia ter, mediante esforço razoável, retornado ao mercado de trabalho. Em 1996, a segunda câmara cível da Corte de Cassação julgou caso que envolvia a interrupção forçada da carreira de um professor primário vítima de acidente. O autor alegava que estaria impossibilitado de retomar qualquer atividade profissional, independentemente da sua natureza. A Corte de Cassação entendeu, porém, que a vítima sofria de incapacidade parcial de apenas 10% e que estava em condições de retornar a uma profissão que não a de professor. A suposta impossibilidade seria, em realidade, apenas fruto de um estado psicológico no qual a própria vítima havia se colocado por vários anos. A sua inatividade, portanto, não seria consequência direta de seu acidente e a indenização deveria ser limitada à diferença entre a remuneração que ele teria continuado a receber caso não tivesse sofrido o acidente e aquela que teria recebido se tivesse procurado e encontrado um outro trabalho6. A partir de 2003, porém, a segunda câmara cível da Corte de Cassação passou a proferir decisões em que rejeita a obrigação da vítima de lesão corporal de minimizar seu dano. Com base no art. 1382 do Código Civil francês, tem afirmado que "o autor de um acidente tem de reparar todas consequências indenizáveis; que a vítima não tem de limitar seu prejuízo no interesse do responsável". Essas decisões têm sido criticadas, entre outras razões, por violarem o limite da "consequência imediata e direta" presente no art. 1231-4 do Código Civil francês (correspondente, à época, ao art. 1.151)7. Por fim, na Itália, o art. 1226 do Código Civil autoriza a avaliação equitativa do dano nos casos em que ele não pode ser provado no seu preciso montante. Com base nesse dispositivo, entende-se que "o juiz pode levar em conta a possibilidade de uma reeducação profissional, com particular atenção às atitudes, competência e vocação já experimentadas pela vítima." Segundo Pietro Rescigno, "o juiz poderá levar isso em conta, porque a sua avaliação do dano - tratando-se de dano à pessoa, que pode ser removido ou reduzido pela intervenção reparadora - será uma avaliação necessariamente equitativa". No caso de ofendido com redução da capacidade de trabalho, "a existência e a medida atual do dano são certas; a probabilidade, que torna incerta a quantidade do dano ao fim da liquidação, diz respeito à persistência do dano, remetido como é, essa persistência, à vontade e à liberdade da vítima"8. __________ 1 Markesinis et. al., Compensation for personal injury, p. 124-125. 2 Sobre esse tema, ver: Daniel Dias. O "princípio" da mitigação e o direito do trabalho: análise da (restrita) aplicabilidade da regra da irreparabilidade do dano evitável ao direito do trabalho brasileiro. In: Rodolfo Pamplona Filho; José Augusto Rodrigues Pinto (Coord.). Principiologia: estudos em homenagem ao centenário de Luiz de Pinho Pedreira da Silva. São Paulo: LTr, 2016, p. 69-86 3 Gerhard Wagner. §§ 839a-853. In: Franz Jürgen Säcker; Roland Rixecker; Hartmut Oetker (Ed.). Münchener Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch, Bd. 5: Schuldrecht, Besonderer Teil III: §§ 705-853. 6 Aufl. München: Beck, 2013, p. 2719. 4 Wagner, Münchener Kommentar, p. 2724; Looschelders, Die Mitverantwortlichkeit, p. 476-477; Larenz, Lehrbuch des Schuldrechts, Bd. 1, p. 543-545 5 Wagner, Münchener Kommentar, p. 2725; Basil Markesinis; Michael Coester; Guido Alpa; ULLSTEIN, Augustus. Compensation for personal injury in English, German and Italian Law: A comparative outline. New York: Cambridge University Press, 2011, p. 144. 6 Reifegerste, Pour une obligation, p. 181-182. 7 Para exposição e análise dessas decisões, ver acima tópico 6.3. 8 Rescigno, Libertà del "trattamento" sanitario, p. 1659-1660. Segundo Pietro Rescigno, o segundo parágrafo do art. 1227 do CC italiano não é aplicável a esse grupo de casos. Esse artigo, intitulado concurso do fato culposo do credor, prevê no segundo parágrafo que "o ressarcimento não é devido pelos danos que o credor teria podido evitar usando a diligência ordinária". Rescigno explica que esse dispositivo é aplicável aos casos em que a lesão física do ofendido é agravada por conta da sua conduta culposa, como no exemplo típico em que o ofendido não trata uma ferida aberta. Por outro lado, o dispositivo não se aplica aos casos em que a lesão física está consolidada, mas o ofendido omite uma atividade específica que poderia diminuir ou remover essa lesão ou dano. Nessa linha, o dispositivo não seria aplicável aos casos em que tentativas de reeducação ou reabilitação ao trabalho poderiam evitar a perda de remuneração do ofendido. Além disso, segundo Rescigno, a medida de irreparabilidade do dano assim evitável conflitaria com o princípio da livre escolha do trabalho (art. 4, 2º parágrafo, Constituição italiana). (Rescigno, Libertà del "trattamento" sanitario, p. 1651-1653).
Introdução Minha última coluna informou sobre a derrubada da ação afirmativa pela Suprema Corte dos Estados Unidos, apresentando os comentários que já tinham sido feitos pelos Justices durante a sessão de sustentação oral e analisando a reação inicial da opinião pública, dos analistas da corte e de lideranças políticas, especialmente Joe Biden e Barack Obama. Conforme anunciado naquele texto, caberia a futuras colunas elaborar a análise dos votos da Suprema Corte, especialmente por se tratar de uma decisão de 237 páginas e que tinha sido tornada pública havia apenas alguns dias. O objetivo da presente coluna é justamente o de apresentar uma síntese dos termos da opinião principal, do Chief Justice John Roberts, resumindo o conteúdo de suas quarenta páginas para o público brasileiro. O voto do presidente John Roberts Em primeiro lugar, o voto do Presidente John Roberts descreve os procedimentos de admissão de Harvard e da Universidade da Carolina do Norte, salientando que são aceitos respectivamente 2.000 e 4.200, dentre dezenas de milhares de candidatos. Todos os materiais da candidatura dos alunos são lidos inicialmente por um agente de admissão, que avalia seis categorias distintas, sendo que raça é um dos fatores a ser considerado. Em seguida, existe uma análise feita por subcomitês de abrangência geográfica que analisam os candidatos relativos a determinadas áreas específicas, sendo que a raça também é um dos fatores considerados no processo. Finalmente, o comitê final formado por 40 membros que delibera a admissão final dos alunos em Harvard também considera a raça como um fator decisório para a definição dos 2.000 estudantes aceitos para o Harvard College. A sentença considerou que esses programas de admissão violam a cláusula da proteção igual contida na 14ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos. A primeira questão decidida foi o reconhecimento da legitimidade processual da organização Students For Fair Admissions (SFFA), que foi criada em 2014, no ano em que foram ajuizadas as ações judiciais e foi questionada pelos réus como se não fosse 'genuína'. Em seguida, o voto trouxe uma longa digressão sobre a evolução do tema na jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos, com o destaque negativo para o julgamento de Plessy v. Ferguson 163 U.S. 537 (1896), quando a segregação racial foi considerada constitucional, validando-se uma lei estadual de Louisiana que possibilitava a criação de vagões de trem somente para brancos e aprovando a doutrina do 'igual embora separado'. Somente no período da Corte Warren com a marcante decisão de Brown v. Board of Education of Topeka, 347 U.S. 483 (1954) é que a Suprema Corte viria a considerar inconstitucional a segregação racial, proibindo que os Estados criassem escolas somente para crianças brancas e que as separasse com base no fator racial. A partir de então, o princípio de que a discriminação racial é inconstitucional teria chegado em outros domínios da vida, tais como ônibus, praias públicas e casas de banho e as relações afetivas através da vedação de leis estaduais que proibiam miscigenação, como, por exemplo, no caso Loving v. Virginia, 388 U.S. 1 (1967), relativo a um homem branco e uma mulher negra condenados a um ano de prisão por terem se casado em violação a uma lei estadual de 1924.    Para o Presidente da Suprema Corte, Chief Justice John Roberts, eliminar a discriminação racial significaria eliminar toda ela, aplicando-se o teste em duas etapas do escrutínio estrito adotado pela jurisprudência da corte para diferenciações com base em raça. A corte deve investigar se a classificação racial é adotada para obtenção de interesses governamentais relevantes e se o uso do critério racial é adequadamente sob medida, do modo necessário para se alcançar o resultado pretendido. O voto também se refere aos precedentes específicos relativos aos processos de admissão de estudantes pelas universidades dos Estados Unidos. No caso Regentes da Universidade da Califórnia v. Bakke, 438 U.S. 265 (1978), a Suprema Corte ficou radicalmente dividida, tendo dado razão parcial à universidade e ao candidato a uma das vagas de medicina que tinha sido rejeitado duas vezes seguidas pela UC Davis, embora tivesse notas superiores a um grupo de 16 alunos de quotas raciais dentre o total de 100 estudantes de medicina aceitos anualmente. O entendimento final foi a partir do voto do Justice Powell, que considerou que, a princípio, programas de ação afirmativa poderiam ser válidos constitucionalmente já que a diversidade na sala de aula seria um interesse governamental relevante. Por outro lado, a corte considerou inconstitucional o programa de quotas raciais da UC Davis, determinado que Alan Bakke tinha sofrido discriminação e deveria ser admitido para a Faculdade de Medicina. Devido à divisão da corte, não existia clareza sobre se a decisão da corte teria sido um precedente judicial ou não, mas no caso Grutter v. Bollinger, 539 U.S. 306 (2003), a Suprema Corte reafirmou Bakke como um precedente, considerando que os programas de ação afirmativa eram constitucionais, apesar da ressalva feita pela Justice Sandra Day O'Connor de que esperava que tais programas não existissem mais após o decurso de 25 anos. John Roberts extraiu da jurisprudência da corte as seguintes premissas: os programas de admissão devem cumprir o escrutínio estrito, não podem usar raça como um estereótipo e deveriam em algum momento terminar. Para ele, os programas violam o escrutínio estrito, porque seus objetivos não seriam mensuráveis, já que dizem respeito a treinamento de futuros líderes, aquisição de novos conhecimentos, promoção de robusto mercado de ideias e preparação de cidadãos engajados e produtivos. Além desses objetivos serem etéreos, não existiria uma clara conexão entre os meios empregados e os objetivos perseguidos.  Algumas das categorias seriam 'amplas' - como asiático que não diferenciaria exatamente a parte da Ásia -, outras seriam 'arbitrárias' - como hispânicos - e existiria ainda subinclusão - pela ausência de uma categoria para o oriente médio, por exemplo. O voto afirma que o pedido das universidades por confiança é insuficiente e que não é possível ser deferente às decisões adotadas através desses programas de admissão. Além disso, para a opinião da maioria da corte, os programas de admissão falham no respeito à cláusula da proteção igual, já que raça seria usado como um 'negativo', porque resultaria em um número inferior de admissões de estudantes de origem asiática. Admissões são um jogo de soma zero, em que um benefício dado para alguns candidatos e retirados de outros necessariamente dá uma vantagem para aqueles em prejuízo destes. Para o voto, existiria ainda um uso de raça como estereótipo porque existiria uma presunção reducionista de que todas as pessoas da mesma raça pensariam da mesma forma.     Ademais, os programas de ação afirmativa não possuiriam um ponto final lógico. Se tais programas serão mantidos até que ocorra diversidade e representatividade significativa no campus universitário, não existe uma diretriz de proporcionalidade clara e para o Presidente John Roberts esse balanceamento racial seria patentemente inconstitucional. Por todas essas razões, o voto considerou que os programas de ação afirmativa não podem ser conciliados com a cláusula da proteção igual da 14ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos, revertendo as decisões das instâncias inferiores e alterando a jurisprudência da Suprema Corte sobre ações afirmativas. Considerações finais O presente artigo se refere a uma decisão recente da Suprema Corte dos Estados Unidos, apresentando os termos do voto do Presidente John Roberts. Existem ainda outros aspectos a serem analisados, como o teor dos demais votos e a ressalva de que os próprios candidatos poderiam mencionar nos materiais de candidatura sobre a sua relação com a raça e que as Universidades poderiam considerar essa discussão concreta para análise do caráter e das capacidades dos candidatos. Futuras colunas poderão se dedicar a examinar outros aspectos da decisão da Suprema Corte nesse caso de derrubada da ação afirmativa.
Há quase três anos, quando iniciamos nossa colaboração com a presente coluna, tivemos a oportunidade de destacar o desenvolvimento do sistema de justiça multiportas. Analisamos o tema sob a perspectiva do direito norte-americano, que há muito já internalizou os meios alternativos de resolução de conflitos (alternative dispute resolution - ADR), assim compreendidos os métodos extrajudiciais pelos quais se alvitra a autocomposição ou a heterocomposição privada da disputa.1 Como já é sabido, a mediação, a negociação e a arbitragem, dentre outros mecanismos "alternativos" à adjudicação estatal, vêm sendo aplicadas nos Estados Unidos com enorme destaque há décadas, propiciando um extraordinário volume de acordos (settlements) conquistados extrajudicialmente, ou, por vezes, via programas alternativos anexos às Cortes. Já abordamos o tema das ADR's sob a perspectiva brasileira, demonstrando as dificuldades e o preconceito ainda existentes quanto à sua implementação, na medida em que historicamente o sistema de justiça dos países de civil law foi idealizado e construído objetivando quase que exclusivamente a adjudicação estatal. A ausência de incentivos para a realização de acordos e a promessa de uma longa duração dos processos judiciais acabam funcionando como um verdadeiro convite aos habituais geradores de conflitos sociais a apostar na morosidade e na inefetividade da tutela jurisdicional. Nessa fase ainda embrionária da implementação do sistema multiportas no Brasil, naturalmente subsiste grande desconfiança a respeito da eficiência dos mecanismos de autocomposição de conflitos - o que se reflete nos baixos índices de acordos homologados judicialmente no país.2 Contra o ceticismo quanto à prestabilidade da mediação e negociação, nada melhor do que se explorar casos concretos. Por esse motivo, voltamos ao tema, apresentando os bastidores de recente acordo construído por via de mediação, que já virou referência nas ADR's do sistema norte-americano por se tratar de um dos maiores acordos financeiros já convencionados num caso de pretensão indenizatória por difamação. Trata-se de acordo extrajudicial pelo qual a poderosa empresa norte-americana de mídia Fox News concordou em pagar U$787 milhões à empresa Dominion Voting Systems, a fim de encerrar a demanda judicial já instaurada.                O caso Dominion Voting Systems v Fox News  A demanda judicial movida pela Dominion Voting Systems contra a rede de televisão e entretenimento Fox News tinha por base acusações por difamação propagada pela Fox, pela disseminação de falsas alegações no sentido de que "as urnas eletrônicas [de votação] da Dominion foram usadas para roubar a Casa Branca durante as eleições presidenciais dos Estados Unidos de 2020".3 Na ação civil por difamação proposta, os principais argumentos apresentados pela Dominion foram os seguintes: "(i) a Fox forneceu intencionalmente uma plataforma para convidados e que os anfitriões da Fox sabiam que fariam declarações falsas e difamatórias no ar; (ii) a Fox, por meio dos anfitriões, afirmou, endossou, repetiu e concordou com as declarações desses convidados; e (iii) a Fox republicou essas declarações difamatórias e falsas no ar, em seus sites, nas suas contas de mídia social e em outras plataformas digitais e serviços de assinatura."4 Como se percebe, a Dominion buscava responsabilizar civilmente a Fox tendo como fundamento condutas dolosas de disseminação de falsas afirmações (fake news) no sentido de que as urnas eletrônicas fornecidas pela Dominion para a Justiça Elelitoral dos EUA haviam sido usadas "para roubar a Casa Branca do ex-presidente Donald Trump" nas últimas eleições para presidência. Segundo a Dominion, a maciça difusão dessa afirmação sabidamente falsa por diversas mídias da Fox News teria contribuído diretamente para desencadear a violência que culminou na invasão do Capitólio em 6 de janeiro de 2021.5 De acordo com o periódico Washington Post, à medida em que os procedimentos de pré-julgamento da demanda indenizatória avançavam, os executivos da Fox News já estavam resignados a enfrentar um julgamento perante o Tribunal do Júri, com uma expectativa de provável condenação ao pagamento de impressionantes U$1,6 bilhão em favor da Dominion. Segundo a imprensa norte-americana, tratava-se de julgamento em processo cível por difamação dos mais aguardados da história.6 Foi exatamente nessa altura que a mediação surgiu como ferramenta de solução consensual do conflito. Nada de anormal até aí, não fosse a forma como a ADR foi operacionalizada no caso concreto. A mediação no caso Dominion Voting Systems v Fox News  Iniciada a fase preliminar do processo judicial - especificamente, ao final de uma das primeiras audiências (ocorrida em uma sexta-feira) -, o juiz Eric M. Davis, do Tribunal Superior de Delaware, sugeriu aos advogados de ambas as empresas que tentassem resolver suas diferenças.7 O julgamento estava marcado para começar na segunda-feira. A Dominion e a Fox News concordaram com a sugestão de mediação. Seus advogados passaram então a tentar exaustivamente chegar a um acordo, realizando diversas reuniões ao longo de todo o final de semana, mas sem surtir efeito. Quase sem mais tempo hábil para um acordo, as empresas em litígio enviaram então um e-mail de urgência, no domingo pela manhã, endereçado ao experiente mediador Jerry Roscoe8, que passava suas férias na Bósnia, embarcado em um navio de cruzeiro pelo rio Danúbio.9 Em apenas dois dias, e exclusivamente por via de contatos telefônicos, Jerry Roscoe conseguiu mediar o conflito, convencendo as partes a assinar um acordo indenizatório no valor de U$787,5 milhões - a metade do que fora demandado na ação judicial pela Dominion. Em entrevista dada posteriormente ao encerramento do caso, Roscoe disse, lembrando do e-mail dramático que recebeu durante as férias: "Se estaria disposto a mediar um caso importante?" O mediador não pensou duas vezes e logo passou a ler milhares de páginas de documentos, rolando-as em seu smart fone durante a noite, preparando-se para entrar no último minuto para tentar encerrar a disputa.10 Segundo revelou Roscoe, as expectativas de acordo eram baixas no início. As partes não estavam muito otimistas de que a mediação iria resolver o conflito. Os principais advogados das empresas (Justin Nelson representando a Dominion e Dan Webb representando a Fox), tiveram papéis mínimos na mediação, pois estavam muito ocupados com os preparativos para o esperado confronto marcado para ocorrer no tribunal dentro de poucas horas. Tendo o juiz concordado com a moção das partes para o adiamento do julgamento pelo júri para o dia seguinte (terça-feira), as negociações continuaram. Conforme estimou Roscoe, entre a segunda-feira e a terça-feira, realizou cerca de 50 ligações para ambas as partes. Apesar disso, na noite de segunda-feira, sem progresso nas negociações, os advogados das partes foram para casa esperando pelo julgamento no dia seguinte. Na manhã de terça-feira, eles se vestiram e se dirigiram ao tribunal.11 Segundo Roscoe, desde os primeiros contatos com o conflito, rapidamente verificou que a pretensão monetária da Dominion não era o único problema que separava as partes e impedia qualquer acordo. Mas depois de muitas ligações, ocorreu uma aproximação: "ambos os lados tinham bons advogados e queriam ver se conseguiam resolver o caso."12 A Fox argumentara no tribunal que o valor real da receita da Dominion em 2022 foi o segundo maior de sua história, tendo superado suas projeções para aquele ano, mesmo após as declarações supostamente difamatórias da Fox. Isso, na visão da Fox, ia contra a alegação da Dominion de que seus negócios foram severamente prejudicados pela difamação em questão.13 Todavia, um dos principais entraves ao acordo era o precedente a ser criado. Na verdade, os executivos da Fox estavam preocupados com o fato de que um acordo com a Dominion poderia fazer com que a Smartmatic USA - outra empresa de tecnologia que forneceu equipamentos para votação nas eleições americanas que também está processando a Fox por difamação -, exigisse valores indenizatórios similares em uma futura negociação. Às 9:00h de terça-feira, o julgamento pelo júri popular parecia iminente para as partes envolvidas. Nos procedimentos preliminares do julgamento, foram escolhidos 12 jurados residentes em Delaware, para além de outros 12 jurados selecionados como suplentes. O juiz Davis os empossou e lhes deu as instruções padronizadas da Corte. O julgamento seria retomado às 13h30, para as declarações iniciais (open statements).14 Contudo, no retorno ao tribunal, às 13h30, o juiz foi recebido pelos advogados da Dominion e da Fox, sendo informado a respeito de um acordo entre as partes. Por horas, o atraso do julgamento foi inexplicável para o público e para os jurados. Pouco antes das 16h, o juiz Davis voltou ao tribunal anunciando que as partes haviam resolvido o caso. Pela confidencialidade atribuída ao acordo negociado entre a Dominion e a Fox News, seus termos não foram divulgados, a não ser o valor pago (U$787,5 milhões). Em comunicado oficial, a Fox expressou: "Estamos satisfeitos por ter chegado a um acordo sobre nossa disputa com a Dominion Voting Systems. Reconhecemos as decisões do Tribunal que declararam falsas certas alegações sobre a Dominion. Este acordo reflete o compromisso contínuo da Fox com os mais altos padrões jornalísticos. Esperamos que nossa decisão de resolver essa disputa com a Dominion amigavelmente, em vez da amargura de um julgamento divisivo, permita que o país avance com essas questões".15 Apesar de não ter havido qualquer pedido de desculpas públicas por parte da Fox à Dominion, o porta-voz da empresa indenizada pelo acordo disse que os termos da solução consensual eram suficientes. "Um pedido de desculpas é sobre responsabilidade, e hoje a Dominion responsabilizou a Fox. A Fox pagou um acordo histórico e emitiu uma declaração reconhecendo que as declarações sobre Dominion eram falsas". Segundo o mesmo porta-voz, os funcionários que estavam na empresa desde a eleição de 2020 ficaram emocionados e aliviados com o resultado, que representou alguma validação externa no sentido de que as alegações disseminadas pela Fox sempre foram falsas. O acordo também causou alívio para a Fox, que seu viu poupada de uma provável condenação histórica e de uma iminente e péssima hiperexposição pública que preocupava todos os seus funcionários e, em especial, Rupert Murdoch,16 que certamente seria convocado para ser ouvido pelo tribunal do júri. O acordo, todavia, não terá sido o fim da história para nenhuma das empresas: a Fox enfrenta outro processo de difamação da Smartmatic USA, que pediu US$ 2,7 bilhões de indenização.17 A Dominion está processando indivíduos e grupos que divulgaram informações falsas sobre seus produtos após a eleição norte-americana, incluindo o One America News e os aliados de Donald Trump, Rudy Giuliani, Sidney Powell e Mike Lindell. Nos Estados Unidos, a solução consensual do caso Dominion Voting Systems v. Fox News tem gerado diversas discussões e críticas crescentes, sobretudo pela confidencialidade atribuída aos termos do acordo. Soma-se à não revelação da íntegra dos termos do acordo, ainda, a ausência de uma "responsabilização pública" da Fox News perante os eleitores norte-americanos - também vitimados pelas dolosas fake news que, em muitos casos, podem tê-los feito optar pelo então candidato à presidência, Donald Trump. Segundo muitos analistas, a afetação de terceiros impediria a confidencialidade do acordo. O tema da confidencialidade dos acordos - ainda que encetado por entidades privadas - é de enorme relevância também para o sistema de justiça brasileiro, na medida em que as alternative dispute resolution começam a proliferar, predispostas a solucionar consensualmente não apenas conflitos privados, mas também conflitos envolvendo o Poder Público e direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. Por tais motivos, nossa próxima coluna abordará especialmente a confidencialidade das ADR's no sistema de justiça norte-americano.  __________ 1 Venturi, Thaís Goveia Pascoaloto. A institucionalização do sistema de Justiça multiportas no Brasil. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-privado-no-common-law/333227/a-institucionalizacao-do-sistema-de-justica-multiportas-no-brasil. Acesso em 12 de agosto de 2023. 2 Conforme o último relatório Justiça em Números, publicado em 2022 e capturando dados colhidos no ano de 2021, o índice geral médio de acordos nos processos judiciais foi de 11,9%. Conselho Nacional de Justiça. Justiça em números 2022. Disponível aqui. Acesso em agosto de 2023. 3 JUSTIA. The Superior Court of The State of Delaware.  Disponível aqui. Acesso em 13 de agosto de 2023. 4 Idem. 5 The Wall Street Journal. Fox to Pay $787.5 Million to Settle Dominion's Defamation Lawsuit. Disponível aqui. Acesso em 12 de agosto de 2023. 6 The Washington Post. Fox was resigned to a tough trial. Then, a secret mediator stepped in. Disponível aqui. Acesso em 12 de agosto de 2023. 7 The New York Times. Fox disputes possible damages as Judge Delays defamation trial. Disponível aqui. Acesso em 13 de dezembro de 2023. 8 JAMS Mediation, Arbitration and ADR Services. Disponível aqui. Acesso em 13 de agosto de 2023. 9 The Washington Post, idem. 10  Idem. 11  The Wall Street Journal. The Man Who Settled the Fox-Dominion Defamation Case From a Romanian Tour Bus. Disponível aqui. Acesso em 13 de agosto de 2023.   12 Idem. 13 JUSTIA. The Superior Court of The State of Delaware.  Disponível aqui. Acesso em 13 de agosto de 2023. 14 Idem. 15 Fox News Media. Fox news and Dominion Voting Systems reach settlement. Disponível aqui. Acesso em agosto de 2023. 16 Rupert Murdoch é acionista majoritário da News Corp, um dos maiores grupos midiáticos do mundo, tendo sido foi classificado como a 32ª pessoa mais poderosa do mundo e a 76ª maior fortuna do mundo - Revista Forbes. Rupert Murdoch & family. Disponível aqui. Acesso em agosto de 2023. 17 REUTERS. Fox resolves Dominion case, but $2.7 billion Smartmatic lawsuit looms. Disponível aqui. Acesso em agosto de 2023.
Em 2005, o European Group on Tort Law (EGTL) publicou o texto e comentários de seus "Principles of European Tort Law" (PETL). Com o art. 4:201 o PETL incluiu uma regra sobre a inversão do ônus da prova da culpa que objetivou cobrir a zona cinzenta entre a responsabilidade baseada em culpa e a responsabilidade objetiva. Quase 18 anos após a publicação do PETL, a jurista Barbara Steininger revisita essas zonas cinzentas.1 Ao fazê-lo, primeiramente delineia o que se entende pela noção de áreas cinzentas entre responsabilidade objetiva e culposa. Em um segundo momento, examina a forma como essas áreas cinzentas são tratadas nos Princípios e, por fim, esboça comentários sobre o art. 4:201 PETL e o caminho a seguir. O que queremos dizer com áreas cinzentas? Para alcançar tal objetivo, primeiramente precisamos definir o significado da responsabilidade por culpa e da responsabilidade objetiva. À primeira vista, isso parece relativamente simples. A responsabilidade que pressupõe culpa e, portanto - como Pierre Widmer colocou em seu comentário ao Capítulo 4 do PETL -  requer alguma "culpa dirigida ao autor de um evento danoso por não ter observado os devidos cuidados para evitar danos".  A responsabilidade objetiva, por outro lado é mais difícil de lidar. Pode ser entendida em um sentido lato, abrangendo qualquer tipo de responsabilidade que não pressuponha uma conduta censurável por parte da pessoa responsável e, neste sentido, incluiria, por exemplo, também a responsabilidade indireta. Pode, no entanto, também ser entendida em um sentido restrito como uma responsabilidade absoluta onde não há defesas possíveis. No sentido que o termo é utilizado no PETL, inclui responsabilidade sem culpa por danos causados por riscos que emanam da esfera do réu, particularmente de certos objetos ou de atividade humana perigosa, mas não de responsabilidade vicária, que é abordada separadamente nos princípios. Não obstante teoricamente clara, a linha divisória é tênue na prática, pois pesquisas comparativas mostraram que na maioria das jurisdições europeias o grau de rigor da responsabilidade varia. Por um lado, a responsabilidade baseada na culpa é frequentemente tornada mais rigorosa, nomeadamente através do aumento do nível de cuidado ou da inversão do ónus da prova. Exemplos típicos encontram-se no domínio da responsabilidade por animais ou construções. Ilustrativamente, o art. 56 do Código Suíço de Obrigações, estabelece que o detentor de um animal é responsável pelos danos por ele causados, a menos que prove que tomou todos os devidos cuidados ao manter e supervisionar o animal. Por outro lado, a responsabilidade objetiva pode ser suavizada por meio de defesas que permitem ao demandado elidir a obrigação de indenizar sob certas circunstâncias, em particular quando adere à um padrão de cuidado bastante alto. Nesse sentido, ainda tendo como referencial a lei austríaca, o detentor de um veículo motorizado pode escapar da responsabilidade de acordo com o § 9 da EKHG (Lei de Responsabilidade de Veículos Motorizados e Ferroviários) provando que ele e seus auxiliares tomaram todos os cuidados devidos de acordo com as circunstâncias. Isso mostra que a responsabilidade por culpa e a responsabilidade objetiva não são categorias completamente separadas, mas, em sua forma pura, representam as duas pontas de uma cadeia contínua. Para citar as palavras de Horton Rogers: "A responsabilidade objetiva e a responsabilidade por culpa são alternativas convenientes em termos de classificação e exposição, mas um exame mais minucioso sugere que, em termos de substância, há realmente um continuum em vez de duas categorias". Outro fator que dificulta uma delimitação clara é que o ponto de partida formal para um regime de responsabilidade não permite necessariamente uma conclusão quanto ao rigor do regime de responsabilidade em substância. Em outras palavras, embora uma responsabilidade possa ser formalmente baseada em culpa, é possível que seja tratada de forma que na prática seja convertida em objetiva. Por exemplo, se o nível de cuidado exigido for tão alto que dificilmente possa ser cumprido por qualquer pessoa. Este é, por exemplo, o caso da responsabilidade holandesa dos motoristas de veículos motorizados em relação aos passageiros. Como o regime especial do art. 185 Wegenverkeerswet (Lei de Trânsito Rodoviário) só se aplica a participantes não motorizados no trânsito, tais casos se enquadram no regime normal de responsabilidade por culpa do art. 6:162 do Código Civil Holandês. No entanto, habilidades quase sobre-humanas são exigidas dos motoristas. Nesse caso, a responsabilidade será substancialmente objetiva, embora formalmente baseada em conduta culposa. Embora seja compreensível que os tribunais, não tendo um regime de responsabilidade objetiva à sua disposição, voltem-se a tais táticas, tanto a segurança jurídica quanto a coerência sistemática sofrerão pela dicotomia entre redação e interpretação das regras em questão. Conclui-se não apenas que existe um continuum e nenhuma delineação clara entre responsabilidade baseada em culpa e responsabilidade objetiva, mas também que a etiqueta da nomenclatura da responsabilidade não é necessariamente decisiva. Embora responsabilidade por culpa e objetiva possam ser claramente identificadas como, por um lado, áreas em que uma conduta censurável justifica a responsabilidade e, por outro lado, áreas em que a ideia de risco ou perigo são decisivas, existe uma ampla área intermediária onde tanto a conduta quanto o risco desempenham um papel. Com base nessas observações, fica claro que existe de fato uma área cinzenta entre a culpa e a responsabilidade objetiva. Dependendo de qual dos dois aspectos - conduta ou risco - é mais importante, um determinado regime de responsabilidade estará mais próximo da responsabilidade baseada em culpa ou mais próximo da responsabilidade objetiva. Zonas cinzentas no PETL O Grupo Europeu de Responsabilidade Civil reconheceu essas zonas cinzentas em seu trabalho preparatório, abordando-as explicitamente. Os artigos 4:201 e 4:202, incluem duas disposições claramente focadas nessas áreas onde tanto a conduta censurável quanto o risco desempenham um papel. O presente trabalho centra-se na arte. 4:201 PETL: Arte. 4:201. Inversão do ônus da prova da culpa em geral § 1º O ônus da prova da culpa poderá ser invertido em razão da gravidade do perigo representado pela atividade. (2) A gravidade do perigo é determinada de acordo com a gravidade dos possíveis danos em tais casos, bem como a probabilidade de que tais danos possam realmente ocorrer. O elemento central desta disposição é a gravidade da periculosidade da atividade em questão. Ou seja, a regra permite a inversão do ônus da prova da culpa em face da gravidade do perigo apresentado pela atividade. Os Princípios não incluem uma regra geral sobre o ônus da prova, mas cada parte deve provar os fatos relevantes para a determinação da responsabilidade. A inversão do ônus da prova por culpa no art. 4:201 PETL significa, portanto, que caberá aos réus provar que agiram de acordo com o padrão de conduta exigido. O caput do art. 4:201 PETL refere-se à inversão do ônus da prova da culpa em geral. A disposição é geral no sentido de que não usa casos específicos como danos causados por animais ou por edifícios como ponto de partida, onde tal inversão do ônus da prova pode ser encontrada em várias jurisdições. Generalizar para todos os casos de amplificação do perigo é um passo além, que pode ser tido como excepcional. Não obstante, o art. 4:201 O PETL possui um design específico: é concebido para permitir um reforço da responsabilidade com base em um perigo elevado da atividade da qual o dano emanou. Não é, no entanto, uma regra geral sobre como e em que circunstâncias o ônus da prova da culpa pode ser invertido ou uma disposição destinada a ajudar os demandantes que não podem provar seu caso. Dificuldades de prova não são mencionadas e o texto refere-se apenas à gravidade da periculosidade de uma atividade. O que estamos, portanto, enfrentando quando olhamos para o art. 4:201 PETL é uma norma substancial levando em consideração que a responsabilidade pode não apenas ser justificada por conduta censurável ou um certo risco, mas também por uma combinação de ambos os fatores. Um pedido de indenização é justificado se as condições estabelecidas para a compensação pela lei forem cumpridas. Infelizmente, muitas vezes é difícil o tribunal determinar o que realmente aconteceu. Para garantir que o juiz possa decidir um caso mesmo que os fatos permaneçam obscuros, em uma situação chamada non liquet, existem regras sobre o ônus da prova dos fatos, com base nos quais a culpa pode ser avaliada e geralmente recairá sobre o demandante. Se esses fatos não puderem ser apurados, o juiz decidirá como se não houvesse culpa. Somente se a culpa for comprovada pelo demandante, o réu será responsabilizado. A inversão do ónus da prova da culpa significa, portanto, que o tribunal decidirá como se a culpa fosse provada, mesmo que não haja prova dessa culpa. Um réu pode, portanto, ser responsabilizado sem que sua culpa seja provada: ele pode ter cometido falta, o que simplesmente não foi provado, ou pode não ter cometido culpa alguma, mas não conseguiu provar isso. Em caso de inversão do ónus da prova da culpa, o risco de os fatos não serem apurados recai, portanto, sobre o demandado. Consequentemente, uma inversão do ónus da prova da culpa conduz a um agravamento da responsabilidade, uma vez que o réu será responsabilizado se tiver cometido apenas uma culpa potencial. Nesse sentido, tem-se argumentado que o estreitamento da responsabilidade por meio da inversão do ônus da prova só pode ser justificado se houver fatores adicionais que justifiquem a responsabilidade. O fator que justifica o agravamento da responsabilidade previsto no art. 4:201 PETL é a periculosidade. A responsabilidade de acordo com o art. 4:201 se basea em uma combinação de conduta censurável e periculosidade: enquanto a responsabilidade em princípio requer uma violação do padrão de conduta exigido, a presença de um perigo de certa gravidade justifica uma inversão do ônus de prova, ou seja, uma responsabilidade por culpa meramente assumida por parte do réu. A questão interessante é claramente o que deve ser entendido como um perigo que justifica a responsabilidade no sentido deste artigo? O caput do 4:201 PETL refere-se apenas à gravidade do perigo e o parágrafo 2 define a gravidade do possível dano e a probabilidade de dano como fatores decisivos para determinar a gravidade do perigo. Embora esses fatores sejam comumente usados para definir a periculosidade, eles não fornecem orientação quanto ao grau de periculosidade exigido. Embora isso não seja expressamente mencionado na disposição, deve ser claramente um nível de gravidade maior do que aquele inerente a qualquer cenário de falha regular. Por outro lado, será inferior às atividades anormalmente perigosas reguladas no art. 5:101 PETL. No entanto, faltam mais orientações quanto à gravidade. Isso deixa em aberto a questão de saber em que circunstâncias o art. 4:201 PETL será aplicado. O ponto de partida do PETL é uma responsabilidade baseada em culpa com um standard objetivado. A responsabilidade por culpa prevista na PETL já poderia, portanto, ser considerada mais objetiva do que a responsabilidade por culpa em sistemas com um conceito subjetivo de culpa. Além disso, ao avaliar o padrão de cuidado, o art. 4:102 (1) A PETL estabelece que "a periculosidade da atividade" é um dos fatores que devem ser levados em consideração ao determinar o padrão de conduta exigido. Embora ainda estejamos claramente na área central da responsabilidade por culpa, a periculosidade tem um papel a desempenhar mesmo aqui. Por outro lado, o PETL também inclui uma regra de responsabilidade objetiva. Originalmente, foi prevista uma cláusula geral de responsabilidade objetiva por fontes de alto perigo, mas o Grupo não conseguiu chegar a um acordo sobre essa disposição, que acabou levando ao art. 5:101 PETL, segundo a qual a responsabilidade objetiva só se aplica a atividades anormalmente perigosas que não são de uso comum. Embora esteja claro que, nos PETL's, a periculosidade é o fator central tanto para a responsabilidade objetiva quanto para o estreitamento da responsabilidade nas áreas cinzentas, limitar a regra da responsabilidade objetiva à margem das atividades anormalmente perigosas mudou claramente o cenário. Outra consequência dessa cláusula de responsabilidade objetiva limitada é que as áreas cinzentas dos Princípios agora se estendem muito mais: Uma disposição como o art. 4:201 O PETL poderia preencher a lacuna entre a responsabilidade por culpa e um regime regular de responsabilidade objetiva. Mas esperar que ele faça a ponte entre a responsabilidade por culpa, por um lado, e a responsabilidade objetiva por atividades anormalmente perigosas, por outro, vai longe demais. Observações finais É uma grande conquista dos Princípios abraçar a ideia do continuum entre responsabilidade baseada em culpa e responsabilidade objetiva, construindo uma ponte entre essas responsabilidades por meio da introdução de regras que cubram as áreas cinzentas. Isso auxiliará a alcançar soluções consistentes e transparentes sem a necessidade de práticas legais para corromper a responsabilidade baseada em culpa ou a responsabilidade objetiva. No entanto, ao observar como o art. 4:201 PETL é formulado, problemas consideráveis são perceptíveis. Em primeiro lugar, o dispositivo pode ser mal interpretado como regra geral para inverter o ônus da prova em casos de problemas estruturais para os autores provarem a culpa. Isso, no entanto, não é algo que o artigo 4:201 do PETL pode ou deva alcançar. Além disso, e mais importante, uma mera referência à gravidade do perigo sem qualquer orientação quanto ao nível de tal perigo que justifique uma inversão do ônus da prova é problemática. Qualquer mudança legal é um desafio à segurança jurídica. Os Princípios deveriam, portanto, ao menos deixar claro qual o grau de periculosidade que justifica a inversão do ônus da prova, em particular citando exemplos. Tal como está, o art. 4:201 O PETL não fornece nenhuma orientação. Este problema é intensificado pelo fato de que os Princípios fornecem apenas uma cláusula de responsabilidade objetiva para atividades anormalmente perigosas. Isto significa que a disposição destinada a abranger áreas em que é necessária uma combinação de comportamento e periculosidade para justificar a responsabilidade também deveria ser aplicada aos casos em que o perigo por si só deveria ser suficiente. Uma cláusula que preveja uma inversão do ónus da prova para abranger zonas cinzentas é uma boa ideia, mas só pode funcionar quando tanto a responsabilidade baseada na culpa como a responsabilidade objetiva também estiverem integralmente abrangidas pelo sistema em questão. Se revisitar a área cinzenta o art. 4:201 PETL certamente faz sentido, seria fundamental primeiramente remediar a incompletude das regras de responsabilidade objetiva dos Princípios. __________ 1 Steininger, Barbara C., Art 4:201 Petl: Revisiting the Grey Areas between Fault-Based and Strict Liability (June 9, 2023). Graz Law Working Paper No. 11-2023, Available at SSRN: here or here.
Meu cunhado é fã de Steve Jobs. Quando confrontado com um problema no trabalho, ele sempre se pergunta: "Como Steve Jobs resolveria isso? O que faria?". Por isso, em viagem de família aos EUA, visitamos o QG da Apple em Cupertino, na Califórnia. A sede é um enorme prédio oval que fica no centro de uma área gigantesca coberta por vegetação, de modo a protegê-lo da curiosidade alheia, especialmente de turistas enxeridos como nós. Pela dificuldade de um acesso ao próprio prédio sede, tivemos de nos contentar com uma simples visita à loja da Apple. Depois de zanzar pelas mesas de madeira com produtos expostos, fui à cafeteria e pedi um café. Como bom brasileiro querendo fugir do IOF, não queria pagar com cartão de crédito e saquei da carteira meus dólares adquiridos às vésperas da viagem. A atendente viu aquilo e disse: "Sorry, we don't take cash here. Would you like to pay with credit card?" Fiquei surpreso, mas achei que seria fútil tentar argumentar e, algo contrariado, paguei com cartão de crédito. Mas o evento me deixou intrigado e pensando se aquilo seria possível no Brasil. Na compra do café, a minha obrigação era pecuniária, ou "dívida em dinheiro", segundo a expressão legal do Código Civil brasileiro. De acordo com o art. 315 CC, "as dívidas em dinheiro deverão ser pagas [...] em moeda corrente [...]." A questão, portanto, refere-se ao conteúdo de "moeda corrente". Segundo a doutrina, "moeda corrente" constitui moeda que tem curso legal1 ou, de maneira mais restritiva, que tem curso forçado2. Curso legal tem a moeda que "pode circular em determinado território, com poder, atribuído legalmente, de liberar o devedor"3. Curso forçado tem aquela moeda que o credor não pode recusar, devendo ser por ele obrigatoriamente aceita para o pagamento de obrigações pecuniárias4. Os civilistas concordam que, no Brasil, atualmente apenas o real tem curso legal e forçado. Isso com base na Lei 9.069 que, desde 1994, estabelece o Real como a unidade do Sistema Monetário Nacional, que tem "curso legal em todo território nacional." (art. 1.º). "Moeda corrente" é a moeda que tem curso legal ou forçado e, no Brasil, essa moeda é o Real. Mas, para a nossa dúvida, interessa ir além e saber o alcance prático disso. É questionável, em especial, se "moeda corrente" abrange apenas papel-moeda ou também outras formas de pagamento, como a transferência bancária. O pagamento por meio de transferência bancária corresponde a pagamento em moeda escritural, bancária ou contábil. Trata-se, na realidade, de transferência de créditos contra bancos - os chamados saldos em conta -, que não estão incorporados em um título de papel5. Parte da doutrina defende que "moeda corrente" corresponde apenas a papel-moeda. Segundo Giovanni Ettore Nanni, "o dinheiro é o instrumento de pagamento sancionado pelo Estado, que o reconhece como coisa portadora de unidades de valor. É expresso em cédula ou papel-moeda, tendo curso forçado em determinado território em razão de lei. No Brasil a moeda corrente é o real, consoante estatuído pela lei 9.069/1995."6 Por essa posição, o conteúdo das obrigações pecuniárias corresponderia à entrega de papel-moeda. O pagamento mediante transferência bancária, que corresponde a entrega de moeda escritural e não de papel-moeda, representaria dação em pagamento, para a qual o credor precisaria consentir (art. 356 CC). Uma segunda posição doutrinária defende a ampliação da noção de "moeda corrente" para abarcar outros "meios de pagamento". Segundo Jorge Cesa Ferreira da Silva, "ao lado das moedas, se posicionam também os demais meios de pagamento que, em certo sentido, devem ser entendidos como moeda. Esses meios possuem não só a sua condição liberatória reconhecida pelo tráfico jurídico, como também são economicamente mensurados para fins de análise da quantidade de meio circulante. É o caso do cheque, das moedas de plástico (cartões de débito e crédito), da moeda escritural, pagamento eletrônico, que, na prática, são muito mais utilizadas do que o dinheiro"7. Seguindo essa concepção ampliada, as obrigações pecuniárias poderiam sempre ser adimplidas ou pela entrega de "dinheiro vivo" (papel moeda), pela transferência bancária (moeda escritural), pelas referidas moedas de plásticos, entre outras formas. Pela ampliação do conceito legal de moeda corrente, as obrigações pecuniárias seriam obrigações alternativas, que são aquelas que têm por objeto duas ou mais prestações distintas, ficando o devedor desobrigado caso realize qualquer uma das prestações8. Uma questão prática que emerge dessa posição é a de determinar qual das prestações deveriam ser cumpridas pelo devedor. A escolha caberia em primeiro lugar às partes. Não havendo estipulação, a escolha então caberia ao devedor (art. 252 CC). Essa posição, no entanto, está aberta a críticas. O que ocorreria caso não houvesse estipulação das partes e o devedor optasse por pagamento via moeda escritural e o credor não tivesse conta bancária? Ou então, se o devedor optasse por pagar via moeda de plástico e o credor não aceitasse receber cartões de crédito ou débito? Esses seriam casos de mora do credor, pois a não realização da prestação devida pelo devedor decorreria de fato imputável ao credor. Em linguagem legal, o credor não estaria querendo receber a prestação devida (art. 394 CC). Essa é uma conclusão absurda em muitos contextos, sobretudo em contratações fora dos centros urbanos ou envolvendo classes menos favorecidas sem acesso a serviços bancários. Por isso, não é possível adotar dessa forma a posição de ampliação do conceito de moeda corrente. Apesar do inegável crescimento e diversificação das formas de pagamento de obrigações pecuniárias que não a entrega de dinheiro vivo, a melhor saída ainda é partir da regra geral como sendo pagamento em papel moeda e deixar que as próprias partes acordem o pagamento por outras vias, como moeda escritural ou moeda plástica. Essa conclusão leva a uma outra questão: seria possível as partes afastarem esse regramento, pactuando ab initio que o preço será pago mediante transferência bancária ou cartão de crédito etc.? Nas relações civis e comerciais certamente que sim. Mas e nas relações de consumo? Os fornecedores poderiam estabelecer que não receberiam papel moeda como pagamento? O CDC prevê o seguinte: "Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: [...] II - recusar atendimento às demandas dos consumidores, na exata medida de suas disponibilidades de estoque, e, ainda, de conformidade com os usos e costumes; [...] IX - recusar a venda de bens ou a prestação de serviços, diretamente a quem se disponha a adquiri-los mediante pronto pagamento, ressalvados os casos de intermediação regulados em leis especiais". Uma questão que precisa ser levada em consideração é o ambiente. No digital, por exemplo, a questão praticamente não se põe: um consumidor que esteja adquirindo produto ou serviço pela internet não vai ter a opção de pagar com dinheiro vivo e ninguém reclama disso. O próprio ambiente digital já exerce um filtro dentre os consumidores, no sentido que quem está adquirindo produtos no âmbito digital presumivelmente não vai demandar realizar pagamento em papel-moeda. Aqui podemos referir os "usos e costumes" presentes no art. 39 II CDC. Por outro lado, em se tratando de lojas físicas, é possível o fornecedor não aceitar papel-moeda? Ao não aceitar papel-moeda, o fornecedor estaria excluindo todos os consumidores que não tivessem conta bancária e/ou cartão de crédito. Partindo da premissa de que a população mais pobre é a que se utiliza mais de papel-moeda, a medida de recusa de papel-moeda poderia servir como uma forma de prática discriminatória inclusive. São questões a considerar. Contudo, no âmbito dos centros urbanos, a prática parece estar se consolidando. Há poucos dias, fui ao McDonald's em São Paulo. Lá chegando, não havia mais seres humanos para receber o pedido e o pagamento, mas apenas telões em que o consumidor escolhe o pedido e paga por ele por meio de cartões de crédito ou débito. Não cheguei a questionar, mas acho pouco provável que houvesse saída para o consumidor que quisesse pagar em papel-moeda. __________ 1 Judith Martins-Costa. Comentários ao Novo Código Civil, vol. V, t. I: do direito das obrigações, do adimplemento e da extinção das obrigações. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 247; Bruno Miragem. Direito das obrigações. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 191; Jorge Cesa Ferreira da Silva. Adimplemento e extinção das obrigações. São Paulo: RT, 2007, p. 146; Giovanni Ettore Nanni. Comentário ao art. 315. In: Giovanni Ettore Nanni (coord.). Comentários ao Código Civil: direito privado contemporâneo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 308. 2 Cristiano Chaves de Farias; Nelson Rosenvald. Curso de direito civil: obrigações. 15 ed. Salvador: Jus Podivm, 2021, p. 489; José Fernando Simão. Comentário ao art. 315. In: SCHREIBER, Anderson et. al. Código Civil comentado. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 231; José Roberto Castro Neves. Direito das obrigações. 6. ed. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2016, p. 189. 3 Ferreira da Silva, Adimplemento e extinção das obrigações, cit., p. 146. 4 Ibid., p. 146. 5 Karl Larenz. Lehrbuch des Schuldrechts, vol. 1: Allgemeiner Teil. 14. Aufl. München: Beck, 1987, p. 167. 6 Nanni, Comentário ao art. 315, cit., p. 308 7 Ferreira da Silva, Adimplemento e extinção das obrigações, cit., p. 146. 8 Hamid Charaf Bdine Jr.. Comentário ao art. 252. In: Cezar Peluso. Código civil comentado: doutrina e jurisprudência. 16. ed. Barueri: Manole, 2022, p. 181.
Introdução. No último dia 29 de junho, a Suprema Corte dos Estados Unidos anunciou sua decisão em duas ações judiciais ajuizadas por um grupo de estudantes contra duas das mais tradicionais universidades daquele país. O resultado foi a derrubada dos programas de ação afirmativa, que foram considerados inconstitucionais pela maioria dos Justices. O entendimento de seis julgadores foi no sentido de que os programas de admissão de estudantes para o College da Universidade de Harvard e da Universidade da Carolina do Norte, ao considerar a raça dos candidatos como um dos fatores do processo seletivo, violava o direito à igualdade como previsto na 14ª emenda da Constituição dos Estados Unidos. 2. As Pistas na Sustentação Oral A decisão não surpreendeu aqueles que acompanham a Suprema Corte dos Estados Unidos, eis que a sessão pública de sustentação oral do caso já tinha indicado que o placar do julgamento provavelmente seria desfavorável para as universidades e poderia eventualmente significar a derrubada da ação afirmativa nos Estados Unidos. Por exemplo, o Presidente da Suprema Corte, Chief Justice John Roberts, questionou se o programa de admissão não seria muito estereotípico pelo fato de que um candidato poderia ser beneficiado como se trouxesse diversidade para o campus apenas por marcar que é afro-americano em uma caixinha no formulário de inscrição. Da mesma maneira, o magistrado conservador Clarence Thomas - conhecido crítico da ação afirmativa mesmo sendo negro e tendo se beneficiado por esse programa para estudar direito na Universidade de Yale - deixou clara sua inclinação no julgamento ao dizer que tinha escutado a palavra 'diversidade' várias vezes, mas que não tinha ideia do que significava e pedia para o advogado da universidade definir o conceito. O Justice Samuel Alito também insistiu que essas categorias raciais seriam tão amplas que não permitiriam uma análise clara de diversidade individual de estudantes que viessem de origens muito mais ricas e diversas do que os rótulos raciais colocados nas caixinhas dos formulários: 'afro-americano'; 'hispânico'; 'asiático-americana', etc. Já Neil Gorsuch criticou abertamente a origem histórica dessa diferenciação racial, afirmando que a Universidade de Harvard teria começado a incluir o fator racial como parte do processo de admissão de estudantes na década de 1920, quando um Reitor antissemita estava insatisfeito com um suposto alto número de estudantes de origem judaica e queria estabelecer uma cota para limitar o número de judeus. 3. As Reações de Surpresa na Opinião Pública.  Embora a decisão possa não ter surpreendido os especialistas que acompanham o cotidiano da Suprema Corte, contudo, causou enorme comoção na opinião pública. Todos os principais meios de comunicação repercutiram imediatamente o anúncio da decisão, entrevistando acadêmicos, políticos e estudantes sobre sua opinião sobre a derrubada dos programas de ação afirmativa. Como o Estado da Califórnia já tinha proibido a ação afirmativa através de um referendo em 1998, a previsão inicial dos analistas é que os efeitos possam ser parecidos com o que se observou nas universidades californianas ao longo dos últimos 25 anos. Ocorreu uma redução de cerca de metade no número de estudantes de origem hispânica e afro-americana nas universidades californianas. Além disso, ocorreu um efeito cascata negativo, de modo que estudantes que até então estudariam na Universidade de Berkeley teriam que estudar na Universidade de Davis e os que estudariam em Davis teriam que estudar em Santa Barbara e assim por diante. No cenário político, o Presidente da República, Joe Biden, fez um pronunciamento no mesmo dia em tom crítico à decisão da Suprema Corte, afirmando que ele discorda veementemente do teor da decisão, que a corte se afastou de décadas de precedentes judiciais e de enorme progresso social. Ele também fez um apelo para que as empresas continuem a estimular a diversidade no recrutamento de trabalhadores para sua força de trabalho e sugeriu que as universidades continuem a buscar meios de promover a diversidade no processo de admissão de seus estudantes. Além do tuíte de Michelle Obama de que a decisão deixava seu coração partido por reduzir as oportunidades de tantas pessoas, o ex-Presidente da República, Barack Obama, também deixou sua mensagem: como qualquer política, ação afirmativa não era perfeita, mas possibilitou que gerações de estudantes como eu e Michelle demonstrássemos nosso valor. 4. O Resultado do Julgamento. O grupo de estudantes Students for Fair Admissions ajuizou duas ações judiciais, de modo a que a questão pudesse ser decidida tanto diante de uma instituição de ensino superior privada como a Universidade de Harvard, quanto diante de uma instituição pública como a Universidade da Carolina do Norte. As duas ações foram reunidas, provocando a derrubada dos programas de ação afirmativa tanto no âmbito privado, quanto na rede de universidades públicas. O resultado do julgamento variou minimamente porque a Justice Ketanji Brown Jackson, como membro do Conselho da Universidade de Harvard, se declarou impedida de decidir um caso ajuizado contra a universidade. Logo, os resultados finais dos dois casos foram diferentes. Na ação contra Harvard, a ação afirmativa foi derrubada por seis votos contra dois. Na ação contra a Universidade da Carolina do Norte, o placar do julgamento foi seis votos contra três. A opinião da Suprema Corte foi redigida pelo seu Presidente, o Chief Justice John Roberts, sendo que aderiram ao seu voto os Justices Thomas, Alito, Gorsuch, Kavanaugh e Barrett. Além da opinião da corte, foram elaborados votos independentes em adesão à opinião da corte pelos magistrados Thomas, Gorsuch e Kavanaugh. A opinião elaborada pelo Justice Gorsuch teve a adesão do Justice Thomas. Do lado de defesa dos programas de ação afirmativa, a Justice Sotomayor elaborou uma opinião divergente, que recebeu a adesão da Justice Kagan e da Justice Jackson (salvo no caso da Universidade de Harvard). Também a Justice Jackson produziu um voto de dissenso no caso da Universidade da Carolina do Norte, que recebeu a adesão da Justice Kagan e da Justice Sotomayor. 5. Considerações Finais. O presente artigo se refere a uma decisão recente da Suprema Corte dos Estados Unidos, apresentando as pistas na sustentação oral de que os programas de ação afirmativa seriam derrubados e algumas impressões iniciais de especialistas e políticos nos meios de comunicação no dia em que a decisão se tornou pública. O resultado do julgamento também é apresentado de modo sucinto, até mesmo porque o texto foi escrito no dia seguinte ao anúncio da decisão. Futuras colunas poderão se dedicar mais a examinar detalhadamente os argumentos da corte para a derrubada da ação afirmativa e os votos divergentes em sentido contrário.
Recentemente, causou alvoroço no Brasil a comercialização dos ingressos para o show da cantora norte-americana Taylor Swift. Milhares de fãs se revoltaram quando a organizadora do evento - a empresa Tickets For Fun - anunciou que só havia bilhetes suficientes para as pessoas que estavam no primeiro bolsão da fila, momento em que um grupo de fãs começou a derrubar grades, numa tentativa de invadir a parte mais próxima dos guichês de venda. Policiais militares e seguranças do local tiveram que intervir para conter o público. A confusão e a revolta dos consumidores não ocorreram apenas com o público que tentava adquirir presencialmente os ingressos. De acordo com o Procon-SP, apesar de os ingressos terem se esgotado em poucas horas nos canais oficiais, estariam sendo anunciados e vendidos em sites não oficiais a preços muito superiores, em evidente prática ilegal de cambismo digital. O Procon-SP informou que notificou a empresa de vendas oficial do show - a Tickets For Fun -, solicitando-lhe esclarecimentos acerca dos problemas relatados pelos consumidores.1 Paralelamente, a deputada federal Erika Hilton (PSOL) representou junto ao Ministério Público de São Paulo a ampliação da investigação já existente sobre shows comercializados pela empresa Eventim, com o intuito de também incluir a empresa Tickets For Fun. Nos EUA, a situação não foi diferente. Quando Taylor Swift anunciou sua primeira turnê em cinco anos, a venda de ingressos para o show foi caótica. No processo de pré-vendas, os usuários precisavam baixar um código de verificação para comprar os ingressos, que supostamente serviria para eliminar bots. Horas após o lançamento do código, 3,5 milhões de solicitações foram realizadas. Depois disso, o sistema entrou em colapso e a Ticketmaster teve que cancelar as vendas. Muitos dos que tiveram a sorte de garantir os ingressos foram cobrados com taxas extras. Logo após a abertura da pré-venda, alguns ingressos já estavam sendo listados em sites de revenda, como o StubHub, por até US$ 33.500 cada. A Ticketmaster possui um sistema de preços dinâmico, que define valores dos ingressos com base na demanda e permite a revenda de ingressos, o que beneficia os cambistas.  A advogada Jennifer Kinder, uma swiftie de longa data, passou por todos os obstáculos da pré-venda tentando conseguir ingressos para si e para sua filha pré-adolescente. O caos dessa experiência a levou a propor uma demanda contra a Ticketmaster, contando com mais de 300 queixosos.2 As pré-vendas foram tão confusas que a Ticketmaster e sua controladora - a Live Nation Entertainment - cancelaram a venda geral de entradas alegando que a demanda havia sido tão alta que o estoque acabou. Há uma estimativa de que mais de 14 milhões de pessoas tentaram adquirir os ingressos. Com o cancelamento das vendas oficiais da "The Eras Tour", a Live Nation viu suas ações caírem quase 8%, maior queda diária do mês, e acumula um desempenho negativo de -43% no ano.3 Investigação sobre monopólio - Comitê Judiciário dos EUA Diante da confusão gerada com as vendas de ingressos de Taylor Swift, e por não se tratar da primeira vez que a empresa Ticketmaster se viu acusada de manipulação de vendas de ingressos, o Senado dos EUA convocou uma audiência em seu Comitê Judiciário.4 O pano de fundo da discussão envolve a polêmica em torno da Live Nation Entertainment e a sua subsidiária Ticketmaster, que se fundiram em 2010 e passaram a controlar o mercado de bilheterias virtuais. Os senadores investigam se, depois da referida fusão, as empresas criaram um verdadeiro monopólio - por serem duas gigantes do ramo. A presidente do subcomitê antitruste do Senado, a senadora americana Amy Klobuchar, afirmou ter sérias preocupações com a atuação da Ticketmaster, na medida em que o poder da empresa desfavorece a competição. A falta de concorrência praticamente afasta que as empresas continuem inovando para atrair o público e, no final, são os consumidores que pagam o preço. Na audiência no Senado, o presidente e diretor financeiro da empresa Live Nation Entertainment, Joe Berchtold, pediu desculpas aos fãs e à Taylor Swift pela confusão causada. "Em retrospectiva, há várias coisas que poderíamos ter feito melhor - incluindo escalonar as vendas por um período de tempo mais longo e fazer um trabalho melhor para ajustar as expectativas dos fãs para conseguir ingressos".5 Em sua defesa, a empresa Ticketmaster argumenta que os bots usados pelos cambistas teriam sido a causa do problema, culpando, ainda, o tráfego sem precedentes na web.   De acordo com o músico Clyde Lawrence, que se pronunciou em nome dos artistas, "devido ao controle da Live Nation em toda a indústria, praticamente não temos influência na negociação [com] eles, se eles quiserem pegar 10% das receitas e chamar isso de 'taxa de instalação', eles podem, e têm... E se eles querem nos cobrar US$ 250 por uma pilha de dez toalhas limpas, eles podem, e têm... Em um mundo onde o promotor e o local não são afiliados um ao outro, podemos confiar que o promotor procurará obter o melhor negócio do local. No entanto, neste caso, o promotor e o local fazem parte da mesma entidade corporativa."6 Lawrence também refutou as alegações da Ticketmaster de que os artistas definem estratégias de preços, dizendo: "Para ser claro, não temos absolutamente nenhuma opinião ou visibilidade sobre o valor dessas taxas. Descobrimos da mesma forma que todos os outros, entrando no Ticketmaster assim que o show já estiver à venda. E caso você esteja se perguntando, não, nós, os artistas, não recebemos um centavo dessa taxa." O senador republicano Mike Lee declarou que a investigação da Ticketmaster destacou a importância de avaliar se "uma nova legislação ou talvez apenas uma melhor aplicação das leis existentes pode ser necessária para proteger o povo americano". Desafios regulatórios nos EUA A audiência no Senado não é a única investigação direcionada à Live Nation Entertainment. De acordo com o New York Times, o Departamento de Justiça havia iniciado uma investigação antitruste sobre a empresa.7 Esta não é a primeira vez que a conduta da Ticketmaster é examinada pelo Congresso. Além de uma audiência no Senado, ocorrida em 2009 antes da fusão Ticketmaster-Live Nation, no ano de 1994 um subcomitê da Câmara realizou uma audiência sobre a Ticketmaster depois que a banda Pearl Jam apresentou uma queixa ao Departamento de Justiça. O gerente da banda Aerosmith, Tim Collins, também testemunhou na audiência, quando afirmou: "Steven Tyler, vocalista do Aerosmith, me disse: 'Mussolini pode ter feito os trens funcionarem no horário, mas nem todos conseguiram um assento no trem'. Esse é o problema que o Aerosmith e eu temos com a Ticketmaster. Sim, eles têm um sistema eficiente e lucrativo, mas seus aspectos monopolistas são injustos e prejudiciais."8 Os principais marcos regulatórios antitruste nos EUA são bem antigos, incluindo a Lei do Comércio Interestadual (1887), a Lei Sherman (legislação de referência sobre o tema, de 1890), a Lei Clayton (1914) e a Lei Federal da Comissão de Comércio (1914). A fiscalização a respeito do cumprimento das referidas legislações cabe à agência Federal Trade Commission e ao Departamento de Justiça dos EUA.9 A Lei Sherman proíbe "todo contrato, combinação ou conspiração para restringir o comércio" e qualquer "monopolização, tentativa de monopolização ou conspiração ou combinação para monopolizar". Há muito tempo a Suprema Corte norte-americana decidiu que referida Lei não proíbe todas as restrições ao comércio, apenas aquelas que não são razoáveis. Por exemplo, em certo sentido, um acordo entre dois indivíduos para formar uma parceria restringe o comércio, mas só não pode fazê-lo de forma irracional. Portanto, pode ser legal de acordo com as leis antitruste. Por outro lado, certos atos são considerados tão prejudiciais à concorrência que quase sempre são qualificados como ilegais. Isso inclui acordos simples entre indivíduos ou empresas concorrentes para fixar preços, dividir mercados ou fraudar licitações. Esses atos são violações per se da Lei Sherman.10 Especialistas no tema afirmam que, nos anos 90, ainda não havia monopólio na área, na medida em que existiam outras empresas concorrentes, como o StubHub e a própria Live Nation. Todavia, com a fusão ocorrida em 2010, a Ticketmaster passou a deter mais de 70% do mercado de serviços primários de vendas de ingressos para as grandes casas de shows dos EUA.11 Diante desse cenário, em 26 de abril de 2023, os senadores Amy Klobuchar e Richard Blumenthal apresentaram o projeto do Unlock Ticketing Markets Act - Lei de Mercados de Ingressos Desbloqueados, que visa regular especificamente os controversos contratos de exclusividade plurianuais que a Ticketmaster costuma usar.12 A esse referido projeto de Lei se agrega ainda outro, apresentado em 25 de abril de 2023, que obriga as plataformas de ingressos a mostrar um preço que inclua todas as taxas cobradas, uma prática conhecida como preço total. A chamada "Lei de Transparência nas Cobranças de Ingressos para Eventos Chave" (The Ticket Act) foi apresentada pelos senadores Maria Cantwell e Ted Cruz.13 Esses projetos de Lei apresentados seguem o exemplo do Estado de Nova York, que já aprovou uma legislação significativa em torno do negócio de venda de ingressos, exigindo que as empresas mostrem todas as suas taxas antecipadamente e divulguem o valor nominal original de um ingresso quando ele estiver sendo revendido.14 A Lei de Defesa do Consumidor de Nova York proíbe práticas comerciais desleais ao lidar com bens ou serviços de consumo - como propaganda enganosa, vendas falsas e ofertas especiais com condições ocultas, também estabelecendo regras de conduta adequadas na cobrança de dívidas de consumo.15 Assim, vendedores e revendedores são obrigados a divulgar antecipadamente uma etiqueta de preço all-in e são impedidos de exibi-la em um tamanho de fonte menor.  Referida Lei (S.9461/A.10500) também aumenta as multas civis pelo uso de bots cambistas e softwares de compra de ingressos, proíbe a revenda de ingressos gratuitos (embora ainda possam ser legalmente transferidos para outra pessoa), proíbe taxas de entrega por ingressos entregues eletronicamente ou impressos em casa e exige que os vendedores deixem claro aos compradores quando um ingresso está sendo revendido e divulguem o preço original do ingresso.16 Desafios regulatórios no Brasil  No Brasil, algumas iniciativas parlamentares buscam regular o tema. O Projeto de Lei nº 2.942/22, que tramita na Câmara dos Deputados, limita a quantidade de ingressos que podem ser comprados pela internet para eventos abertos ao público. Pelo texto, fica proibida a venda de mais de quatro ingressos por CPF e mais de 12 por CNPJ para cada data da realização do evento.17 Por outro Projeto de Lei (3.145/2023), também da Câmara dos Deputados, objetiva-se alterar o Código de Defesa do Consumidor para regulamentar a venda de ingressos online de shows e eventos. De acordo com a proposta, a comercialização de ingressos deverá ser feita por pessoa jurídica, diretamente ao consumidor, vedada a revenda para terceiros com valores superiores aos valores de face do ingresso. Ainda, regula-se a disponibilização da posição do comprador na fila de aquisição, a limitação justificada de venda de ingressos para um mesmo CPF ou CNPJ e disponibilização, no site de compra, de informações sobre política de devolução e reembolso de ingressos.18 Os problemas referentes às vendas de ingressos para o show de Taylor Swift no Brasil também induziram iniciativas do parlamento brasileiro no âmbito criminal. A deputada federal paulista Simone Marquetto (MDB-SP) apresentou um Projeto de Lei (PL 3120/2023) com o objetivo de criminalizar a venda de ingressos por cambistas, objetivando proteger a economia popular. Identificado como "Lei Taylor Swift", a proposta sugere pena de reclusão de um a quatro anos, além de pagar multa de até cem vezes o valor dos ingressos apreendidos ou anunciados.19 Ainda, o deputado federal Pedro Aihara apresentou um Projeto de Lei (PL 3115/2023) que criminaliza o "Cambismo Digital" e protege a economia popular em eventos esportivos, de diversão, lazer e negócios. Dentre outras regulações, o PL proíbe a venda de ingressos por valores superiores aos originais, além de estabelecer a tipificação e punição pelo crime do chamado "cambismo digital".20 Como se percebe, os desafios da regulação da venda de ingressos para shows de entretenimento são mundiais, envolvendo, dentre outras questões, a investigação de práticas abusivas, da formação de monopólios e do fomento de cambismo digital em detrimento de milhões de consumidores que, invariavelmente, ou se veem frustrados em suas expectativas de assistir a um espetáculo dos sonhos, ou acabam pagando preços extorsivos. ___________ 1 PROCON - SP. Disponível aqui. Acesso em junho de 2023. 2 TIME MAGAZINE. What Happened During Congress' Hearing on Ticketmaster and the Taylor Swift Concert Mess. Disponível aqui. Acesso em junho de 2023. 3 Informação divulgada pela empresa XP Investimentos. Disponível aqui. Acesso em junho de 2023. 4 Senate hearing on Ticketmaster business practices following Taylor Swift ticket issues. Disponível aqui. Acesso em junho de 2024. 5 Idem. 6 Idem. 7 THE NEW YORK TIMES. Ticketmaster Cast as a Powerful 'Monopoly' at Senate Hearing. Disponível aqui. Acesso em junho de 2023. _________. At Ticketmaster Hearing, Taylor Swift Lyrics Were the Headliner. Disponível aqui. Acesso em junho de 2023. 8 Idem. 9 FEDERAL TRADE COMISSION. THE ANTITRUST LAWS. Disponível aqui. Acesso em junho de 2023. 10 Idem. 11 De acordo com Carl Szabo, vice-presidente e general counsel of NetChoice: "Este é um caso antitruste por slam dunk sob a lei antitruste atual, incluindo outras  violações antitruste como o abuso de poder de mercado (ou seja, forçar artistas a usar a plataforma Ticketmaster) e danos ao consumidor (ou seja, qualidade reduzida e taxas mais altas)". 12 Unlock Ticketing Markets Act of 2023. Disponível aqui. Acesso em junho de 2023. 13 The Ticket Act. Disponível aqui. Acesso em junho de 2023. 14 Consumer Protection Law. Disponível aqui. Acesso em junho de 2023. 15 Eric T. Schneiderman, Obstructed View: What's Blocking New Yorkers from Getting Tickets, New York State Attorney General's Office, Disponível aqui. Acesso em junho de 2023. 16 Disponível aqui. Acesso em junho de 2023. E, ainda aqui. Acesso em junho de 2023. 17 Câmara dos Deputados. Disponível aqui. Acesso em junho de 2023. 18 Câmara dos Deputados. Disponível aqui. Acesso em junho de 2023. 19 Câmara dos Deputados. Disponível aqui. Acesso em junho de 2023. 20 "Art. 2º Fica tipificado como crime o cambismo digital, entendido como a prática de revenda ilegal de ingressos de eventos esportivos, de diversão, lazer e negócios por meio de plataformas online, aplicativos, redes sociais ou qualquer outra forma digital. Parágrafo único: Configura-se o crime de cambismo digital quando o agente adquire ou revende os ingressos com o intuito de obter preços superiores aos fixados pelas entidades promotoras do evento." Disponível aqui. Acesso em junho de 2023.
Em minha coluna anterior de nosso Direito privado no common law, reunimos as principais ideias do paper de autoria de Alex Engler, publicado em 25 de abril de 2023,1 no contexto de um Relatório Produzido pelo Governance Studies. Naquela ocasião, tendo como premissa que UE e EUA são fundamentais para o futuro da governança global de IA, avaliamos as abordagens dos dois blocos para o gerenciamento de riscos de IA. Com base nas premissas lá alinhavadas, é possível traçar algumas comparações entre as abordagens dos EUA e da UE quanto aos riscos de IA. Ambos os governos adotam abordagens amplamente baseadas em risco para a regulamentação da IA e descreveram princípios semelhantes de como a IA confiável deve funcionar. Na verdade, examinando os princípios nos documentos orientadores mais recentes nos EUA (o AIBoR e o NIST AI RMF) e a Lei de IA da EU, há uma sobreposição quase perfeita.2 Todos os três documentos defendem precisão e robustez, não discriminação, segurança, transparência e responsabilidade, explicabilidade, interpretabilidade e privacidade de dados, com apenas pequenas variações. Além disso, tanto a UE quanto os EUA esperam que as organizações de padronização, tanto governamentais quanto organismos internacionais, desempenhem um papel significativo na definição de barreiras à IA. Apesar desse amplo alinhamento conceitual, há muito mais áreas de divergência do que convergência no gerenciamento de riscos de IA. A abordagem da EU possui uma cobertura regulatória muito mais centralizada e abrangente do que a dos EUA, tanto em termos de inclusão de mais aplicações quanto de promulgação de regras obrigatórias para cada aplicação. Embora as agências dos EUA se disponham seriamente a redigir diretrizes e considerar a criação de regras para aplicativos de IA em seus domínios, a sua capacidade de impor tais regras ainda não é clara. As agências dos EUA podem atuar no sentido de ajuizar novas demandas, muitas vezes sem autoridade legal explícita para regular algoritmos. Diferentemente, o regulador da UE é capaz de impor sua regulamentação sobre aplicativos de IA, com poderes de investigação definidos, aplicando multas significativas por não conformidade. As intervenções da UE também criarão mais transparência pública e informações sobre o papel da IA na sociedade, como por meio do banco de dados de sistemas de IA de alto risco por toda a sua jurisdição e acesso de pesquisadores independentes a dados de grandes plataformas online. Por outro lado, o governo federal dos EUA investe significativamente mais recursos em pesquisa de IA, o que pode contribuir para o desenvolvimento de novas tecnologias que mitiguem os riscos algorítmicos. A UE e os EUA estão adotando abordagens regulatórias distintas para a IA usada para decisões socioeconômicas impactantes, como contratação, acesso educacional e serviços financeiros. A abordagem da UE tem uma cobertura mais ampla de aplicativos e um conjunto mais amplo de regras para esses aplicativos de IA. A abordagem dos EUA é mais restrita a uma adaptação da atual autoridade reguladora da agência para tentar lidar com a IA, que é muito mais limitada. Considerando-se que nos EUA muitos não esperam o porvir de uma legislação abrangente, algumas agências começaram a conduzir esse trabalho a sério, colocando-as contra intuitivamente à frente de muitas agências da UE. No entanto, espera-se que as agências dos estados membros da UE e um possível conselho de IA da UE se atualizem, com uma autoridade mais forte e financiamento obtido com base na nova Lei da UE. O fato é que autoridades desiguais entre a UE e os EUA, bem como um cronograma oscilante para os regulamentos de IA, podem tornar o alinhamento um desafio significativo. O comércio de longa data de produtos de consumo físico entre a UE e os EUA pode ser útil para o alinhamento regulatório da IA neste contexto. Muitos produtos dos EUA já atendem às regras de segurança de produtos da UE mais rigorosas, a fim de acessar o mercado europeu sem exigir um processo de produção diferenciador.3 Não parece provável que isso seja significativamente alterado pelas novas regras da UE, que certamente afetarão os produtos comerciais, mas provavelmente não levarão a grandes mudanças no processo regulatório ou impedirão as empresas americanas de atender aos requisitos da UE. É muito provável que as regras para IA incorporadas a produtos físicos tenham um "Efeito Bruxelas", no qual os parceiros comerciais, incluindo os EUA, procuram influenciar, todavia acabam adotando os padrões da UE. Vários tópicos atraíram esforços legislativos bem-sucedidos da UE, mas não do Congresso dos EUA. O mais notável são as plataformas online, incluindo comércio eletrônico, mídia social e mecanismos de pesquisa, que a UE abordou por meio do DSA e do DMA. Não há, no momento, nenhuma abordagem comparável nos EUA, nem mesmo a discussão sobre políticas públicas caminha para um consenso claro. De acordo com a Lei de IA da UE, os chatbots enfrentariam uma exigência de divulgação, que atualmente está ausente nos Estados Unidos. Além disso, as tecnologias de reconhecimento facial terão regras específicas prescritas pela Lei de IA da UE, embora essas disposições continuem sendo muito debatidas.4 Até agora, a abordagem dos EUA tem sido contribuir com informações públicas por meio do programa NIST Face Recognition Vendor Test, mas não impor regras. Da mesma forma, embora o debate europeu sobre IA generativa seja novo, é plausível que a UE inclua alguma regulamentação desses modelos na Lei de IA da UE. Isso pode incluir padrões de qualidade, requisitos para transferir informações para clientes terceirizados e/ou um sistema de gerenciamento de risco para IA generativa. No momento, não há fortes evidências de que os EUA planejem executar etapas semelhantes. O Conselho de Comércio e Tecnologia (TTC) resulta de um acordo UE-EUA. Trata-se de um fórum para permitir negociações em andamento e uma melhor cooperação em política comercial e tecnológica. O TTC surgiu após uma série de melhorias diplomáticas entre os EUA e a UE, como trabalhar juntos em um imposto corporativo mínimo global e resolver disputas tarifárias sobre aço, alumínio e aviões.5 Após a primeira reunião ministerial do TTC EUA-UE em setembro de 2021 em Pittsburgh, a declaração inaugural incluiu uma importante seção sobre colaboração de IA no Anexo III.6 A declaração reconheceu as abordagens orientadas para o risco da UE e dos EUA,  comprometendo-se com três projetos sob a égide do avanço da IA confiável: (1) discutir a medição e avaliação da IA confiável; (2) colaborar em tecnologias de IA projetadas para proteger a privacidade; e (3) produzir em conjunto um estudo econômico sobre o impacto da IA na força de trabalho. Desde então, todos os três projetos começaram a executar entregas específicas, resultando em alguns dos resultados mais concretos do empreendimento TTC mais amplo. a) Como parte do primeiro projeto de medição e avaliação, o TTC Joint Roadmap on Evaluation and Measurement Tools for Trustworthy AI and Risk Management foi publicado em 1º de dezembro de 2022.7 Este roteiro inclui três compromissos substantivos. Primeiro, UE e EUA trabalharão em direção a uma terminologia comum de IA confiável - pré-requisito para o alinhamento das políticas de risco de IA. Isso será promovido pela construção de uma base de conhecimento comum de métricas e metodologias, incluindo o estudo científico de ferramentas de IA confiáveis, que podem gerar algum consenso científico sobre as melhores práticas de implementação de IA. Os esforços colaborativos do TTC para documentar ferramentas e métodos provavelmente se basearão em esforços pré-existentes, especialmente o Catálogo OECD-NIST de Ferramentas e Métricas de IA, que fez progressos significativos nesta linha de trabalho.8 Este é um projeto valioso, pois um entendimento comum das ferramentas e métricas disponíveis é fundamental para operacionalizar os princípios compartilhados dos EUA e da EU; b) De acordo com o segundo componente do Roteiro Conjunto, UE e EUA se comprometem a coordenar os seus esforços com órgãos internacionais de padronização de IA confiável. Trata-se de um reflexo da percepção dos EUA do papel fundamental que os órgãos de padronização da UE desempenharão na Lei de IA da UE. Além disso, a UE reconhece que aplicará massivos recursos para desenvolver os muitos padrões necessários para a implementação dos vários atos legislativos que afetam o gerenciamento de risco de IA. Um relatório recente da Comissão Europeia sobre o cenário de padrões de IA sugere que a UE espera obter a referida padronização da Organização Internacional de Normalização e da Comissão Eletrotécnica Internacional, órgãos internacionais de padrões que possuem acordos de cooperação com o CEN e o CENELEC, respectivamente. Além disso, o mesmo relatório da Comissão Europeia observa que já se examinam outros padrões de IA, especificamente os do Instituto de Engenheiros Elétricos e Eletrônicos (IEEE).9 c) Por fim, o roteiro exige o rastreamento e a categorização conjunta dos riscos emergentes de IA incluindo incidentes de danos demonstrados, e o trabalho para avaliações compatíveis de sistemas de IA. De modo geral, esses são os primeiros passos para construir as bases do alinhamento sobre o risco de IA, embora Eu e USA não se comprometam muito além disso. No segundo projeto de colaboração em IA, a UE e os EUA concordaram em desenvolver um projeto piloto sobre tecnologias de aprimoramento da privacidade (PETs). Em vez de apenas reforçar a privacidade, os PETs são uma categoria de tecnologias que visam permitir a análise de dados em larga escala, mantendo algum grau de privacidade sobre eles. Os PETs permitem o uso mais amplo de dados confidenciais do setor privado e de fontes governamentais, relacionados a imagens médicas, mobilidade de bairro, os efeitos das mídias sociais na democracia, entre outros exemplos.10 Após a terceira reunião ministerial do TTC, em 5 de dezembro de 2022, UE e EUA anunciaram um acordo para comandar PETs conjuntamente para aplicações em saúde e medicina.11 A entrega do terceiro projeto também foi lançada após a terceira reunião ministerial do TTC: um relatório sobre o impacto da IA na força de trabalho, escrito em coautoria pela Comissão Europeia e pelo Conselho de Assessores Econômicos da Casa Branca.12 O relatório destaca uma série de desafios, incluindo que a IA poderá deslocar empregos de alta qualificação não ameaçados anteriormente pela automação e que os sistemas de IA podem ser discriminatórios, tendenciosos ou fraudulentos de maneiras que afetem os mercados de trabalho. O relatório sugere o financiamento de serviços adequados de transição de trabalho, a adoção de IA que seja benéfica para os mercados de trabalho e o investimento em agências reguladoras que garantam que a contratação de IA e as práticas de gerenciamento algorítmico sejam justas e transparentes. A construção de alinhamento transatlântico e, mais ainda, global no gerenciamento de riscos de IA será um empreendimento contínuo que abrange uma série de questões de política digital. Embora existam muitos obstáculos potenciais ao consenso transatlântico, a comparação das abordagens da UE e dos EUA para a IA eleva vários desafios emergentes como especialmente críticos. Como primeiro desafio imediato, as regras que emergem para decisões socioeconômicas impactantes já estão levando a um desalinhamento significativo. A razão mais óbvia é que a Lei de IA da UE permite uma ampla cobertura da autoridade regulatória sobre muitos tipos de sistemas de IA, reforçando os próprios princípios da UE. Por outro lado, as agências federais dos EUA atuam restritivamente na adaptação à legislação existente dos EUA aos sistemas de IA. Embora algumas agências norte-americanas tenham autoridade para atuar de forma ampla - FTC, CFPB, EEOC - elas cobrem apenas um subconjunto dos princípios algorítmicos adotados no AIBoR e aplicados na Lei de IA da UE. Ilustrativamente, a Comissão de Valores Mobiliários dos EUA é capaz de aplicar um dever fiduciário aos algoritmos de recomendação financeira, exigindo que eles promovam o melhor interesse do investidor.13 Embora seja potencialmente uma proteção valiosa, é improvável que a política resultante mapeie perfeitamente os requisitos da Lei de IA da UE, mesmo que sejam aplicados mais especificamente a serviços financeiros (uma categoria de aplicativos de IA de alto risco na Lei de IA da UE). Ainda não está claro se a prometida colaboração UE-EUA no desenvolvimento de padrões reduzirá significativamente esse desalinhamento. A Lei de IA da UE exige que uma ampla variedade de standards seja produzida em um curto espaço de tempo, levando a uma série de decisões, antes que os reguladores dos EUA tenham tempo para se envolver substancialmente no desenvolvimento desses padrões. Além disso, alguns reguladores dos EUA que conduzem as decisões socioeconômicas (por exemplo, CFPB, SEC e EEOC, e outros) podem não ter trabalhado de perto com órgãos de padrões como o NIST ou com órgãos de padrões internacionais como como ISO/IEC e IEEE. Portanto, o potencial de desalinhamento nos requisitos regulatórios para decisões socioeconômicas é bastante alto. Claro, para competir na UE, as empresas dos EUA ainda podem atender aos padrões da EU, mesmo onde faltam requisitos domésticos. Contudo, se pretendem seguir as regras da UE fora de sua jurisdição, isso dependerá significativamente se o custo de cumprir as regras da UE é menor do que o custo de diferenciação, ou seja, criar diferentes processos de desenvolvimento de IA para diferentes regiões geográficas.14 Atualmente, muitos modelos de IA para decisões socioeconômicas são relativamente customizados para regiões geográficas e idiomas específicos, reduzindo assim o dano iminente de regulamentos internacionais conflitantes. As plataformas online apresentam um segundo desafio significativo. A UE aprovou e está começando a implementar o DSA e o DMA. Esses atos têm implicações significativas para a IA nas mídias sociais, comércio eletrônico e plataformas online em geral. Enquanto isto os EUA ainda não parecem preparados para legislar sobre essas questões. Isso é particularmente preocupante, pois sistemas digitais são progressivamente integrados às plataformas, o que significa que é mais provável que conectem muitos usuários além das fronteiras internacionais. Embora a mídia social e o comércio eletrônico sejam os exemplos mais familiares, as iterações mais recentes incluem sites de educação on-line, busca de empregos e plataformas de contratação, bolsas de valores e software de monitoramento do local de trabalho implantado em empresas multinacionais.15 Essas plataformas mais recentes podem utilizar IA coberta pelas decisões socioeconômicas de alto risco da Lei de IA da UE e também regidas por agências reguladoras federais dos EUA. No entanto, as próprias plataformas também podem depender da IA para funcionar, na forma de algoritmos de rede ou sistemas de recomendação. A maioria das plataformas requer algum algoritmo, pois exibir a totalidade de uma plataforma para todos os usuários é normalmente impossível e, portanto, alguns algoritmos são necessários para decidir quais resumos, abstrações ou classificações exibir. Isso cria a possibilidade significativa de os sistemas de IA de uma grande plataforma on-line serem regidos por regulamentos para a tomada de decisões socioeconômicas (por exemplo, a Lei de IA da UE e reguladores dos EUA) e sob os requisitos da plataforma on-line (por exemplo, o DSA). Normalmente, é mais difícil que as plataformas operem sob vários regimes regulatórios distintos. Este ambiente complexo aumenta o potencial para o desalinhamento UE-EUA, na medida que a UE continua a implementar uma governança de plataforma abrangente, enquanto os desenvolvimentos políticos dos EUA permanecem obstruídos. Um terceiro desafio emergente é a natureza mutável da implantação da IA. As novas tendências incluem o desenvolvimento de IA multiorganizacional, bem como a proliferação de técnicas como o "federated machine learning", técnica de aprendizado de máquina que treina um algoritmo por meio de várias sessões independentes, cada uma usando seu próprio conjunto de dados. Trata-se de abordagem que contrasta com as técnicas tradicionais de aprendizado de máquina centralizado, pois permite que modelos de IA se desenvolvam em milhares ou milhões de dispositivos (por exemplo, smartphones, relógios inteligentes e óculos AR/VR), enquanto ainda são individualizados para cada usuário e sem a movimentação de dados pessoais. À medida que esses sistemas de IA começam a tocar em setores mais regulamentados, como a saúde, há um potencial significativo para conflitos regulatórios internacionais.16 O processo pelo qual os sistemas de IA são desenvolvidos, às vezes referido como a cadeia de valor da IA, está se tornando mais complexo. Um desenvolvimento notável é o surgimento de grandes modelos de IA, mais comumente grandes modelos de linguagem e grandes modelos de imagens, sendo disponibilizados em interfaces de programação de aplicativos (API) comerciais e serviços de nuvem pública. O fato de os modelos de ponta estarem disponíveis apenas por acesso remoto pode levantar novas preocupações sobre como eles são integrados, inclusive com ajuste fino, em outros softwares e aplicativos da web. Considere um desenvolvedor de IA europeu que começa com um grande modelo de linguagem disponível na API de uma empresa diferente com sede nos EUA e, em seguida, ajusta esse modelo para analisar as cartas de apresentação dos candidatos a emprego. Este aplicativo será de alto risco sob a Lei de IA da UE, e o desenvolvedor europeu teria que garantir que ele atendesse aos padrões regulatórios relevantes. No entanto, algumas qualidades exigidas do sistema de IA, como robustez ou explicabilidade, podem ser muito mais difíceis de garantir por meio do acesso remoto do modelo de terceiros, especialmente se ele tiver sido desenvolvido em um país diferente sob um regime regulador diferente.17 Recomendações de políticas públicas Para as autoridades da UE e EUA, uma variedade de opções de políticas domésticas e internacionais ajudaria na cooperação e alinhamento atuais e futuros no gerenciamento de riscos de IA. Os EUA devem priorizar sua agenda doméstica de gerenciamento de risco de IA. Isso inclui revisitar os requisitos da EO 13859 e obrigar as agências federais a cumprir o requisito de desenvolver planos regulatórios de IA, de forma muito mais abrangente quanto ao gerenciamento de risco de IA. Os planos regulatórios da agência federal também podem informar quais mudanças são necessárias para garantir a aplicação da lei preexistente a novos aplicativos de IA. Isso exige expansões legislativas da autoridade de regulamentação para defender os princípios de IA adotados no AIBoR, especialmente para IA utilizada em decisões socioeconômicas impactantes. Da mesma forma, a UE tem várias oportunidades para auxiliar na cooperação futura, sem enfraquecer suas intenções regulatórias domésticas. Uma intervenção chave é permitir mais flexibilidade na implementação setorial da Lei de IA da EU, ajustando melhor os requisitos da Lei de IA para os tipos específicos de aplicativos de IA de alto risco, provavelmente melhorando a eficácia da lei. As regras de IA que podem ser adaptadas de forma flexível para aplicações específicas permitirão melhor a cooperação futura entre os EUA e a UE. Para tanto, a UE terá que gerenciar cuidadosamente a harmonização para que os reguladores dos estados membros não implementem os requisitos de alto risco de maneira diferente. Consequentemente, um mecanismo para tomar decisões de inclusão (ou seja, quais aplicativos específicos de IA são cobertos) e para adaptar detalhes dos requisitos de alto risco podem incluir os reguladores dos estados membros e a Comissão Europeia.18 Ao considerar plataformas online, a ausência de uma estrutura legal dos EUA para governança de plataforma dificulta as recomendações de políticas públicas. Os EUA devem trabalhar em direção a uma estrutura legal significativa para supervisão de plataformas online. Além disso, essa estrutura considerará o alinhamento com as leis da UE, especialmente o DSA e o DMA, pois o desalinhamento afetará negativamente os mercados e o ecossistema de informações. Enquanto isso, a UE e os EUA devem incluir sistemas de recomendação e algoritmos de rede - componentes-chave das plataformas online - ao implementar o Roteiro Conjunto TTC sobre Ferramentas de Avaliação e Medição para IA Confiável e Gerenciamento de Riscos. Embora essas plataformas online e sistemas de IA de alto risco exijam mais atenção, a UE deve considerar cuidadosamente o impacto extraterritorial de outros aspectos de sua governança digital, especialmente aqueles que afetam sites e plataformas, como chatbots e novas considerações de IA de uso geral.19 Se a UE incluir novas regras sobre a função de IA de uso geral, deve ter cuidado para evitar requisitos excessivamente amplos (como um padrão geral de precisão ou robustez) que fazem pouco sentido para esses modelos e podem causar divisões desnecessárias nos mercados emergentes. Os próximos esforços da UE gerarão novas informações significativas sobre a função de importantes sistemas de IA, bem como a eficácia de suas novas tentativas de governança de IA, sendo que a UE deve compartilhar proativamente essas informações com os EUA e outros parceiros. Isso inclui abrir seu processo de desenvolvimento de padrões de IA para as partes interessadas internacionais e o público, bem como garantir que os padrões resultantes estejam disponíveis gratuitamente (o que não é o caso atualmente).20 Trabalhando juntos os EUA e a UE podem aprofundar sua colaboração política no gerenciamento de riscos de IA. Trocas de políticas em nível de regulador para regulador específico de cada setor fortalecerá a capacidade de ambos os governos, ao mesmo tempo em que abrirá caminhos para a cooperação. Expandindo a experimentação colaborativa com PETs, a UE e os EUA também podem considerar investimentos conjuntos em pesquisa de IA responsável e ferramentas de código aberto que permitem a implementação de IA responsável. Por fim, a UE e os EUA devem considerar o desenvolvimento conjunto de um plano para incentivar um ecossistema transatlântico de garantia de IA, inspirando-se na estratégia do Reino Unido.21 A UE está solicitando às empresas que participem de um esforço internacional para autorregular produtos de inteligência artificial (IA) generativos. Desde que o ChatGPT foi lançado no ano passado, as empresas americanas Google e Microsoft lançaram seus próprios serviços de IA generativa, abrindo as portas para uma nova era na inovação digital. Embora governos, empresas e a sociedade civil vejam o potencial econômico do rápido avanço das ferramentas generativas de IA, eles também temem que a nova tecnologia possa representar sérios riscos para a sociedade democrática se armada para espalhar desinformação ou se for permitida a tomada de decisões em nosso dia a dia. dia vive. Cooperação Transatlântica no âmbito da Inteligência Artificial Generativa Considerando que a legislação para regulamentar a IA se encontra bem atrás dos avanços nas capacidades da tecnologia, a Comissão Europeia quer liderar uma iniciativa conjunta com os EUA para estabelecer um código de conduta que as empresas assinariam voluntariamente. Afinal, mitigar o risco de extinção da IA deve ser uma prioridade global ao lado de outros riscos em escala social, como pandemias e guerra nuclear. Mesmo que as tratativas avancem, a legislação não terá impacto até mais ou menos dois ou três anos, sendo certo que ninguém realmente sabe do que um sistema de IA é capaz até que seja implantado em milhões de pessoas. Daí a necessidade de um arranjo alternativo para preencher o vazio legislativo que consiste em um código de conduta voluntário da IA, abrangendo não apenas UE e USA, mas também empresas de países do G7 e de parceiros como a Índia e a Indonésia, que representam cerca de um terço da população mundial.22 Esse será um passo importante para a identificação de padrões e ferramentas para uma IA confiável, bem como a fixação de taxonomia e terminologia para IA e monitoramento dos riscos emergentes que ela representa. Resumindo: Os EUA devem executar os planos regulatórios de IA da agência federal e utilizá-los para projetar uma governança estratégica de IA com vistas ao alinhamento UE-EUA. A UE deve criar mais flexibilidade na implementação setorial da sua Lei de IA, permitindo maior cooperação com os EUA. Os EUA precisam implementar uma estrutura legal para governança de plataformas online, até então UE e os EUA devem trabalhar na documentação compartilhada de sistemas de recomendação e algoritmos de rede, bem como realizar pesquisas colaborativas em plataformas online. Os EUA e a UE devem aprofundar o compartilhamento de conhecimento em vários níveis, inclusive no desenvolvimento de standards; sandboxes de IA; grandes projetos públicos de pesquisa de IA e ferramentas de código aberto; trocas entre reguladores e desenvolvimento de um ecossistema de garantia de IA. UE e os EUA estão implementando políticas fundamentais de gerenciamento de risco de IA - o aprofundamento da colaboração entre esses governos auxiliará a garantir que essas políticas se tornem pilares sinérgicos da governança global de IA. Atualização Em 14 de junho o Parlamento Europeu aprovou proposta sobre o Regulamento de Inteligência Artificial, em antecipação às conversações com os Estados-Membros da UE sobre a forma final da lei. As regras assegurarão que a IA desenvolvida e utilizada na Europa respeita plenamente os direitos e valores da UE, incluindo a supervisão humana, a segurança, a privacidade, a transparência, a não discriminação e o bem-estar social e ambiental. As regras seguem uma abordagem baseada no risco e estabelecem obrigações tanto para os fornecedores e como para aqueles que utilizam sistemas de IA, em função do nível de risco que esta pode colocar. Por consequência, os sistemas de IA com um nível de risco inaceitável para a segurança das pessoas serão proibidos, como os utilizados para classificação das pessoas com base no seu comportamento social ou nas suas características pessoais. Os eurodeputados garantiram que a classificação das aplicações de risco elevado passará a incluir sistemas de IA que prejudicam significativamente a saúde, a segurança e os direitos fundamentais das pessoas ou o ambiente.  Os fornecedores de modelos de base (um desenvolvimento novo e em rápida evolução no domínio da IA) terão de avaliar e atenuar eventuais riscos para a saúde, ambiente, segurança, direitos fundamentais, democracia e Estado de direito e registar os seus modelos na base de dados da União antes da sua introdução no mercado da UE. Os sistemas de IA generativa que têm por base tais modelos, como o ChatGPT, terão de cumprir os requisitos de transparência (revelando que os conteúdos foram gerados por IA, o que ajudará a distinguir as técnicas de manipulação de imagens - também conhecidas como deepfake - das imagens reais) e assegurar salvaguardas contra a produção de conteúdos ilegais. Terão igualmente de ser disponibilizados ao público resumos pormenorizados dos dados protegidos por direitos de autor utilizados para a sua aprendizagem.23 __________ 1 Visto como uma voz independente e líder na esfera de formulação de políticas domésticas, o programa de Estudos de Governança da Brookings é dedicado à análise de questões políticas, instituições e processos políticos e desafios contemporâneos de governança, identificando áreas que precisam de reforma e propondo soluções específicas para melhorar a governança em todo o mundo, com ênfase particular nos Estados Unidos. 2 National Institute of Standards and Technology and the European Commission, Crosswalk: An illustration of how NIST AI RMF trustworthiness characteristics relate to the OECD Recommendation on AI, Proposed EU AI Act, Executive Order 13960, and Blueprint for an AI Bill of Rights. (Washington D.C., 2023). 3 Anu Bradford, The Brussels Effect: How the European Union Rules the World, Oxford Academic, 19 December 19, 2019. 4 Luca Bertuzzi, "AI Act: EU Parliament's discussions heat up over facial recognition, scope" Euractiv, October 6, 2022.  5 Dan Hamilton, "Getting to Yes: Making the U.S.-EU Trade and Technology Council Effective," Johns Hopkins University Transatlantic Leadership Network. 6 The White House, U.S.-EU Trade and Technology Council Inaugural Joint Statement (Washington D.C., 2022). 7 National Institute of Standards and Technology and the European Commission, TTC Joint Roadmap on Evaluation and Measurement Tools for Trustworthy AI and Risk Management. (Washington D.C., 2022). 8 The Organization for Economic Cooperation and Development. OECD-NIST Catalogue of AI Tools & Metrics (Paris, 2023). 9 European Commission. AI Standardisation Landscape Update (Brussels, 2023). 10 Solomon Messing, Christina DeGregorio, Bennett Hillenbrand, Gary King, Saurav Mahanti, Zagreb Mukerjee, Chaya Nayak; Nate Persily, Bogdan State, and Arjun Wilkins, "Facebook Privacy-Protected Full URLs Data Set" Harvard Dataverse (2020). 11 The White House, FACT SHEET: U.S.-EU Trade and Technology Council Advances Concrete Action on Transatlantic Cooperation (Washington D.C., 2022). 12 European Commission and the White House Council of Economic Advisors, The Impact of Artificial Intelligence on the Future of Workforces in the European Union and the United States of America (Washington D.C., 2023). 13 Lee Reiners, "Regulation of Robo-advisory Services" FinTech Law and Regulation (September 2, 2019). 14 Charlotte Siegmann and Markus Anderljung, "The Brussels Effect and Artificial Intelligence" (August 16, 2022). 15 Productivity Score," New York Times, August 14, 2022. 16 Matthias Paulik, Matt Seigel, Henry Mason, Dominic Telaar, Joris Kluivers, Rogier van Dalen, Chi Wai Lau, Luke Carlson, Filip Granqvist, Chris Vandevelde, Sudeep Agarwal, Julien Freudiger, Andrew Byde, Abhishek Bhowmick, Gaurav Kapoor, Si Beaumont, Áine Cahill, Dominic Hughes, Omid Javidbakht, Fei Dong, Rehan Rishi and Stanley Hung, "Federated Evaluation and Tuning for On-Device Personalization: System Design & Applications," Apple, February 2022. 17 Charlotte Stanton, Vivien Lung, Nancy Zhang, Minori Ito, Steve Weber, and Katherine Charlet, "What the Machine Learning Value Chain Means for Geopolitics," Carnegie Endowment for International Peace, August 5th, 2019. 18 Andrea Renda and Alex Engler, "What's in a Name: Getting the definition of Artificial Intelligence right in the EU's AI Act" Center for European Policy Studies, February 2023. 19 Maximilian Gahntz and Claire Pershan, 'How the EU Can Take on "general-purpose AI" in the AI Act,' Mozilla, November 9, 2022. 20 CENELEC, The General Court of the EU affirms copyright of harmonized standards. (Brussels, 2021). 21 Centre for Data Ethics and Innovation, "The roadmap to an effective AI assurance ecosystem." (London, December 8, 2021). 22 ZUBASCU, Florin. EU and US hatch transatlantic plan to rein in ChatGPT. 23 Extraído em 15 de junho de 2023. Disponível aqui.
segunda-feira, 12 de junho de 2023

Palsgraf v. Long Island Railroad Co.

O caso Palsgraf v. Long Island Railroad Co. é um famoso caso de responsabilidade civil que foi julgado pela Suprema Corte do Estado de Nova York em 1928. Discutivelmente, é o caso mais famoso de responsabilidade civil do século XX nos EUA. O caso envolveu uma passageira chamada Helen Palsgraf, que sofreu lesões enquanto aguardava um trem em uma estação da Long Island Railroad. De acordo com a descrição presente na própria decisão, os fatos do caso são os seguintes: em 24 de agosto de 1924, "a autora estava parada em uma plataforma da ferrovia da ré depois de comprar uma passagem para ir a Rockaway Beach. Um trem parou na estação, com destino a outro lugar. Dois homens correram para pegá-lo. Um dos homens alcançou a plataforma do vagão sem problemas, embora o trem já estivesse em movimento. O outro homem, carregando um pacote, pulou para dentro do carro, mas parecia instável como se fosse cair. Um funcionário no vagão, que mantinha a porta aberta, estendeu a mão para ajudá-lo a entrar, e outro funcionário na plataforma o empurrou por trás. Nesse ato, o pacote se deslocou e caiu sobre os trilhos. Era um pacote pequeno, com cerca de 15 polegadas [38 cm] de comprimento, e coberto por um jornal. Na verdade, continha fogos de artifício, mas não havia nada em sua aparência que indicasse seu conteúdo. Os fogos de artifício quando caíram explodiram. O choque da explosão derrubou uma balança do outro lado da plataforma, a muitos metros de distância. A balança atingiu a demandante, causando-lhe lesões."1 Depois incidente, ela começou a gaguejar. A Sra. Palsgraf processou a Long Island Railroad, alegando negligência na forma como os funcionários da ferrovia ajudaram o homem a subir no trem e causaram a explosão dos fogos de artifício. Ela argumentou que, se não fosse pelos funcionários da ferrovia empurrando o homem com o pacote, este nunca teria caído e explodido e a balança nunca teria caído sobre ela. O caso levantou a questão fundamental de até que ponto uma pessoa pode ser responsabilizada por danos causados a terceiros quando não existe uma relação direta entre a ação inicial e os danos sofridos. Palsgraf vence em primeira e segunda instâncias e a ferrovia recorre ao mais alto tribunal de NY, a Suprema Corte do Estado de Nova York. O tribunal decidiu por 4 votos a 3 a favor da Long Island Railroad, afirmando que a empresa não poderia ser responsabilizada pelos danos sofridos por Palsgraf. A decisão se baseou na teoria da causa próxima (proximate cause), argumentando que a ferrovia não poderia prever razoavelmente que a queda da caixa de fogos de artifício causaria danos a Palsgraf. O juiz Cardozo, que mais tarde se tornaria juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, escreveu o voto da maioria e afirma que a ferrovia não é responsável pelos ferimentos de Palsgraf, porque seus ferimentos não foram uma consequência razoavelmente previsível da negligência da ferrovia. Essa ideia de que um dever de cuidado só é devido a demandantes razoavelmente previsíveis passou a ser conhecida como o teste da zona de perigo (zone of danger test or rule). No caso, o pacote não parecia ser perigoso, então não era razoavelmente previsível pelos funcionários da ferrovia que suas ações levariam aos ferimentos de Palsgraf. O juiz William S. Andrews, escrevendo pela dissidência, diz que um dever para com um é um dever para todos, o que significa que se a lesão puder ser atribuída ao ato ilícito, sem eventos intermediários, isso é suficiente para estabelecer a responsabilidade. Palsgraf não teria se ferido se o funcionário da ferrovia não tivesse empurrado negligentemente o passageiro, fazendo com que ele deixasse cair o pacote. O caso Palsgraf é um marco no direito da responsabilidade civil americano. Uma série de fatores, incluindo os fatos bizarros e a excelente reputação de Cardozo, tornaram o caso famoso. Até os dias de hoje, ele segue sendo ensinado à maioria, senão a todos os estudantes de direito americanos nas aulas de responsabilidade civil. O caso ajudou a estabelecer a ideia de causa imediata (proximate cause) como um limite da responsabilidade civil. Causa imediata significa que só se pode responsabilizar um réu por danos que sejam um resultado razoavelmente previsível do ato ilícito cometido pelo réu. Essa decisão influenciou a forma como os tribunais avaliam os casos de responsabilidade civil desde então. __________ 1 Disponível aqui.
Introdução Todo estudante de direito brasileiro já ouviu falar de O Caso dos Exploradores de Cavernas,1 uma interessantíssima obra fictícia de introdução ao estudo do direito que, não raro, é recomendada aos alunos do primeiro ano do curso de graduação direito. Aliás, eu mesmo tomei conhecimento desse pequeno livro justamente ao ingressar no curso de direito na Faculdade Nacional de Direito da UFRJ em 1994, quando tivemos que ler e trabalhar os temas relativos ao processo decisório do julgamento do caso de homicídio praticado por quatro dos espeleólogos que se encontraram soterrados no interior de uma caverna e, enquanto aguardavam pelo resgate, sortearam um dentre eles para que fosse morto e servisse de alimento para os demais, impedindo a morte de todos os demais por inanição. Esse texto foi publicado originalmente como um artigo na Harvard Law Review e seu autor foi o Professor Lon Fuller, um renomado professor de teoria do direito da Harvard Law School.2 A Faculdade de Direito de Harvard tinha sido a responsável pelo desenvolvimento de uma perspectiva científica e dogmática do direito positivo nos Estados Unidos, a partir da pedagogia do estudo de caso (ou case method), implantada por Christoph Columbus Langdell em 1870 e que se tornado o paradigma dominante de ensino jurídico na academia estadunidense a partir do início do século XX.3 Ao apresentar os dilemas dos exploradores de cavernas com formato de um caso enfrentado de modos diferentes por vários magistrados a partir de perspectivas diversas, Lon Fuller adotava o formato do paradigma dominante para apresentar uma crítica interna de sua premissa, problematizando o caráter dogmático-científico e a ideia de que existiria uma única solução correta para cada controvérsia jurídica e que essa solução seria baseada no direito positivo. Até recentemente, o leitor brasileiro não tinha acesso à obra principal de Lon Fuller, somente publicada no Brasil no ano passado.4 A presente coluna apresenta de modo sucinto os pontos principais de The Morality of Law, uma obra clássica do direito estadunidense que está completando 60 anos em 2023. A Moralidade do Direito O Caso dos Exploradores de Caverna não raro é discutido sem que se discuta também a posição específica do seu autor sobre o direito, como um crítico do positivismo jurídico. A leitura atenta de sua obra magna, The Morality of Law, evidencia que Lon Fuller propõe uma releitura contemporânea do direito natural, defendendo uma interpretação que fortalece a moralidade interna do direito. O ponto de partida é a distinção entre as duas moralidades do direito, a partir da obra de filosofia moral de Adam Smith, A Teoria dos Sentimentos Morais.5 Por um lado, existe uma moralidade do dever, cujo papel consiste em preservar a convivência social, assim como as regras de gramática preservam a linguagem como instrumento de comunicação social. Por outro lado, existe uma moralidade da aspiração, cujos princípios são mais vagos, ambíguos e indeterminados e nos apresentam uma ideia da perfeição que deveríamos obter, ao invés de nos dar direções precisas e infalíveis para obtê-la.6 Lon Fuller problematiza a ideia de que julgamentos morais devem ser baseados em alguma concepção de perfeição, inclusive alertando que o comando "não matará" não implica em nenhuma imagem de uma vida perfeita, mas somente em uma verdade prosaica que nenhuma moralidade será viável se as pessoas se matarem. Assim como na linguística, ninguém pretende saber como é uma linguagem perfeita, mas apenas pretende enfrentar as imperfeições no uso da língua, nossos julgamentos sobre o que é moralmente imperfeito e indesejável não precisam ser percebidos como sendo utópicos.7 Após explorar os paralelos entre as duas moralidades e duas concepções de economia - a economia de troca com a moralidade do dever e a economia de utilidade marginal com a moralidade da aspiração - Lon Fuller nos conta a fábula do monarca Rex, um rei que queria reformar seu direito, mas o resultado é um fiasco completo.8 Nesse contexto, aliás, Lon Fuller apresentou uma lista com oito fatores para as falhas do monarca Rex, que se tornaram referência para o debate sobre a moralidade interna do direito. Os Oito Fatores Para a Falha do Direito  Lon Fuller apresenta os oito fatores para a falha do direito, que é um repertório importante para nossa reflexão: (1)    A falha em estabelecer regras, de modo que qualquer questão deveria ser decida de modo ad hoc; (2)    A falha em tornar públicas, ou ao menos tornar disponível para a parte afetada, as regras que são esperadas para ser observadas; (3)    O abuso de legislação retroativa, que não apenas não pode guiar ações, mas também afeta a integridade das regras em perspectiva, na medida que elas são colocadas em risco de mudança retrospectiva; (4)    A falha de manter as regras compreensíveis; (5)    A promulgação de regras contraditórias; (6)    A promulgação de regras que requerem conduta além dos poderes da parte afetada; (7)    A introdução de mudanças tão frequentes nas regras que os sujeitos não podem orientar suas ações por eles; (8)    A falha de manter a coerência entre as regras como anunciadas e sua real aplicação.9 Lon Fuller considera que essas falhas não significam que estaríamos diante de um sistema ruim de direito, mas que sequer poderíamos chamar esse fenômeno de direito.10 Para Lon Fuller, um conjunto de regras jurídicas precisaria passar por esse teste de moralidade interna para ser considerado como direito.11 Baseado nos ensinamentos do sociólogo alemão Georg Simmel, Lon Fuller defende a necessidade de uma reciprocidade entre o governo e o cidadão com respeito à observância das regras, afirmando que se esse laço de reciprocidade for rompido pelo governo, não sobraria nada para justificar o dever do cidadão de observar as regras.12 O exemplo concreto apresentado por Lon Fuller é a Alemanha nazista, em que o cidadão sob o governo de Adolph Hitler não poderia ser obrigado a obedecer as ordens e nem tinha qualquer obrigação de fidelidade com as leis.13 Não por acaso, o título desse capítulo do livro é 'a moralidade que torna o direito possível'. Para Lon Fuller, se não for moralmente adequado, não é direito. Considerações Finais Mais conhecido do público brasileiro pelo Caso dos Exploradores de Cavernas, Lon Fuller escreveu uma obra clássica de teoria do direito que merece ser lida e estudada: A Moralidade do Direito. Sua defesa original da moralidade interna do direito torna o Professor da Faculdade de Direito de Harvard um crítico da escola positivista e identificado com a escola jusnaturalista. __________ 1 FULLER, Lon L. O caso dos exploradores de cavernas. Leud, 2008. 2 FULLER, Lon L. The case of the speluncean explorers. Harv. L. Rev., v. 62, p. 616, 1948. 3 MERTZ, Elizabeth. Teaching lawyers the language of law: Legal and anthropological translations. J. marshall l. rev., v. 34, p. 91, 2000. 4 FULLER, Lon L. A moralidade do Direito. Editora Contracorrente, 2022. 5 SMITH, Adam. The theory of moral sentiments. Penguin, 2010. 6 FULLER, Lon Luvois. The morality of law. Yale University Press, 1964, 5-9. 7 Idem, p. 10-11. 8 Idem, p. 33-38. 9 Idem, p. 38-41. 10 Idem. 39. 11 Idem. 12 Idem, 39-40. 13 Idem, 40-41.
Em nossa coluna anterior, abordamos o caso do compartilhamento indiscriminado dos dados dos usuários da empresa TikTok para fins comerciais e políticos com o governo chinês - fato que causou discussão mundial a respeito do tratamento e da privacidade de dados, e motivou a proibição do uso do aplicativo por agentes públicos e seu banimento no Estado de Montana, nos Estados Unidos. Retornamos ao tema do compartilhamento de dados pelas empresas de tecnologia, em função de notícia, divulgada recentemente, de que o Conselho Europeu de Proteção de Dados multou a empresa META em 1,2 bilhão de euros por violação de normas da União Europeia sobre privacidade. A punição se fundamentou na transferência não autorizada dos dados pessoais dos usuários da empresa na União Europeia para seus servidores nos Estados Unidos. A multa recorde constituiu a maior sanção já imposta por violação de privacidade no bloco europeu, em razão da não observância das regras do Regulamento Geral de Proteção de Dados - G.D.P.R.1 Além da multa, a META ainda foi obrigada a interromper o fluxo de informações de processamento de dados pessoais de usuários europeus nos Estados Unidos em até 5 meses. Essa decisão se aplica apenas à META (Facebook) e não ao Instagram e ao WhatsApp, empresas coligadas. Foi a Comissão Irlandesa de Proteção de Dados (Data Protection Comission - DPC) - órgão regulador que supervisiona as questões de privacidade da União Europeia (EU), atuando em nome do Conselho Europeu de Proteção de Dados (EDPB) -, quem ordenou a aplicação da multa administrativa.2 O fato gerador da referida multa foi a infração da lei do território sobre privacidade de usuários na internet, uma vez que a META utilizou dados de usuários para lhes encaminhar anúncios baseados em seus comportamentos. A decisão pode afetar dados relacionados a fotos, conexões de amigos e mensagens diretas armazenadas pela META. O caso revela, acima de tudo, a disparidade do tratamento legislativo dado à proteção de dados na União Europeia e nos EUA, onde é permitido às agências de inteligência a interceptação de comunicações do exterior, incluindo correspondência digital.3 Os fundamentos utilizados pelo Conselho Europeu para a aplicação da medida foram os seguintes: "(i) A lei dos EUA não fornece um nível de proteção que seja essencialmente equivalente ao previsto pela legislação da EU; (ii) A Meta Ireland não possui medidas suplementares que compensem a proteção inadequada fornecida pela lei dos EUA; e, (iii) A Meta Ireland não pode invocar as derrogações previstas no artigo 49(1) GDPR, ou qualquer um deles, ao fazer as transferências de dados."4 Segundo a META, o problema ocorreu em razão de um conflito legislativo entre as normas dos EUA sobre acesso aos dados e os direitos de privacidade dos europeus. Sustenta a empresa que "a capacidade de transferência de dados entre fronteiras é fundamental para o funcionamento da internet aberta global. Milhares de empresas e outras organizações contam com a capacidade de transferir dados entre a EU e os EUA para operar e fornecer serviços que as pessoas usam todos os dias".5 A presidente do EDPB, Andrea Jelinek, afirmou que "a violação do Meta IE é muito grave, pois diz respeito a transferências sistemáticas, repetitivas e contínuas. O Facebook tem milhões de usuários na Europa, então o volume de dados pessoais transferidos é enorme. A multa sem precedentes é um forte sinal para as organizações de que infrações graves têm consequências de longo alcance".6 Essa não é a primeira multa imposta contra a META na UE por causa de violações cometidas por Facebook, WhatsApp e Instagram.  Em janeiro de 2023, a empresa foi multada em 390 milhões de euros por forçar os usuários a aceitar anúncios personalizados como condição para usar o Facebook. Em novembro, foi multada em 265 milhões de euros por vazamento de dados.7 Em 2021, a multa por violação de privacidade foi aplicada contra a Amazon em 746 milhões de euros, em razão do processamento de dados pessoais não estar em conformidade com o Regulamento Geral de Proteção de Dados. Não foi a primeira vez que a Amazon foi multada. No final de 2020, já tinha sido multada em 35 milhões de euros, por não respeitar a legislação sobre 'cookies'. A origem do caso          Em 2011, o austríaco Max Schrems, ativista na área de privacidade de dados, propôs uma ação coletiva contra o Facebook alegando a possibilidade de riscos de espionagem por parte dos EUA em razão de a companhia compartilhar dados de usuários europeus à Agencia de Segurança Nacional dos Estados Unidos. O Tribunal de Justiça da União Europeia, em Luxemburgo, julgou em 2015 que o tratado transatlântico de proteção de dados (conhecido como Safe Harbour, no qual empresas como a rede social Facebook se baseiam) é "inválido", uma vez que não protege adequadamente as informações privadas dos cidadãos. Em consequência desse julgamento, o Tribunal invalidou o acordo entre a UE e os Estados Unidos para a transferência de dados pessoais.8 A partir do caso Schrems, o Tribunal de Justiça da União Europeia anunciou que a decisão implicaria na necessidade de as autoridades irlandesas investigarem se a transferência de dados de cidadãos europeus aos EUA deveria ser suspensa, "com base no fato de que o país não fornecia um nível adequado de proteção aos dados pessoais".9 A queixa de Schrems, na época, se baseou no fato de que o Safe Harbour, assinado em 2000 por Bruxelas e Washington, permitia o compartilhamento de dados de milhares de empresas, e que uma lei de quinze anos atrás não oferecia mecanismos seguros para garantir a privacidade dos cidadãos europeus, em meio ao escândalo de espionagem iniciado pelas revelações do ex-consultor na NSA, Edward Snowden. No mesmo ano, Schrems fundou a organização "Europa versus Facebook", que atua investigando possíveis falhas e abusos nas políticas de privacidade das redes sociais - Facebook, Apple, Microsoft e o Skype na Alemanha, Irlanda e Luxemburgo, locais sedes dessas empresas. Depois da revogação do Safe Harbor, foi avençado um outro acordo de compartilhamento de dados (conhecido como Privacy Shield) que, em 2020, acabou sendo invalidado pelo Tribunal de Justiça Europeu, pois não oferecia proteção suficiente aos dados dos cidadãos da UE contra as leis de vigilância dos EUA.10 De acordo com a Comissão de Proteção de Dados (DPC) da Irlanda, a META continuou a transferir dados, ignorando a decisão judicial anterior que impedia a transferência de dados de usuários na UE para os Estados Unidos.     Acordo de proteção de dados entre os EUA e a União Europeia Um novo acordo de proteção de dados entre o governo dos EUA e a União Europeia vem sendo articulado. De acordo com as autoridades envolvidas, a proposta pode estar pronta até meados do presente semestre. O Trans-Atlantic Data Privacy Framework reflete mais de um ano de negociações entre os EUA e a EU.11 A nova proposta pretende promover os fluxos transatlânticos de dados e atenderá às preocupações levantadas pelo Tribunal de Justiça da União Europeia no caso Schrems II, em decisão de julho de 2020. Conforme se pronunciou a Casa Branca, "este quadro irá restabelecer um importante mecanismo legal para transferências de dados pessoais da UE para os Estados Unidos. Os Estados Unidos se comprometeram a implementar novas salvaguardas para garantir que as atividades de inteligência de sinais sejam necessárias e proporcionais na busca de objetivos de segurança nacional definidos, o que garantirá a privacidade dos dados pessoais da UE e criará um novo mecanismo para indivíduos da UE buscarem reparação se eles acreditam que são alvos ilegais de atividades de inteligência de sinais. Este acordo, em princípio, reflete a força do duradouro relacionamento EUA-UE, à medida que continuamos a aprofundar nossa parceria com base em nossos valores democráticos compartilhados."12 A nova estrutura pretende facilitar a cooperação entre os EUA e a UE, inclusive por meio do Conselho de Comércio e Tecnologia e de fóruns multilaterais, como a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, sobre políticas digitais. Segundo a proposta, há uma tentativa de se desenvolver uma base durável para os fluxos de dados entre a Europa e os EUA, essenciais para proteger os direitos dos cidadãos e permitir o comércio transatlântico em todos os setores da economia, inclusive para pequenas e médias empresas. Ainda, de acordo com o documento, pretende-se promover os fluxos de dados transfronteiriços promovendo uma economia digital inclusiva na qual todas as pessoas podem participar, inclusive empresas de todos os portes.13 A expectativa - sobretudo, por parte das big techs - é que essa nova proposta regulatória seja aprovada e implementada antes do prazo de 5 meses (imposto juntamente com a multa aplicada), evitando a interrupção do fluxo de informações de usuários europeus nos Estados Unidos. Ainda e sempre... os desafios regulatórios da proteção de dados   Como visto, a decisão prejudica diretamente os negócios do Facebook na Europa, principalmente a capacidade da empresa em direcionar anúncios. De acordo com os representantes da Meta, "sem a capacidade de transferir dados através das fronteiras, a internet corre o risco de ser dividida em silos nacionais e regionais".14 De acordo com Susan Li, diretora financeira da Meta, cerca de 10% de sua receita publicitária mundial advém de anúncios entregues a usuários do Facebook na UE. Somente no ano de 2022, a Meta teve uma receita de quase US$ 117 bilhões.15 A aplicação da multa recorde à Meta ocorre quase no aniversário de cinco anos de vigência do Regulamento Geral de Proteção de Dados. Considerado inicialmente um modelo de regulação, a lei vem sendo alvo de muitas críticas por parte da sociedade civil e de militantes na área da privacidade, em razão da falta de efetividade de seu cumprimento. De todo modo, a decisão proferida pela Corte Europeia representa um significativo marco na proteção de dados, não sendo mais possível se admitir um modelo de livre circulação voltado essencialmente a atender os interesses de empresas privadas. A fiscalização e a implementação de políticas governamentais adequadas são imprescindíveis para a efetividade da proteção de dados ao redor do mundo. __________ 1 EUR - LEX. Access to European Union Law. Regulamento (UE) 2016/679 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre circulação desses dados e que revoga a Diretiva 95/46/CE (Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados). Disponível em: https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:02016R0679-20160504. Acesso em 22 de maio de 2023. 2 European Data Protection Boarding. Decision of the Data Protection Commission made pursuant to Section 111 of the Data Protection Act, 2018 and Articles 60 and 65 of the General Data Protection Regulation. Disponível em: https://edpb.europa.eu/system/files/2023-05/final_for_issue_ov_transfers_decision_12-05-23.pdf. Acesso em 22 de maio de 2023. 3 REUTERS. Meta é atingida com multa recorde de US$ 1,3 bilhão por transferência de dados. Disponível aqui. Acesso em 23 de maio de 2023. 4 European Data Protection Boarding. Decision of the Data Protection Commission made pursuant to Section 111 of the Data Protection Act, 2018 and Articles 60 and 65 of the General Data Protection Regulation. Disponível em: https://edpb.europa.eu/system/files/2023-05/final_for_issue_ov_transfers_decision_12-05-23.pdf. Acesso em 22 de maio de 2023. 5 REUTERS. Meta é atingida com multa recorde de US$ 1,3 bilhão por transferência de dados. Disponível aqui. Acesso em 23 de maio de 2023. 6 European Data Protection Boarding. 1.2 billion euro fine for facebook as a resulto f EDPB binding decision. Disponível aqui. Acesso em 22 e maio de 2023. 7 The New York Times. Meta Fined $1.3 Billion for Violating E.U. Data Privacy Rules. Disponível em: https://www.nytimes.com/2023/05/22/business/meta-facebook-eu-privacy-fine.html. Acesso em 22 de maio de 2022. 8 Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia ("o TJUE"), entregue em 16 de julho de 2020, no caso C-311/18 Data Protection Commissioner v Facebook Ireland Ltd e Maximillian Schrems EU:C:2020:559. 9 European Data Protection Boarding. Decision of the Data Protection Commission made pursuant to Section 111 of the Data Protection Act, 2018 and Articles 60 and 65 of the General Data Protection Regulation. Disponível aqui. Acesso em 22 de maio de 2023. 10 EU court invalidates Privacy Shield data transfer agrément. Disponível aqui. Acesso em 23 de maio de 2023. 11 The White House. FACT SHEET: United States and European Commission Announce Trans-Atlantic Data Privacy Framework. Disponível aqui. Acesso em 23 de maio de 2023. 12 Idem. 13 Idem. 14 The New York Times. Meta Fined $1.3 Billion for Violating E.U. Data Privacy Rules. Disponível aqui. Acesso em 22 de maio de 2022. 15 Meta Reports Fourth Quarter and Full Year 2022 Results. Disponível aqui. Acesso em 23 de maio de 2023.
Aqui reunimos as principais ideias do paper de autoria de Alex Engler, publicado em 25 de abril de 2023, no contexto de um Relatório Produzido pelo Governance Studies.1 UE e EUA são fundamentais para o futuro da governança global de IA. Garantir que as abordagens de ambos para o gerenciamento de riscos de IA estejam alinhadas facilitará o comércio bilateral, melhorará a supervisão regulatória e permitirá uma cooperação transatlântica mais ampla. A abordagem dos EUA para o gerenciamento de risco de IA é altamente distribuída entre agências federais, muitas se adaptando à IA sem depender de outras autoridades legais. Os EUA investiram em infraestrutura não regulatória, como uma nova estrutura de gerenciamento de risco de IA, avaliações de software de reconhecimento facial e amplo financiamento de pesquisa de IA. Em contrapartida, a abordagem da UE à gestão de riscos de IA é caracterizada por uma gama mais abrangente de legislação adaptada a ambientes digitais específicos. A UE planeja impor novos requisitos para IA de alto risco em processos socioeconômicos, uso governamental de IA e produtos de consumo regulamentados com sistemas de IA. Ademais, outra legislação da UE permite mais transparência pública e influência sobre o design de sistemas de IA em mídias sociais e comércio eletrônico. As estratégias da UE e dos EUA compartilham um alinhamento conceitual em uma abordagem baseada em risco, concordam com os princípios-chave de uma IA confiável, e endossam um papel importante para os padrões internacionais. No entanto, as especificidades desses regimes de gerenciamento de risco de IA ostentam mais diferenças do que semelhanças. Em relação a muitas aplicações específicas de IA, especialmente aquelas relacionadas a processos socioeconômicos e plataformas online, a UE e os EUA estão no caminho de um desalinhamento significativo. O Conselho de Comércio e Tecnologia UE/EUA demonstrou sucesso inicial trabalhando com IA, especialmente em um projeto para desenvolver um entendimento comum de métricas e metodologias para IA confiável. Por meio dessas negociações, UE e EUA concordam em trabalhar de forma colaborativa nos padrões internacionais de IA, ao mesmo tempo em que estudam em conjunto os riscos emergentes e as aplicações de novas tecnologias de IA. Todavia, muito mais pode ser feito para promover este alinhamento, além de melhorar o regime de governança de IA de cada país. Especificamente: a) EUA devem executar os planos regulatórios de IA da agência federal e utilizá-los para projetar uma governança estratégica de IA com vistas ao alinhamento EUA/UE; b)A UE deve criar mais flexibilidade na implementação setorial da Lei de IA da UE, melhorando a lei e permitindo futuras negociações e cooperação UE-EUA; c) EUA precisam implementar uma estrutura legal para governança de plataformas online, porém, até então, UE e EUA devem trabalhar na documentação compartilhada de sistemas de recomendação e algoritmos de rede, bem como realizar pesquisas colaborativas em plataformas online; d) EUA e UE devem aprofundar o compartilhamento de conhecimento em vários níveis, inclusive o desenvolvimento de padrões; sandboxes de IA; grandes projetos públicos de pesquisa de IA e ferramentas de código aberto; trocas entre reguladores; e desenvolvimento de um ecossistema de garantia de IA. Maior colaboração entre UE e EUA será crucial, pois esses governos estão implementando políticas que serão fundamentais para a governança democrática da IA. Introdução Abordagens de gerenciamento de riscos de IA - moldadas por legislação emergente, supervisão regulatória, responsabilidade civil, soft law e standards dos agentes privados - tornam-se facetas importantes da diplomacia internacional e da política comercial. Além de incentivar mercados de tecnologia integrados, uma abordagem internacional mais unificada para a governança de IA pode fortalecer a supervisão regulatória, orientar a pesquisa para desafios compartilhados, promover o intercâmbio de melhores práticas e permitir a interoperabilidade de ferramentas para o desenvolvimento confiável de IA. As abordagens de governança da UE e dos EUA abrangem uma ampla gama de aplicações de IA com implicações internacionais, incluindo IA mais sofisticada em produtos de consumo; uma proliferação de IA em decisões socioeconômicas regulamentadas; uma expansão da IA em uma ampla variedade de plataformas online; sistemas de IA hospedados na Web voltados para o público, como IA generativa e modelos fundacionais. Este documento considera as abordagens dos EUA e UE para o gerenciamento de riscos de IA, compara desenvolvimentos de políticas em oito subcampos principais e discute etapas colaborativas adotadas até agora, especialmente através do Conselho de Comércio e Tecnologia EUA/UE. Além disso, o documento identifica os principais desafios emergentes para a gestão transatlântica de riscos de IA, oferecendo recomendações de formulação de políticas que podem promover negociações bem alinhadas e mutuamente benéficas na política de IA entre USA/EU. A abordagem dos EUA para a gestão de riscos de IA A abordagem do governo dos EUA para o gerenciamento de risco de IA pode ser amplamente caracterizada como baseada em risco, específica por setor e altamente distribuída entre agências federais. Há vantagens nessa abordagem, mas também contribui para o desenvolvimento desigual das políticas de IA. Embora existam vários documentos federais orientadores da Casa Branca sobre danos derivados da IA, eles não criaram uma abordagem federal uniforme ou consistente para os riscos da IA. A ordem executiva de fevereiro de 2019 - mantendo a liderança americana em inteligência artificial (EO 13859) - e sua orientação subsequente do Office of Management and Budget (OMB) (M-21-06) apresentaram a primeira abordagem federal para a supervisão da IA.2 Entregue em novembro de 2020, a orientação do OMB articulou claramente uma abordagem baseada em risco, declarando "a magnitude e a natureza das consequências caso uma ferramenta de IA falhe. esforço apropriado para identificar e mitigar os riscos". Esses documentos também instaram as agências a considerar as principais facetas da redução do risco de IA por meio de intervenções regulatórias e não regulatórias. Isso inclui o uso de evidências científicas para determinar os recursos da IA, aplicação de estatutos de não discriminação, consideração de requisitos de divulgação e promoção do desenvolvimento e implantação segura da IA. Em geral, as agências federais ainda não desenvolveram os planos regulatórios de IA necessários. Em dezembro de 2022, o Center for Human-Centered AI da Universidade de Stanford divulgou um relatório afirmando que apenas cinco das 41 principais agências criaram um plano de IA conforme necessário. Com efeito, apenas uma grande agência, a Departamento de Saúde e Serviços Humanos (HHS), forneceu um plano completo em resposta. O HHS documentou extensivamente a autoridade da agência sobre os sistemas de IA (através de 12 estatutos diferentes), suas coleções de informações ativas (por exemplo, sobre IA para sequenciamento genômico) e os casos emergentes de uso de IA de interesse (principalmente na detecção de doenças). A meticulosidade do plano regulatório do HHS mostra como esse esforço pode ser valioso para o planejamento da agência federal e informar o público se outras agências seguirem os seus passos. Em vez de implementar a EO 13859, o governo Biden revisitou o tópico dos riscos de IA por meio do Projeto para uma Declaração de Direitos de IA (AIBoR).3 Desenvolvido pelo Escritório de Política Científica e Tecnológica da Casa Branca (OSTP), o AIBoR inclui uma exposição detalhada dos danos da IA aos direitos econômicos e civis, cinco princípios para mitigar esses danos e uma lista associada de ações das agências federais. O AIBoR endossa uma abordagem setorial específica para a governança de IA, com intervenções políticas adaptadas a setores individuais, como saúde, trabalho e educação. Sua abordagem é, portanto, bastante dependente dessas ações associadas da agência federal, em vez de uma ação centralizada, especialmente porque o AIBoR é uma orientação não vinculativa. O AIBoR não obriga diretamente as agências federais a mitigar os riscos de IA. Além disso - apesar dos cinco princípios gerais descritos no AIBoR - a maioria das agências federais só consegue adaptar suas autoridades legais pré-existentes a sistemas algorítmicos. Isso é melhor demonstrado pelas agências que regulam a IA usada para tomar decisões socioeconômicas. Isso inclui a Federal Trade Commission (FTC), que pode usar sua autoridade para proteger contra práticas "injustas e enganosas" para impor a verdade na publicidade e algumas garantias de privacidade de dados em sistemas de IA.4 A FTC também está considerando como suas autoridades afetam a vigilância comercial baseada em dados, incluindo a tomada de decisões algorítmicas. A Equal Employment Opportunity Commission (EEOC) pode impor alguma transparência, exigir uma alternativa sem IA para pessoas com deficiência e impor a não discriminação na contratação de IA.5 O Consumer Financial Protection Bureau (CFPB) exige explicações para negações de crédito de sistemas de IA e pode potencialmente impor requisitos de não discriminação.6 Desses princípios, o governo Biden tem sido especialmente rigoroso sobre a equidade racial. Em fevereiro de 2023, publicou a ordem executiva Avanço da equidade racial e apoio a comunidades carentes por meio do governo federal (EO 14091). A segunda ordem executiva sobre esse assunto, orienta as agências federais a lidar com riscos emergentes aos direitos civis, incluindo "discriminação algorítmica em tecnologia automatizada".7 É muito cedo para saber o impacto dessa nova ordem executiva. Agências federais com competência regulatória sobre produtos de consumo também implementam ajustes. Uma agência líder é a Food and Drug Administration (FDA), que trabalha para incorporar IA e, especificamente, aprendizado de máquina, em dispositivos médicos desde pelo menos 2019.8 A FDA publica as melhores práticas para IA em dispositivos médicos, documenta dispositivos médicos habilitados para IA comercialmente disponíveis e promete realizar pilotos relevantes e avançar na ciência regulatória em seu plano de ação de IA. Além do FDA, a Consumer Products Safety Commission (CPSC) declarou em 2019 sua intenção de pesquisar e rastrear incidentes de danos causados pela IA em produtos de consumo, bem como considerar intervenções políticas, incluindo campanhas de educação pública, padrões voluntários, padrões obrigatórios e busca de relembra. Em 2022, a CPSC emitiu um relatório preliminar sobre como testar e avaliar produtos de consumo que incorporam aprendizado de máquina.9 Paralelamente ao estado desigual dos desenvolvimentos regulatórios de IA, os EUA investem em infraestrutura para mitigar os riscos de IA. O mais notável é o AI Risk Management Framework (RMF) do Instituto Nacional de Padrões e Tecnologia (NIST), com versão final em 26 de janeiro de 2023.10 O NIST AI RMF é uma estrutura voluntária, baseada na Estrutura da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para a classificação de sistemas de IA, oferecendo sugestões abrangentes sobre quando e como o risco pode ser gerenciado ao longo do ciclo de vida da IA. O NIST também está desenvolvendo um novo AI RMF Playbook, com exemplos concretos de como as entidades podem implementar o RMF na coleta de dados, desenvolvimento, implantação e operação de AI.11 O NIST também desempenha um papel na avaliação e divulgação pública da precisão e imparcialidade dos algoritmos de reconhecimento facial por meio de seu programa de teste de fornecedores de reconhecimento facial. Em uma análise, o NIST testou e comparou 189 algoritmos comerciais de reconhecimento facial para precisão em diferentes grupos demográficos, contribuindo com informações valiosas para o mercado de IA, aperfeiçoando a compreensão pública dessas ferramentas.12 Uma variedade de políticas, políticas aborda danos algorítmicos, contribuindo para a preparação institucional futura e, portanto, merece menção, mesmo que o risco de IA não seja a orientação principal. Lançado em abril de 2022, o Comitê Consultivo Nacional de IA pode desempenhar um papel consultivo externo na orientação da política governamental sobre o gerenciamento de riscos de IA em áreas como aplicação da lei, embora esteja principalmente preocupado com o avanço da IA como um recurso econômico nacional.13 O governo federal também realizou vários pilotos de um processo de contratação aprimorado, com o objetivo de atrair talentos em ciência de dados para o serviço público, um aspecto fundamental da preparação para a governança de IA. Atualmente, a série ocupacional "cientista de dados" é o cargo do governo federal mais relevante para os aspectos técnicos do gerenciamento de riscos de IA. No entanto, essa função é mais orientada para a realização de ciência de dados do que para revisar ou auditar modelos de IA criados por cientistas de dados do setor privado. O governo dos EUA publicou pela primeira vez um Plano Estratégico de Pesquisa e Desenvolvimento de IA nacional em 2016 e, em 2022, 13 departamentos federais financiaram pesquisa e desenvolvimento de IA.14 A National Science Foundation já financiou 19 institutos interdisciplinares de pesquisa em IA, e o trabalho acadêmico de alguns desses institutos está promovendo métodos de IA confiáveis e éticos. Da mesma forma, o Departamento de Energia foi encarregado de desenvolver métodos de IA mais confiáveis que possam informar a atividade comercial, como na descoberta de materiais. Além disso, o governo Biden buscará US$ 2,6 bilhões adicionais ao longo de seis anos para financiar a infraestrutura de IA sob o projeto National AI Research Resource (NAIRR): incentivar a IA confiável é um de seus quatro objetivos principais.15 Especificamente, o NAIRR poder ser usado para estudar melhor os riscos de grandes modelos emergentes de IA, muitos dos quais são atualmente desenvolvidos sem escrutínio público. Em um recente e significativo desenvolvimento, uma série de estados introduziram legislação para lidar com danos algorítmicos, incluindo Califórnia, Connecticut e Vermont.16 Embora possam incrementar significativamente as proteções de IA, também podem gerar problemas futuros para a aprovação de uma legislação federal de privacidade, que substitua várias leis estaduais.17 A abordagem da UE para a gestão de riscos da IA A abordagem da UE para o gerenciamento de riscos de IA é complexa e multifacetada, com base na legislação implementada, especialmente o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR), abrangendo a recente Lei de Serviços Digitais e a Lei de Mercados Digitais, bem como a iniciativa de legislação ativamente debatida, o AI Act. A UE desenvolveu diferentes abordagens regulatórias para diferentes ambientes digitais, cada uma com um grau diferente de ênfase na IA. Além de suas implicações de privacidade de dados, o GPDR contém dois artigos importantes relacionados à tomada de decisão algorítmica. Primeiro, o GDPR afirma que os sistemas algorítmicos não devem tomar decisões significativas que afetem situações jurídicas sem qualquer supervisão humana.18 Com base nessa cláusula, em 2021, a Uber foi obrigada a reintegrar seis motoristas que foram demitidos apenas pelo sistema algorítmico da empresa.19 Outrossim, o GDPR garante o direito de um indivíduo a "informações significativas sobre a lógica" de sistemas algorítmicos, às vezes controversamente considerado um "direito à explicação". sobre decisões algorítmicas. Há muitas questões em aberto sobre esta cláusula, incluindo a frequência com que os indivíduos afetados solicitam essas informações, o valor da informação para eles e o que acontece quando as empresas se recusam a fornecer as informações.20 A Lei de IA da UE será um componente especialmente crítico para a gestão de risco de IA em muitas áreas de risco de atividade.21 Embora a Lei de IA ainda não esteja finalizada, pode-se inferir o suficiente da proposta da Comissão Europeia de abril de 2021, da proposta final do Conselho da UE de dezembro de 2022 e das informações disponíveis das discussões em andamento no Parlamento Europeu para analisar suas principais características. Embora muitas vezes seja referido como "horizontal", o AI Act implementa um sistema hierárquico de obrigações regulatórias para uma lista especificamente enumerada de aplicativos de IA.22 Vários aplicativos de IA - incluindo deepfakes, chatbots e análises biométricas - devem se revelar claramente às pessoas afetadas. Um conjunto diferente de sistemas de IA com "riscos inaceitáveis" seria completamente banido, potencialmente incluindo IA para pontuação social, tecnologias manipulativas habilitadas por IA e, com várias exceções importantes, identificação biométrica pela aplicação da lei em espaços públicos. Entre esses dois níveis estão os sistemas de IA de "alto risco", que é a mais inclusiva e impactante das designações da Lei de IA da UE. Duas categorias de aplicativos de IA serão designadas como de alto risco pela Lei de IA: produtos de consumo regulamentados e IA usada para decisões socioeconômicas impactantes. Todos os sistemas de IA de alto risco terão que atender aos padrões de qualidade, precisão, robustez e não discriminação dos dados, além de implementar documentação técnica, manutenção de registros, um sistema de gerenciamento de riscos e supervisão humana. As entidades que vendem ou implantam sistemas de IA de alto risco cobertos, chamados provedores, precisarão atender a esses requisitos e enviar documentação que atestem a conformidade de seus sistemas de IA ou, caso contrário, enfrentarão multas de até 6% do faturamento global anual. A primeira categoria de IA de alto risco inclui produtos de consumo que já são regulamentados pelo Novo Quadro Legislativo, o regime regulatório de mercado único da UE, que inclui produtos como dispositivos médicos, veículos, barcos, brinquedos e elevadores.23 De um modo geral, isso significa que os produtos de consumo habilitados para IA ainda passarão pelo processo regulatório pré-existente sob a legislação pertinente de harmonização de produtos e não precisarão de uma segunda avaliação de conformidade independente apenas para os requisitos da Lei de IA. Os requisitos para sistemas de IA de alto risco serão incorporados à legislação de harmonização de produtos existente. Como resultado, ao passar pelo processo regulatório pré-existente, as empresas terão que prestar mais atenção aos sistemas de IA, refletindo o fato de que alguns sistemas de IA modernos podem ser mais opacos, menos previsíveis ou plausivelmente atualizados após o ponto de venda. Notavelmente, algumas agências da UE já começaram a considerar como a IA afeta seus processos regulatórios. Um exemplo importante é a Agência de Segurança da Aviação da UE, que criou pela primeira vez uma força-tarefa de IA em 2018, publicou um roteiro de IA voltado para a segurança da aviação em 2020 e divulgou orientações abrangentes para IA que auxiliam humanos em sistemas de aviação em 2021.24 A segunda categoria de IA de alto risco é composta por uma lista enumerada de aplicativos de IA que inclui decisões socioeconômicas impactantes do setor privado - ou seja, contratação, acesso educacional, acesso a serviços financeiros e gerenciamento de trabalhadores -, bem como aplicativos do governo em benefícios públicos, aplicação da lei, controle de fronteira e processos judiciais. Ao contrário dos produtos de consumo, esses sistemas de IA são geralmente vistos como apresentando novos riscos e, até agora, não eram regulamentados. Isso significa que a UE precisará desenvolver padrões específicos de IA para todos esses vários casos de uso (ou seja, como precisão, não discriminação, gerenciamento de riscos e outros requisitos se aplicam a todos os vários aplicativos de IA cobertos). Espera-se que isso seja um desafio de implementação muito significativo, dado o número de aplicativos de IA de alto risco e a novidade dos padrões de IA. Esses padrões provavelmente desempenharão um grande papel na eficácia e especificidade da Lei de IA, pois, cumpri-los será o caminho mais certo para as empresas obterem conformidade legal sob a Lei de IA. Além disso, as empresas que vendem ou implantam sistemas de IA de alto risco terão que afirmar que seus sistemas atendem a esses requisitos, enviando documentação para esse efeito na forma de uma avaliação de conformidade. Essas empresas também devem registrar seus sistemas em um banco de dados em toda a UE que será disponibilizado ao público, criando transparência significativa no número de sistemas de IA de alto risco, bem como na extensão de seu impacto social. Por fim, embora não incluído na proposta original da Comissão, o Conselho da UE propôs, e o Parlamento Europeu está considerando, novos requisitos regulatórios sobre "sistemas de IA de uso geral", incluindo modelos de linguagem e imagens.25 Os requisitos regulatórios da IA de uso geral podem incluir padrões de precisão, robustez, não discriminação e um sistema de gerenciamento de riscos. A Lei de IA da UE não é a única legislação importante que legisla o risco de IA. A UE já aprovou a Lei de Serviços Digitais (DSA) e a Lei de Mercados Digitais (DMA), e uma futura Diretiva de Responsabilidade de IA também pode desempenhar um papel importante. O DSA, aprovado em novembro de 2022, considera a IA como parte de sua abordagem holística para plataformas online e mecanismos de pesquisa. Ao criar novos requisitos de transparência, exigir auditorias independentes e permitir pesquisas independentes em grandes plataformas, o DSA revelará muitas novas informações sobre a função e os danos da IA nessas plataformas. Além disso, o DSA exige que grandes plataformas expliquem sua IA para recomendações de conteúdo, como preenchimento de feeds de notícias, e para oferecer aos usuários um sistema de recomendação alternativo não baseado em dados confidenciais do usuário. Na medida em que esses sistemas de recomendação contribuem para a disseminação da desinformação e as grandes plataformas falham em mitigar esse dano, elas podem enfrentar multas de acordo com o DSA.26 Da mesma forma, o DMA visa amplamente aumentar a concorrência nos mercados digitais e considera algumas implantações de IA nesse escopo. Por exemplo, grandes empresas de tecnologia consideradas "guardiãs" de acordo com a lei serão impedidas de dar preferência a seus próprios produtos e serviços em detrimento de terceiros, uma regra que certamente afetará a classificação da IA nos mecanismos de busca e o pedido de produtos no E-plataformas de comércio. A Comissão Europeia também poderá realizar inspeções dos dados do gatekeeper e dos sistemas de IA. Embora o DMA e o DSA não sejam principalmente sobre IA, essas leis sinalizam uma vontade clara da UE de governar a IA incorporada a sistemas altamente complexos. Na segunda parte - a ser publicada no próximo mês - examinaremos o contraste das abordagens da UE e EUA para gestão de riscos na IA e como, efetivamente, dar-se-á uma colaboração entre os dois blocos, face aos desafios emergentes na gestão de riscos e políticas públicas efetivas visando uma harmonização. __________ 1 Visto como uma voz independente e líder na esfera de formulação de políticas domésticas, o programa de Estudos de Governança da Brookings é dedicado à análise de questões políticas, instituições e processos políticos e desafios contemporâneos de governança, identificando áreas que precisam de reforma e propondo soluções específicas para melhorar a governança em todo o mundo, com ênfase particular nos Estados Unidos. 2 "Executive Order 13859 of February 11, 2019, Maintaining American Leadership in Artificial Intelligence," Federal Register, 84 FR 3967 (January 14th, 2019): 3967-3972; Office of Management and Budget. Guidance for Regulation of Artificial Intelligence Applications, by Russell T. Vought, (Washington, D.C. 2020). 3 The White House, Blueprint for an AI Bill of Rights (Washington, D.C., 2022). 4 The Federal Trade Commission, Aiming for truth, fairness, and equity in your company's use of AI (Washington D.C., 2021); The Federal Trade Commission, Keep your AI claims in check (Washington D.C., February 27, 2023); Kaye, Kate, "The FTC's new enforcement weapon spells death for algorithms." Protocol, March 14, 2022. 5 lex Engler, "The EEOC wants to make AI hiring fairer for people with disabilities" The Brookings Institution, May 26, 2022. 6 Consumer Financial Protection Board, CFPB Acts to Protect the Public from Black-Box Credit Models Using Complex Algorithms (Washington D.C., 2022); Consumer Financial Protection Board, Consumer Financial Protection Circular 2022-03 (Washington, D.C., 2022). 7 The White House, FACT SHEET: President Biden Signs Executive Order to Strengthen Racial Equity and Support for Underserved Communities Across the Federal Government. (Washington D.C., February 2023). 8 The Food and Drug Administration, Proposed Regulatory Framework for Modifications to Artificial Intelligence/Machine Learning (AI/ML)-Based Software as a Medical Device (SaMD) (Washington D.C., 2019). 9 Nevin J. Taylor, "Applied Artificial Intelligence and Machine Learning Test and Evaluation Program for Consumer Products" Consumer Product Safety Commission, August 24, 2022. 10 National Institute of Standards and Technology, AI Risk Management Framework: Initial Draft (Washington D.C., 2022); National Institute of Standards and Technology. AI Risk Management Framework. (Washington D.C., 2023). 11 National Institute of Standards and Technology, NIST AI Risk Management Framework Playbook (Washington D.C., 2023). 12 Patrick Grother, Mei Ngan, and Kayee Hanaoka, "Face Recognition Vendor Test (FRVT) Part 3: Demographic Effects." National Institute of Standards and Technology. 13 The National Artificial Intelligence Initiative Office, THE NATIONAL AI ADVISORY COMMITTEE (NAIAC) (Washington D.C., 2022). 14 National Science and Technology Council Networking and Information Technology Research and Development Subcommittee. National AI Research and Development Strategic Plan (Washington D.C., 2016). 15 The National Artificial Intelligence Initiative Office, Strengthening and Democratizing the U.S. Artificial Intelligence Innovation Ecosystem: An Implementation Plan for a National Artificial Intelligence Research Resource (Washington D.C., 2023). 16 California Assembly Member Bauer-Kahan. An Act relating to artificial intelligence. (Sacramento, January 30, 2023); Alison Cross, "CT government AI use is extensive, raising equity and privacy concerns. Here's what a proposed bill would do." The Hartford Courant, March 4, 2023; Vermont General Assembly. An act relating to restricting electronic monitoring of employees and employment-related automated decision systems. (2023).  17 Sorelle Friedler, Suresh Venkatasubramanian, and Alex Engler, "How California and other states are tackling AI legislation." The Brookings Institution, March 22, 2023.; Cam Kerry, "Will California be the death of national privacy legislation?" The Brookings Institution, November 18, 2022. 18 The European Commission, Can I be subject to automated individual decision-making, including profiling? 19 Natasha Lomas, "Uber hit with default 'robo-firing' ruling after another EU labor rights GDPR challenge" TechCrunch, March 30, 2021. 20 Steve Wood, "Data Protection - Regulatory action and recent case law from the EU and UK courts: the emerging direction for GDPR regulation" JDSupra, March 9, 2022. 21 Lilian Edwards, "Expert explainer: The EU AI Act proposal" The Ada Lovelace Institute. 22 Joshua P. Meltzer and Aaron Tielemans, "The European Union AI Act: Next steps and issues for building international cooperation in AI" The Brookings Institution (June 1, 2022). 23 Michael Veale and Frederik Zuiderveen Borgesius, "Demystifying the Draft EU Artificial Intelligence Act" Computer Law Review International (November 26, 2021). 24 European Union Aviation Safety Agency. Artificial Intelligence Roadmap: A human-centric approach to AI in aviation (Brussels, 2020);  European Union Aviation Safety Agency. EASA Concept Paper: First usable guidance for Level 1 machine learning applications (Brussels, 2021)  25 Andrea Renda and Alex Engler, "Reconciling the AI Value Chain with the EU's Artificial Intelligence Act" The Center for European Policy Studies. 26 The European Commission, Disinformation: Commission welcomes the new stronger and more comprehensive Code of Practice on disinformation. (Brussels, June 2022).
I. Introdução Na coluna passada, iniciei trilogia sobre formação contratual, mais especificamente sobre o primeiro passo desse processo, que é o da proposta ou oferta ao público. Na coluna passada falei sobre o sistema americano à luz do famoso caso Leonard v. Pepsico, em que um jovem exigiu da Pepsi que entregasse um avião militar oferecido em uma propaganda.  Seguindo a ordem da trilogia, na presente coluna, vamos tratar da proposta ou oferta ao público no sistema alemão.1 II. Fundamentos De modo geral, o contrato se concretiza pela aceitação de uma proposta. Esta forma de contratação é regulamentada com mais detalhes nos §§ 145 e ss. do BGB. Ela é encontrada sobretudo em contratos simples do dia a dia ou em propostas de parceiros contratuais que já refletiram a respeito e que não têm de negociar. Por outro lado, proposta e aceitação são quase indistinguíveis se uma das partes não tiver uma proposta pronta para a outra aceitar, mas ambas as partes negociam juntas e elaboram o texto do contrato ponto por ponto e depois expressam seu acordo através da assinatura. Essa forma de contratação geralmente é encontrada em contratos longos entre parceiros em igualdade de forças. O BGB refere-se a isso no § 154, par. 1, frase 1, e no § 155. Um terceiro também pode redigir o contrato, que as partes apenas assinam sem ter que aderir à técnica de proposta e aceitação. Por exemplo, um contrato social redigido por um notário e aprovado pelos sócios. Devido à sua autonomia privada, as partes podem, em princípio, decidir por si mesmas como realizar um acordo contratual. III. A proposta A proposta por si só nada mais é do que uma sugestão que a outra parte, por meio da aceitação dela, eleva a regramento acordado por ambas as partes. Não importa qual dos contratantes faz a proposta no caso individual, seja comprador ou vendedor, locatário ou locador, cliente ou empresário. A única exigência é que a declaração de uma das partes seja considerada como uma proposta de contrato e a da outra parte como uma aceitação oportuna, irrestrita e incondicional desta proposta. Há dois requisitos para a proposta: a determinação do conteúdo e vontade de se vincular juridicamente. 1. Determinação do conteúdo. Uma proposta deve conter os pontos essenciais do contrato, bem como todos os pontos sobre os quais o proponente deseja chegar a um acordo, de modo que a aceitação requer apenas um simples "sim" como consentimento. Qualquer "aceitação" com extensões, restrições ou outras alterações são, de acordo com o § 150 II do BGB, consideradas como recusa e, ao mesmo tempo, uma nova proposta. Durante as negociações contratuais, com cada mudança, uma nova proposta é apresentada. Por exemplo, no caso de reserva de uma mesa em um restaurante (ao contrário de uma reserva de quarto de hotel), as partes essenciais do contrato (pratos, bebidas) mantêm-se normalmente em aberto, de modo que ainda não há proposta; mas, caso quem fez a reserva não cancele previamente e não compareça, pode surgir para o estabelecimento um crédito por culpa in contrahendo relativo à indenização do dano de confiança. Em um leilão online, os pontos essenciais são normalmente fixados, uma vez que o preço de compra corresponde ao valor do lance mais elevado. No caso de um contrato prestação de serviço e de empreitada sem acordo de preço, aplicam-se os §§ 612 par. 2, 632 par. 2 sobre remuneração tributável ou local habitual. Os parceiros contratuais também podem deixar a determinação do preço para um deles ou para um terceiro (§§ 315 e segs.). 2. Vontade de vinculação jurídica. Uma proposta só existe se o proponente quiser estar juridicamente vinculado por meio da sua declaração sob a perspectiva do destinatário. Se o proponente se reserva o direito de decidir se aceita ou não a declaração da outra parte, a sua declaração não é uma proposta, mas apenas um convite à apresentação de uma proposta. A declaração da outra parte é então a proposta, que a pessoa que solicita a proposta pode aceitar. Por exemplo, um anúncio num jornal ou catálogo, bem como o envio ou afixação de uma lista de preços, não costumam configurar uma oferta de venda, porque a capacidade do proponente é limitada (risco de pretensões indenizatórias) e ele quer se reservar o direito de escolher o parceiro contratual (verificação de solvência, etc.). Por esse motivo, mesmo quando os itens individuais são exibidos com informações de preço na vitrine de uma loja, geralmente não há oferta de venda, especialmente porque as peças de exposição costumam ser usadas para fins decorativos de alto custo. Nas lojas de autoatendimento, a proposta também é apenas feita quando as mercadorias são apresentadas no caixa, porque, caso contrário, o cliente seria vinculado muito cedo e o vendedor não poderia mais verificar a liquidez ou impedir "compras de acumulação". A instalação de uma máquina de venda automática também é um mero convite à apresentação de proposta, pelo que a inserção do dinheiro ainda não constitui um contrato (com potenciais pretensões indenizatórias no lugar da prestação). A bomba de combustível, por outro lado, deve ser considerada uma oferta porque o cliente só paga depois e a gasolina (ao contrário de um produto numa loja self-service) já não pode ser devolvida (cf. § 948 do BGB); consequentemente, o cliente incorre em inadimplemento se sair das instalações da bomba de gasolina sem pagar (cf. § 286 II n. 4 do BGB). Os anúncios na internet ("vitrines virtuais") não constituem, em princípio, uma oferta, entretanto, se for afirmado que o lance mais alto já será aceito, há uma oferta ou aceitação previamente declarada; tal oferta (o que é destinado ao licitante mais alto) pode, obviamente, estar sujeito a uma retirada justificada da oferta (por exemplo, no caso de o item oferecido ter sido roubado nesse meio tempo). Não há mero convite à apresentação de propostas em casos de serviços de interesse geral. Isso inclui o fornecimento de eletricidade, gás ou água e o fornecimento de transporte público. A oferta destes serviços ao público em geral já é considerada como uma oferta para celebrar um contrato porque os prestadores estão sujeitos a uma obrigação de contratar. A reivindicação real e o uso da prestação oferecido constituem a aceitação por meio do uso, de acordo com o § 151 fr. 1 do BGB. No caso de um leilão, o contrato, de acordo com o § 156 fr. 1 do BGB, só é formado quando o lance é aceito. A proposta é, portanto, feita pelo licitante, que o leiloeiro pode aceitar aceitando o lance. De acordo com a § 156 fr. 2 do BGB, o lance apresentado por um licitante expira se um lance mais alto for apresentado ou se o leilão for encerrado sem que um lance seja premiado. IV. Conclusão Na próxima e última coluna falarei sobre a proposta no Brasil. Diante dos casos focais das últimas colunas, algum destaque deve ser dado à figura da oferta ao público e ao art. 429. __________ 1 Essa coluna foi escrita com base em NEUNER, Jörg. Allgemeiner Teil des bürgerlichen Rechts. 12. Aufl. München: Beck: 2020, § 37, p. 436 ss.
Introdução A Oxford Global Society me convidou para participar dos Putney Debates 2023 remotamente através do convite do professor Denis Galligan para que eu entrasse em diálogo com a palestra de abertura do professor Richard Clary, da Harvard Law School, sobre a crise democrática no contexto dos Estados Unidos e do Reino Unido. Minha palestra pretendeu analisar a situação nos termos do debate proposto por ele, mas a partir do contexto específico dos dez países da América do Sul e com a análise dos dez pontos relevantes para o debate regional. O mapeamento empírico do stress democrático na América do Sul O panorama empírico da América do Sul nos permite classificar os países em três categorias distintas. Em primeiro lugar, existe o caso da Venezuela, um país que experimentou uma erosão democrática desde 1999, que eventualmente causou um colapso político, econômico e social. Uma segunda categoria de países inclui Peru, Paraguai, Bolívia, Colômbia e Equador, que são considerados pelo relatório da Freedom House como sendo parcialmente livres. Já uma terceira categoria inclui os países do cone sul - Argentina, Brasil, Chile e Uruguai, que podem ser classificados como exemplos de fortalecimento democrático. Uma análise episódica dos dez países da região revela casos de autoritarismo na Venezuela, merecendo destaque o pitoresco período em que o país teve dois presidentes simultaneamente reconhecidos pela comunidade internacional como sendo chefes de Estado. Existem inúmeros exemplos de 'impeachment', tais como no Brasil, Peru e Paraguai. Outros casos de stress democrático dizem respeito às tentativas de contínuas reeleições presidenciais, tais como identificados na Bolívia e na Colômbia, mas não no Equador. Enquanto Argentina e Uruguai buscam seu posicionamento na economia global e o Chile enfrenta uma crise de polarização política e de identidade constitucional, o Brasil tem que enfrentar todas essas questões. No Brasil, existem desafios institucionais relativos ao desenvolvimento econômico, reformas tributárias, incentivos para a inovação e empreendedorismo, bem como reformas constitucionais e políticas. Também existem conflitos sociais e políticos, com polarização partidária e disputas que exigem a atuação do Supremo Tribunal Federal como um mediador. Dez pontos relevantes para o debate A discussão teórica sobre a crise democrática na América do Sul possui uma série de pontos relevantes para o debate. Um primeiro ponto interessante diz respeito à provocação do jornalista Michael Reid, do Economist, de que a América Latina é um "continente esquecido" e não deveria sê-lo devido à riqueza cultural, ao capital ecológico e ao laboratório para a democracia.1 Além disso, Roberto Gargarella apresenta a metáfora da 'sala de máquinas' da Constituição para discutir o problema da concentração de poderes no Poder Executivo a partir de um outro insight de Carlos Santiago Nino relativo ao 'hyper presidencialismo' na América do Sul.2 Em contraste com o presidencialismo dos Estados Unidos, existe uma concentração enorme de poder de iniciativa legislativa e de produção de leis através de mecanismos como a medida provisória. Outro ponto relacionado com a estrutura de poder e a relação entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo consiste no modelo de 'Presidencialismo de Coalizão', tão bem identificado pelo cientista político Sérgio Abranches.3 Em países como o Brasil, existe uma fragmentação partidária bem grande, que exige uma constante negociação do Presidente com inúmeros partidos para formar uma coalizão partidária que o permita governar. Essa complexa equação política entre os Poderes de Estado também é relevante para explicar como os processos de impeachment são mais comuns no cenário político da América do Sul do que noutros países presidencialistas, tal como os Estados Unidos.4 No âmbito da concepção de Estado de Direito e do controle jurídico da atividade política, ao longo das últimas décadas, ocorreu uma mudança significativa no papel do Poder Judiciário e das Supremas Cortes nas dinâmicas de poder, funcionando, não raro, como um mediador ou um árbitro nos conflitos políticos.5 Um outro mecanismo institucional relevante para controle jurídico da atividade política consistia no estabelecimento de cortes eleitorais, uma inovação pioneira do constitucionalismo chileno em 1823,  e que também teve um enorme impacto positivo para melhoria da qualidade institucional do processo eleitoral brasileiro.6 Por outro lado, o Brasil é a notável exceção na América do Sul, sendo o caso excepcional em que não existe uma regulação da organização interna dos partidos políticos, de modo a evitar uma estrutura oligárquica e a garantir a sua democracia interna, especialmente na seleção dos candidatos a cargos políticos.7 Um dos sérios problemas nas sociedades contemporâneas na América do Sul diz respeito justamente à falta de 'cola social', isto é, a falta de uma integração social que facilite o desenvolvimento socioeconômico, encontrando-se um cenário de polarização entre direita e esquerda que se tratam como 'amigos' e 'inimigos', tal como na formulação do teórico constitucionalista alemão Carl Schmitt.8 Uma outra dificuldade dos países sul-americanos consiste na sua fragilidade institucional, caracterizada pela baixa qualidade na provisão de serviços públicos, sendo necessário um processo de construção estatal que melhore a qualidade das organizações, do treinamento dos agentes públicos e  das regras do jogo para o funcionamento das instituições do mercado, da política e da sociedade.9 Finalmente, todas essas questões passam pela compreensão do papel da Constituição, que habilita os governos, empodera instituições, colabora para a promoção do bem estar social. A Constituição também funciona como expressão de valor, manifestação de poder e mecanismo de coordenação social.10  Considerações finais A ideia de crise democrática na América do Sul deve ser colocada em perspectiva, na medida em que o continente nunca experimentou um período tão longo de alternância de poder, processos eleitorais maduros, respeito pelas regras do jogo democrático. Apesar dos ataques ao sistema eleitoral, do antagonismo político partidário e da escassez de liderança, existe uma oportunidade para o aprofundamento dos debates e para reformas constitucionais capazes de enfrentamento dos problemas atuais e de aprimoramento da democracia nos países da América do Sul. __________ 1 REID, Michael. Forgotten continent: The battle for Latin America's soul. Yale University Press, 2010. 2 GARGARELLA, Roberto. Latin American constitutionalism, 1810-2010: the engine room of the Constitution. Oxford University Press, 2013; NINO, Carlos Santiago. Hyperpresidentialism and constitutional reform in Argentina. In: Institutional design in new democracies. Routledge, 2018. p. 161-174. 3 ABRANCHES, Sérgio. Presidencialismo de coalizão: raízes e evolução do modelo político brasileiro. Editora Companhia das Letras, 2018. 4 BROSSARD, Paulo. O Impeachment: aspectos da responsabilidade política do Presidente da República. Saraiva, 1992; TRIBE, Laurence; MATZ, Joshua. To end a presidency: the power of impeachment. Hachette UK, 2018. 5 VIEIRA, Oscar Vilhena. A batalha dos poderes: da transição democrática ao mal-estar constitucional. Editora Companhia das Letras, 2018; VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista Direito GV, v. 4, p. 441-463, 2008. 6 MENDES, Conrado Hübner; GARGARELLA, Roberto; GUIDI, Sebastián (Ed.). The Oxford Handbook of Constitutional Law in Latin America. Oxford University Press, 2021; LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. Editora Companhia das Letras, 2012. 7 MICHELS, Robert. Political parties: A sociological study of the oligarchical tendencies of modern democracy. Hearst's International Library Company, 1915; DUVERGER, Maurice. Political parties: Their organization and activity in the modern state. Metheun & Co. Ltd., 1959. 8 STIGLITZ, Joseph E. Formal and informal institutions. Social capital: A multifaceted perspective, v. 2000, p. 59-68, 2000; SCHMITT, Carl. The concept of the political: Expanded edition. University of Chicago Press, 2008; MOUFFE, Chantal. Agonistics: Thinking the world politically. Verso Books, 2013. 9 NORTH, Douglass C. Institutional change and economic growth. The Journal of Economic History, v. 31, n. 1, p. 118-125, 1971; FUKUYAMA, Francis. State-building: governance and world order in the 21st century. Cornell University Press, 2019. 10 GALLIGAN, Denis J.; VERSTEEG, Mila (Ed.). Social and political foundations of Constitutions. Cambridge University Press, 2013.
O TikTok, plataforma chinesa de aplicativos de vídeos curtos, conta atualmente com mais de 1 bilhão de usuários ativos, sendo o aplicativo de rede social mais baixado no mundo. A credibilidade dessa gigante da tecnologia, todavia, sempre foi seriamente questionada, sobretudo em função das acusações a respeito da segurança dos dados pessoais de seus consumidores e o compartilhamento das informações coletadas dos diversos dispositivos dos usuários com o governo chinês. Como todo aplicativo de rede social, o TikTok exige dos candidatos a usuários a anuência a uma lista de permissões que devem ser concedidas à empresa, tais como: i) Acesso à câmera, microfone, lanterna, conexão Wi-Fi e contatos do dispositivo; ii) Álbum de fotos, para leitura e gravação; iii) Interação com a assistente Siri; iv) Início automático do TikTok caso o aparelho seja reiniciado; v) Informar modelo do aparelho onde o app foi instalado; vi) Endereço IP da Internet; vii) Localização do usuário por meio de GPS (em que cidade você está); viii) Instalação e remoção de atalhos; ix) Atualização em segundo plano; x) Leitura e registro de dados no armazenamento do dispositivo e, xi) Rastreamento de dados de outros apps. Apesar dessa impressionante lista de exigências, estudos e relatórios de empresas especializadas em segurança digital demonstram que, de forma geral, elas não são muito diversas daquelas solicitadas pelas demais plataformas de redes sociais, como o Facebook, o Instagram (Meta), o Twitter, dentre outras. O mais grave problema com o TikTok, contudo, residiria no compartilhamento das informações indiscriminadamente colhidas dos usuários para fins comerciais e políticos. O assunto tem sido amplamente explorado ao redor do mundo, gerando sérias e profundas discussões, principalmente, no que toca à responsabilidade pela segurança de dados.  Para que se tenha ideia da gravidade dos riscos gerados aos usuários, a plataforma TikTok é controlada pela empresa ByteDance, sediada na China, sendo seu funcionamento regulado pela Lei de Inteligência Nacional, de 2017. Segundo referida legislação, todas as empresas nacionais chinesas devem apoiar, cooperar e colaborar com o trabalho de inteligência nacional e compartilhar os dados coletados com as autoridades locais caso sejam solicitados. Diante disso, a relação entre a empresa ByteDance (TikTok) e os governos ao redor do mundo vem sendo profundamente afetada - sobretudo nos EUA e na Europa -, provocando reações das mais diversas, sobretudo, nos cenários político e econômico. Acima de tudo, a "crise do TikTok" acirrou ainda mais as pressões pela regulação mais rígida do setor por via de iniciativas legislativas e administrativas, acarretando a proibição da utilização da plataforma por parte de agentes públicos em diversos países mundo afora. O cenário nos EUA Somente nos EUA, o TikTok conta com mais de 150 milhões de usuários, muitos dos quais, agentes públicos acessando a plataforma por via de dispositivos corporativos. Diante dos riscos de devassa de informações consideradas sensíveis e de segurança nacional, em dezembro de 2022, o uso do aplicativo foi proibido em aparelhos corporativos de propriedade do governo federal norte-americano - restrição essa que se repetiu, subsequentemente, em diversos Estados ao longo do país. Pelos mesmos motivos, várias universidades públicas também passaram a bloquear o acesso ao aplicativo por meio de suas redes de wi-fi.1 Em resposta a tais iniciativas, o Ministério das Relações Exteriores da China afirmou que os Estados Unidos ainda não forneceram evidências de que o TikTok ameaça a segurança nacional, não havendo razão para a repressão às atividades das empresas chinesas de tecnologia. Em março de 2023, o CEO da empresa ByteDance, Shou Zi Chew, foi convocado a prestar informações em audiência designada pelo Congresso norte-americano.2 Ao longo de cinco horas de depoimento, Chew negou que o aplicativo compartilhe dados ou tenha conexões com o Partido Comunista Chinês, argumentando que a plataforma estava fazendo de tudo para garantir a segurança de seus 150 milhões de usuários americanos.3 Atualmente, tramita no Congresso norte-americano um Projeto de Lei que estabelece restrições para o uso de aplicativos - denominada "Lei para Restringir o Surgimento de Ameaças à Segurança e aos Riscos da Tecnologia da Informação e Comunicação" (Restrict Act), voltada a regular o funcionamento de aplicativos considerados ameaças tecnológicas estrangeiras à segurança nacional.4 Trata-se de Projeto de Lei altamente polêmico, sobretudo pela extensão da regulação proposta. Dentre os inúmeros debates surgidos a respeito da iniciativa legislativa, destacam-se os que se referem aos efeitos e à extensão da previsão da cláusula sobre os usuários individuais de VPN's. Segundo a proposta, "nenhuma pessoa pode ajudar, encorajar, aconselhar, comandar, induzir, obter, permitir ou aprovar a realização de qualquer ato que viole os preceitos dessa Lei", estabelecendo-se, ainda, multas e penas de até 20 anos de prisão para "qualquer pessoa que use ou acesse uma rede privada virtual ou outro serviço de tecnologia projetado para contornar o controle de acesso ou a coleta de informações por um aplicativo coberto por esta lei".5 O cenário na Europa Ne mesma linha das reações norte-americanas contra os riscos da segurança de dados por parte do TikTok, o Parlamento Europeu, a Comissão Europeia e o Conselho da EU - as três principais entidades institucionais políticas da União Europeia -, impuseram proibições ao uso do aplicativo em dispositivos corporativos, justificadas na necessidade de proteção dos dados e o reforço da cibersegurança. A Comissão Europeia pediu aos seus funcionários que não instalem ou desinstalem o TikTok inclusive de seus smartphones, caso tenham aplicações de uso oficial tais como as de mensagens eletrônicas ou de videoconferência. Gradativamente, vários países europeus (como a Holanda, a Noruega e a Bélgica) vêm aderindo à proibição do uso do TikTok em dispositivos de trabalho por parte dos funcionários governamentais. A França, por exemplo, proibiu a instalação do aplicativo nos telefones de trabalho de aproximadamente 2,5 milhões de funcionários públicos, como objetivo garantir a segurança cibernética.6 Além das graves suspeitas de compartilhamentos de dados, a pressão ao TikTok gira em torno da necessidade de adequação da plataforma digital ao Digital Services Act (DAS), aprovado pelo Parlamento Europeu em 2022, e que atualmente regulamenta a proteção e a privacidade de dados dos usuários da comunidade europeia, prevendo sanções às Big Techs.7 O cenário no Reino Unido A agência de regulação digital do Reino Unido (Information Commissioner's Office - ICO), multou as empresas TikTok Information Technologies UK Limited e TikTOK Inc. em 12.7 milhões de libras esterlinas pela violação da lei de proteção de dados (UK General Data Protection Regulation -UK GDPR), em razão do uso ilegal de dados pessoais de crianças menores de 13 anos, sem o consentimento dos pais.8 De acordo com a lei de proteção de dados do Reino Unido, as organizações que usam dados pessoais, ao oferecerem serviços da sociedade da informação para crianças menores de 13 anos, devem ter o consentimento de seus pais ou responsáveis. Contudo, entre o período de maio de 2018 a julho de 2020, foi apurado que essas empresas não tomaram as medidas necessárias para controlar o acesso dos menores de idade, visto que, de acordo com as regras de utilização do próprio aplicativo, a idade mínima para a criação da conta de usuário é de 13 anos. Apesar disso, estima-se que 1,4 milhão de crianças britânicas com idade inferior usaram a plataforma no período referido. O valor arbitrado para a multa - inicialmente fixado em 27 milhões de libras esterlinas - foi reduzido para 12,7 milhões pela agência reguladora britânica, levando em consideração a linha argumentativa de defesa dos representantes do TikTok.  Ainda assim, a milionária multa aplicada pelo ICO é um sinal claro de que os órgãos reguladores estão atentos às violações de privacidade e proteção de dados que podem ocorrer em plataformas digitais, tal como o TikTok. De acordo com John Edwards, Comissário de Informação do Reino Unido, "Existem leis em vigor para garantir que nossos filhos estejam tão seguros no mundo digital quanto no mundo físico. O TikTok não cumpria essas leis. Como consequência, cerca de um milhão de menores de 13 anos receberam acesso inapropriado à plataforma, com o TikTok coletando e usando seus dados pessoais. Isso significa que seus dados podem ter sido usados para rastreá-los e traçar seu perfil, potencialmente fornecendo conteúdo prejudicial e inapropriado na próxima rolagem. O TikTok deveria saber melhor. O TikTok deveria ter feito melhor. Nossa multa de £ 12,7 milhões reflete o sério impacto que suas falhas podem ter tido. Eles não fizeram o suficiente para verificar quem estava usando sua plataforma ou tomaram medidas suficientes para remover os menores de idade que estavam usando sua plataforma".9 De acordo com o TikTok, a empresa vem investindo em segurança e já teria investido mais de US$ 1,5 bilhão em esforços para garantir a segurança de dados, rejeitando qualquer alegação de espionagem. A partir da conclusão da investigação da ICO sobre o TikTok, a agência reguladora publicou um "código infantil" para ajudar a proteger as crianças no mundo digital. Referido código é voltado a informar adequadamente os usuários quanto aos serviços online, como aplicativos, plataformas de jogos e sites da web e de mídia social, que provavelmente serão acessados por crianças. O código estabelece 15 padrões para garantir que as crianças tenham a melhor experiência possível de serviços online.10 Em um movimento semelhante ao de outros países, foi proibido o uso do aplicativo TikTok em dispositivos oficiais do governo. A proibição é baseada num relatório do Centro Nacional de Segurança Cibernética do Reino Unido (NCSC), segundo o qual "pode haver um risco na forma como os dados confidenciais do governo são acessados e usados por certas plataformas". Como se percebe, diante dos cenários relatados, o TikTok inovou ao estabelecer um novo padrão de rede social, atraindo, sobretudo, o público infanto-juvenil ao redor do mundo.  O sucesso estrondoso do TikTok provocou outras plataformas digitais que passaram não somente a repetir o mesmo modelo, como também, a implementar outras ferramentas para deixar a forma de entretenimento ainda mais atrativa, resta saber, quais serão os novos modelos de regulação e de responsabilização. __________ 1 The New York Times. U.K. Bans TikTok on Government Devices. Disponível aqui. Acesso em 08 de abril de 2023. 2 REUTERS. TikTok congressional hearing: CEO Shou Zi Chew grilled by US lawmakers. Disponível aqui. Acesso em 09 de abril de 2023. 3 Idem. 4 CONGRESS.GOV. S.686 - Restrict Act. Disponível aqui. Acesso em 09 de abril de 2023. 5 Idem., Restrict Act - Section 11. Penalties 6 Euronews. Quais os países que proibiram o TikTok e porquê? Disponível aqui. Acesso em 08 de abril de 2023. 7 VENTURI, Thaís G. Pascoaloto. Responsabilidade civil das plataformas digitais: em busca de marcos regulatórios. Disponível aqui. Acesso em 11 abril de 2023. 8 ICO - Information Commissioner's Office. Disponível aqui. Acesso em 09 de abril de 2023. 9 Idem. 10 ICO - Children's code: additional resources - The Children's code (or Age appropriate design code to give its formal title) is a data protection code of practice for online services, such as apps, online games, and web and social media sites, likely to be accessed by children. Disponível aqui. Acesso em 09 de abril de 2023.
Já tive a oportunidade de escrever um artigo dedicado ao modelo jurídico do dano-morte e suas implicações e possibilidades nas jurisdições do civil law, especialmente diante da completa frustração da tradicional função compensatória da responsabilidade civil - e do consectário do princípio da reparação integral - em tutelar adequadamente o direito fundamental à vida. Agora, permito-me trazer ao leitor a 2. parte de um texto no qual apresento o mesmo questionamento no viés da filosofia norte-americana da responsabilidade civil, por meio de recente texto de autoria do Professor Gregory Keating,1 denominado "Irreparable Injury and the Limits of the Law of Torts".2 O autor parte da premissa que alguns danos são simplesmente irreparáveis. A morte é o paradigma. Nenhuma quantia ou forma de compensação pode devolver aos mortos as vidas que perderam. Nenhum remédio pode restituí-los à posição que ocupariam se não tivessem morrido. A responsabilidade civil não concede nenhuma indenização por wrongful death e expõe o seu calcanhar de Aquiles. Por um lado, a morte prematura é o dano contra o qual mais desejamos ser protegidos. Por outro lado, é o dano contra o qual a responsabilidade civil é menos capaz de nos proteger. A responsabilidade civil falha prospectivamente porque não precifica e, portanto, não impede o dano da morte. Ele falha retrospectivamente porque indenizações em dinheiro não podem compensar o dano da morte. Na coluna anterior, Keating examina o vínculo do princípio da reparação integral com os danos irreparáveis nas principais teorias desenvolvidas no common law, vale dizer, a filosofia da justiça corretiva e a análise econômica. Não há como reparar a perda mais severa que ilícitos possam nos infligir. Por outro lado, a morte despoja a responsabilidade civil de seus poderes de dissuasão. Por um bom motivo, tanto os tribunais quanto os comentaristas citam o velho ditado de que "é mais barato matar a vítima do que deixá-la mutilada" (Is cheaper to kill your victim than to leave him maimed). Partindo da premissa que os fundamentos welfaristas da análise de custo-benefício obscurecem o significado especial do dano porque o tratam como apenas mais um custo em um cálculo geral de bens e males sociais, a deontologia enxerga o cenário de maneira diferente. Quando levamos a sério as distinções entre as pessoas, observamos que o dano tem um significado moral negativo e que evitá-lo é prioridade especial. A segurança (safety) é um bem primário rawlsiano; uma condição essencial da agência eficaz. O dano físico diminui nosso poder de exercer nossa vontade no mundo. Lesões devastadoras e irreparáveis reduzem permanente e profundamente esse poder e podem até mesmo extingui-lo completamente. Padrões legais que exigem mais do que precauções justificadas pelo custo respondem apropriadamente a riscos significativos de lesões graves e irreversíveis. A partir de agora examinaremos como Gregory C. Keating avalia os padrões de precaução de segurança e viabilidade de custos e explica por que a responsabilidade civil falha em face do dano que mais motivos temos para evitar. No discurso jurídico, a alegação de que a análise de custo-benefício é a única maneira plausível de pensar sobre risco e precaução é articulada como uma crítica a dois outros padrões de precaução, a saber, os padrões de "nível seguro" e de "viabilidade". A. Precaução segura, viável e justificada pelo custo Os dois padrões de maior interesse - os padrões de segurança e viabilidade - implementam um conjunto relativamente bem integrado de conceitos. Os conceitos de "nível seguro", "redução de risco viável" e risco "significativo" merecem cuidadoso exame. 1. O padrão de nível seguro A Lei de Proteção da Qualidade Alimentar de 1996 incorpora o padrão de nível seguro.3 Ela exige que os resíduos de pesticidas em alimentos frescos e processados sejam reduzidos a um nível "seguro", ou seja, agregando uma certeza razoável de que nenhum dano resultará da exposição ao resíduo químico do pesticida, nem mesmo em face daqueles excepcionalmente vulneráveis a danos. A aplicação do padrão de nível seguro, portanto, não requer nenhuma investigação sobre os custos da redução de risco, porém, a determinação do nível em que o risco criado pela exposição à substância regulamentada deixa de ser significativo. Entre os três padrões, este é o que tolera o menor risco. Os regulamentos baseados em segurança exigem que o risco seja reduzido a um ponto em que não haja "risco significativo" de lesões devastadoras. Isso pode exigir ir além do ponto de precaução justificada pelo custo (e além do ponto de precaução viável também). Se uma precaução eficiente for tomada e um risco significativo ainda persistir, o padrão de nível seguro requer uma redução adicional, ou seja, quando um dólar a mais em precaução resultar em menos de um dólar em danos evitados. 2. O Padrão de Viabilidade O padrão de viabilidade é tão importante na regulamentação federal de riscos quanto o padrão de "nível seguro". A Lei do Ar Limpo, por exemplo, estabelece que os padrões para poluentes atmosféricos perigosos devem exigir o grau máximo de redução de emissões levando em consideração o custo atingível de alcançar tal redução de emissão.4 A redução viável do risco não requer a eliminação de todos os riscos significativos, sendo menos rigorosa do que o padrão de segurança, mas mais rigorosa do que a precaução justificada pelo custo. A precaução viável exige a redução dos riscos de uma atividade ao longo do seu desenvolvimento de longo prazo. Ou seja, pode exigir precaução além do ponto em que um dólar a mais gasto na prevenção de danos resulta em mais do que um dólar em danos evitados, até o ponto em que uma maior redução do risco colocaria em risco a atividade. 3. O Padrão de Custo-Benefício A precaução justificada pelo custo exige que os riscos sejam reduzidos a ponto de os custos de outras precauções excederem seus benefícios. Custo e benefício são conceitos abrangentes. Em uma defesa bem conhecida da análise de custo-benefício, o economista Robert Solow explicou que "o custo da coisa boa a ser obtida é precisamente a coisa boa que será abandonada para obtê-la". Então, qualquer coisa é abandonada para obter outra coisa.5 "Benefício" é o outro lado da moeda - qualquer coisa que valha a pena alcançar cuja obtenção requer abrir mão de algo. Uma análise de custo-benefício ideal leva em consideração todos os custos e todos os benefícios e identifica o ponto em que os custos e benefícios são equilibrados para que o benefício líquido seja maximizado. Este é o ponto em que um dólar a mais gasto evitando danos resulta em menos de um dólar em danos evitados. Em geral, a precaução justificada pelo custo é o menos rigoroso dos três padrões de precaução. B. Os 3 Padrões Realmente Identificam Diferentes Níveis de Precaução? Os padrões de segurança e viabilidade têm suas raízes nos EUA na fundação da Agência de Proteção Ambiental em 1970 e da Administração de Saúde e Segurança Ocupacional em 1971. Eles dominaram o cenário regulatório na década de 1980 e receberam importante reafirmação legislativa durante a década de 1990, como a Lei de Proteção da Qualidade dos Alimentos. No início da década de 1980, no entanto, a ala direita política começou a defender a análise de custo-benefício e a precaução justificada pelo custo como sua alternativa preferida à redução de risco segura e viável. Em 1982, o governo Reagan implementou uma ordem executiva exigindo análise de custo-benefício para todos os regulamentos federais "significativos". Fica claro que as normas expressam diferentes julgamentos normativos, pois padrões de segurança, viabilidade e justificativa de custo se aplicam em diferentes domínios institucionais. 1. O Padrão de Segurança: Expectativas do Consumidor Nos Estados Unidos, os dois testes mais comuns de defeitos de projeto de produtos são o teste de utilidade de risco e o teste de expectativa do consumidor. Os estudiosos do direito e da economia geralmente assumem a utilidade do risco como teste para aplicação de análise de custo-benefício para design de produto.6 Em contraste, em algumas aplicações, o teste de expectativa do consumidor funciona como um padrão de "nível seguro". Enquanto o teste de risco-utilidade se concentra no design do produto sob a perspectiva de um engenheiro de produto, o teste de expectativa do consumidor se concentra no desempenho do produto sob a perspectiva do usuário. Green v. Smith & Nephew AHP, Inc. ilustra bem esse tipo de circunstância.7 O autor Green trabalhava como tecnólogo médico em um hospital. Seu trabalho exigia que usasse luvas de proteção látex em pó fabricadas pelo réu. Após um período de uso prolongado, Green experimentou problemas de saúde cada vez mais graves - sintomas de resfriado, erupção cutânea generalizada e falta de ar, sendo diagnosticado com alergia ao látex. Então teve que mudar de emprego e limitar os itens que adquiria, comia e as suas atividades. Por conta da alergia, Green desenvolveu asma irreversível e choque anafilático com risco de vida. Como a alergia ao látex é causada principalmente pelo uso de luvas de látex, ela afeta desproporcionalmente os profissionais de saúde. Como a alergia ao látex era desconhecida até que o uso de luvas de látex se generalizou, se a alegação de Green fosse julgada pelo teste de risco-utilidade, provavelmente teria falhado. O custo de descobrir o defeito das luvas de látex anos antes que o defeito se manifestasse na saúde dos usuários era certamente alto. De fato, pode ter sido impossível descobrir os efeitos perigosos do uso prolongado de luvas de látex de outra forma que não seja pelo uso generalizado de tais luvas por um período prolongado de tempo. Todavia, quando as luvas foram examinadas sob o teste de expectativa do consumidor, prevaleceu a alegação do autor. Este teste mede a defeituosidade do produto perguntando se ele é "perigoso em uma extensão além daquela que seria contemplada pelo consumidor comum". Os usuários das luvas do réu esperavam razoavelmente que não sofreriam lesões pelo uso normal do produto. Analogamente, os profissionais de saúde na posição de Green esperam razoavelmente que o uso de equipamentos de proteção não os coloque em risco significativo de danos físicos incapacitantes. Acreditamos que as roupas que usamos normalmente não nos colocam em risco significativo de danos físicos. A questão de saber se essa expectativa é justificada pelo custo nunca surge. 2. O Padrão de Viabilidade: Resgates Quais custos - incluindo riscos de morte - os socorristas podem razoavelmente assumir para salvar a vida de outras pessoas? A literatura sobre "vidas estatísticas"8 é assombrada pela aparente irracionalidade de muitos resgates. O dinheiro não parece ser um problema quando mineiros ficam presos em uma mina ou quando crianças ficam presas em um prédio em chamas. A maneira racional de orçar nosso "dinheiro de resgate" é gastá-lo de maneira a maximizar o número de vidas salvas com o menor sacrifício de outros objetivos. Vidas são vidas, e o dinheiro extra gasto no resgate de pessoas identificadas pode ser melhor gasto em medidas de segurança que salvariam mais vidas. Isso é simplesmente uma aplicação do argumento padrão de precaução justificada pelo custo ao caso especial de resgates. Quando vidas reais estão em perigo, no entanto, pensamos que seria impróprio, e provavelmente moralmente errado, realizar uma análise de custo-benefício do valor das vidas em jogo e do custo de salvá-las. Nós resgatamos as vítimas se pudermos, e os socorristas geralmente assumem grandes riscos durante os resgates e tentativas de resgate. De um modo geral, nossas práticas de resgate parecem ser regidas por uma norma de viabilidade, não por uma norma de eficiência. Um caso particularmente marcante é a tradição militar de realizar resgates para recuperar os cadáveres de soldados mortos. Há algo moralmente grotesco em tentar descobrir se perder a vida tentando resgatar um cadáver é adequado diante do princípio de Pareto. Resgatar os corpos de companheiros caídos é uma questão de solidariedade e sacrifício, não de melhorar o próprio bem-estar. Trata-se da realização de valores tidos como de suma importância. Nisso reside sua racionalidade. Somos todos vulneráveis a acidentes e morte prematura. Honrar o valor da solidariedade não nega o valor da eficiência; apenas afirma que a solidariedade é mais importante no contexto geral dos resgates. No contexto muito especial dos militares, a solidariedade é ainda mais importante. Os bens intrínsecos à excelência militar só podem ser realizados se a solidariedade for muito valorizada. É eminentemente racional acreditar que alguns bens humanos muito valiosos não podem ser realizados a menos que reconheçamos que "nenhum homem é uma ilha", e quando os sinos dobram por um de nós, dobram por todos nós. Ademais, é um erro não reconhecer que mesmo os resgates militares são regidos por um padrão de viabilidade. É heroico tentar recuperar os corpos de seus camaradas caídos apenas se houver alguma chance de sucesso. Sem essa possibilidade, uma tentativa de resgate pode ser tola ou trágica (ou ambos), mas não é nobre ou heróica. O resgate é regido por uma norma de possibilidade. 3. Justificativa de Custo e Comensurabilidade: Necessidade Privada O outro lado da moeda de que a precaução justificada pelo custo não é o princípio adequado para regular danos graves às pessoas é o critério de justificação do custo como adequado para regular danos a bens que são fungíveis e substituíveis. A doutrina da necessidade privada, articulada no famoso caso Vincent v. Lake Erie, ilustra muito bem esse ponto.9 Em Vincent, um navio foi amarrado a uma doca para evitar ser lançado ao mar durante uma tempestade. A entrada de forma transgressora do navio na propriedade do autor foi considerada privilegiada sob a doutrina da necessidade, mas o privilégio foi considerado condicional. O réu foi autorizado a atracar sem permissão, mas teve que reparar os danos que causou ao cais. Há duas questões em Vincent. A primeira é se o armador deveria ter o privilégio de atracar no cais do demandante, a fim de evitar uma destruição quase certa nas mãos de uma repentina e violenta tempestade de inverno. A segunda é se tal privilégio deve ser condicional. Se o privilégio for condicional, o réu deve reparar qualquer dano que tenha causado à doca do autor para salvar seu navio. O tribunal respondeu afirmativamente a ambas as questões. Vincent é um caso em que a precaução eficiente é o padrão adequado de precaução. O cais e o navio são bens fungíveis com valor de uso ou consumo. A métrica do dinheiro é adequada para medir tanto o dano causado pelo golpe no cais quanto o dano evitado ao manter o navio fora da tempestade. O curso de ação racional em Vincent foi o de minimizar o dano combinado e maximizar o benefício combinado. Além disso, a questão de quem deve arcar com o custo da salvação do navio - o armador ou o dono do cais - pode ser abordada após o dano ter sido causado. O tribunal concluiu que a justiça exigia que o proprietário do navio arcasse com os custos da salvação de seu navio. Essa distribuição justa poderia ser efetuada após o cais ter sido danificado simplesmente se exigindo que o réu pagasse uma indenização em dinheiro Todavia, as coisas são diferentes quando se trata de danos graves a pessoas, porque tais danos não são totalmente reparáveis. A justiça deve ser feita ex ante. Os padrões aplicados nos dois exemplos jurisprudenciais valorizam a prevenção de danos de forma diferente. A aplicação do teste de expectativa do consumidor para luvas de látex é a mais rigorosa. Risco significativo de danos aos usuários normais é inaceitável. As luvas de látex são defeituosas porque precipitam reações alérgicas graves em um número significativo de usuários. Em contraste, o compromisso básico do padrão de viabilidade em casos de resgate é "salvar vidas se for possível". A norma de justificação de custos, implícita em Vincent, não atribui nenhuma prioridade a evitar danos. Ele troca danos por outros bens de uma forma que maximiza o benefício líquido. Em suma, o padrão de segurança insiste no menor nível de risco; o padrão de justificativa de custo aceita o nível mais alto; e o padrão de viabilidade fica no meio. Nenhum dos padrões insiste em segurança absoluta. Todos os três padrões especificam compensações permissíveis. Eles variam significativamente, no entanto, nas compensações que licenciam. 4. Reparando a responsabilidade civil Levar a sério a distinção entre pessoas e a prioridade de evitar danos, coloca-nos em posição de entender a lógica em funcionamento nas normas de segurança e viabilidade. Saúde e integridade física são bens primários. A segurança protege a integridade física da pessoa contra danos. Os valores, por sua vez, são plurais e incomensuráveis. O objetivo de proteger as condições essenciais de agência para cada pessoa é permitir que as pessoas moldem suas próprias vidas de acordo com suas aspirações. Assim como a precaução eficiente é o melhor padrão do ponto de vista da teoria econômica, a "segurança" é o melhor padrão do ponto de vista de uma moralidade política deontológica que busca estabelecer os termos da justa interação para pessoas iguais e independentes. A segurança, como a saúde, é uma pré-condição para uma agência eficaz, e o melhor mundo é um mundo social seguro para todos. Os padrões de "segurança" e "viabilidade" são, assim, alternativas justificadas para uma precaução eficiente. A precaução justificada pelo custo fracassa tanto ao tratar danos e benefícios como simetricamente importantes quanto ao modelar a escolha social na escolha individual. Quando o dano físico está em questão, tratar os custos e benefícios como simetricamente importantes não registra o fato de que o dano físico prejudica os poderes básicos de agência. A maioria dos benefícios, por outro lado, não aumenta comparativamente esses poderes. E, quando algumas pessoas têm suas vidas devastadas por danos decorrentes de imposições de risco - enquanto outras lucram com a imposição desses mesmos riscos - é um erro modelar a escolha social na escolha individual. Devemos levar a sério a distinção entre pessoas e adotar princípios que sejam justificáveis tanto do ponto de vista das potenciais vítimas quanto dos potenciais beneficiários das imposições de risco em questão. A regulação direta do risco, por sua vez, repara um defeito da responsabilidade civil: Quanto mais sério o dano, menos o delito pode fazer para desfazer seus efeitos. Nenhuma quantia em dinheiro pode restaurar um pai - destruído por testemunhar o assassinato negligente de seu filho - à vida que eles tiveram. Por mais criativa que seja um sistema de responsabilidade civil, ele atinge os limites de seus poderes de reparação quando a conduta ilícita resulta em morte, pois nem mesmo tenta compensar as vítimas de homicídio culposo pelo valor das vidas que perderam. A compensação é simplesmente impossível. E porque a responsabilidade civil não se propõe a compensar, ela não pode efetuar a dissuasão que a economia espera dela, nem realizar a reparação que os teóricos da justiça corretiva pensam ser sua razão de ser. A responsabilidade civil, portanto, falha em face do dano que temos mais motivos para evitar. A regulação direta do risco viabiliza uma responsabilidade que a tort law assume, mas não pode cumprir totalmente. Para responder adequadamente ao fato de que a segurança é um tipo de bem primário cuja provisão tem prioridade sobre os bens comuns, a regulamentação direta dos riscos de lesões graves e irreparáveis deve exigir mais do que precaução justificada pelo custo. Consequentemente, padrões de precaução segura e viável não são exercícios sentimentais de irracionalidade econômica, porém sérias tentativas de estabelecer uma das condições necessárias para que pessoas iguais e independentes exerçam seu arbítrio de forma eficaz e persigam os fins, aspirações e valores que deferem sentido às suas vidas. __________ 1 Keating é um aclamado professor da "USC Gould School of Law faculty" e autor de obras de responsabilidade civil. Algumas de suas recentes publicações: "Products Liability As Enterprise Liability"; Comment on Gardner: Duty and Right in Private Law; "Is Cost-Benefit Analysis the Only Game in Town? ; Must the Hand Formula Not Be Named?; "Strict Liability Wrongs" (Philosophical Foundations of Tort Law, 2014); "When is Emotional Distress Harm?" (Tort Law: Challenging Orthodoxy, 2013); e "The Priority of Respect Over Repair" (Legal Theory 2012). 2 Keating, Gregory C., Irreparable Injury and the Limits of the Law of Torts (December 8, 2022). Forthcoming in Oxford Studies in Private Law Theory, vol. 2 (Oxford University Press), USC CLASS Research Paper No. CLASS22-42, Available at SSRN. 3 Food Quality Protection Act of 1996. 4 42 USC § 7412(d)(2). 1990 Amendments to the Clean Air Act 5 Robert Solow, 'Defending Cost-Benefit Analysis' (1981). A ideia básica de custo é tida como "custo de oportunidade". 6 Alan Schwartz, 'Products Liability Reform: A Theoretical Synthesis' (1988) 7 Green v Smith & Nephew AHP Inc 629 NW2d 727 (Wis 2001). 8 O termo "vidas estatísticas" foi cunhado por TC Schelling, 'The Life You Save May Be Your Own' em Samuel B Chase, Jr (ed) Problems in Public Expenditure Analysis (1986). Schelling distinguia vidas estatísticas de vidas "identificadas". As vidas identificadas são pessoas reais que viverão se certos passos forem dados e morrerão se não forem. Vidas estatísticas são vidas abstratas; são as vidas que serão salvas no futuro se alguma precaução for tomada ou algum programa de segurança for implementado. No momento em que uma precaução é tomada, as vidas estatísticas não são as vidas de pessoas identificáveis e podem permanecer não identificáveis mesmo depois que uma precaução foi implementada e salvou vidas. 9 Vincent v Lake Erie Transp Co 124 NW 221 (Minn 1910).
O comercial A cena inicial é de uma bela casa ao fundo. É manhã e os pássaros cantam. Um jornaleiro passa de bicicleta em frente à casa e arremessa o jornal em direção à varanda de entrada da casa. Na base da tela, ao som de um tambor militar, surge a legenda "SEGUNDA-FEIRA 7h58". Acordes emocionantes com um ar marcial marcam o surgimento de um adolescente bem penteado, vestido com uma camisa branca estampada com o logotipo da Pepsi: uma bola vermelha, branca e azul. O adolescente ajeita o cabelo de modo confiante e a bateria militar soa novamente, enquanto rola pela tela a legenda "CAMISETA - 75 PONTOS PEPSI". O adolescente sai de seu quarto e caminha pelo corredor vestindo uma jaqueta de couro. A bateria soa novamente e aparece a legenda "JAQUETA DE COURO - 1450 PONTOS PEPSI". O adolescente abre a porta de casa e coloca óculos escuros para se proteger do brilho do sol matinal. A bateria então acompanha a legenda "ÓCULOS - 175 PONTOS PEPSI". A voz de um narrador então entoa: "Apresentando o novo catálogo Produtos Pepsi". A câmera foca na capa de uma espécie de livro com o símbolo da Pepsi na capa escrito "Produtos Pepsi" (Pepsi Stuff). A cena então muda para três meninos sentados em frente ao prédio de uma escola. O menino no meio está concentrado em seu Catálogo de Produtos Pepsi, enquanto os meninos de cada lado estão bebendo Pepsi. Os três garotos olham com admiração para um objeto que voa no alto, enquanto a marcha militar aumenta. O Caça Harrier ainda não está visível, mas o observador sente a presença de um avião poderoso quando os ventos extremos gerados por seu voo invadem uma sala de aula da escola e criam um turbilhão de papel. Estudantes e professor ficam atônitos, olhando pelas janelas para fora da sala. Finalmente, o Caça Harrier aparece e começa a pousar ao lado do prédio da escola, próximo a um bicicletário. Alguns alunos correm para se proteger, e a velocidade do vento deixa um homem, provavelmente um infeliz membro do corpo docente, apenas de cueca. A narração anuncia: "Agora, quanto mais Pepsi você beber, mais coisas boas você vai ganhar". O adolescente abre a cabine do caça e está, sem capacete, segurando uma Pepsi. Ele então exclama: "Com certeza é melhor que o ônibus", e dá risada. A bateria militar soa uma última vez, quando aparecem as seguintes palavras: "CAÇA HARRIER - 7.000.000 PONTOS PEPSI." Alguns segundos depois, a seguinte mensagem aparece em uma fonte mais estilizada: "BEBA PEPSI - GANHE PRODUTOS". Com essa mensagem, a música e o comercial terminam com um floreio triunfante. Essa propaganda foi ao ar nos EUA em 1996. Com ela, a Pepsico, Inc., produtora e distribuidora dos refrigerantes Pepsi e Diet Pepsi, incentivou os consumidores a coletarem "Pontos Pepsi" de embalagens especialmente marcadas de Pepsi ou Diet Pepsi e a trocar esses pontos por mercadorias com o logotipo da Pepsi. Essa propaganda está disponível no Youtube.  A batalha pelo Caça Harrier Leonard, um jovem americano de espírito aventureiro, assistiu ao comercial e a ideia de obter um Caça Harrier o atraiu enormemente. Ele consultou o catálogo com produtos Pepsi. O Catálogo apresentava jovens vestidos com roupas, ou desfrutando de acessórios, como óculos de sol, mas não havia qualquer menção ao Caça Harrier. Isso não o impediu de ir em busca do seu sonho. As páginas desdobráveis traseiras do catálogo continham instruções para trocar pontos Pepsi por mercadorias. Essas instruções indicavam que a mercadoria podia ser encomendada apenas com o Formulário de Pedido original. O Catálogo explicava que, caso um consumidor não tivesse pontos Pepsi suficientes para obter o item desejado, pontos Pepsi adicionais podiam ser adquiridos por US$ 0,10 cada; no entanto, pelo menos 15 pontos Pepsi Points originais devem acompanhar cada pedido. Embora Leonard inicialmente pretendesse coletar 7.000.000 pontos Pepsi consumindo produtos Pepsi, logo ficou claro que ele "não seria capaz de comprar (muito menos beber) Pepsi suficiente para coletar os pontos Pepsi necessários com rapidez suficiente". Reavaliando sua estratégia, ele percebeu que comprar pontos Pepsi Points seria uma opção mais promissora. Por meio de conhecidos, ele finalmente levantou cerca de US$ 700.000. Por volta de 27 de março de 1996, Leonard enviou um formulário de pedido com 15 Pepsi Points originais e um cheque de US$ 700.008,50. Por volta de 7 de maio do mesmo ano, a empresa rejeitou o formulário do autor e devolveu o cheque, explicando que: "O item que você solicitou não faz parte da coleção Produtos Pepsi. Não está incluído no catálogo ou no formulário de pedido, e apenas mercadorias do catálogo podem ser resgatadas neste programa. O Caça Harrier no comercial da Pepsi é fantasioso e é simplesmente incluído para criar um anúncio bem-humorado e divertido. Pedimos desculpas por qualquer mal-entendido ou confusão que você possa ter experimentado e anexamos alguns cupons de produtos gratuitos para seu uso." O advogado de Leonard respondeu por volta de uma semana depois: "Sua carta de 7 de maio de 1996 é totalmente inaceitável. Analisamos a fita de vídeo do comercial da Pepsi Stuff... e ele claramente oferece o novo Caça Harrier por 7.000.000 Pontos Pepsi. Nosso cliente seguiu suas regras explicitamente.... Esta é uma exigência formal de que você honre seu compromisso e tome providências imediatas para transferir o novo Caça Harrier para nosso cliente. Se não recebermos as instruções de transferência dentro de dez (10) dias úteis a partir da data desta carta, você não nos deixará escolha a não ser entrar com uma ação judicial contra a Pepsi...." Com a persistência de ambas as partes nessas posições originais, o caso foi parar no judiciário, com Leonard alegando quebra de contrato. O julgamento A juíza Kimba Wood julgou improcedentes os pedidos de Leonard. Entre outros, os fundamentos apresentados foram: o anúncio do jato não configurava oferta nos termos do Restatement (Second) of Contracts; nenhuma pessoa razoável poderia acreditar que a empresa ré pretendia seriamente vender um jato no valor de aproximadamente US$ 37,4 milhões por US$ 700.000, ou seja, o comercial nessa parte era mero exagero (puffery); o valor do alegado contrato fazia com que ele se enquadrasse nas disposições da Lei das Fraudes, mas não foi cumprido o requisito legal dessa lei de acordo escrito entre as partes, pelo que não foi celebrado contrato. A juíza chegou à conclusão de que o comercial foi "evidentemente feito em tom de brincadeira" e que "a ideia de viajar para a escola em um Caça Harrier é uma fantasia adolescente exagerada". Ao justificar essa sua conclusão, ela fez várias observações sobre a natureza e o conteúdo do comercial: "o jovem inexperiente apresentado no comercial é um piloto altamente improvável, alguém em quem mal se pode confiar as chaves do carro de seus pais, muito menos o premiado avião do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos"; "o comentário do adolescente de que pilotar um Caça Harrier para a escola 'certamente é melhor do que o ônibus' evidencia uma atitude improvável e despreocupada em relação à relativa dificuldade e perigo de pilotar um avião de combate em uma área residencial"; e "nenhuma escola forneceria espaço de pouso para o caça a jato de um aluno ou toleraria a interrupção que o uso do jato causaria." Enfim, a juíza também afirmou que: "À luz da função bem documentada do Caça Harrier em atacar e destruir alvos de superfície e aéreos, reconhecimento armado e interdição aérea e guerra antiaérea ofensiva e defensiva, a descrição de tal jato como uma maneira de chegar à escola pela manhã claramente não é séria, mesmo que, como afirma o autor, o caça possa ser adquirido 'de uma forma que elimine [seu] potencial para uso militar'." O autor recorreu da decisão, mas o Tribunal de Apelações dos Estados Unidos do Segundo Circuito emitiu apenas uma breve opinião concluindo: "Reiteramos substancialmente as razões declaradas na sentença da juíza Wood." Conclusão Este caso é o Leonard v. Pepsico, Inc., 88 F. Supp. 2d 116, (S.D.N.Y. 1999), aff'd 210 F.3d 88 (2d Cir. 2000), mais conhecido como o Caso dos Pontos Pepsi (Pepsi Points case). Esse caso é hoje em dia amplamente debatido nas universidades americanas quando se estuda o tema da formação contratual, mais especificamente oferta e aceitação. Esse caso virou inclusive um interessante documentário na Netflix sob o título "Pepsi, cadê meu avião?". Vale muito a pena assistir! Essa é uma primeira de uma pequena série de colunas sobre oferta ao público nos sistemas do common law e do civil law. Na próxima coluna, vamos analisar a oferta ao público no sistema jurídico alemão.
Introdução Na coluna anterior sobre a influência inglesa na emancipação brasileira, nosso foco principal foi a análise da biografia intelectual de Joaquim Nabuco, isto é, seu livro clássico 'Minha Formação'. Ao introduzirmos a coluna passada, alertamos que existia um exercício de reconstrução no texto e que a obra foi elaborada em um período de relativo ostracismo, após o advento da república e antes da retomada da sua relevante atuação como diplomata brasileiro. Como todo escrito autobiográfico sempre passa por um filtro elaborado pelo seu próprio autor, a presente coluna complementa a anterior ao completar a análise da influência inglesa no processo de emancipação brasileiro com base na vida do próprio Joaquim Nabuco tal como descrita na biografia elaborada pela historiadora Angela Alonso. Se o próprio abolicionista nos contou como certas ideias foram decisivas na sua formação, a descrição de sua vida permite entender como ele as aplicou ao longo de sua atuação profissional e política. A presente coluna pretende resgatar um pouco dessa memória histórica, a partir do impacto das ideias inglesas na vida de Joaquim Nabuco. A vida de Joaquim Nabuco Ao se exemplificar normas formalmente constitucionais costuma-se indicar na Constituição Brasileira a referência ao Colégio Pedro II no Artigo 242, § 2º, em que se define que a referida instituição está localizada no Rio de Janeiro e na órbita federal. Talvez esse exemplo possa ser problematizado pela relevância institucional que o Colégio Pedro II possui como uma organização de educação relevante do ponto de vista histórico e que serve como um paradigma pedagógico de sucesso até o presente. Excelentes colegas professores estudaram no Colégio Pedro II - tal como Thiago Bottino, Anderson Schreiber e Wallace Corbo da equipe de Professores da FGV Direito Rio - a exemplo de uma série de figuras históricas. Sobre a vida de Joaquim Nabuco, por exemplo, Angela Alonso nos informa que ele estudou nesse colégio da elite brasileira: "entre os dez e os quinze anos, Quinquim lá esteve, trajando o uniforme - casaca verde e cartola alta - formando-se cortesão".1 O currículo incluía matemática, ciências, filosofia e muito de línguas, incluindo português, latim, grego, francês, alemão, italiano, e last but not least o inglês, tendo Joaquim Nabuco obtido o diploma de letras do Colégio Pedro II em 1865.2 De lá foi para a Faculdade de Direito de São Paulo, que preparava a elite imperial para a carreira política. Conforme o costume da época imperial, circulou também pela Faculdade de Direito de Recife para ali concluir os seus estudos.3 Ângela Alonso considera que Joaquim Nabuco "saiu da faculdade um perfeito dândi.4 Explica: "os dândis dedicavam-se com afinco às roupas e acessórios, apreciavam joias e mesmo maquiagem - caso de Castro Alves. Esse narcisismo, que os escravizava ao espelho e os deixava exasperados ao menor sinal de desalinho ou velhice, era parte de uma nova sensibilidade".5 Esse estilo de vida caracterizado pelo uso de acessórios especiais - luvas, gravatas e echarpes - marcava a singularidade, cara ao mundo tradicional e essa excentricidade era o modo de instaurar uma nova aristocracia, a do requinte.6 O dandismo também pode ser considerado influência inglesa, na medida em que o escritor inglês Oscar Wilde era apontado como ícone desse estilo. Com o epicentro da vida social sendo os salões,7 Joaquim Nabuco poliu-se como aristocrata e se converteu em cosmopolita nos salões da sociedade aristocrática inglesa.8 Essa personalidade despreocupada e desocupada de bon vivant de Quincas se encerrou com a morte do seu pai, o Senador Nabuco de Araújo, e a necessidade de Joaquim Nabuco de se apresentar como seu herdeiro político e candidato a uma vaga no parlamento do império.9 Eleito deputado por Pernambuco em 1878, assenhorou-se de sua herança política, temperando as ideias do pai com seu talento para falar em público e seu desejo de encantar sua audiência.10 Até os inimigos reconheciam sua inteligência, cultura e persuasão.11 Segundo Angela Alonso, "os contemporâneos identificaram de diversas maneiras a raiz do carisma que transformou o dândi Quincas num político respeitável em 1879".12 Nabuco encontrou uma agenda política aberta de modernização econômica e de reforma política, em que defendia o liberalismo econômico, o equilíbrio fiscal, a autonomia política do ensino universitário e a separação política entre o Estado e a Igreja.13 Como herdeiro político do seu pai, reiterou os discursos emancipacionistas e reapresentou um projeto de Nabuco de Araújo para alterar o regime de escravidão, tornando-o em uma espécie de colonato ou servidão de gleba como uma rápida forma de transição para que pudessem então atingir o status de cidadão plenos: com "um salário equitativo nas fazendas, quando formarem uma família tâo legitima como a do branco, quando vierem os filhos educados e iguais perante a lei, quando tiverem uma pequena propriedade".14 Ao denunciar uma empresa de mineração inglesa pela exploração de trabalho escravo em contrariedade a um compromisso assumido de libertar tais trabalhadores após catorze anos de atividades, Joaquim Nabuco recebeu notoriedade na Imprensa internacional, o que lhe rendeu uma mensagem de agradecimento da British And Foreign Anti Slavery Society em 14 de fevereiro de 1880.15 A relação entre Joaquim Nabuco e os abolicionistas ingleses alterou a sua trajetória política, tendo ele se agarrado à questão da abolição da escravatura como sua principal bandeira política.16 Inspirado pelo líder do abolicionismo inglês, William Wilberforce, Joaquim Nabuco pretendia formar uma coalizão abolicionista na Câmara, engrossando-a gradualmente até obter a maioria.17 Lançando-se no vácuo político em uma busca arrojada de reconhecimento, apresentou um projeto de abolição gradual da escravidão com previsão de pagamento de indenização aos proprietários de escravos, que previa uma data-limite para a completa abolição da escravidão em 01º de janeiro de 1890.18 Tal projeto proibia o tráfico ilegal e fixava os escravos à terra, suprimindo o mercado de escravos. Ao proibir a posse de escravos pelo Estado e extinguir o 'escravo de ganho', reduzia a escravidão urbana. Com a criação social para escravos com mais de sessenta anos ou portadores de doenças, constrangia a escravidão doméstica. Proibia a separação entre mãe e filho de até oito anos e criava a educação primária para os escravos. Ampliava o controle estatal sobre os proprietários de escravos, instituindo juntas de emancipação provinciais para fiscalizar o registro de escravos, a aplicação da lei do ventre livre e das cartas de alforria. Criava uma estatística pública anual da escravaria. Liberava a alforria compulsória por terceiros, desde que pago o preço do escravo.19 Ao apresentar o projeto de modo independente e pedir urgência contrariando a liderança partidária, Joaquim Nabuco não somente não conseguiu aprovar o seu projeto de lei, como também inviabilizou sua própria chance de reeleição para a Câmara dos Deputados.20  Por outro lado, ao longo da década de 1880, os reformistas criaram centenas de associações pela abolição da escravatura, secularização do Estado, expansão do ensino e difusão da ciência. Aliás, o exemplo da política inglesa advindo de Gladstone era justamente o de "falar diretamente aos cidadãos, persuadi-los e calçado neles, forçar os lordes a ceder seus anéis, com a promessa de lhes garantir os dedos".21 Tal estratégia de mobilização social também tinha sido usada com sucesso pela British and Foreign Anti-Slavery Society nas colônias inglesas e mesmo a abolição na própria Inglaterra contou com a apoio de meetings de persuasão com a sociedade civil.22 Joaquim Nabuco quis repetir essa fórmula no Brasil também.23 Nesse contexto, foi criada a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão (SBCE) em 1880 num jantar na casa dos Nabuco, tendo o propósito de estabelecer uma rede política internacional que pressionasse o governo brasileiro.24 O próprio Joaquim Nabuco redigiu o Manifesto da SBCE, cujo argumento central era então novo: "a escravidão era o fulcro da herança colonial" e a "abolição era indispensável para completar a modernização e a autonomia política".25 Assim foi que Joaquim Nabuco fincou um pé no sistema político e outro na sociedade civil, fazendo-se de pivô entre a velha política aristocrática dos salões do Parlamento e a nova política democrática das ruas, obtendo projeção nacional, o respeito da elite política e sucesso entre as associações.26 Após não ser reeleito como deputado, Joaquim Nabuco obteve uma posição como correspondente internacional do Jornal do Comércio em Londres em 1881, vindo a ter uma experiência profissional relevante na Inglaterra. Seus anos em Londres foram politicamente bem animados, eis que Gladstone aprofundou suas reformas modernizadoras e democratização do sistema político inglês entre 1880 e 1885 e as ações do parlamento repercutiam em excelentes artigos de alto nível na imprensa inglesa em que, por exemplo, o The Economist era dirigido por Bagehot.27 Ao todo, Joaquim Nabuco escreveu 58 artigos como correspondente internacional, desenvolvendo uma disciplina intelectual, etos profissional e um estilo de escrita mais direto e incisivo, que seria evidente na elaboração de O Abolicionismo.28 O grande livro de Joaquim Nabuco foi elaborado a partir de uma pesquisa realizada na sala de leitura do British Museum, em que um acervo de 600 mil livros disponíveis para consulta viabilizou o seu plano de estudar economia, política e literatura com profundidade.29 Angela Alonso brinca com o fato de que a sala de leitura do British Museum se tornou célebre pelo fato de ser o local em que Karl Marx fez sua pesquisa para seu magnum opus 'Das Kapital': 'Nabuco não terá notado um senhor desalinhado, afogado em livros. Era Karl Marx tentando acabar O Capital'.30 O fato é que Joaquim Nabuco tinha pensado em se tornar um literato, mas definiu limites mais realistas para sua empreitada e produziu um livro que era "uma condensação de todas as suas experiências intelectuais até esse tempo".31 Ele pedia ao Imperador que fizesse a reforma, amparado numa espécie de pacto nacional, caberia ao próprio Joaquim Nabuco retornar ao Brasil em 1884 para liderar o processo de abolição da escravatura. Enfim, os detalhes dessa empreitada terão que esperar por uma coluna futura, mas é inegável a influência inglesa na emancipação brasileira, tal como evidenciado pela vida e pela biografia de Joaquim Nabuco. Considerações finais A atuação de Joaquim Nabuco foi inspirada pela sua experiência na Inglaterra e nos Estados Unidos. Além das experiências compartilhadas pelo próprio político, escritor, abolicionista e diplomata brasileiro em sua autobiografia intelectual, existem inúmeras passagens na vida e na biografia de Joaquim Nabuco que foram decisivos para suas iniciativas progressistas em defesa do liberalismo econômico, o equilíbrio fiscal, a autonomia política do ensino universitário e a separação política entre o Estado e a Igreja. Não se tratou somente de uma abstração, mas de ideias que foram transformadas em programas de ação e em projetos, tal como a campanha abolicionista. O impacto das ideias inglesas na vida de Joaquim Nabuco é exemplo pródigo da influência inglesa na emancipação brasileira. __________ 1 ALONSO, Angela. Joaquim Nabuco. Editora Companhia das Letras, 2007, p. 24. 2 Idem, p. 24-25. 3 Idem, p. 25-27. 4 Idem, p. 28. 5 Idem, p. 29. 6 Idem, p. 30. 7 Idem, p. 32. 8 Idem, p. 49. 9 Idem, p. 74. 10 Idem, p. 90. 11 Idem. 12 Idem. 13 Idem, p. 91-92 14 Idem, p. 98. 15 Idem, p. 98-99. 16 Idem, p. 103. 17 Idem, p. 105. 18 Idem, p. 106. 19 Idem. 20 Idem, p. 110. 21 Idem, p. 115. 22 Idem. 23 Idem. 24 Idem, p. 116. 25 Idem, p. 117. 26 Idem, p. 120-121. 27 Idem, p. 153. 28 Idem, 146. 29 Idem, p. 159-160. 30 Idem, p. 160. 31 Idem, p. 161.
A (ir)responsabilidade das empresas de tecnologia nos EUA segundo a Section 230 do U.S Code Em coluna anterior, suscitamos a discussão em torno da possibilidade de imputação de responsabilidade civil às empresas de tecnologia pelo conteúdo e pela origem das postagens dos usuários das redes sociais, a partir da investigação a respeito da natureza jurídica dos serviços por elas prestados.1 As empresas de tecnologia nos EUA, em um primeiro momento, caracterizam-se como Platforms - instituições neutras que tão somente permitem a comunicação e a distribuição de informações entre seus usuários, não tendo qualquer ingerência sobre o seu conteúdo ou procedência. Tal entendimento foi consolidado pela Section 230, incluída no Communications Decency Act (CDA) do U.S Code, por via da qual as companhias foram isentadas de responsabilidade no tocante ao conteúdo publicado por usuários: 47 U.S.C. § 230, (c)(1): "No provider or user of an interactive computer service shall be treated as the publisher or speaker of any information provided by another information content provider".2 A referida inovação legislativa - que definiu as empresas provedoras de "serviços interativos de computador" como neutral platforms -, entrou em vigor no ano de 1996, em uma época na qual o acesso à internet era viabilizado pela contratação (assinaturas) de empresas. A rede mundial de computadores acabava de ser inventada. Nessa conjuntura ainda rudimentar da internet, a regulação protetiva das plataformas online teve sua razão de ser, na medida em que ainda não se tinha ideia a respeito da projeção que a comunicação online viria a tomar. Sequer existiam, então, as famosas redes sociais (Facebook e o Twitter, dentre outras). Nas décadas que se seguiram, a tecnologia mudou drasticamente as experiências on-line e a própria forma de interação entre as pessoas. Apesar dessa nova realidade, o Congresso norte-americano não foi capaz de enfrentar e regular os problemas emergentes desse admirável mundo novo. É justamente nesse cenário que a Suprema Corte norte-americana está sendo instada a se manifestar, quiçá para rever o entendimento até então consolidado pela literalidade da Section 230, acerca da responsabilidade dos provedores. A partir de duas ações apresentadas por familiares de vítimas de ataques terroristas, nas quais sustentam que as empresas de tecnologia (Google e Twitter) são responsáveis por alimentar a violência com seus algoritmos, caberá à Suprema Corte interpretar de que forma a Section 230 deve ser aplicada a partir das práticas das mídias sociais do século XXI. O caso Gonzalez vs. Google Nohemi Gonzalez, uma cidadã americana de 23 anos que estudava em Paris, em 2015, foi morta em ataques coordenados pelo Estado Islâmico na capital francesa e arredores. No dia seguinte, a organização terrorista estrangeira ISIS reivindicou a responsabilidade pelo ataque ao emitir uma declaração por escrito e divulgar um vídeo no YouTube.3 O pai de Gonzalez ajuizou uma ação contra as empresas Google, Twitter e Facebook, alegando, dentre outros argumentos, que o Google ajudou e incitou o terrorismo internacional ao permitir que o ISIS usasse sua plataforma - especificamente o YouTube - "para recrutar membros, planejar ataques terroristas, emitir ameaças terroristas, incutir medo e intimidar as populações civis". Na demanda, alegou-se que, como o Google usa algoritmos de computador que sugerem conteúdo aos usuários com base em seu histórico de visualização, ele teria auxiliado o ISIS na divulgação de sua mensagem. Segundo pretende a ação, todas as três plataformas também seriam responsáveis ??por ajudar e ou incitar o terrorismo internacional ao não tomar medidas significativas ou agressivas para impedir que terroristas usassem seus serviços, mesmo que não tenham desempenhado um papel ativo no ato específico de terrorismo internacional em questão. Segundo se sustenta na ação, ainda, "os réus teriam recomendado que os usuários assistissem a vídeos inflamatórios criados pelo Estado Islâmico, vídeos que desempenharam um papel fundamental no recrutamento de combatentes para se juntar ao EI em sua subjugação de uma grande área do Oriente Médio e cometer atos terroristas em seus países de origem".4 A pretensão condenatória foi rejeitada pelas instâncias inferiores da justiça norte-americana. O Tribunal Distrital concedeu a moção do Google para rejeitar a ação com base na Seção 230. Seguindo o mesmo entendimento, o Tribunal de Apelações do Nono Circuito improveu o recurso, concluindo que a Seção 230 protegia o YouTube de responsabilidade por vídeos produzidos por terceiros e que o compartilhamento de conteúdos era simplesmente o curso normal dos negócios e não qualquer tipo de apoio a um grupo ou ideologia específica.5 O caso Gonzalez v Google conseguiu chegar à apreciação da Suprema Corte dos EUA, tendo sua primeira audiência em 21 de fevereiro de 2023, reiterando a família a necessidade de revisão da seção 230 da Communications Decency - que isenta de responsabilização os serviços digitais pelos conteúdos postados pelos usuários. De acordo com o sustentado pelo writ recebido pela Suprema Corte, o Youtube não pode ser protegido pela seção 230 pois é responsável pela recomendação de conteúdos de forma algorítmica, colocando em discussão o documento legislativo que moldou a construção da Internet como conhecemos hoje.6 A juíza da Suprema Corte, Elena Kagan, já antecipou que referido estatuto foi formulado num contexto bastante diferente do atual, sem a presença dos algoritmos: "Todo mundo está tentando o seu melhor para descobrir como esse estatuto pré-algoritmo se aplica no mundo pós-algoritmo". Mesmo assim, alguns integrantes do Tribunal Supremo levantaram a preocupação de um possível efeito multiplicador de demandas indenizatórias repetitivas, caso a decisão seja favorável aos González. A mesma preocupação também foi levantada pelos representantes do Google, para quem responsabilizar as plataformas ameaçaria severamente  a Internet atual. No entanto, de acordo com a colunista do Times, Julia Angwin, "fazer uma distinção entre discurso e conduta parece um passo razoável para forçar as grandes empresas de tecnologia a fazer algo quando os algoritmos podem violar ilegalmente direitos civis, segurança de produtos, antiterrorismo e outras leis importantes. Caso contrário, sem responsabilidade, o preço de não fazer nada sempre superará o custo de fazer algo."7  O caso Twitter vs. Taamneh Em outra ação recentemente remetida à Suprema Corte dos EUA (caso Twitter v. Taamneh), familiares do jordaniano Nawras Alassaf, vítima de um ataque terrorista do ISIS em Istambul no ano de 2017, imputam a responsabilidade das empresas de mídia social pelo aumento do extremismo e pelos danos deles derivados. No processo, a família da vítima sustenta que as plataformas de internet devem ser responsabilizadas por "prestarem assistência e serem cúmplices" com o terrorismo internacional, e por falharem em remover vídeos ligados ao Estado Islâmico. Alega-se que, ao permitir a distribuição de material do ISIS sem supervisão editorial, empresas como Twitter, Google e Facebook (atual Meta Platforms) ajudaram e estimularam a atividade do ISIS. Curiosamente, a discussão a respeito da aplicação ou da interpretação da Seção 230 não foi inicialmente tratado nos recursos encaminhados por Taamneh perante as instâncias jurisdicionais iniciais. Embora tenha sido levantado pelas empresas demandadas, o Tribunal Distrital não chegou a uma conclusão a respeito da aplicabilidade da Seção 230. O Tribunal de Apelações, por sua vez, ao reverter a rejeição do caso pelo Tribunal Distrital, concluiu que as empresas de tecnologia (Twitter, Google e Facebook) poderiam ser processadas por terem deixado de identificar e remover o vídeo do ISIS, desempenhando, assim, um papel de assistência ao ataque terrorista.8 Posicionamento da Suprema Corte dos EUA Na análise (que se aproxima) dos referidos casos, espera-se que a Suprema Corte norte-americana finalmente defina, a partir da interpretação da Seção 230, a responsabilidade das plataformas digitais (tais como o YouTube, o Facebook e o Twitter) pelo direcionamento que seus algoritmos induzem a seus usuários a partir de certas informações consideradas sensíveis. Em fevereiro do corrente ano, o Tribunal ouviu as alegações orais em casos envolvendo práticas de moderação de conteúdo de plataformas de mídia social. A Suprema Corte também sinalizou que poderia abordar posteriormente as questões da aplicação da Primeira Emenda envolvidas em decisões conflitantes do Tribunal de Apelações, em relação às leis de moderação de conteúdo aprovadas pelos Estados do Texas e da Flórida. É importante destacar que apenas aproximadamente dois por cento (2%) dos recursos apresentados à Suprema Corte norte-americana (writs of certiorari) são admitidos, e  "o fato de os casos de fevereiro terem superado esse obstáculo sugere que pelo menos alguns membros da Corte podem ter algo a dizer sobre uma questão que se tornou um elemento fixo nas guerras culturais (e o gatilho para as leis do Texas e da Flórida)."9 A Suprema Corte já havia previamente se negado a se pronunciar em várias outras ações judiciais que contestavam a Seção 230. Aliás, ao longo dos anos, importantes precedentes firmaram o entendimento da Suprema Corte no sentido de priorizar a liberdade de expressão, mesmo diante de casos com discursos extremistas.10 Nesse sentido, a decisão da Suprema Corte de manter suspensos outros casos similares de competência estadual, enquanto aprecia os casos que admitiu analisar a respeito do tema, parece sugerir uma estratégia judicial. A imunidade que a Seção 230 vem concedendo às empresas de tecnologia já ultrapassou todos os limites do âmbito da liberdade de expressão. As escolhas econômicas por parte dos denominados GAFAM (Google (Alphabet), Apple, Facebook (Meta), Amazon e Microsoft) que se consubstanciam no já conhecido "soft power", passaram a dominar praticamente toda a infraestrutura de comunicação, constituindo fonte de informação primária para bilhões de usuários que passam a desempenhar um papel de inegável interesse público. Movimentos de regulação das plataformas digitais  - "Internet for Trust" (A global dialogue to guide regulation worldwide) e a expectativa do julgamento do STF sobre o artigo 19 do Marco Civil da Internet no Brasil Já tivemos a oportunidade de também abordar em coluna anterior o Digital Services Act que foi aprovado pelo Parlamento Europeu e entrou em vigor em 2022 - uma proposta regulatória da Comissão Europeia de criação de um modelo único de serviços digitais dentro dos limites da União Europeia, com vistas à proteção dos usuários das plataformas digitais.11 A ideia foi muito semelhante à da Online Safety Bill, desenvolvida pioneiramente pelo sistema inglês, na medida em que o marco regulatório propõe uma série de obrigações a serem cumpridas pelas plataformas digitais, no contexto do qual "a transparência seria o elemento mais importante para atingir uma moderação de conteúdo eficiente. Seguindo as referidas diretrizes europeias, recentemente foi realizada na sede da Unesco em Paris a conferência "Internet for Trust" (i4T - A global dialogue to guide regulation worldwide - "Internet Confiável: rumo à regulamentação das plataformas digitais para que a informação seja um bem público"), cujo tema principal foi o estabelecimento de princípios (guidelines globais) de regulação das plataformas digitais sob uma perspectiva multidisciplinar. Participaram da conferência representantes dos Estados, do setor privado, estudiosos do tema e da sociedade civil. A discussão na conferência girou em torno de temas envolvendo o combate à desinformação, às fake news e à multiplicidade de teorias da conspiração que colocam em xeque as instituições democráticas. Como resultado da conferência em torno da responsabilidade das plataformas digitais, foram fixadas algumas teses: "1) Respeito aos direitos humanos durante a moderação do conteúdo. Para tanto, contam com políticas e práticas de moderação de conteúdo condizentes com os padrões de direitos humanos, implementadas por meio de algoritmos e meios humanos, com proteção e suporte adequados aos moderadores humanos; 2) As plataformas devem ser transparentes, abertas sobre como operam, com políticas compreensíveis e auditáveis. Isso inclui transparência sobre as ferramentas, sistemas e processos usados ??para moderar e selecionar conteúdo em suas plataformas, inclusive quando se trata de processos automatizados; 3) As plataformas devem permitir que os usuários entendam e tomem decisões informadas sobre os serviços digitais que utilizam, e ainda os ajudem a avaliar a informação contida na plataforma. As plataformas são responsáveis ??perante as partes interessadas, usuários, o público e o sistema regulatório pela implementação de seus termos de serviço e políticas de conteúdo; 4) As plataformas realizam o processo de due diligence no campo dos direitos humanos, avaliando os riscos e o impacto sobre os direitos humanos de suas políticas e práticas."12 Como se percebe, o objetivo das referidas diretrizes é implementar processos regulatórios que compatibilizem a liberdade de expressão sem colocar em risco a democracia, as instituições e, sobretudo, a proteção aos direitos humanos. Movimento semelhante, no sentido da regulação das plataformas digitais, vem ocorrendo no sistema de justiça brasileiro. No início do mês de março de 2023, os Ministros Dias Toffoli e Luiz Fux (relatores dos Recursos Extraordinários n.º 1.037.396 e 1.057.258, do Supremo Tribunal Federal), designaram audiência pública objetivando aprofundar as discussões para o enfrentamento da (in)constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, através do sopesamento dos direitos fundamentais envolvidos.13 A audiência tratará de dois temas de repercussão geral já fixados: (i) a constitucionalidade do art. 19 do Marco Civil da Internet (MCI); e (ii) o dever das plataformas de fiscalizar o conteúdo publicado e retirá-lo do ar quando considerado ofensivo.14 Como visto, há um movimento mundial com vistas a proteção de direitos e garantias fundamentais que devem ser adequadamente protegidos não apenas pelos Estados, mas também pelas próprias empresas de tecnologia, contra o uso indiscriminado das redes sociais como instrumento de vilipêndio de valores inatos à humanidade, como a saúde, a vida, a democracia e a verdade. __________ 1 VENTURI, Thaís Goveia Pascoaloto. Redes Sociais: Platforms ou Publishers? (Parte I). Disponível aqui.  Acesso em março de 2023. 2 Tradução livre: United States Code, Capítulo 47, Seção 230, item "c", subitem 1: "Nenhum provedor ou usuário de um serviço de computador interativo deve ser tratado como editor ou locutor de qualquer informação fornecida por outro provedor de conteúdo de informação". 3 JUSTIA US LAW. Gonzalez v. Google, LLC, No. 18-16700 (9th Cir. 2021). Disponível aqui. Acesso em março de 2023. 4 JUSTIA U.S. SUPREME COURT. Gonzalez v. Google, LLC. Disponível aqui. Acesso em março de 2023. 5 JUSTIA US LAW. Gonzalez v. Google, LLC, No. 18-16700 (9th Cir. 2021). Disponível aqui. Acesso em março de 2023. 6 JUSTIA U.S. SUPREME COURT. Gonzalez v. Google, LLC. Disponível aqui. Acesso em março de 2023. 7 ANGWIN, Julia. It's Time to Tear Up Big Tech's Get-Out-of-Jail-Free Card. The New York Times. Disponível aqui. Acesso em fevereiro de 2023. 8 JUSTIA U.S. SUPREME COURT. Twitter, Inc. v. Taamneh.  Disponível aqui. Acesso em março de 2023.   9 WHEELER, Tom. The Supreme Court takes up Section 230. Disponível aqui. Acesso em março de 2023. 10 Nesse sentido, consultar: Brandenburg v. Ohio (1969), R.A.V. v. City of St. Paul, 505 U.S. 377 (1992), Texas v. Johnson, 491 U.S. 397 (1989), United States v. Eichman, 496 U.S. 310 (1990) e Virginia v. Black, 538 U.S. 343 (2003). 11 VENTURI, Thaís G. Pascoaloto. Responsabilidade civil das plataformas digitais: em busca de marcos regulatórios. Disponível aqui. Acesso em março de 2023. 12 Internet for Trust - Towards Guidelines for Regulating Digital Platforms for Information as a Public Good, Paris, 2023. Disponível aqui. Acesso em março de 2023. 13 TEFFÉ, Chiara Spadaccini de. Questões acerca do sistema de responsabilidade civil do Marco Civil da Internet: Análise do artigo 19. Disponível aqui. Acesso em março de 2023. 14 "Tema 987 - Discussão sobre a constitucionalidade do artigo 19 da Lei 12.965/2014 que determina a necessidade de prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo para a responsabilização civil do provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros. (RE 1.037.396-SP, Ministro Relator Toffoli). E o Tema 533 - Dever de empresa hospedeira de sítio na internet fiscalizar o conteúdo publicado e de retirá-lo do ar quando considerado ofensivo, sem intervenção do Judiciário. (RE 1.057.258-MG, Relator Ministro Luiz Fux)."
Já tive a oportunidade de escrever um artigo dedicado ao modelo jurídico do dano-morte e suas implicações e possibilidades nas jurisdições do civil law, especialmente diante da completa frustração da tradicional função compensatória da responsabilidade civil - e do consectário do princípio da reparação integral - em tutelar adequadamente o direito fundamental à vida. Agora, permito-me trazer ao leitor a expressão do mesmo questionamento no viés da filosofia norte-americana da responsabilidade civil, por meio de recente texto de autoria do Professor Gregory Keating,1 denominado "Irreparable Injury and the Limits of the Law of Torts".2 O autor parte da premissa que alguns danos são simplesmente irreparáveis. A morte é o paradigma. Nenhuma quantia ou forma de compensação pode devolver aos mortos as vidas que perderam. Nenhum remédio pode restituí-los à posição que ocupariam se não tivessem morrido. A responsabilidade civil não concede nenhuma indenização por wrongful death e expõe o seu calcanhar de Aquiles. Por um lado, a morte prematura é o dano contra o qual mais desejamos ser protegidos. Por outro lado, é o dano contra o qual a responsabilidade civil é menos capaz de nos proteger. A responsabilidade civil falha prospectivamente porque não precifica e, portanto, não impede o dano da morte. Ele falha retrospectivamente porque indenizações em dinheiro não podem compensar o dano da morte. Essa inadequação do princípio da reparação integral em face de danos irreparáveis tem implicações importantes para as principais teorias desenvolvidas no common law, vale dizer, tanto para a filosofia da justiça corretiva quanto para a análise econômica. Do ponto de vista da justiça corretiva, as obrigações impostas aos infratores constituem uma vertente da moralidade da responsabilidade civil. Todavia, o dano da morte, retira do remédio reparatório o seu poder restaurador, eliminando a moralidade da responsabilidade que a justiça corretiva incorpora. Os infratores não podem reparar lesões que estão além da compensação. As obrigações que a responsabilidade civil impõe aos ofensores ficam bem aquém dessa impossível responsabilização. Além disso, na medida em que a compensação não é apenas intrinsecamente valiosa como delimitação da responsabilidade por dano causado de forma ilícita, mas também instrumentalmente valiosa como uma forma de induzir potenciais autores de delitos a adotarem as devidas precauções para não ofender terceiros, o dano irreparável prejudica a responsabilidade civil de forma contundente. Este aspecto instrumental é de fundamental importância para a concepção econômica de responsabilidade civil. Para a análise econômica, o papel da responsabilidade civil é o de avaliar os custos de danos acidentais com precisão, de modo que apenas danos eficientes sejam causados a vidas e propriedades. Dissuadir danos ilícitos (ou seja, ineficientes), e não compensá-los, é o papel principal da responsabilidade civil. Nada obstante, a falha das indenizações em atender a esse requisito é vividamente ilustrada pelas indenizações por homicídio (wrongful death). A morte prematura é o dano físico que as pessoas mais desejam evitar. O dano que causa à nossa existência física é total e além de qualquer reparo. Em homenagem a esta constatação, a responsabilidade civil sequer tenta colocar um preço no valor da vida perdida para a vítima. Todavia, essa decisão perfeitamente sensata prejudica profundamente os poderes de dissuasão da responsabilidade civil, quando economicamente concebida como um sistema de desencorajamento por preços. Mas a responsabilidade civil não pode - e não tenta - precificar o maior dano a que se destina sendo um sistema de preços disfuncional. Além disso, as falhas da responsabilidade civil como sistema de preços aumentam em sincronia com a gravidade dos danos que ela enfrenta. Os poderes previsíveis de dissuasão são mais prejudicados quando nosso interesse na dissuasão é mais intenso - quando os danos ameaçam a vida ou produzem incapacidade permanente e grave. Mesmo hoje, depois de quase dois séculos de expansão legal e judicial da responsabilidade civil por homicídio culposo, um réu cuja conduta ilícita ofende fatalmente outra pessoa não é responsável por indenizar a vítima pelo valor da vida que ela perdeu.3 O dano causado pela morte não é compensado porque se encontra além da compensação. Nada restaurará uma vítima morta à posição que ocupava antes de sua morte. Na maioria das vezes, então, os danos pelo ilícito de homicídio são concedidos por "danos relacionais" (relational harm). A reparação se dirige à várias pessoas relacionadas à vítima, que sofreram perdas decorrentes da morte injusta da vítima. Contudo, a vítima não recupera para eles o valor da vida que perdeu. "A perda do gozo da vida", explica um tribunal, "deve ser experimentada em vida antes que possa se tornar a base para uma indenização."4 Os mortos não experimentam o prazer perdido das vidas que lhes foram injustamente suprimidas. Quando é impossível para a reparação monetária compensar uma perda, a indenização compensatória não entrega a compensação que prometeu. Paradoxalmente, ao recusar a concessão de indenização para a vítima da vida perdida, a lei é fiel à própria lógica interna da civil. Entretanto, essa lógica interna da responsabilidade civil esclarece os limites dos seus poderes. Como a responsabilidade civil se baseia na reparação tanto para cumprir suas obrigações primárias quanto para apagar os efeitos de danos injustificados, os seus poderes dependem da possibilidade de reparação adequada. Por um lado, o dano da morte impossibilita a realização da justiça corretiva. Não há como reparar a perda mais severa que ilícitos possam nos infligir. Por outro lado, a morte despoja a responsabilidade civil de seus poderes de dissuasão. Por um bom motivo, tanto os tribunais quanto os comentaristas citam o velho ditado de que "é mais barato matar a vítima do que deixá-la mutilada" (Is cheaper to kill your victim than to leave him maimed). A evidência empírica confirma o adágio. Por exemplo, o veredicto médio do júri na cidade de Nova York entre 1984 e 1993 em caso de homicídio culposo foi superior a US$ 1 milhão, enquanto em casos de danos foram em média superiores a US$ 3 milhões.5 Quando o dano causado é irreparável, a proteção conferida pela responsabilidade civil é, na melhor das hipóteses, precária. Mesmo os punitive damages - melhor aceitos nos Estados Unidos do que em outras jurisdições do common law - não corrigem a incompletude  da responsabilidade civil diante de danos irreparáveis, pois se direcionam  principalmente a condutas intencionais ou gravemente negligentes, o que não cobre todo o espectro, pois lesões irreparáveis podem ser causadas por um lapso momentâneo do tipo mais comum e menos censurável. Tirar os olhos da estrada por apenas uma fração de segundo enquanto dirige pode mutilar ou matar outro ser humano, mas fazer isso é um descuido comum, não um desrespeito terrivelmente insensível pela segurança dos outros. A regulação direta do risco é a resposta que resolve o problema com mais precisão. O legislador e o regulador podem articular ex ante padrões de precaução cujo rigor responda adequadamente a danos graves e irreparáveis. Standards rigorosos de precaução contra lesões irreparáveis são, de fato, características proeminentes de estatutos federais que abordam danos ambientais e no local de trabalho. Eles são negligenciados, no entanto, por teóricos da responsabilidade civil com inclinação filosófica corretiva e condenados como irracionais por estudiosos da law and economics. Do ponto de vista econômico, legislações de precaução rigorosa são exercícios irracionais de preferência por contextos hipotéticos de menos riqueza - e, portanto, menos em termos de bem-estar possível - em detrimento de estados de coisas com mais riqueza e mais bem-estar possível. A deontologia enxerga o cenário de maneira diferente. Quando levamos a sério as distinções entre as pessoas - e colocamos as relações entre as pessoas no centro de nossa visão - observamos que o dano tem um significado moral negativo e que evitá-lo é prioridade especial. A segurança (safety) é um bem primário rawlsiano; uma condição essencial da agência eficaz. Ao contrário das "perdas" financeiras e dos "custos" comuns, os danos físicos prejudicam nossos poderes básicos de arbítrio. O dano físico diminui nosso poder de exercer nossa vontade no mundo. Lesões devastadoras e irreparáveis diminuem permanente e profundamente esse poder e podem até mesmo extingui-lo completamente. Padrões legais que exigem mais do que precauções justificadas pelo custo respondem apropriadamente - não irracionalmente - a riscos significativos de lesões graves e irreversíveis. Há um vigoroso debate na literatura jurídica se a segurança deve ou não ser priorizada em detrimento da eficiência. Leis federais ordenam que certas atividades sejam "seguras" ou exigem que o seu risco seja reduzido tanto quanto for "viável" fazê-lo. Por "viável" eles querem dizer que os riscos em questão devem ser reduzidos ao máximo sem "matar a atividade". Em sentido diverso, um coro de doutrinadores contemporâneos insiste que não há debate a ser feito. A regulamentação de risco baseada em segurança e viabilidade é simplesmente irracional. Eric Posner aduz que a análise de viabilidade "não reflete o pensamento deontológico em nenhum sentido direto" e que "nenhuma tentativa de fazer engenharia reversa de uma teoria do bem-estar que justifique a análise de viabilidade foi bem-sucedida".6 Essa crítica é uma manifestação particular da tese geral de que a eficiência é o único padrão plausível de precaução, e a análise de custo-benefício é o único jogo disponível (the only game in town) para determinar padrões de conduta apropriados para atos socialmente úteis, porém arriscados. Cass Sunstein, o mais influente acadêmico jurídico americano que atualmente escreve sobre risco e precaução, afirma que não é possível fazer regulamentação baseada em evidências sem avaliação de custos e benefícios, e sem ser o mais quantitativo possível. A análise de custo-benefício é indispensável para pensarmos racionalmente sobre risco e regulamentação. Sem ela, nosso raciocínio será regido por sentimentalismo e erro cognitivo.7 Nesta senda, a mais recente decisão da Suprema Corte Norte-Americana sobre o assunto afirma que - na ausência de estatuto específico em contrário - as agências reguladoras devem se envolver em análises de custo-benefício no momento em que contemplam a regulamentação de uma substância nociva. É irracional até mesmo contemplar a redução de danos sem considerar os custos.8 Há ate mesmo uma contradição, pois no início da law and economics, Guido Calabresi defendeu uma abordagem ampla que incorporava toda uma gama de valores. Devemos, escreveu ele, atribuir um peso especial às "restrições da justiça".9 Em reforço, quando Louis Kaplow e Steven Shavell publicaram seu influente Fairness versus Welfare, a comunidade do direito e da economia havia se unido em grande parte à ideia de que o bem-estar é o valor principal e a eficiência é sua expressão legal.10 Ou seja, não há razão para acreditar que a economia ou alguma variante do consequencialismo utilitarista - a filosofia mãe da análise econômica - tenha o monopólio quando se trata de entender a moralidade da imposição de riscos. Abordagens não consequencialistas ao risco fornecem a melhor estrutura para dar sentido aos padrões legais que estão vivas no discurso filosófico.11 Por exemplo, há debates filosóficos robustos sobre se o contratualismo - a alternativa filosófica mais proeminente ao consequencialismo - pode "fazer os números valerem" (make the numbers count) da maneira certa ou lidar adequadamente com casos em que apenas vidas futuras são colocadas em risco. Fato é que a análise de custo-benefício, convencionalmente concebida, não é a encarnação da racionalidade: é a eficiência incorporada. A precaução justificada pelo custo é uma precaução eficiente. Ele prescreve que os riscos à saúde e à segurança devem ser gerenciados, minimizando os custos de evitar e sofrer doenças e lesões, maximizando o benefício líquido que extraímos das atividades responsáveis por estas doenças e lesões. Agir com eficiência é, sem dúvida, presumivelmente desejável. A eficiência é um valor - algo cuja realização é presumivelmente boa - mas agir com eficiência não é a encarnação da racionalidade. A eficiência é um valor entre muitos. Outros valores também influenciam a conveniência de várias medidas de redução de risco. As precauções podem ser justas ou injustas, bem como eficientes ou ineficientes e podem respeitar ou desrespeitar os direitos das pessoas. Como Ronald Dworkin demonstrou plenamente décadas atrás, a riqueza em si não é um valor.12 No direito e na economia contemporâneos, a maximização da riqueza é o fim apropriado para a maioria das instituições jurídicas, mas o valor que justifica tornar a eficiência o critério principal para avaliar a maioria dos regimes jurídicos é o bem-estar. Instituições jurídicas além dos tributos devem maximizar a riqueza, e o sistema tributário deve (re)distribuir a riqueza da maneira prescrita por alguma função de bem-estar social preferida. O bem-estar, por sua vez, é considerado não apenas um valor, mas o valor. Outras coisas são boas apenas na medida em que promovem o bem-estar.13 As controvérsias não terminam por aqui. O liberalismo filosófico e político há muito nega que o bem-estar seja um valor principal e há muito afirma que os valores são irredutivelmente plurais. O liberalismo supõe que as pessoas têm suas próprias concepções diversas de felicidade e que é melhor deixar para as próprias pessoas a busca dessas concepções, pois são elas, e não o Estado, os principais responsáveis por seu próprio bem-estar. O papel básico do Estado, em uma visão liberal, é estabelecer as condições institucionais e materiais de agência efetiva para que as pessoas possam buscar a felicidade como a concebem. Garantir as condições de agência efetiva é uma questão de justiça, e as reivindicações de justiça têm prioridade sobre as reivindicações de eficiência. Essa afirmação é a base da mais proeminente teoria liberal da justiça do século passado. Neste diapasão, a segurança é candidata natural a uma prioridade especial. Não precisamos invocar a eficiência para explicar por que queremos que nossos carros, nossas escolas, nosso ar e nossa água potável sejam seguros. A segurança providencia integridade física e psicológica às pessoas, pré-condição para um arbítrio eficaz. Vale a pena garantir segurança mesmo que isto imponha algum custo à eficiência econômica. Como nosso discurso jurídico e político demanda concepções morais concorrentes é surpreendente ouvir que a análise de custo-benefício é o único jogo disponível. A análise de custo-benefício expressa um ponto de vista, não o único ponto de vista possível. A análise de custo-benefício insiste que todas as coisas boas e ruins são fungíveis em alguma proporção de troca. Essa máxima depende da afirmação mais profunda de que o bem-estar é o único valor e que o bem-estar pode e deve ser medido pela métrica do dinheiro. Nossa lei e nossa moralidade contradizem essas afirmações. A assimetria de dano e benefício é uma característica firmemente arraigada tanto da lei quanto da moralidade, e a moralidade do senso comum requer que evitar o dano tenha prioridade especial.14 O cerne da teoria moral deontológica - ou não consequencialista - é que o "'objeto da moralidade não é o que apresentamos, mas como devemos nos relacionar uns com os outros.'" Em uma visão deontológica, tanto a distinção entre pessoas quanto as relações entre pessoas são centrais. As questões morais fundamentais do risco e precaução são questões sobre o que as pessoas devem umas às outras: uma moeda com dois lados. Um lado da moeda é o que as pessoas devem umas às outras em termos de liberdade para impor riscos de danos umas às outras, para que cada um de nós tenha a liberdade necessária para perseguir os fins que consideramos valiosos. O outro lado da moeda é o que as pessoas devem umas às outras em termos de precaução para reduzir os riscos de danos nas mãos umas das outras. Para levar uma vida valiosa, precisamos tanto da liberdade de impor riscos de danos aos outros quanto da segurança contra danos nas mãos uns dos outros. Questões sobre risco e precaução são questões sobre os termos da interação justa entre pessoas iguais e independentes. Colocar as pessoas e seus interesses essenciais como agentes em um plano moral primordial, lança uma luz favorável sobre a assimetria dano-benefício. Quando nos concentramos nas condições essenciais de agência eficaz, danos e benefícios não são simetricamente importantes. Danos físicos - morte, incapacidade, doença e coisas do gênero - nos privam dos poderes de ação normais e fundamentais. Eles são ruins para nós, não importa quais sejam nossos fins. Contrariamente, poucos benefícios aumentam comparativamente nossos poderes básicos de arbítrio. O valor de um benefício depende se ele favorece ou não os fins da pessoa em questão. Considerando que o dano físico geralmente é ruim para as pessoas porque prejudica os poderes básicos de arbítrio que nos permitem buscar uma ampla variedade de fins, o valor de qualquer benefício dado geralmente depende dos objetivos e aspirações da pessoa a quem o benefício é conferido. A extraordinária coordenação mão-olho é indispensável para um jogador de tênis de elite, mas em grande parte desperdiçada em um professor de direito. Um talento para o pensamento matemático abstrato é imensamente valioso para um físico, mas de pouco valor para um carpinteiro. Como sérios danos físicos prejudicam gravemente os poderes básicos do arbítrio humano - enquanto a maioria dos benefícios não aumenta comparativamente nossos poderes de arbítrio - temos motivos para atribuir prioridade especial à prevenção de danos. Porque a deontologia considera as pessoas e suas reivindicações recíprocas como a preocupação fundamental da moralidade, percebe-se a a perversidade especial do dano físico. O dano corporal paralisa capacidades e poderes dos quais depende a busca de todos os nossos fins. Os fundamentos welfaristas da análise de custo-benefício, obscurecem o significado especial do dano porque o tratam como apenas mais um custo em um cálculo geral de bens e males sociais. Nossa racionalidade jurídica se divide entre padrões de precaução justificados por custos e normas de precaução seguras e viáveis, porque estas são duas perspectivas apelam à nossa consciência moral. Na segunda parte do texto examinaremos como Gregory C. Keating avalia os padrões de precaução de segurança e viabilidade de custos e explica por que a responsabilidade civil falha em face do dano que mais motivos temos para evitar. A regulação direta do risco incorpora um ônus que responsabilidade civil assume, mas não pode cumprir totalmente. __________ 1 Keating é um aclamado professor da "USC Gould School of Law faculty" e autor de obras de responsabilidade civil. Algumas de suas recentes publicações: "Products Liability As Enterprise Liability"; Comment on Gardner: Duty and Right in Private Law; "Is Cost-Benefit Analysis the Only Game in Town?"; Must the Hand Formula Not Be Named?; "Strict Liability Wrongs" (Philosophical Foundations of Tort Law, 2014); "When is Emotional Distress Harm?" (Tort Law: Challenging Orthodoxy, 2013); e "The Priority of Respect Over Repair" (Legal Theory 2012). 2 Keating, Gregory C., Irreparable Injury and the Limits of the Law of Torts (December 8, 2022). Forthcoming in Oxford Studies in Private Law Theory, vol. 2 (Oxford University Press), USC CLASS Research Paper No. CLASS22-42, Available at SSRN. 3 Andrew J McClurg, 'Dead Sorrow: A Story About Loss and a New Theory of Wrongful Death Damages' (2005) 85 Boston U L Rev 1, 6-7, 20-22. A perda do gozo da vida pelo falecido não é compensável na grande maioria das jurisdições. Os tribunais estão bem cientes desse fato e de sua importância. Ilustrativamente, Acosta v Honda Motor Co Ltd 717 F2d 828, 837 (1983) "Indenizações compensatórias podem revelar-se um desestímulo inadequado, mesmo quando as vítimas ajuízam ações. A doutrina não permite, por exemplo, que o espólio de um falecido, morto por um produto defeituoso, recupere o valor da vida do próprio falecido, a indenização é limitada à perda pecuniária daqueles que cercam imediatamente o falecido". 4 Otani v Broudy 59 P3d 126, 129 (Wash Ct App 2002). See also Keene v Brigham & Women's Hosp Inc 775 NE 2d 725, 739 (Mass App Ct 2002) (concluding that there should be no award of damages for loss of enjoyment of life when the "plaintiff lacks the cognitive awareness of his loss"), 5 Richard Pierce Jr, 'Encouraging Safety: The Limits of Tort Law and Government Regulation' (1980) 6 Jonathan S Masur & Eric A Posner, 'Against Feasibility Analysis' (2010) 77 U Chicago L Rev 657, 707, 709 7 Cass R Sunstein, Risk and Reason: Safety, Law, and the Environment (Cambridge, 2002) 7. 8 Michigan v EPA 135 S Ct 2699, 2707-08 (2015). 9 Guido Calabresi, The Costs of Accidents (Yale 1970) especialmente, pp. 24-26. 10 Louis Kaplow & Steven Shavell, Fairness Versus Welfare (Harvard 2002). 11 Especialmente John Oberdiek, Imposing Risk: A Normative Framework (Oxford 2017). 12 Ronald Dworkin, 'Is Wealth a Value?' (1980) 9 J Legal Studies 191. 13 Louis Kaplow & Steven Shavell, 'Why the Legal System is Less Efficient than the Income Tax in Redistributing Income' (1994) 23 J Legal Studies 667; Louis Kaplow & Steven Shavell, 'Should Legal Rules Favor the Poor?' (2000) 29 J Legal Studies 821. 14 Seana Shiffrin, 'Harm and its Moral Significance' (2012) 18 Legal Theory 357.