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Como interpretar a Constituição dos Estados Unidos: Teorias de interpretação segundo recente obra do professor Cass Sunstein

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Atualizado às 07:35

Introdução

Algumas de minhas colunas anteriores discutiram decisões recentes da Suprema Corte dos Estados Unidos, que tiveram repercussão grande nos meios jurídicos e nos debates sociais brasileiros por tratarem de questões relevantes também para o nosso debate sobre direitos fundamentais, especialmente o reconhecimento dos programas de ação afirmativa e dos direitos reprodutivos das mulheres. Em Students for Fair Admissions v. Harvard, 600 U.S. 181 (2023), os precedentes estadunidenses sobre a constitucionalidade de uso de critérios de identidade racial como parte do processo seletivo de admissão para universidades foram radicalmente alterados.1-2-3 Por sua vez, no julgamento de Dobbs v. Jackson Women's Health Organization, 597 U.S. (2022), foram derrubados os precedentes constitucionais que reconheciam a existência de um direito fundamental à realização voluntária de aborto para interrupção de gravidez por mulheres no primeiro trimestre após a concepção.4-5-6-7 Esses dois casos são relevantes para o debate brasileiro porque o Supremo Tribunal Federal também é constantemente provocado para interpretar o conteúdo jurídico dos direitos fundamentais em casos difíceis semelhantes a esses dois julgamentos. Nesse sentido, a presente coluna apresenta para o público brasileiro a primeira parte do livro How To Interpret The Constitution, recém-lançado pelo Professor Cass Sunstein, em que o Professor de Harvard se propõe a elaborar um guia para os perplexos com relação às interpretações da Constituição dos Estados Unidos após essas novas decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos.8

Teorias de Interpretação Segundo Recente Obra do Professor Cass Sunstein

O catálogo de possíveis teorias da interpretação constitucional se inicia pela escola do textualismo, cujo ponto de partida é a ideia de que interpretar se inicia pela adesão ao texto da Constituição. Cass Sunstein afirma que todos concordam que o texto deve ser cumprido, mas que existem discordâncias sobre o significado da Constituição que tipicamente ocorrem porque o texto parece vago ou ambíguo. Não raro, existem confusões entre a ideia do compromisso de seguir o texto com o compromisso de compreender o texto de certas maneiras. É por isso que existem pessoas que rejeitam a escola do textualismo, "não porque não sigam o texto, mas porque elas pensam que o texto deixa todas as questões difíceis em aberto".9 A verdade é que o texto também não exaure os princípios constitucionais.10

Uma outra teoria de interpretação constitucional nos Estados Unidos é o Originalismo Semântico, que considera que o texto da Constituição deve ser interpretado de modo consistente com o significado semântico original de suas palavras.11 Como essa teoria ainda deixa o conteúdo dos termos muito abertos para a interpretação, uma corrente mais conservadora abraça uma vertente de originalismo que é mais restritiva por se basear na ideia das intenções autorais a partir da pergunta sobre o que os seus autores pretendiam? Para os defensores dessa forma de originalismo, a chave de interpretação é histórica. Em sua forma moderna, contudo, o originalismo nasceu como um movimento político e uma resposta consciente da direita para uma série de decisões da Suprema Corte sob a Presidência do Justice Warren que agradaram a esquerda.12

Para Cass Sunstein, contudo, existe uma outra vertente do originalismo que merece destaque por ter sido acolhida pelos magistrados conservadores da Suprema Corte dos Estados Unidos, como o falecido Antonin Scalia e atuais membros da corte como Clarence Thomas, Neil Gorsuch, Amy Coney Barrett, Samuel Alito Jr e Brett Kavanaugh. Trata-se da Escola do Significado Público Original, que considera que tal critério seria objetivo e não subjetivo, tornando fáceis a maioria das questões constitucionais a partir de um contexto público compartilhado.13

O catálogo de escolas originalistas inclui ainda as vertentes de defesa do 'direito original'14, dos 'métodos originais'15 e das 'expectativas originais'16, mas sem a mesma relevância prática da vertente do Significado Público Original.

Dentre as perspectivas não-originalistas, por sua vez, destacam-se a Teoria Protetora da Democracia, o Tradicionalismo, a Leitura Moral, Thayerismo, Constitucionalismo da 'Common-Law' e Constitucionalismo do Bem-Comum.

A Teoria Protetora da Democracia é como Cass Sunstein se refere à tese defendida por John Hart Ely no seu célebre livro Democracy and Distrust, também denominada de 'controle de constitucionalidade fortalecedor da democracia'.17 Por um lado, o Poder Judiciário deve exercer um papel firme de proteção contra os déficits democráticos, assegurando as pré-condições para o auto-governo e também o exercício da liberdade de expressão e de discurso político. Por outro lado, o Poder Judiciário também deve exercer um papel firme na proteção de minorias discretas e vulneráveis, conforme a tradição jurisprudencial dos Estados Unidos desenvolvida a partir da nota de rodapé número 4 da decisão da Suprema Corte no caso United States v. Carolene Products, 304 U.S. 144 (1938). Ao desenvolver essa teoria, John Hart Ely defende a jurisprudência da Corte Warren (1953-1969), mas silencia e não defende a decisão da Suprema Corte em Roe v. Wade, 410 U.S. 113 (1973).18

O Tradicionalismo - inspirado pelas ideias do líder político inglês Edmund Burke - considera que os juízes devem interpretar cláusulas constitucionais ambíguas com referência específica às práticas recorrentes que são herdadas dos antepassados em vez de valores em evolução ou novas compreensões sobre liberdade e igualdade.19 Os tradicionalistas preferem o conhecimento do passado às novas ideias.

Por sua vez, a Leitura Moral está diretamente relacionada com as ideias de Ronald Dworkin e sua concepção de 'integridade' como critério para que os princípios sejam aplicados da melhor maneira aos casos concretos. Os juízes estão em uma posição privilegiada para o desenvolvimento dos princípios constitucionais, na medida em que têm o dever de realizar julgamentos morais para decidir os casos difíceis, interpretando e dando sentido ao texto constitucional.20 Em contraste com outras escolas de interpretação, Cass Sunstein salienta que para os adeptos da Leitura Moral, "o arco da história se curva na direção da justiça e juízes deveriam ser uma parte da história".21

Thayerismo é uma escola de interpretação inspirada pelos ensinamentos de um Professor de Harvard no século XIX chamado de James Bradley Thayer e que defendia um papel extremamente limitado para as cortes judiciais em uma sociedade democrática. Somente nos casos em que não existisse nenhuma dúvida da inconstitucionalidade de uma lei é que os juízes deveriam derrubar atos do Poder legislativo.22

O Constitucionalismo da 'Common-Law' defende um processo de desenvolvimento da jurisprudência através do processo decisório caso-a-caso, como foco nos detalhes do caso concreto e respeito pelo precedente e recurso a princípios de nível mais setorial do que pela invocação de teorias abstratas sobre liberdade e igualdade, tal como elaborado por David Strauss em sua obra The Living Constitution sobre 'constitucionalismo vivo'.23

Finalmente, o Constitucionalismo do Bem-Comum, desenvolvido pelo Professor de Harvard Adrian Vermeule, toma emprestado o método Dworkiniano de leitura moral, mas considera que o bem comum está associado a uma série de práticas recorrentes decorrentes das tradições, o que aproxima essa teoria do Tradicionalismo quanto ao seu conteúdo.24

Considerações finais

O presente artigo apresentou um catálogo de teorias de interpretação da Constituição dos Estados Unidos, que servem de ponto de partida para a reflexão do Professor Cass Sunstein sobre 'como interpretar a Constituição'. Apesar de o leitor brasileiro estar familiarizado com as ideias Dworkinianas da 'leitura moral', o presente artigo contribui para apresentar uma série de outras escolas que não são de conhecimento do grande público. A próxima coluna deverá explicar mais o argumento do livro sobre como as teorias importam para a proteção dos direitos e como se deve escolher dentre as teorias de interpretação, segundo a recente obra do Professor Cass Sunstein.

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1 Disponível aqui

Disponível aqui.

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Disponível aqui

8 SUNSTEIN, Cass R. How to Interpret the Constitution. Princeton University Press, 2023.

9 Id, p. 22.

10 Id, p. 24.

11 Id.

12 Id, p. 28.

13 Id, p. 30.

14 Id, p. 34-35.

15 Id, p. 35.

16 Id, p. 36.

17 Id, p. 37.

18 Id, p. 37-41.

19 Id., p. 41-43.

20 Id., 43-47.

21 Id., p. 47.

22 Id., p. 48.

23 Id., 56-58.

24 Id., 58-59.