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Direito Privado no Common Law

Discutir as novidades legislativas, jurisprudenciais e doutrinárias do Direito Privado na Inglaterra, USA, Canadá e Austrália, dialogando com as alternativas atuais no Direito Civil brasileiro.

Nelson Rosenvald, Daniel Dias, Pedro Fortes e Thaís G. Pascoaloto Venturi
segunda-feira, 13 de março de 2023

Fronteiras do Direito do Consumidor - Parte III

Introdução Em 18 de abril de 2017, Oren Bar-Gill fez uma palestra na Faculdade de Direito de Harvard intitulada "Fronteiras do Direito do Consumidor", por ocasião de sua nomeação como professor de Direito e Economia William J. Friedman e Alicia Townsend Friedman. Passados cinco anos desde a palestra, o seu conteúdo segue sendo extremamente atual e de altíssima qualidade. Por isso, iniciei no fim do ano passado uma série de colunas para trazer esse material para o público brasileiro. Na palestra, Oren Bar-Gill apresenta os pontos de partida do problema no direito do consumidor, que são informação e racionalidade imperfeitas. Para combater isso, ele apresenta quatro promissoras categorias de técnicas regulatórias que estão na fronteira da regulação dos mercados de consumo: (i) novos deveres de informação, (ii) regras padrão (default rules); (iii) limites de preços e (iv) a teoria contratual. Na primeira coluna, foram tratados os deveres de informação, mais especificamente das divulgações inteligentes (smart discloures) e problema de falsa inferência e das divulgações voltadas ao Sistema 1. Na segunda coluna, fora abordadas as regras padrão. Agora vamos apresentar os limites de preços.  Limites de preço (price caps) Em um artigo publicado em 2015, Oren Bar-Gill analisa o uso de limites de preço em mercados com preços multidimensionais1. Este é um subconjunto muito grande de todos os mercados de consumo e contratos de consumo. É uma lista que inclui cartões de crédito, hipotecas, telefones celulares, viagens aéreas, hotéis. Em todos esses mercados, o preço é multidimensional. Portanto, não é como comprar uma caixa de leite no supermercado que tem apenas um preço. Em todos esses exemplos, o preço é multidimensional, com diferentes taxas, penalidades, tarifas e outros preços associados. E em muitos desses mercados, legisladores em sentido amplo - podendo abarcar reguladores, legisladores em sentido estrito e até tribunais - podem decidir que um preço é muito alto e eles intervirão para limitar esse preço, para empurrá-lo para baixo. E isso já aconteceu, entre outros, no mercado de cartões de crédito, no mercado de hipotecas e no mercado de celulares. Muitas vezes, esses tipos de intervenções são feitos por meio de imposição de limites de preços por parte dos reguladores. O problema, no entanto, é que quando se trata de mercados com preços multidimensionais, o fato de "empurrar" um preço para baixo não é o fim da história, mas apenas o começo dela. Então imagine um mercado que tem apenas dois preços. Por exemplo, cartões de crédito que tenham um preço que é uma taxa anual e outro preço que é uma taxa de conversão de moeda. Imagine que a anuidade é baixa e a taxa de conversão da moeda é muito alta. E então o regulador intervém e "empurra", por meio do limite de preço, a taxa de conversão de moeda para baixo. O que se pode esperar que os bancos façam? Para compensar a perda, eles provavelmente aumentariam a taxa anual. E se é isso que acontece, então, o propósito dessa regulamentação, que é reduzir o preço total e o custo que os consumidores pagam, pode ser frustrado. Portanto, este é um motivo de preocupação ou, pelo menos, cautela sobre os limites de preço. Mas Oren Bar-Gill sugere que, mesmo com esse problema, em muitos casos, o limite de preços é realmente benéfico. Os limites de preço podem realmente ajudar os consumidores. E para entender a razão disso primeiro é preciso compreender o esquema de precificação antes da regulamentação. Retomando o exemplo dos cartões de crédito, por que as taxas anuais eram baixas e as taxas de conversão de moeda altas? A razão era que as taxas anuais são muito "salientes" para os consumidores. E assim a concorrência se concentra nessa dimensão e "empurra" esse preço para baixo. As taxas de conversão de moeda, por outro lado, não são tão proeminentes. Elas são praticamente invisíveis para os consumidores e, portanto, os fornecedores acabam podendo elevá-las. Agora, o que acontece quando temos uma regulação que reduz as taxas de conversão de moeda e as taxas anuais então sobem? O que acontece é que agora os consumidores têm uma noção muito melhor de qual é o verdadeiro custo desse produto ou serviço para eles. Antes da regulação, eles se concentravam em taxas anuais muito baixas, ignoravam as taxas de conversão de moeda e achavam que o produto ou serviço geral era muito barato. E os consumidores erroneamente utilizavam demais, adquiriam demais desse produto ou serviço. Agora que as taxas de conversão de moeda caíram e as taxas anuais aumentaram, eles agora têm uma noção melhor do verdadeiro custo do produto ou serviço. E mesmo que não se tenha uma redução geral no preço que os consumidores pagam, estes agora podem tomar decisões mais informadas e racionais.  Conclusão Em mercados com preços multidimensionais, a introdução de limites de preços pelo regulador pode ter a consequência adversa de levar a que os fornecedores compensem essa perda imediata com a elevação de uma outra taxa, fazendo com o preço global do produto ou serviço permaneça o mesmo ou até mais caro. Apesar disso, em muitas situações a introdução de limites de preços pode ser uma medida benéfica, pois eles podem ser instrumentos para melhorar a percepção do consumidor acerca do real custo (global) de produtos e serviços. Isso ocorre quando o limite de preços é inserido em uma taxa menos "visível" para o consumidor e o fornecedor compensa essa perda elevando taxas mais salientes. Com isso, o valor real (global) do produto ou serviço fica mais visível para o consumidor e ele acaba se apercebendo do valor real (global) que está pagando por um determinado produto ou serviço. Apesar de nessa hipótese não ter havido redução do preço, o consumidor estará melhor informado e poderá tomar decisões mais racionais. __________ 1 BAR-GILL, Oren. Price Caps in Multiprice Markets. The Journal of Legal Studies, vol. 44, n. 2, June 2015.
Introdução Nos bancos escolares sempre aprendemos que o Brasil foi o último país a abolir a escravidão e somente no dia 13 de maio de 1888, com a promulgação da Lei Áurea, foi encerrado o regime de trabalho escravocrata em nossa sociedade. Por outro lado, não somos ensinados sobre o fato de que a escravidão não era proibida pelos países europeus no início do século XIX. Somente em 2007 quando cursava meu LL.M. em Harvard foi que descobri que o movimento abolicionista inglês era historicamente reconhecido pela abolição do tráfico de escravos para as colônias britânicas em 1807. A celebração dos 200 anos da abolição do tráfico de escravos e do desenvolvimento de um movimento abolicionista globalizado que influenciaria a abolição pelo Parlamento Inglês da escravidão em todo o império britânico a partir de 1838. Uma vez decidida a questão escravocrata nos domínios britânicos, a Sociedade Anti-Escravidão Britânica e Internacional (British and Foreign Anti-Slavery Society) passou a se dedicar a promover a circulação das ideias de emancipação para outras sociedades, merecendo especial registro o impacto que a influência inglesa teve na formação de Joaquim Nabuco.1 O fato é que foram 50 anos de diferença entre a abolição da escravidão no império britânico e a abolição da escravidão no império brasileiro. A presente coluna pretende resgatar um pouco dessa memória histórica, a partir do impacto das ideias inglesas na formação de Joaquim Nabuco. A Formação de Joaquim Nabuco O livro Minha Formação, de Joaquim Nabuco, é uma obra clássica da literatura brasileira. Com o advento da proclamação da república em 1889, o monarquista Joaquim Nabuco teve uma década de certo ostracismo, quando se dedicou à produção de suas obras literárias. Além da monumental biografia de seu pai Nabuco de Araújo intitulada Um Estadista do Império, Joaquim Nabuco publicaria em 1900 uma espécie de autobiografia intelectual com ênfase em suas convicções ideológicas e políticas a partir de sua experiência de vida em Pernambuco, Rio de Janeiro, Europa e Estados Unidos. Segundo a historiadora Angela Alonso, por meio dos livros, Nabuco remodelou sua biografia, apresentando-se como um diplomata que teve a carreira interrompida pelo chamado para a causa da abolição e que, cumprida a missão e passada a turbulência da transição para a República, poderia retornar para a carreira diplomática.2 Gilberto Freyre considerou essa autobiografia psicológica como uma obra valiosa pela perspectiva sociológica, notadamente pela coragem de reconhecer a origem de fidalgo, a influência europeia e sua visão sobre a história e a formação do Brasil.3 Também Fernando Henrique Cardoso em sua análise sobre os 'pensadores que inventaram o Brasil' se dedica ao estudo de Joaquim Nabuco e associa seu liberalismo e seu espírito democrático ao 'olhar do exterior', referindo-se justamente à influência de ideias inglesas e estadunidenses.4 Logo na primeira frase de sua autobiografia intelectual, Joaquim Nabuco se refere ao liberalismo como o principal alicerce de sua razão.5 Importante, em sua juventude quando estudava Direito, contudo, existia uma mistura e uma confusão em seu espírito, quando era seduzido e arrebatado por todas as ideias, livros e autores que considerava brilhantes e originais.6 Em suas próprias palavras, "posso dizer que não tinha ideia alguma, porque tinha todas".7 Nesse capítulo introdutório, Joaquim Nabuco explica o papel decisivo que teve na sua formação a leitura do livro A Constituição Inglesa, de Bagehot, fixando em seu espírito uma predileção inalterável pela monarquia constitucional liberal, tendo dedicado o segundo capítulo de Mina Formação para explicar as razões para sua perspectiva. Bagehot não elaborou um livro de história constitucional ou de direito constitucional, mas sobre o funcionamento da máquina política, explicando que a alma da moderna Constituição Inglesa seria justamente o 'governo de gabinete', em que o poder legislativo escolhe o poder executivo, como uma espécie de comissão encarregada da parte prática dos negócios e que se harmoniza pela possibilidade de mudança e de dissolução.8 Os modos de explicar a Constituição Inglesa foram desconstruídos, na medida em que não se trata de um sistema de separação de poderes, mas sim de fusão de poderes, em que os poderes executivo e legislativo se unem por um laço que é o gabinete e, de fato, só existe um poder, que é a Câmara dos Comuns, de que o gabinete é a principal comissão.9 Antes de ler Bagehot, Nabuco tinha "o preconceito democrático contra a hereditariedade, o princípio dinástico e a influência aristocrática", mas passou a considerar eficientes as partes imponentes da Constituição Inglesa, especialmente devido à estabilidade do seu governo efetivo e à calma do espírito nacional.10 A ideia principal recebida de Bagehot foi a superioridade prática do governo de gabinete inglês sobre o sistema presidencial estadunidense, considerando que se tratava de um governo sobre influência mais direta do povo e da opinião pública.11 No capítulo sobre Londres, Nabuco brinca com a ideia sobre se a humanidade tivesse que ser reduzida a uma só, qual povo ele salvaria se tivesse que escolher entre a França e a Inglaterra. A brincadeira era de que seu dever seria de socorrer a França porque a Inglaterra saberia se salvar sozinha: "sabe nadar".12 Em suas reminiscências sobre a cidade, a City, Westminster e o British Museum, Nabuco confessa: "O fato é que amei Londres acima de todas as outras cidades e lugares que percorri".13 Um endereço especial para ele era a residência do embaixador brasileiro em Londres à Rua Grosvenor Gardens, Gabriel número 32, em que teve acesso à alta sociedade londrina através do Barão de Penedo, que lhe serviu de elo de união.14 Particularmente com relação à influência inglesa, Nabuco explica que criou uma segunda natureza e modificou o seu temperamento, tornando-o monárquico de razão e de sentimento pelo contágio do espírito inglês. Nabuco elogiou o governo da Câmara dos Comuns, pela suscetibilidade às oscilações do sentimento público, a rapidez de seus movimentos e a concentração de sua força. Nabuco também afirmou ter ficado impressionado com a autoridade dos juízes, dizendo que somente na Inglaterra é que existem juízes. Apesar do prestígio da Suprema Corte dos Estados Unidos como um tribunal forte e poderoso, para Nabuco, somente na Inglaterra é que o Juiz é mais forte do que os poderosos. Aliás, para exemplificar, Nabuco se refere ao fato de que famílias com séculos de nobreza, residências históricas, riqueza e posição social como o Marquês de Salisbury e o Duque de Westminster terão tratamento igual ao mais humilde de seus criados diante de um juiz.15 Referindo-se novamente à obra de Bagehot, no livro A Constituição Inglesa, Nabuco considera que sua teoria constitucional seria um "verdadeiro evangelho", salientando que ter visto o funcionamento do próprio sistema dava uma impressão viva do que tinha aprendido na academia.16 Com a ressalva de que o maior erro que se pode cometer em política seria o de copiar de sociedades diferentes instituições que cresceram com base em elementos históricos específicos, Nabuco explica que passou a considerar que a forma de governo monárquica seria superior à forma republicana.17 A característica singular seria o fato de o posto mais elevado da hierarquia do governo ficar fora da competição, isto é, se o rei quiser influir na política com suas ideias próprias e sua iniciativa, tem primeiro que abdicar e se eleger como um representante do povo na Câmara dos Comuns.18 A experiência inglesa de Nabuco o fez valorizar a unidade, permanência e continuidade do governo monárquico e a considerar a república como uma "utopia sem atrativo, o paraíso dos ambiciosos, espécie de hospício em que só se conhecesse a loucura das grandezas".19 Nabuco vislumbrava, inclusive, a existência de republicanismo - proteção da res pública - na forma de governo monárquico, valorizando o espírito inglês de tradição, realidade, ganho, força e generosidade, progresso e melhoramento e ideal. Nesse contexto, a constituição emerge como uma procuração dada pela nação inglesa à Câmara dos Comuns, tendo sido formada espontaneamente e inconscientemente com a língua inglesa sem que nenhum grande legislador tenha redigido o seu texto e nenhum homem de Estado a teria idealizado. A tradição produz a faculdade de admirar a base histórica de uma instituição. Nabuco salienta que a liberdade é o grande atributo do homem e a ordem seria a verdadeira arquitetura social. O espírito inglês também é pautado pelo espírito prático, de realidade, inspirado pelo utilitarismo - em que reformas devem ser justificadas por uma vantagem econômica, ao menos indireta e ser justificada por algarismos.20 Também o fair-play é parte integrante da consciência coletiva. Considerações finais A formação de Joaquim Nabuco foi inspirada pela sua experiência de vida na Inglaterra e nos Estados Unidos. Em sua autobiografia intelectual, o eminente político, escritor, abolicionista e diplomata brasileiro salientou a influência inglesa na sua formação política. Não se tratou somente de uma abstração, mas de ideias que foram transformadas em programas de ação e em projetos, tal como a campanha abolicionista. Em Minha Formação, aliás, Nabuco afirma que o espírito inglês foi decisivo para que a abolição tivesse prioridade com relação a todos os outros projetos de reforma.21 O impacto das ideias inglesas na formação de Joaquim Nabuco é um exemplo pródigo da influência inglesa na emancipação brasileira. __________ 1 Leslie Betell e José Murilo de Carvalho (Organizadores), Joaquim Nabuco e os Abolicionistas Britânicos, Rio de Janeiro: Topbooks, 2008. 2 Alonso, Angela. Joaquim Nabuco. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 290-1. 3 Freyre, liberto. Prefácio. 4 Cardoso, Fernando Henrique. Pensadores que inventaram o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 52-59. 5 Nabuco, Joaquim. Minha Formação. Brasília: UnB, 1981, p. 27. 6 Idem, p. 28. 7 Idem, p. 29. 8 Idem, p. 32-33. 9 Idem, p. 33. 10 Idem., p. 35-36. 11 Idem, p. 36. 12 Idem, p. 73. 13 Idem, p. 77. 14 Idem, p. 79. 15 Idem, p. 86. 16 Idem. 17 Idem, p. 86-87. 18 Idem. 19 Idem, p. 87. 20 Idem, p. 90-91. 21 Idem, p. 91.
1. Fundamentos normativos da responsabilidade civil do Estado por prisões indevidas no Brasil Na primeira parte da coluna, analisamos de que forma o sistema norte-americano vem fixando as pretensões reparatórias envolvendo a responsabilidade civil do Poder Público por prisões manifestamente indevidas. Conforme já apontamos, a gradativa evolução tecnológica (tal como os exames de DNA) e a persistência de advogados e de entidades não-governamentais na revisão das condenações injustas têm viabilizado anulações de processos penais ou absolvições, dando ensejo, então, às pretensões reparatórias cíveis. O direito à indenização por condenações criminais injustas já fora previsto pela Convenção Americana Sobre Direitos Humanos que, em seu artigo 10, prescreve: "Toda pessoa tem direito de ser indenizada conforme a lei, no caso de haver sido condenada em sentença passada em julgado, por erro judiciário." No contexto do ordenamento jurídico brasileiro, é importante destacar a preocupação do legislador constituinte a respeito das prisões indevidas, redundando na estatuição, no próprio texto da Constituição Federal de 1988 (art. 5º , LXXV), que a prisão por erro judiciário ou permanência do preso por tempo superior ao determinado na sentença garante ao cidadão o direito à indenização.1 No mesmo sentido, o legislador infraconstitucional preocupou-se com as consequências lesivas das prisões indevidas. Houve expresso regramento do assunto pelo Código Civil de 2002 que, para além de destacar a "prisão ilegal" como fonte de obrigação reparatória por ofensa à liberdade pessoal, determinou aos magistrados o necessário arbitramento dos valores compensatórios na hipótese de ser inviável a prova concreta dos danos sofridos.2 O Código de Processo Penal, em prescrição ainda mais antiga, reitera a indenizabilidade por danos derivados do "erro ou da injustiça" das condenações criminais.3 Entretanto, diante da relevante e justificada preocupação legislativa contra os graves e irreversíveis danos causados pelas prisões indevidas à realidade da práxis do sistema de justiça brasileiro, constata-se profundo abismo que acaba por esvaziar a multifuncionalidade da responsabilidade civil nesse particular tema. Os processos judiciais de reparação por danos, em geral, não têm se revelado instrumentos efetivos para o devido sancionamento civil dos responsáveis pelo ilegal cerceamento da liberdade, muito menos para viabilizar adequada compensação às vítimas. Quais os motivos de um tal descompasso? A resposta certamente não é simples, mas pode ao menos ser fundamentada a partir de um diagnóstico a respeito de alguns dos gargalos que entravam a efetividade da implementação da responsabilidade civil por prisões indevidas. Dentre os múltiplos gargalos, podem ser citados: i) a dificuldade na interpretação dos conceitos de prisão ilícita e erro judicial; ii) o subjetivismo e a imprecisão dos fundamentos que amparam as prisões cautelares - que acarretam uma inegável normalização das prisões no país; iii) a autoproteção dos operadores do sistema de justiça criminal; iv) a ausência ou infrequência de demandas regressivas do Poder Público contra seus agentes para responsabilizá-los por dolo ou culpa grave nas prisões ilícitas; v) a ausência de programas reparatórios administrativos para a compensação das vítimas; vi) o frustrante tempo de demora dos processos judiciais indenizatórios; vii) os insuficientes valores indenizatórios deliberados pelo Poder Judiciário, incapazes de ensejar justa compensação e de imprimir adequada repreensão ao Poder Público.   Pela natural restrição do espaço desta coluna, a seguir nos limitaremos a examinar o tratamento dispensado pelo sistema de justiça nacional relativamente ao erro judiciário e às suas consequentes reparações. 2. O erro judiciário Na medida em que a Constituição Federal literalmente alude ao erro judiciário como fundamento da obrigação do Estado em reparar os danos decorrentes do indevido cerceamento da liberdade humana, é necessário previamente esclarecer do que se trata. É certo que, como qualquer atividade humana, o exercício da função jurisdicional é suscetível a falhas, sobretudo porque contingenciada pela limitação da cognição processual e pela imprescindibilidade da apuração e da valoração de fatos e provas. Essa exposição jurisdicional ao potencial erro é ainda mais densificada na persecução criminal, rotineiramente processada pela mera constatação de indícios de autoria e de materialidade delituosa. Nesse sentido, eventual erro ou injustiça na aplicação das normas autorizadoras da prisão (cautelar ou definitiva), por si só, não alicerçam pretensões indenizatórias,4 ainda que sobrevenha no processo criminal sentença absolutória.5 Sustentar a responsabilidade do Estado em tais casos, aliás, implicaria inviabilizar o próprio exercício da atividade jurisdicional. Todavia, por ação ou por omissão, dolosa ou gravemente culposa, os operadores do sistema de justiça podem dar ensejo ao erro judiciário que, segundo a doutrina de Aguiar Dias, ocorreria em hipóteses tais como: "a) dolo do agente público julgador (juiz), provocando o erro judiciário de forma consciente, com o objetivo de prejudicar alguém, partes ou terceiros; b) culpa do juiz, nas situações em que há imperícia (despreparo técnico) ou negligência (desatenção ou desídia), ou ambas, quando o juiz desconhece o direito a ser aplicado ao caso concreto em julgamento, interpretando-o mal, ou ainda, ao proferir decisão no processo sem qualquer sustentação nas fontes normativas do ordenamento jurídico; c) dolo ou culpa dos agentes auxiliares dos órgãos jurisdicionais, como a autoridade policial, o escrivão, o oficial de justiça e o avaliador, quando apresentam no processo, em razão de atos dos seus ofícios, certidões, laudos ou informes errôneos ou falsos, induzindo o juiz ao cometimento de erros.6   Demonstrando-se a efetiva ocorrência do erro judiciário stricto senso, incide o regime da responsabilidade objetiva do Estado, fundada no risco administrativo, conforme consolidada jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.7 Por outro lado, ainda que não se qualifique a atividade jurisdicional questionada como "erro judiciário", mesmo assim é possível amparar pretensões ressarcitórias contra o Estado decorrentes do regime geral de responsabilidade civil constitucional e infraconstitucionalmente previsto. Nesse sentido, a prestigiosa jurisprudência de Sepúlveda Pertence cunhada junto ao STF: "1. O direito à indenização da vítima de erro judiciário e daquela presa além do tempo devido, previsto no art. 5º, LXXV, da Constituição, já era previsto no art. 630 do C. Pr. Penal, com a exceção do caso de ação penal privada e só uma hipótese de exoneração, quando para a condenação tivesse contribuído o próprio réu. 2. A regra constitucional não veio para aditar pressupostos subjetivos à regra geral da responsabilidade fundada no risco administrativo, conforme o art. 37, § 6º, da Lei Fundamental: a partir do entendimento consolidado de que a regra geral é a irresponsabilidade civil do Estado por atos de jurisdição, estabelece que, naqueles casos, a indenização é uma garantia individual e, manifestamente, não a submete à exigência de dolo ou culpa do magistrado. 3. O art. 5º, LXXV, da Constituição: é uma garantia, um mínimo, que nem impede a lei, nem impede eventuais construções doutrinárias que venham a reconhecer a responsabilidade do Estado em hipóteses que não a de erro judiciário stricto sensu, mas de evidente falta objetiva do serviço público da Justiça."8 Deve-se ressaltar, assim, que tanto o excesso de prazo das prisões cautelares, como a execução penal decorrente de condenações gravemente maculadas por erros de procedimento ou erros de julgamento, dão ensejo às pretensões de indenização contra o Estado.9 A dificuldade interpretativa a respeito do sentido e do alcance do que constitui o erro judiciário resta ainda mais agravada no Brasil, na medida em que a remansosa jurisprudência do STF e do STJ nega praticamente qualquer revisão de decisões do sistema ordinário de justiça sobre o assunto, sob a alegação da inviabilidade da reapreciação de matéria fático-probatória em sede de recursos extraordinários e especiais.10 De toda sorte, se a verificação do erro judiciário não é tarefa fácil quando se pretende investigar errores in judicando na atividade jurisdicional, a subversão do devido processo legal - que pode acarretar graves errores in procedendo -aparentemente abre caminho mais alvissareiro para sustentar a tese da responsabilidade civil do Estado. Como expressivo exemplo, a seguir abordamos as prisões e condenações criminais embasadas em errôneos reconhecimentos dos acusados pelas vítimas ou testemunhas, e a recente decisão paradigmática do STJ a respeito da aplicação do art. 226 do Código de Processo Penal brasileiro.     3. O problema das prisões decorrentes do mero reconhecimento fotográfico ou pessoal dos suspeitos - A atuação do Innocence Project no Brasil  Como há muito tempo se sabe, a principal causa dos erros judiciários que acarretam condenações criminais e prisões indevidas é a equivocada identificação dos suspeitos por parte de vítimas e testemunhas. Segundo pesquisa feita pelo Innocence Project, cerca de 75% das condenações de inocentes se devem a erros cometidos pelas vítimas e por testemunhas ao identificar os suspeitos no ato do reconhecimento. Seguindo o mesmo propósito de atuação do sistema norte-americano, a ONG Innocence Project Brasil integra uma rede internacional composta por 69 organizações que trabalham para a identificação e reversão de casos de "erros" do Poder Judiciário que acarretam prisões indevidas, desenvolvendo políticas públicas e consultorias para mudanças legislativas envolvendo o tema.11 De acordo com o Innocence Project Brasil, "os pedidos de atuação que chegam demonstram que o erro de reconhecimento está entre as mais prováveis causas de erro judiciário também no nosso país. Identificamos com frequência que as investigações são conduzidas a partir de um suspeito pré-determinado pela polícia e que, por falta de conhecimento técnico e de estrutura, há pouco cuidado com a produção de provas que dependem da memória."12 A partir da atuação de referida ONG, foi elaborado o relatório "Prova de Reconhecimento e Erro Judicia'rio", tendo como objetivo principal fornecer subsídios para a reformulação do entendimento dos tribunais brasileiros a respeito do reconhecimento de suspeitos.13 Esse relatório foi amplamente utilizado no julgamento do Habeas Corpus nº 598.886,14 pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), precedente já "mencionado em quase 300 novos casos que chegaram ao STJ, vindos de 23 dos 27 Estados do país, e em mais de 70% deles a Corte utilizou-o para libertar ou absolver condenados equivocadamente reconhecidos por testemunhas."15 ?                No julgamento do HC 589.886, o STJ estabeleceu diretrizes para que o reconhecimento de pessoas possa ser considerado válido. Para tanto, a não observância das formalidades legais para o reconhecimento - garantias mínimas para o suspeito da prática de um crime previstas no artigo 226 do Código de Processo Penal - leva à nulidade do ato, impedindo que ele seja usado para fundamentar eventual condenação, mesmo que o reconhecimento seja confirmado em juízo.16 Por fim, decidiu o STJ que o reconhecimento do suspeito por fotografia, além de dever seguir o mesmo procedimento do artigo 226, tem de ser visto apenas como etapa antecedente do reconhecimento presencial, não se prestando a servir como prova em ação penal, ainda que confirmado em juízo. Como não é difícil perceber, o erro judiciário que acarreta prisões e condenações indevidas a partir de ilegais procedimentos de reconhecimentos dos acusados é problema de política pública, tendo motivado, inclusive, a criação de um Grupo de Trabalho de Prevenção e Combate ao Erro Judiciário instaurando pelo Conselho Nacional de Justiça.    A partir de relatório de referido Grupo, o Plenário do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou a Resolução nº 484, de 19/12/2022, que estabelece diretrizes para a realização do reconhecimento de pessoas em procedimentos e processos criminais e sua avaliação no âmbito do Poder Judiciário. O desrespeito às premissas procedimentais para o reconhecimento de acusados por vítimas ou testemunhas agora fixadas pelo STJ e pelo CNJ, portanto, passa a potencialmente constituir manifesto erro judiciário, passível de indenização. 4. A quantificação das indenizações Diferentemente do que ocorre no sistema de justiça norte-americano - no qual foi criado em âmbito federal um estatuto próprio (Justice for All Act) que  garante aos presos exonerados pela suposta prática de crimes federais indenização de US$50.000 por ano de encarceramento indevido e US$100.000 por ano aos que aguardavam presos injustamente no corredor da morte, no sistema de justiça brasileiro as indenizações dependem da judicialização de demandas individuais que, muitas vezes, arrastam-se por longos anos e produzem resultados só aproveitados pelos sucessores das vítimas. Segundo os tribunais nacionais, a definição das indenizações leva em conta, dentre outros critérios, i) o lapso temporal que o acusado passou indevidamente preso; ii) a dimensão e gravidade do erro da prisão, e iii) os acontecimentos que ocorreram durante o tempo e as sequelas produzidas. Ainda assim, as respostas indenizatórias são profundamente distintas na exata medida em que os processos cíveis que as suscitam costumeiramente acabam sendo definidos pelos tribunais estaduais e federais. O STJ, quando admite revisar tais causas, o faz tão somente para o fim de exercer seu autoproclamado "poder moderador" relativamente à fixação do quantum compensatório por danos morais.17 Nesse sentido, dentre os casos de erro judiciário de maior repercussão apreciados pelo STJ, destaca-se o do mecânico Marcos Mariano da Silva, que passou inacreditáveis 19 anos indevidamente preso. Seu crime: possuir o mesmo nome (homônimo) do verdadeiro autor do crime. A demonstração de que durante seu intolerável tempo de cárcere indevido contraiu tuberculose e ficou cego em função das precárias condições carcerárias lhe rendeu uma indenização milionária (dois milhões de reais). Todavia, Marcos Mariano jamais teve qualquer proveito de referida compensação judicial: logo após a final decisão de sua ação, pelo STJ, faleceu de infarto.18 Enfim, o tema é complexo e retrata uma realidade que afeta, sobretudo, pessoas vulneráveis que sofrem com a falta do adequado acesso à justiça e que diante da banalização do valor da vida tornam-se mais um número por erro do judiciário. __________ 1 Art. 5º, LXXV da CF - "o Estado indenizará o condenado por erro judiciário, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença." 2 Art. 953 CC - A indenização por injúria, difamação ou calúnia consistirá na reparação do dano que delas resulte ao ofendido. Parágrafo único. Se o ofendido não puder provar prejuízo material, caberá ao juiz fixar, equitativamente, o valor da indenização, na conformidade das circunstâncias do caso. Art. 954 CC - "A indenização por ofensa à liberdade pessoal consistirá no pagamento das perdas e danos que sobrevierem ao ofendido, e se este não puder provar prejuízo, tem aplicação o disposto no parágrafo único do artigo antecedente. Parágrafo único. Consideram-se ofensivos da liberdade pessoal: I - o cárcere privado; II - a prisão por queixa ou denúncia falsa e de má-fé; III - a prisão ilegal." 3 Art. 630 CPP - "O tribunal, se o interessado o requerer, poderá reconhecer o direito a uma justa indenização pelos prejuízos sofridos. § 1o  Por essa indenização, que será liquidada no juízo cível, responderá a União, se a condenação tiver sido proferida pela justiça do Distrito Federal ou de Território, ou o Estado, se o tiver sido pela respectiva justiça. § 2o  A indenização não será devida: a) se o erro ou a injustiça da condenação proceder de ato ou falta imputável ao próprio impetrante, como a confissão ou a ocultação de prova em seu poder; b) se a acusação houver sido meramente privada." 4 Conforme assentado pelo STF, "a responsabilidade civil objetiva do Estado não alcança os atos judicias praticados de forma regular, salvo nos casos expressamente declarados em lei. (AgR no RE 479108, 1ª Turma, Rel. Min. Roberto Barroso, j. 10/9/2013, p. 27/9/2013). 5 Nesse sentido, "O dano moral resultante de prisão preventiva e da subsequente sujeição à ação penal não é indenizável, ainda que posteriormente o réu seja absolvido por falta de provas." (AgRg no AREsp 182.241/MS, Rel. Ministro Ari Pargendler, DJe 28/2/2014). No mesmo sentido, AgRg no REsp 1.295.573/RJ, Rel. Min. CESAR ASFOR ROCHA, Segunda Turma, DJe 16/4/12. 6 DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 188. 7 "Este Supremo Tribunal assentou que a teoria da responsabilidade objetiva do Estado não se aplica aos atos judiciais, salvo nos casos de erro judiciário e de prisão além do tempo fixado na sentença (inc. LXXV do art. 5º da Constituição da República) e nas hipóteses expressamente previstas em lei." (AI 599501 AgR, Rel. Min. Cármen Lúcia, Segunda Turma, julgado em 19/11/2013,  DJe-232, pub. 26-11-2013). 8 STF, RE 505393, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, Primeira Turma, julgado em 26/06/2007, DJe-117. 9 Nesse sentido, "A manutenção da prisão preventiva por prazo excessivo e, ao fim, o julgamento por ausência de provas, fere a dignidade da pessoa humana que suporia o cárcere, bem como de seus familiares com sua ausência". (REsp n. 1.655.800/AM, relator Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em 26/6/2018, DJe de 2/8/2018.) 10 Relevante crítica a tal postura dos tribunais superiores foi feita em voto vencido prolatado no STJ, pelo Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, a seguir sintetizado: "A princípio, a absolvição ao fim do curso da persecução penal, ainda que preso preventivamente o réu, não gera, necessariamente, o dever de indenização por parte do Estado. Além disso, é cediço que o mero prolongamento indevido da prisão cautelar nem sempre gera o direito de ser o preso reparado financeiramente por isso.  Fundamental observar, porém, que, embora sejam estas as regras gerais, não se pode utilizá-las como escusa para tornar impassível o Ente Estatal de responsabilização quando, por ação ou omissão sua, um cidadão permanece, para além da razoabilidade, privado de sua liberdade" [...] a decisão que determinou a prisão preventiva não cuidou de declinar motivos suficientes para fundamentar a segregação cautelar; não foi produzida nenhuma prova desfavorável ao recorrente; houve privação de liberdade e submissão à realidade do sistema carcerário brasileiro por 934 dias e, finalmente, o então preso foi declarado inocente por falta de provas pelo próprio órgão que o acusou. As circunstâncias aqui permitem, independentemente do revolvimento da matéria fático-probatória, presumir o dano moral, físico e psicológico a justificar a imprescindibilidade da reparação pelo Estado". (REsp n. 1.429.718/PE, relator Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, relator para acórdão Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Turma, julgado em 6/12/2018, DJe de 13/2/2019.) 11 Innocence Project Brasil - Disponível aqui. Acesso em 12 de fevereiro de 2023. 12 Relatório Prova de reconhecimento e erro do judiciário. Disponível aqui. Acesso em 12 de fevereiro de 2023, p. 30. 13 Innocence Project Brasil. Disponível aqui. Acesso em 12 de fevereiro de 2023. 14 STJ - HC n.° 598.886/SC, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 27/10/2020, DJe de 18/12/2020. 15 Relatório Prova de reconhecimento e erro do judiciário. Disponível aqui. Acesso em 12 de fevereiro de 2023. 16 Conforme prescreve o art. 226 do CPP: "Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma: I - a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida; Il - a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la; III - se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela; IV - do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais. Parágrafo único.  O disposto no no III deste artigo não terá aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento." 17 No exercício desse poder moderador, o STJ já entendeu razoável a fixação de R$50.000,00 a título de danos morais decorrentes de prisão preventiva indevida por 11 meses (AgRg no REsp n. 1.397.288/AC, relatora Ministra Marga Tessler, Primeira Turma, julgado em 26/5/2015, DJe de 5/6/2015.) 18 Eis a decisão do STJ no caso: "PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO DECORRENTE DE ATOS PRATICADOS PELO PODER JUDICIÁRIO. MANUTENÇÃO DE CIDADÃO EM CÁRCERE POR APROXIMADAMENTE TREZE ANOS (DE 27/09/1985 A 25/08/1998) À MINGUA DE CONDENAÇÃO EM PENA PRIVATIVA DA LIBERDADE OU PROCEDIMENTO CRIMINAL, QUE JUSTIFICASSE O DETIMENTO EM CADEIA DO SISTEMA PENITENCIÁRIO DO ESTADO. ATENTADO À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. 1. Ação de indenização ajuizada em face do Estado, objetivando o recebimento de indenização por danos materiais e morais decorrentes da ilegal manutenção do autor em cárcere por quase 13 (treze) anos ininterruptos, de 27/09/1985 a 25/08/1998, em cadeia do Sistema Penitenciário Estadual, onde contraiu doença pulmonar grave (tuberculose), além de ter perdido a visão dos dois olhos durante uma rebelião. (...) 3. Consectariamente, a vida humana passou a ser o centro de gravidade do ordenamento jurídico, por isso que a aplicação da lei, qualquer que seja o ramo da ciência onde se deva operar a concreção jurídica, deve perpassar por esse tecido normativo-constitucional, que suscita a reflexão axiológica do resultado judicial. [...] 5. A plêiade dessas garantias revela inequívoca transgressão aos mais comezinhos deveres estatais, consistente em manter-se, sem o devido processo legal, um ser humano por quase 13 (treze) anos consecutivos preso, por força de inquérito policial inconcluso, sendo certo que, em razão do encarceramento ilegal, contraiu o autor doenças, como a tuberculose, e a cegueira. 6. Inequívoca a responsabilidade estatal, quer à luz da legislação infraconstitucional (art. 159 do Código Civil vigente à época da demanda) quer à luz do art. 37 da CF/1988, escorreita a imputação dos danos materiais e morais cumulados, cuja juridicidade é atestada por esta Eg. Corte (Súmula 37/STJ). [...] 8. In casu, foi conferida ao autor a indenização de R$ 156.000,00 (cento e cinqüenta e seis mil reais) de danos materiais e R$ 1.844.000,00 (um milhão, oitocentos e quarenta e quatro mil reais) de danos morais. (STJ - REsp: 802435 PE 2005/0202982-0, Relator: Ministro LUIZ FUX, Data de Julgamento: 19/10/2006, T1 - PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJ 30/10/2006 p. 253).
O termo "overlook" normalmente significa ignorar ou negligenciar, mas neste julgamento foi utilizado em um sentido mais literal, como "ter uma vista de cima" ou "ver de um lugar mais alto". A decisão em Fearn v Tate Gallery board of trustees foi proferida em 1/2/23 pela Suprema Corte da Inglaterra. A decisão completa está aqui.  Em síntese, trata-se de uma plataforma de observação que faz parte de um edifício de extensão da galeria de arte Tate Modern, oferecendo vistas panorâmicas de Londres. Os proprietários de apartamentos em um conjunto habitacional vizinho - com um design moderno com janelas de vidro do chão ao teto - descobriram que os visitantes da plataforma de observação podem olhar para dentro de suas moradas. Assim, processaram o famoso museu nacional de arte moderna pelo tort de "nuisance" (incômodo/interferência). Tradicionalmente, uma demanda de "private nuisance" é ajuizada quando o uso e gozo da propriedade imobiliária do demandante sofre uma interferência substancial e desproporcional através de um objeto ou atividade. Inicialmente, a pretensão não logrou êxito nas instâncias inferiores.  Todavia, a Suprema Corte deu provimento ao recurso, por maioria de 3:2. O tribunal sustentou que, em princípio, é possível que uma vista panorâmica represente um incômodo, pelo menos no sentido que Lord Leggatt considerou a pretensão, como de "intrusão visual" : "A reclamação dos requerentes não é que o último andar do Edifício Blavatnik tem vista para seus apartamentos; nem é que no curso normal as pessoas naquele prédio olham para os apartamentos dos reclamantes e podem ver o interior. De fato, os requerentes deixaram expressamente claro no julgamento que não se opõem ao fato de serem vistos do Edifício Blavatnik, o que eles reclamam é o uso particular feito por Tate do último andar. Eles reclamam que a Tate convida ativamente o público a visitar e olhar daquele local em todas as direções, inclusive nos apartamentos dos reclamantes situados a apenas 30 metros de distância; que a Tate incita esta atividade sem interrupção durante a maior parte do dia, todos os dias da semana; e que isso tem a consequência previsível de que um número muito significativo de cerca de meio milhão de pessoas que visitam a galeria de observação da Tate todos os anos espiam os apartamentos dos reclamantes e tiram fotos deles. Argumentar que esse uso da propriedade do demandado não pode ser um incômodo porque "ser olhado" não entra neste conceito, é como argumentar que, porque o ruído doméstico comum causado pelos vizinhos não constitui um incômodo, convidar uma banda de música para praticar o dia todo, durante todos os dias no meu quintal não é considerado um incômodo acionável; ou porque o cheiro da comida do seu vizinho na hora das refeições é algo que você tem que tolerar, os odores nocivos da produção industrial não podem ser um incômodo acionável. A conclusão simplesmente não decorre da premissa".  Em reforço, o Tribunal rejeitou a sugestão de que a solução consistia em os requerentes fechasse as persianas ou cortinas, e também o argumento que a atividade do demandado, sendo indiscutivelmente realizada em benefício público, não se traduziria em responsabilidade civil. O ponto de inflexão do julgamento concerne ao que constitui o uso e a ocupação normais da terra, considerado distinto no caso, pois a natureza e a extensão da visualização dos apartamentos dos reclamantes transcende "qualquer coisa que possa razoavelmente ser considerada como uma consequência necessária ou natural do uso e ocupação comuns e ordinários da terra do Tate". O tribunal caracterizou a localidade em que os apartamentos estão situados como "uma parte urbana do sul de Londres usada para uma mistura de fins residenciais, culturais, turísticos e comerciais". Em linha de princípio um ocupante nesse ambiente "pode esperar bem menos privacidade do que talvez um ocupante rural possa e que qualquer um que viva em uma cidade do interior pode esperar viver bastante lado a lado com os vizinhos. Nada obstante, a decisão frisou que não se encontrou nenhuma outra plataforma de observação naquela parte de Londres; nem que a operação de uma galeria de exibição pública seja necessária para o uso e ocupação comum e comum das terras da Tate gallery. Convidar o público a olhar de uma galeria de observação é manifestamente um uso muito particular e excepcional da terra. Nem mesmo pode ser considerado um incidente necessário ou comum de operar um museu de arte. Portanto, o Tate não pode confiar no princípio da reciprocidade, argumentando que não busca mais tolerância de seus vizinhos para suas atividades do que eles esperariam que o Tate mostrasse para eles. Em síntese, o Tate seria um "superobservador".  O que se pode extrair do julgamento são muitas duvidas e poucas certezas. Antes de chegarmos à questão se essa emanação é ou não substancial, há uma premissa teórica para o ilícito de nuisance: Um incômodo requer alguma emanação invadindo a propriedade do reclamante. Um terreno é um espaço físico. Os direitos em relação a ele dizem respeito à aptidão de usar esse espaço físico. Se alguém invadi-lo sem permissão, isso é considerado nas jurisdições do common law uma transgressão (o tort de trespass). Porém, se um vizinho criar um ruído, uma luz forte ou um cheiro que prejudique sua capacidade física de usar esse espaço, estaremos potencialmente diante de um incômodo (nuisance). A essência deste ilícito é a depreciação do gozo dos direitos inerentes à ocupação da terra. Neste sentido tradicional, ser "olhado" não participa de tal conceito. Pode ser algo que ofenda o vizinho ou lhe cause sofrimento, porém, não temos o direito de exigir que nossos vizinhos se abstenham de fazer coisas que nos incomodam ou que se abstenham de fazer coisas que preferiríamos que não fizessem. A aptidão física do titular de usar a terra para qualquer finalidade que deseje não será de forma alguma afetada. Em outros termos, como a plataforma de observação é diferente de qualquer grande banco de janelas em qualquer atração que atrai multidões de pessoas em qualquer metrópole? É concebível que a famosa CN tower de Toronto, agora seja um incômodo, assim como todos os estádios, aquários, museus, que têm janelas? Todas as pessoas com áreas de exibição pública agora correm o risco de serem processadas, e o assunto quase certamente terá que ser resolvido em cada julgamento. Em resposta a este argumento, os que sustentam a decisão da Suprema Corte, afirmam que casos extremos de visão de um lugar mais alto podem afetar a fruição da propriedade da mesma forma que ruídos. Ser observado pode afetar o uso do espaço físico mais do que os cheiros. Ruídos intensos podem significar que não se pode fruir o imóvel para fins comuns, como descanso ou recreação. Mas, igualmente, existem usos perfeitamente normais que alguém pode querer fazer de sua terra que se tornam menos atraentes ou impossíveis porque alguém está sendo vigiado. Em um singelo exemplo: muitos moradores de um prédio serão mais capazes de tirar uma soneca ao meio-dia, apesar do barulho alto da fábrica, do que aqueles capazes de fazê-lo sabendo que metade de Londres os está observando dormir!  Outrossim, se derivarmos o conceito indeterminado de "superobservador" para outras demandas, mesmo que os futuros demandantes sejam derrotados no julgamento porque à luz de todas as provas o ilícito não é suficientemente grave (seria necessária a potencial intrusão sobre 10 pessoas, 100 pessoas, 1 milhão de pessoas?), a ameaça de um processo sobre qualquer plataforma de exibição será certamente suficiente para dissuadir uma série de empreendedores. A tragédia consistirá no empobrecimento dos espaços públicos em benefício de um grupo de proprietários que desejam viver em uma bolha de vidro e depois se opõem a que as pessoas olhem para eles. Analisando as dificuldades práticas da própria liminar (injunction), a Suprema Corte deixou para o tribunal inferior, a tarefa de determinar se há interesse público em manter a galeria com vistas de 360 graus. Caso a liminar seja concedida, será para impedir as vistas no lado sul por meio de persianas ou paredes e durante todo o tempo em que a galeria de visualização estiver aberta. Todavia, se o incômodo só surgir após uma certa intensidade de uso, então um fechamento permanente para o lado sul pode ser arbitrário. Outra alternativa seria limitar o número de frequentadores a qualquer momento (abaixo do limite atual de 300), ou ao longo do dia, à área de exibição. Sendo denegada a liminar, no tocante a indenização pela manutenção do status quo, os percalços não são menores: a condenação pecuniária será prospectiva. Assim, como o valor seria colocado no título para vincular os proprietários subsequentes? Será a base financeira o declínio nos valores de mercado ou na receita de aluguel das unidades afetadas em comparação a outras não sobrecarregadas com a intrusão visual? Ninguém sabe como esse cálculo seria feito. A indenização pode ser tão vultosa que talvez a Tate simplesmente opte por aceitar a liminar exigindo que seja interrompida a visualização pelo lado sul. Ninguém pode negar que o valor dos apartamentos vizinhos será reduzido porque vistos por cima. Contudo esta não é a essência do ilícito de nuisance. Se houver perda econômica consequente ou outra que seja ressarcível, pode haver discussão no âmbito do dano patrimonial. Em uma analogia radical, se o meu vizinho for um ativista proeminente da Ku Klux Klan, isso também pode me causar um sofrimento terrível, diminuir o valor de minha propriedade e ser algo que eu preferiria profundamente que ele não fizesse, a ponto de fazer com que eu me mude. Mas não interfere na minha aptidão física de usar o espaço a que tenho direito e, portanto, não é um incômodo privado (private nuisance).  Hipótese distinta de ilícito se dá quando alguém é visto em um espaço privado quando preferiria que isso não ocorresse. Ilustrativamente, se alguém instalar uma câmera de vídeo fora de um quarto de hotel que estou dividindo com a minha parceira para espiar pelas cortinas, a lei pode considerar isso uma violação ao direito de privacidade. Mas não é um ilícito simplesmente pelo fato de alguém titularizar qualquer direito em relação ao quarto de hotel, ou seja, em relação à coisa física, o espaço, que é objeto de direito. Uma vez que começamos a proteger direitos não titulados, como não ser olhado (também conhecido como privacidade), perde-se a justificativa para o reclamante tutelar um real interesse proprietário. Porém, não podemos olvidar que existem precedentes na Suprema Corte. Lord Goff em Hunter v Canary Wharf (1997)1 baseou-se explicitamente na ideia de uma emissão negativa, deixando espaço para essa possibilidade: ".De fato, para que uma ação de perturbação privada mencione a respeito da interferência com o usufruto de sua terra pelo autor, ela geralmente surgirá de algo que emana da terra do demandado. Tal emanação pode assumir muitas formas - ruído, sujeira, fumaça, um cheiro nocivo, vibrações e coisas do gênero. Ocasionalmente, as atividades nas terras do réu serão tão ofensivas para os vizinhos que constituem um incômodo acionável, como em Thompson-Schwab v. Costaki [1956],2 onde a visão de prostitutas e seus clientes entrando e saindo de instalações vizinhas se enquadrava nessa categoria. Esses casos devem, no entanto, ser relativamente raros". Contudo, mesmo neste caso excepcional, é a visão de atividades ofensivas, que pode ser tida como interferência, o que é muito diferente de alguém olhando para você. Ademais, ao contrário do ruído, cheiros, vibrações, etc, os casos de sex shop e bordel devem ser tratados como de public nuisance (perturbação pública), nada tendo a ver com o espaço físico a que o reclamante tem direito. Colha-se ainda como precedente o caso Motherwell v Motherwell (1976)3, envolvendo telefonemas de assédio. Baseando-se particularmente nos antigos casos de "vigiar e assediar", Clement JA refere-se ao princípio de que atos de outra forma legais podem se tornar ilegais "pelas circunstâncias em que são executados, como tempo, local, extensão ou a forma de execução." Ele conclui que "a referência frequente nos casos a perturbações emanadas da terra dos réus reflete apenas as circunstâncias dos fatos particulares perante o tribunal, não uma limitação intencional do alcance do princípio" para permitir uma reclamação por nuisance por invasão de privacidade através de abuso do sistema de comunicações telefónicas. Ou seja, atualizando o conceito de "nuisance", a luz daquilo que nos sistemas do civil law se enquadraria no modelo do abuso do direito, devemos indagar: alguém acha certo que a Tate construa uma plataforma de observação permitindo que centenas de milhares de pessoas olhem para os apartamentos ao lado, forçando essas pessoas a mudar a forma como usam sua propriedade? A evidência parece esmagadora de que o público na plataforma de observação da Tate está destruindo a capacidade dos proprietários dos apartamentos de desfrutar de sua propriedade. As áreas de estar dos apartamentos dos reclamantes estão sob observação constante da galeria de observação da Tate durante grande parte do dia, todos os dias da semana; o número de espectadores está na casa das centenas de milhares a cada ano; e os espectadores frequentemente tiram fotos do interior dos apartamentos e às vezes as publicam nas redes sociais. Não é difícil imaginar como seria opressivo viver em tais circunstâncias para qualquer pessoa comum - como estar em exibição em um zoológico. Não é de surpreender que o juiz tenha concluído que esse nível de intrusão visual seria razoavelmente considerado pelo proprietário como uma intrusão material em sua residência. Nesse caso, o conceito do ilícito de interferência substancial no uso e gozo da se desenvolve para resolver problemas como este. Enfim, O problema de solucionar hard cases por meio da "razoabilidade" é óbvio. Uma vez que o tribunal ordene que meu vizinho não olhe para minha propriedade, isso demandará a execução de um planejamento com árduos limites sobre o que é aceitável ou não em termos de interferência. É justamente por isso e por todos os argumentos favoráveis e contrários à pretensão que a decisão sob exame foi dividida em 3:2. __________ 1 Disponível aqui. Uma grande torre foi construída na área de Docklands, no leste de Londres, que agora atende pelo nome de One Canada Square. Foi construída pela Canary Wharf Ltd. A torre tinha 250 metros de altura e foi concluída no final de 1990. Sua localização era muito próxima (a menos de 10 quilômetros de distância) do principal transmissor de televisão da BBC, localizado no Crystal Palace. Como resultado, a torre interferiu na recepção de televisão de um grupo de moradores da Isle of dogs. Essa interferência foi corrigida em abril de 1991 por meio da instalação de um retransmissor de transmissão na Balfron Tower. A ação arguiu perturbação privada durante o período em que a interferência foi sentida. 690 reclamações foram feitas contra a Canary Wharf Ltd por esses motivos. Além disso, 513 reclamações foram iniciadas contra a London Docklands Development Corporation por danos sofridos pelo excesso de poeira que emanava do canteiro de obras. Alguns dos reclamantes eram proprietários ou inquilinos, mas outros não tinham nenhum interesse de propriedade. 2 Disponível aqui. Em Chesterfield, em uma rua nobre do West End, dois homens chamados Frank e Harold Thompson-Scwab moravam nessa rua com sua família, incluindo um filho pequeno. Blanche Costaki e um amigo moravam na mesma rua. Ambas eram prostitutas. O reclamante (Thompson-Schwab) ficou chateado ao ver as prostitutas entrando e saindo regularmente das instalações do réu (Costaki). Eles viam regularmente as mulheres encontrando muitos homens, então decidiram buscar uma liminar dos tribunais para impedir tais condutas, argumentando que o gozo de sua casa estava sendo interferido ao ver a atividade ilícita do réu. Eles também argumentaram que a área em que viviam era boa e que viam esse tipo de atividade como interferência no "gozo cómodo e conveniente" dos bens do reclamante. Os tribunais também consideraram a ideia de que esse tipo de atividade poderia ter um impacto na futura moralidade da rua 3 Disponível aqui. Este caso surgiu de um pedido de indenização e uma liminar contra o réu por assediar os queixosos em sua casa por abuso do sistema telefônico. O réu era parente dos queixosos e os assediou fazendo um número excessivo de ligações telefônicas para os queixosos, às vezes até 30 ligações por hora. O objetivo de muitas ligações para seu irmão era difamar sua cunhada. O tribunal de primeira instância concedeu aos autores nominal damages e uma liminar que impediu o réu de assediar os autores por telefone e por contato pessoal. Em apelação ao Tribunal de Apelação de Alberta, o recurso foi indeferido e o julgamento do tribunal de primeira instância foi confirmado. O Tribunal de Apelação de Alberta declarou que os atos do réu constituíam uma invasão da privacidade dos queixosos. O Tribunal de Apelação de Alberta declarou que os atos do réu constituíam uma interferência real no conforto ou conveniência de viver de acordo com os padrões do homem comum.
segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

Fronteiras do direito do consumidor - Parte II

Introdução Em 18 de abril de 2017, Oren Bar-Gill fez uma palestra na Faculdade de Direito de Harvard intitulada "Fronteiras do Direito do Consumidor", por ocasião de sua nomeação como professor de Direito e Economia William J. Friedman e Alicia Townsend Friedman. Apesar de passados cinco anos desde a palestra, o seu conteúdo segue sendo extremamente atual e de altíssima qualidade. Pela atualidade e qualidade do conteúdo, iniciei no fim do ano passado uma série de colunas para trazer esse conteúdo para o público brasileiro. Na palestra, Oren Bar-Gill apresenta os pontos de partida do problema no direito do consumidor, que são informação imperfeita e racionalidade imperfeita. Para combater isso, ele também apresenta quatro promissoras categorias de técnicas regulatórias que estão na fronteira da regulação dos mercados de consumo: (i) novos deveres de informação, (ii) regras padrão (default rules); (iii) limites de preços e (iv) a teoria contratual. Na primeira coluna, tratamos dos deveres de informação, mais especificamente das divulgações inteligentes (smart discloures) e problema de falsa inferência e das divulgações voltadas ao Sistema 11. A presente é a segunda coluna, na qual vamos tratar das regras padrão (default rules). Regras padrão (default rules) A segunda ferramenta regulatória são as regras padrão ou supletivas. As regras padrão têm sido usadas cada vez mais por formuladores de políticas públicas (policy makers). E, em muitos casos, essas regras são muito poderosas. Um bom exemplo disso é o estudo de Johnson e Goldstein sobre o uso de regras padrão no contexto de doação de órgãos2. Neste estudo, os autores demonstraram que os países que adotaram por regra padrão a doação de órgãos tinham uma percentagem bem mais elevada de doadores em sua população em comparação com países que adotaram como regra padrão a não doação de órgãos. Nos países que adotaram por regra padrão a não doação de órgãos, quando uma pessoa vai tirar a carteira de motorista, ela preenche um formulário. E uma das perguntas do formulário é: "se você quer ser um doador de órgãos, marque a caixa aqui". Nos países que adotaram por regra padrão a doação de órgãos, a pergunta era diferente: "se você não quer ser doador de órgãos, marque a caixa aqui". E acontece que essa mudança de padrão tem um efeito enorme. É basicamente quase tão forte quanto uma regra impositiva. E, claro, o impacto desse tipo de política em termos de vidas salvas é muito importante. Portanto, este é um exemplo de uma regra padrão que é muito poderosa, ou também pode-se dizer muito "aderente", o que significa que apenas algumas pessoas optam por sair do padrão. Mas os padrões nem sempre são "aderentes". Por exemplo, nos EUA, quando se abria uma conta corrente em um banco, a regra tradicional era a de que o consumidor obtinha automaticamente uma proteção contra falta de fundos (overdraft protection), o que no Brasil é chamado de "cheque especial". E isso significa que se o consumidor usar seu cartão de débito e acabar gastando mais dinheiro do que há na conta, o banco vai honrar e permitir essa compra, mas é claro, cobrar uma taxa por isso. Portanto, esta era a proteção e esse foi o padrão por muitos anos. Há alguns anos, a regra nos EUA mudou. O padrão foi alterado de "com proteção" para "sem proteção", isto é, o padrão passou de "com opção de cheque especial" para "sem opção de cheque especial". E agora os consumidores precisam optar deliberadamente pela opção de cheque especial. Esse padrão, no entanto, foi muito menos "aderente" do que o padrão de doação de órgãos. Isso porque um número muito grande de consumidores passou a optar expressamente pelo cheque especial. E a pergunta que fica é: por quê? Por que um padrão é tão "aderente" e outro não? Uma explicação é que os bancos investiram muito dinheiro e esforço para garantir que os consumidores optassem pelo cheque especial, porque ganham muito dinheiro com as taxas associadas a esse recurso. Essa é então uma explicação que provavelmente contém alguma carga de verdade. Mas também é verdade que não se tem ainda uma boa teoria das regras padrão. Em um artigo recente, Oren Bar-Gill e Omri Ben-Shahar começaram a desenvolver uma tal teoria3. Para eles, esta teoria é baseada na suposição de que os consumidores inicialmente são muitas vezes desinformados sobre aspectos importantes da decisão. Então, em particular, eles assumem que existem dois tipos de consumidores. Alguns consumidores realmente não precisam e não querem opção de cheque especial. Outros consumidores querem e precisam dessa opção. Mas, inicialmente, os consumidores não sabem se fazem parte do primeiro ou do segundo grupo. Eles podem não saber exatamente qual é o custo do cheque especial - como essas taxas são calculadas, quão altas elas são. Eles também podem não saber qual é a probabilidade de precisarem sacar mais dinheiro do que dispõem em sua conta corrente. Com que frequência isso acontecerá? Eles terão outro método de pagamento disponível ou não? Portanto, essas informações não estão muitas vezes disponíveis para os consumidores inicialmente. Mas eles podem obter essa informação. Eles podem investir tempo e esforço, às vezes dinheiro, para se informar. E um outro tipo de elemento dessa análise é que esses custos de informação são heterogêneos. Para alguns consumidores, eles podem se informar muito rapidamente com um custo muito baixo ou com baixo investimento. Para outros consumidores, pode ser difícil e caro se informar. Um dos resultados dessa análise é que a de que, alguns consumidores, aqueles geralmente com custos de informação menores, eles serão informados e, se descobrirem que fazem parte do grupo que se beneficia com a opção do cheque especial, optarão por sair da nova regra padrão e obterão a proteção de que precisam. E essa teoria também diz, ou permite prever, que tipo de padrão e quais tipos de mercados serão mais "aderentes" e quais padrões serão menos "aderentes", ou mesmo algo "escorregadios". E tudo isso depende da distribuição dos custos de informação. Se muitos consumidores tiverem baixos custos de informação, os padrões serão mais "escorregadios". Se mais consumidores tiverem custos de informação mais altos, os padrões serão mais "aderentes". Esse tipo de estrutura também permite fornecer orientação aos formuladores de políticas públicas sobre como escolher o padrão ideal. O padrão ideal é com opção de cheque especial ou o padrão ideal é sem opção de cheque especial? E novamente, essa escolha, ou o projeto do padrão ótimo, depende tanto da distribuição dos diferentes tipos de consumidores, quanto da distribuição dos custos de informação entre os consumidores. Na próxima coluna trataremos da terceira ferramenta regulatória, que são os limites de preços. ---------- 1 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-privado-no-common-law/377677/fronteiras-do-direito-do-consumidor--parte-i 2 JOHNSON, Eric J.; GOLDSTEIN, Daniel G. Do Defaults Save Lives?. Science, vol. 302, p. 1338-1339, 2003. 3 BAR-GILL, Oren; BEN-SHAHAR, Omri. Rethinking Nudge: An Information-Costs Theory of Default Rules (April 24, 2020). Forthcoming in the University of Chicago Law Review, Harvard John M. Olin Discussion Paper n. 1031, U of Chicago, Public Law Working Paper n.. 744, University of Chicago Coase-Sandor Institute for Law & Economics Research Paper n. 906, Harvard Public Law Working Paper n. 20-39.
Introdução Há aproximadamente uma década, conclui uma introdução sobre o Estatuto do Torcedor Brasileiro para um público britânico, que foi publicada pelo periódico Entertainment and Sports Law Journal.1 Como o artigo foi bem recebido e lido, recebi um convite de Jan Peter Schmidt para produzir uma versão em alemão do meu artigo, de modo a fazer uma contextualização do Estatuto do Torcedor Brasileiro para a comunidade de acadêmicos com interesse recíproco no Brasil e na Alemanha e o texto em alemão foi publicado como Das Brasilianische Sportfan Gesetz no Heft 1 do Mitteilung da Deutsch-Brasilianische Juristenvereinigung em 2014, às vésperas da Copa do Mundo realizada no Brasil.2 No mesmo período, recebi um convite para fazer uma apresentação no Max Planck Institut de Hamburgo com reflexões sobre a legislação brasileira no cenário da organização da Copa do Mundo no Brasil. Aquela apresentação serviu como o ponto de partida para a elaboração de um artigo publicado como parte de uma edição especial do Southwestern Journal of International Law, intitulada 'We The Fans: Should International Football Have Its Own Constitution?'.3 Após oito anos desde a publicação desses textos, a presente coluna revisita a discussão sobre a constitucionalização do futebol internacional no contexto da Copa do Mundo do Qatar. A presente coluna põe a seguinte questão para a nossa reflexão: se deveríamos ter uma constituição para o futebol internacional? Mantenho o meu entendimento original, de que seria interessante reproduzir uma estrutura normativa e institucional mais bem definida para estabelecer as instituições - entendidas tanto como as organizações, quanto como as regras do jogo institucional - que mantém o futebol internacional e seu maior espetáculo, que é a Copa do Mundo. Nesse sentido, o objetivo do presente texto é apresentar algumas dessas ideias já trabalhadas em artigos internacionais para o público brasileiro em um texto na língua portuguesa, atualizando os termos do debate a partir de exemplos do torneio recém realizado no Qatar. Assim como nos artigos internacionais, a premissa teórica advém do pluralismo normativo e da possibilidade de que a Lex Sportiva tenha suas regras do jogo institucional constituídas a partir de regras desenvolvidas no âmbito do direito privado global. Deveríamos ter uma Constituição para o futebol internacional? Uma reflexão a partir de exemplos da Copa do Mundo do Qatar em 2022 A minha perspectiva é de que existem instituições internacionais que são tradicionalmente consideradas de direito privado, mas cujo âmbito de atuação se tornou tão importante para a sociedade global, que deveriam ser estabelecidas constituições para definir as regras do jogo institucional e que reproduziriam a estrutura constitucional com separações de funções políticas, direitos fundamentais e restrições ao poder político que empoderassem atletas, torcedores e cidadãos. Obviamente que a analogia feita entre 'we the people' e 'we the fans' possui limitações, na medida em que não se vislumbra uma assembleia constituinte formada por representantes de todos os torcedores do mundo para elaborar um texto constitucional da Lex Sportiva. Por outro lado, contudo, seria possível conceber o estabelecimento de uma série de regras que poderiam buscar aprimorar a organização do futebol internacional e ampliar a legitimidade do esporte perante os torcedores. O objetivo do Estatuto do Torcedor Brasileiro foi justamente de proteger os torcedores, buscando ampliar a legitimidade do esporte. Atualmente, por exemplo, existem limitações legais na legislação brasileira para a alteração da fórmula das competições, de modo a evitar que decisões populistas de dirigentes desportivos promovam uma 'virada de mesa' e mudem o formato do campeonato para facilitar o acesso de um time rebaixado para a sua próxima edição. Ora, no caso do futebol internacional não existe nenhuma regra equivalente e tem se verificado uma tendência de ampliação do número de seleções, o que têm prejudicado a qualidade técnica da competição e dos jogos disputados. Em 2026, haverá uma Copa do Mundo com 48 seleções em um formato que prioriza a dinâmica política da FIFA em detrimento do critério técnico e da qualidade do futebol a ser disputado. Outra regra importante do desporto brasileiro define o sorteio da arbitragem para as partidas de futebol, de modo a evitar suspeitas de eventual escolha de árbitros que poderiam ter algum viés e influenciar o resultado de uma partida. No caso da Copa do Mundo, seria interessante criar uma série de freios e contrapesos normativos para se evitar decisões arbitrárias sobre a escalação de árbitros. Na Copa do Qatar, por exemplo, o comentarista Galvão Bueno criticou a escolha de um árbitro inglês para a partida entre Brasil e Croácia, pelo fato de a Inglaterra continuar na Copa do Mundo e o árbitro poderia ter um viés contrário à seleção mais forte. O craque argentino Lionel Messi criticou a arbitragem europeia na partida entre sua seleção e a Holanda. Por outro lado, jogadores ingleses criticaram a arbitragem brasileira nas quartas-de-finais em que a Inglaterra foi eliminada pela França. Regras institucionais deveriam proibir que árbitros da mesma Federação Regional apitassem partidas com a presença de uma seleção daquela mesma região, de modo a que um árbitro europeu não deveria apitar uma partida da Holanda ou da Croácia. Além disso, deveria se evitar que a partida de uma seleção favorita ao título fosse apitada por um árbitro da nacionalidade de outra seleção favorita ao título. Também seria importante desenvolver um mecanismo de sorteio para evitar críticas de eventual direcionamento de árbitros pela Comissão de Arbitragem. São regras do jogo que dariam mais segurança para atletas, torcedores e os próprios árbitros. Com relação aos direitos dos torcedores, atletas e cidadãos, também seria importante que se definisse um catálogo de direitos fundamentais que viabilizasse o exercício de suas liberdades fundamentais. Um exemplo pródigo disso advém da proibição que vedava manifestações de pensamento no período da Copa do Mundo no Qatar, merecendo destaque a crítica formulada pela seleção da Alemanha de que teria sido censurada em sua manifestação de apoio aos direitos de minoria devido à orientação sexual. Igualmente, às vésperas da Copa do Mundo, foi feita alteração nas regras relativas ao consumo de bebida alcoólica por torcedores, tornando mais difícil para a maioria do público a possibilidade de comprar cerveja para assistir a uma partida de futebol. Tais restrições à liberdade de expressão e à liberdade geral de consumo evidenciam a importância de uma definição de um catálogo de direitos constitucionais dos torcedores que deveriam ser institucionalizados pela FIFA e protegidos no contexto da organização da Copa do Mundo. Finalmente, também seria importante que a FIFA criasse mecanismos de governança e de compliance para servir de apoio à escolha das sedes e para assegurar que a construção dos estádios de futebol não seja feita com métodos violadores de direitos humanos, insustentáveis do ponto de vista ambiental e suscetíveis de corrupção. Particularmente no caso do Qatar, ocorreram notícias de que os estádios teriam sido construídos por operários em péssimas condições de trabalho. Além disso, a organização decidiu pela construção de vários estádios de futebol em um território reduzido. Parte dos estádios será desativada logo após a realização da Copa do Mundo, por falta de público e pela redundância da construção, pois a população já é atendida por outros estádios de futebol existentes nas proximidades. Além disso, se a escolha pela Rússia para sediar a Copa de 2018 já foi criticada pela perspectiva de supressão de liberdade de expressão e das liberdades fundamentais em geral, também existem motivos para que a FIFA evitasse o Qatar devido às restrições a direitos fundamentais de minorias. Uma Constituição para o futebol internacional seria um exemplo da constitucionalização do direito privado global. Trata-se de um fenômeno identificado no âmbito das novas tecnologias no cenário de emergência de uma lex internetica e no âmbito do direito comercial no cenário de desenvolvimento de uma lex mercatória. Para Gunther Teubner, trata-se de uma fragmentação constitucional, em que são reproduzidas normas constitucionais como substitutas de normas de direito privado que regulavam a internet, o comércio e o esporte internacional.4 Ao longo dos últimos anos, a FIFA vem desenvolvendo novas instituições para enfrentar a crise de legitimidade sofridas com escândalos de corrupção, tendo elaborado seu Código de Ética e um Comitê de Ética Independente que adotou medidas rigorosas de controle e punição de dirigentes internacionais. Ora, tais iniciativas poderiam, em tese, ser ampliadas, de modo a que sejam incorporadas novas regras que possam aprimorar a escolha de sedes de Copa do Mundo, a construção dos estádios de futebol, a separação entre funções executivas, normativas e adjudicantes no futebol internacional, mecanismos de governança e de compliance, sorteio de árbitros, liberdade de expressão e direitos fundamentais dos torcedores, atletas e cidadãos. Considerações finais No final, o objetivo da presente coluna foi discutir se devemos ter uma Constituição para o futebol internacional. Se a ideia de uma constitucionalização do direito privado global parece heterodoxa pela perspectiva do positivismo jurídico kelseniano ou hartiano,5 a perspectiva realista do pluralismo normativo concebe a existência de ordens normativas formadas por cadeias normativas transnacionais de direito privado global como a lex sportiva, lex internetica e a lex mercatória.6 Nesse sentido, a constitucionalização do esporte internacional poderia ser justificada pela possibilidade de aprimoramento das organizações e das regras do jogo institucional. Nesse contexto, a Copa do Mundo do Qatar oferece uma série de exemplos relativos à fórmula do campeonato, sorteio de árbitros, liberdade de expressão, liberdade geral de consumo e mecanismos de governança e de compliance. ---------- 1 FORTES, Pedro R. The law relating to Brazilian sports fans: An introduction for a British audience. ESLJ, v. 11, p. 1, 2013. 2 Disponível aqui 3 FORTES, Pedro Rubim Borges. We The Fans: Should International Football Have Its Own Constitution. Sw. J. Int'l L., v. 21, p. 63, 2014. 4 TEUBNER, Gunther. Fragmentos constitucionais: constitucionalismo social na globalização. São Paulo: Saraiva, p. 27, 2016. 5 KELSEN, Hans. Pure theory of law. Univ of California Press, 1967; HART, Herbert Lionel Adolphus. The concept of law. oxford university press, 2012. 6 TWINING, William. Normative and legal pluralism: a global perspective. Duke J. Comp. & Int'l L., v. 20, p. 473, 2009; TAMANAHA, Brian Z. Understanding legal pluralism: past to present, local to global. In: Legal Theory and the Social Sciences. Routledge, 2017. p. 447-483.
As pretensões indenizatórias fundadas em encarceramento injusto         Um dos mais influentes líderes negros dos EUA na luta contra o racismo, Malcolm X foi assassinado diante de centenas de pessoas em Nova York enquanto se preparava para discursar, em 1965. O assassino, Mujahid Abdul Halim, foi preso no local. Mesmo diante da confissão de Halim, duas semanas depois do assassinato foram presos também Muhammed Aziz e Khalil Islam. Ambos foram processados e condenados à prisão perpétua pelo mesmo crime. Durante a batalha judicial objetivando provar suas inocências, Aziz (atualmente com 83 anos) foi libertado em 1985 e Islam, solto em 1987, morreu em 2009 sem ter sido até então inocentado formalmente. Apenas em 2021, decorridos mais de 50 anos do crime e após inúmeras reviravoltas envolvendo o caso, a Suprema Corte de Nova York anulou as condenações de Muhammad A. Aziz e do falecido Khalil Islam. Durante a sessão de rejulgamento, a juíza Ellen N. Biden afirmou, "lamento que o tribunal não possa desfazer totalmente os erros judiciais desse caso e devolver os anos que foram perdidos aos acusados".1 As pretensões indenizatórias de Aziz e de Islam foram fundamentadas em acusação maliciosa, denegação de direitos processuais e má conduta do governo, tendo sido imputadas acusações contra o Departamento de Polícia de Nova York e o escritório do promotor público de Manhattan de retenção de provas e coação de testemunhas para prestarem depoimentos falsos. O caso foi recentemente encerrado por meio de um acordo, pelo qual se estipulou em favor de Muhammad Aziz e à família de Khalil Islam uma indenização de US$ 36 milhões (US$ 26 milhões a serem pagos pela cidade de Nova York e US$ 10 milhões pelo Estado de Nova York). Trata-se apenas de mais um, dentre os inúmeros e crescentes casos de indenização estatal por erro do sistema de justiça criminal dos EUA,2 acarretando prisões indevidas a acusados, algumas vezes por décadas.3 Todavia, a gradativa evolução tecnológica (tal como os exames de DNA) e a persistência de advogados e de entidades não-governamentais na revisão das condenações injustas têm viabilizado anulações de processos penais ou absolvições, surgindo, então, as pretensões reparatórias cíveis. A responsabilidade civil do Poder Público pelos encarceramentos indevidos levanta relevantes debates, seja quanto aos procedimentos (administrativos, judiciais e legislativos) adequados para o processamento dessas pretensões, seja quanto à forma de reparação e à quantificação dos valores devidos.   Nesta primeira parte da coluna, analisaremos de que forma o sistema norte-americano vem lidando com as pretensões reparatórias fundamentadas em prisões manifestamente indevidas. Na segunda parte, analisaremos o mesmo tema sob a perspectiva do sistema de justiça brasileiro.                Innocence Project e The National Registry of Exonerations  A crescente preocupação com condenações criminais injustas e com a necessidade de amparar adequadamente os presos tem fomentado a atuação de entidades não-governamentais e o cadastramento de dados a respeito dos casos revistos ao redor do mundo. Desde os anos 1990, mais de 60 organizações que se propõe ao assessoramento das vítimas de prisões indevidas já se estabeleceram nos EUA (California, Ohio, Washington, Florida, Arizona e New York) e em outros países (Argentina, Austrália, Canadá, Chile, Colômbia e Holanda)4, inclusive no Brasil.5 Em 1992, um grupo de advogados, acadêmicos e pesquisadores norte-americanos criaram o Innocence Project - um projeto que objetiva a reforma do sistema de justiça criminal dos EUA e que sustenta a reversão de condenações injustas, buscando libertar pessoas presas em prol das quais subsistam provas técnicas robustas e seguras que evidenciem suas inocências.     Os advogados que integram o projeto representam clientes ao longo do país, buscando a reversão de condenações criminais por via de exames de DNA (DNA-based reinvestigations), para além de prestar consultoria jurídica aos advogados principais. Segundo dados do Innocence Project, até o momento, com o apoio do projeto, 375 presos nos Estados Unidos tiveram suas condenações revertidas (foram "exonerados") com base em testes de DNA, incluindo 21 acusados que cumpriram pena no corredor da morte.6 Através do National Registry of Exonerations, os EUA vêm cadastrando os casos de presos que foram postos em liberdade após serem inocentados ou terem suas condenações anuladas com base em novas evidências técnicas ou comprovação de abusos do sistema acusatório. O registro fornece informações detalhadas sobre todas as exonerações conhecidas nos Estados Unidos desde 1989, mantendo também um banco de dados mais limitado de exonerações conhecidas anteriormente.7 De 1989 até julho de 2022, um total de 3302 casos de exoneração foram registrados. Só neste ano, 367 casos foram cadastrados, número muito maior do que a média anual até então registrada (200 casos por ano). Se a imediata devolução da liberdade para os acusados indevidamente encarcerados constitui pretensão prioritária, não menos relevante é lhes viabilizar meios para a sempre difícil readaptação social. Após longos anos de cárcere, os egressos do sistema penitenciário (invariavelmente já vulneráveis antes da prisão) enfrentam a realidade de uma nova vida sem dinheiro, sem moradia, sem trabalho e sem qualquer credibilidade social. Por isso, diversas empresas financeiras norte-americanas vêm explorando esse nicho de mercado, emprestando aos exonerados quantias expressivas para que consigam reconstruir suas vidas o mais rápido possível. Assim, os exonerados (cujos ressarcimentos por prisão indevida são praticamente certos) passam a constituir verdadeiros profit centers, financiando uma espécie de antecipação da futura reparação civil a taxas de juros por vezes extorsivas.8 Procedimentos indenizatórios Existem, fundamentalmente, três formas para se requerer uma indenização por prisão indevida nos EUA: por procedimentos administrativos (state statutes), por ações judiciais (civil lawsuits) e por previsões legislativas especiais (private bills). A primeira forma (state statutes) pode ser compreendida como administrativa, baseando-se em legislações estaduais e federal que preveem procedimentos de compensação por prisões injustas. Até junho de 2022, trinta e oito Estados e o Distrito de Columbia adotavam esse regime indenizatório.9 Os estatutos variam de Estado para Estado, sendo diversos os critérios elencados para o deferimento das compensações, assim como a entidade designada para deliberar sobre o requerimento de indenização (órgãos administrativos ou as próprias Cortes estaduais ou federais). Em regra, o requerente não precisa provar qualquer conduta indevida do sistema acusatório do Estado, necessitando demonstrar, todavia, que foi encarcerado pela acusação da prática de um crime e que houve sua subsequente absolvição criminal. Em alguns Estados exige-se que o requerente não tenha contribuído para a acusação ou para a condenação (declarando-se culpado, por exemplo). Ou seja, se em qualquer momento o acusado aceitou um acordo criminal para redução de pena, mediante assunção de culpa, não terá direito a qualquer indenização administrativa, ainda que revertida sua condenação posteriormente.10 A ilegitimidade desse critério - que nega compensação ao acusado ainda que seja absolvido -, intensifica ainda mais os debates envolvendo as diversas modalidades de acordos criminais e suas consequências (Plea Bargaining). Trata-se de instrumento processual que almeja uma suposta composição "consensual" entre a acusação e o acusado, mediante acordo que pode reduzir as penas ou evitar outras imputações criminais, caso o acusado se declare culpado. Por outro lado, alguns Estados exigem em seus estatutos que o requerente obtenha um perdão governamental, que a exoneração seja baseada apenas em evidências de DNA, ou que o requerente não tenha condenações criminais anteriores. Por fim, alguns Estados condicionam o deferimento da indenização à renúncia do requerente ao seu direito de mover ações judiciais contra entidades ou agentes governamentais, ou exigem o reembolso das quantias pagas, caso posteriormente o exonerado obtenha uma indenização maior por meio do processo judicial. A segunda forma de se obter uma indenização por prisões injustas se dá através de uma ação judicial (civil rights suit), movida geralmente em um Tribunal federal, com fundamento na violação dos direitos dos acusados presos ao devido processo legal ou em novas provas que demonstrem suas inocências. Ao contrário das reivindicações sob os estatutos de compensação, essas ações judiciais se fundamentam na culpa grave (ou dolo) que orientou as autoridades públicas que integram o sistema de justiça criminal quanto às investigações, acusação ou julgamento de um caso criminal, acarretando encarceramento injusto. Com muita frequência, a motivação das demandas ressarcitórias se baseia na grave violação do devido processo legal dos acusados.  A imensa maioria dos processos judiciais indenizatórios por prisões indevidas é solucionada por via de acordos com alguns ou com todos os réus.11 A terceira forma de obtenção de indenização por encarceramento indevido se dá pela aprovação de leis especiais que determinem reparação específica a casos concretos (private bills). Como não é difícil compreender, trata-se de hipótese de difícil implementação, na medida em que depende da discricionariedade parlamentar de cada entidade política dos EUA. Essa "indenização legislativa" depende de forte influência política e da sujeição das vítimas a longos prazos de tramitação dos procedimentos legislativos.  Assim, esse método nunca se revelou um caminho eficiente, previsível ou sustentável para compensação, sendo gradativamente abandonado em virtude da adesão da maioria dos Estados aos estatutos de compensação12 e do aumento do número de exonerações ocorrendo a cada ano nos EUA.13 A quantificação das indenizações A compensação por encarceramentos indevidos nem sempre é realizada pecuniariamente. Alguns Estados preveem formas não compensatórias aos requerentes, oferecendo-lhes serviços sociais especiais, tais como formação educacional e profissional, acesso a cuidados de saúde e apoio à habitação.14 Relativamente às indenizações pecuniárias, os estatutos de compensação estabelecem métricas compensatórias próprias. Na maioria das vezes, há previsão de pagamento único ou de valores anuais. No âmbito federal, em 2004, o Congresso norte-americano aprovou um estatuto próprio (Justice for All Act), garantindo aos indivíduos exonerados pela suposta prática de crimes federais indenização de US$50.000 por ano de encarceramento indevido, e US$100.000 por ano aos que aguardavam presos injustamente no corredor da morte.  Muitos estatutos estaduais são geralmente iguais à métrica federal15, com alguns aumentos permitidos em função da inflação.16 Ainda assim, os valores indenizatórios a partir dos parâmetros previstos nos estatutos estaduais variam consideravelmente. O Estado de Wisconsin, por exemplo, paga US$5.000 por ano de encarceramento indevido, até o limite de US$ 25.000. O Estado do Texas, em contraste, paga US$ 80.000 por ano como um montante fixo, acrescidos de uma anuidade.17 Já em ações movidas judicialmente, os valores são muito variados, tomando por base o tempo em que os exonerados foram injustamente encarcerados, os danos materiais e pessoais sofridos e o grau de censurabilidade da atuação do sistema de justiça acusatório. De acordo com o professor Jeffrey Gutman, da George Washington University, um total de US$ 2,65 bilhões já foram pagos nos EUA a 716 presos exonerados registrados no National Registry por via de ações judiciais (normalmente, através de acordos). Isso implica uma média indenizatória de $3.7 milhões por caso, e aproximadamente US$318.000 por ano de prisão indevida. Uma das maiores indenizações judiciais em prol de exonerados foi a fixada em 2007, no importe de US$ 101,7 milhões, concedidos a Peter Limone, Joseph Salvati, Louis Greco e Henry Tameleo (Salvati e Tameleo foram exonerados postumamente).18 Dentre os maiores veredictos fixados para um único exonerado, destacam-se os US$ 41milhões concedidos a Jeffrey Deskovic em 2014 e, mais recentemente (2021), os US$ 25,2 milhões fixados em proveito de Eddie Bolden, em Illinois. E no sistema de justiça brasileiro? Como se processam as pretensões de indenização por prisões injustas? Será o tema da nossa próxima coluna. __________ 1 The New York Times. Disponível aqui. Acesso em 03 de dezembro de 2022. 2 O primeiro caso de erro judicial registrado nos EUA, que levou à prisão acusados inocentes, ocorreu em 1806. Dominic Daley e James Halligan foram sentenciados à morte e executados pelo assassinato de Marcus Lyon. A exoneração dos acusados somente ocorreu no ano de 1984, conforme narrado por Delvac, Kelly Shea, "Liberty and Just [Compensation] for All: Wrongful Conviction as a Fifth Amendment Taking" (2022). Connecticut Law Review, 541. Disponível aqui. Acesso em 06 de dezembro de 2022. 3 Segundo dados do National Registry, até o momento, 3302 exonerações foram cadastradas, implicando aos acusados, no total, a perda de impressionantes 28.150 anos por prisões indevidas. Disponível aqui. Acesso em 06 de dezembro de 2022. 4 Conforme dados da California Innocence Project, disponíveis aqui. Acesso em 06 de dezembro de 2022. 5 Disponível aqui. Acesso em 07 de dezembro de 2022. 6 Innocence Project.  Fundado em 1992 por Barry C. Scheck e Peter J. Neufeld na Escola de Direito Benjamin N. Cardozo da Universidade Yeshiva, o projeto tornou-se uma organização independente sem fins lucrativos. Disponível aqui.  Acesso em 04 de dezembro de 2022. 7 The National Registry of Exonerations. Disponível aqui. Acesso em 03 de dezembro de 2022. 8 Conforme reportagem do New York Times, essas empresas financeiras investem em casos de responsabilidade civil envolvendo reclamações contra seguradoras, casos de erro médico e de prisões indevidas, apostando nas futuras e quase certas indenizações, normalmente negociadas pelas vítimas por via de acordos. Os empréstimos às vítimas chegam a ser estipulados a taxas de até 33% ao ano. They Were Unjustly Imprisoned. Now, They're Profit Centers. New York Times, ed. 27 nov. Disponível aqui. Acesso em 07 de dezembro de 2022. 9 Compensation for Exonerees. Disponível aqui. Acesso em 03 de dezembro de 2022. 10 They Were Unjustly Imprisoned. Now, They're Profit Centers. New York Times, ed. 27 nov. 2022. Disponível aqui. Acesso em 03 de dezembro de 2022. 11 Compensation for Exonerees, Ibid., p. 02. 12 Ibid., p. 02. 13 Conforme sustenta Delvac, Kelly Shea, "Liberty and Just [Compensation] for All: Wrongful Conviction as a Fifth Amendment Taking" (2022). Connecticut Law Review, 541. Disponível aqui. 7 de dezembro de 2022. 14 O Estado de Montana, por exemplo, autoriza compensações mediante apoios comunitários sociais e educacionais, mas nenhuma indenização pecuniária administrativa. Will the state pay you for a wrongful conviction? Depends on the state. Disponível aqui. Acesso em 07 de dezembro de 2022. 15 GUTMAN, Jeffrey S. Are Federal Exonerees Paid? Lessons for the Drafting and Interpretation of Wrongful Conviction Compensation Statutes. The Cleveland State Law Review, v. 69, Issue 2, p. 01-57. 16 Ibid., p. 03. 17 Dados disponíveis aqui. Acesso em 05 de dezembro de 2022. 18 Ibid., p. 03.
No Brasil a responsabilidade civil avança, mas aquém do necessário. Persistimos no equívoco do paradigma puramente compensatório, pelo qual o único fator avaliado quando da prática de um ilícito são os danos patrimoniais e morais sofridos pela vítima. Essa é a lição do art. 944 do Código Civil: 'A indenização mede-se pela extensão do dano'. Contudo, para além da reparação de danos, o ato ilícito gera outras eficácias: a prevenção de condutas antijurídicas, a punição por comportamentos demeritórios e o desapossamento de lucros ilicitamente auferidos. Em sociedades plurais o direito civil deve atuar de forma mais eficaz em reação à proliferação de ilícitos. Isso só será possível, quando a responsabilidade civil for revisitada em um viés multifuncional, no qual o ordenamento não se restrinja ao objetivo de restituir as vítimas ao status quo (o que é uma ficção!), porém, passe a avaliar os aspectos relacionados as atividades desempenhadas pelos agentes, delimitando cada uma das funções da responsabilidade civil mediante critérios objetivos e razoáveis. Alguns diriam que é possível ao Judiciário brasileiro aplicar condenações que suprimam os ganhos ilícitos do ofensor, mesmo contrariamente a previsão do art. 944 do CC. Isso se faria pela aplicação dos chamados "equivalentes funcionais": dano moral, enriquecimento injustificado, ações coletivas, sanções administrativas ou, naquilo que aqui nos interessa, pelos múltiplos compensatórios. No tocante aos múltiplos compensatórios, a recente lei 14.470/22 altera a lei 12.529/11, determinando que as vítimas de infrações à ordem econômica serão ressarcidas em dobro.  O chamado "double damage", gera grande desincentivo à prática do ilícito. Conforme explica Bruno Maggi na coluna do Migalhas de responsabilidade civil de 24/11/22, a persecução privada dos danos concorrenciais é essencial para complementar a iniciativa pública de punição dos infratores, tornando o ilícito financeiramente inviável, na medida em que o violador restituí o lucro obtido com a ilicitude, acrescido de multa Estatal. Há potenciais ganhos derivados do fato de que a taxa de detecção das violações pelo Estado é inferior a 100% e que também são poucas as vítimas que buscam o ressarcimento por seus danos. Assim, a implementação do dano em dobro reequilibra o jogo. Aproveitando a novidade legislativa brasileira, breves considerações devem ser dedicadas ao modelo suis generis dos múltiplos indenizatórios (enhanced damages). Seriam as indenizações extracompensatórias uma variação dos punitive damages? Não existem standards que expliquem a racionalidade e o propósito subjacentes a esse remédio, mas apenas o fato de que a sua quantificação se atrela a uma indenização compensatória, o que a um primeiro olhar soa inusitado, pois compensação e punição reunidas reverberam um contrassenso diante da evolução da responsabilidade civil direcionada à autonomização de suas funções.1 A necessidade de clarificação deste aparente paradoxo é também um desafio para a doutrina brasileira. Exemplificativamente, os art. 9392 e 9403 do Código Civil cuidam das sanções aos credores que demandarem judicialmente os seus devedores antes de vencida a dívida ou quando ela já houver sido paga. Dentre elas, destaca-se a pretensão do devedor de haver o dobro do que lhe foi cobrado. Se houve engano justificável do autor a pena será elidida, na medida em que a sanção pelo múltiplo só se justifica se comprovada a conduta maliciosa do autor, sob pena de inibir o ajuizamento de demandas. Refere-se o art. 941 às aludidas sanções como "penas". Não por outro motivo, Pontes de Miranda4 aduz que a possibilidade do prejudicado pela cobrança indevida postular indenização suplementar revela "uma pena privada, com presunção de culpa"5. Seria possível cumular a sanção dos artigos 939 e 940, com uma pretensão de perdas e danos pelos prejuízos que o demandado demonstrar haver sofrido? Cláudio Godoy responde afirmativamente, salientando que quantias previstas nos referidos dispositivos encerram verdadeira pena privada, então por consequência a indenização, com diversa finalidade, poderia ser sempre cumulada, tal qual, de resto, ocorre com a litigância de má-fé no sistema processual civil, revertendo multa e indenização em favor do demandante inocente.6 Adiante, dispõe o parágrafo único do art. 42 do Código de Defesa do Consumidor: "O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável". Ao se exigir em dobro do fornecedor os valores cobrados extrajudicialmente, é extraída da norma uma finalidade essencialmente pedagógica, voltada a intimidar o agente econômico a não mais reiterar tal ilícito. No caso ilustrado, pelo fato da condenação objetivamente exceder os limites estritamente necessários à reconstituição do equilíbrio econômico ("o dobro"), acidentalmente a sanção punitiva é mensurada em uma análise comparativa em termos quantitativos ao valor da restituição.7 Mas, essencialmente ela será qualitativamente indiferente com relação a este aspecto - posto a sua peculiar natureza em termos de estrutura e finalidade, tratando-se de uma retribuição ao autor da violação, sem ter em conta a diversa questão do pagamento indevido.8 Nos exemplos aqui referidos, passamos ao largo do disgorgement. Esses dispositivos dispersos podem ser reconduzidos a um grupo de "penas privadas legais", da mesma forma que a cláusula penal é por vezes uma "pena convencional contratual", quando convencionada de modo a alcançar valor superior a eventuais perdas e danos - e independente da ocorrência destes - convertendo-se em uma sanção punitiva. Contudo, para uma aproximação maior com situações mais comuns no direito comparado, vale colacionar um múltiplo compensatório de matriz jurisprudencial, que trata de uma condenação por uso não autorizado de software em "dez vezes o valor de mercado de cada programa utilizado ilicitamente", partindo-se da premissa de que "A pena pecuniária imposta ao infrator não se encontra restrita ao valor de mercado dos programas apreendidos" e de que "a responsabilidade civil, como sistema de natureza complexa onde transitam uma série de finalidades sociais, que não se exaurem numa mera função compensatória, necessita de uma aplicação punitiva que traga ínsita não apenas o caráter compensador mas, ainda, o inibidor da prática do ilícito".9 O STJ aplicou a condenação com paradigma o art. 102, da lei 9.610/1998: "O titular cuja obra seja fraudulentamente reproduzida, divulgada ou de qualquer forma utilizada, poderá requerer a apreensão dos exemplares reproduzidos ou a suspensão da divulgação, sem prejuízo da indenização cabível". Pode-se dizer que o STJ aplicou ao campo da violação da propriedade imaterial aquilo que nos Estados Unidos são conhecidos como enhancing damages ou supra-compensatory damages. O modelo do Copyright act prevê no §504 - Remedies for infringement: Damages and profits - as seguintes opções: a) os danos reais sofridos pelo demandante, acrescidos de quaisquer lucros adicionais obtidos pelo infrator que não tenham sido levados em conta para a fixação da indenização; b) uma indenização fixada em lei, que poderá alcançar o montante máximo de $150,000 se provado o dolo do infrator; c) se o demandado for proprietário de estabelecimento comercial, sem prejuízo das alternativas anteriores, o demandante poderá obter um prêmio adicional de duas vezes o montante da taxa de licença que o titular do estabelecimento deveria ter pago àquele pela utilização do direito autoral durante o período anterior até 3 anos. Em suma, há uma soma de indenizações compensatórias, restitutórias e punitivas. Outro exemplo norte-americano persuasivo provém do § 284 da Patent Act (35 U.S.C, de 2007),10 estabelecendo um múltiplo indenizatório do triplo dos danos resultantes do ilícito (treble damages). A calibração da indenização conforme o maior grau de desprezo do demandado pelos direitos do demandante, objetiva preencher o propósito do sistema de patentes, a otimização do incentivo à inovação. Ademais, parte-se de uma racionalidade econômica, pautada em um reequilíbrio do mercado, tendo em vista que a maior parte dos ilícitos não será identificada.11 Nada obstante, ao criar um múltiplo reparatório sem base legislativa com "aparência" de perdas e danos, o Superior Tribunal de Justiça implicitamente aplicou punitive damages, desrespeitando a fundamental reserva legal. Exemplary damages são "penas privadas judiciais", emanam de condenações cíveis e no sistema de civil law demandam respaldo legislativo, tratando-se de sanções formalmente privadas, mas materialmente penais.12 Definitivamente, a proteção da propriedade intangível seria mais efetiva caso a própria norma já antecipasse o múltiplo indenizatório (v.g., 3 x, 5 x ou 10 x o valor do dano) - tal como fez a recente Lei 14.470/22 - como uma espécie de punitive damages, preferencialmente acompanhada de critérios objetivos que demarcassem os limites mínimo e máximo da condenação. Alternativamente ao modelo de uma sanção punitiva, uma interessante mudança de rumos seria a de substituir a fórmula adotada pela Lei de Direitos Autorais13 pelo modelo do Código de propriedade Industrial (lei 9.279/1996)14 - aplicável a patentes e marcas - para consagrar que em qualquer forma de violação à propriedade imaterial seria deferida maior autonomia ao demandante, na medida em que  pode optar entre a clássica indenização por danos, a estipulação de um preço pelo uso inconsentido do bem (reasonable fee) ou então a remoção de lucros ilícitos (disgorgement).15 Este é o caminho para aliar o private enforcement a uma responsabilidade civil multifuncional. Retomando a perspectiva dos danos concorrenciais com o advento da lei 14.470/22, determinando que as vítimas de infrações à ordem econômica serão ressarcidas em dobro, lembramos da longa experiência norte-americana nas sanções aos cartéis. Os Estados Unidos impõem um arsenal diversificado de sanções contra o conluio:16 disgorgement para as empresas envolvidas, prisão e multas para os funcionários corporativos envolvidos. As vítimas diretas e indiretas podem processar por danos triplos e honorários advocatícios. Essa multiplicidade de sanções forjou à sabedoria convencional fortemente sustentada - porém nunca examinada seriamente - no campo antitruste, de que essas sanções não são apenas adequadas para impedir o conluio, mas também excessivas. Todavia, importante pesquisa empírica17 demonstra que o nível combinado das atuais sanções é de apenas 9% a 21% maiores do que o necessário para proteger vítimas potenciais de cartelização de forma otimizada. Consequentemente, o nível médio das sanções anticartel dos Estados Unidos deve ser aproximadamente quintuplicado. Corporações e indivíduos que praticam conluio ilegal serão dissuadidos apenas se as recompensas esperadas forem menores que os custos esperados, ajustados pela probabilidade de a atividade ilegal ser detectada e sancionada. Isso significa que, apesar das sanções existentes, o conluio continua sendo uma estratégia comercial racional. A cartelização nos EUA é um crime que ainda compensa e, na verdade, paga muito bem. Imagine no Brasil... __________ 1 Rosenvald, Nelson. A responsabilidade civil pelo ilícito lucrativo. 2. Ed. Juspodivm, Salvador, 2020. 2 "O credor que demandar o devedor antes de vencida a dívida, fora dos casos em que a lei o permita, ficará obrigado a esperar o tempo que faltava para o vencimento, a descontar os juros correspondentes, embora estipulados, e a pagar as custas em dobro." 3 "Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, salvo se houver prescrição." 4 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de direito privado, t. LIV, p. 47. 5 Informativo STJ n. 576. Período: 5 a 19 de fevereiro de 2016: "A aplicação da sanção civil do pagamento em dobro por cobrança judicial de dívida já adimplida (cominação encartada no art. 1.531 do CC/1916, reproduzida no art. 940 do CC/2002) pode ser postulada pelo réu na própria defesa, independendo da propositura de ação autônoma ou do manejo de reconvenção, sendo imprescindível a demonstração de má-fé do credor. A pena em comento é sanção que a lei determina à jurisdição impingir e, pois, sua cominação não está à mercê do animus dos litigantes, nem do talante do próprio juiz, visto que resulta da lei. Ademais, dada a complementaridade entre a sanção civil em tela e a penalidade processual por litigância de má-fé - ainda que possuam natureza jurídica distinta - verifica-se que ambas são voltadas à punição dos demandantes que se utilizam do processo judicial para consecução de objetivo ilegal, afigurando-se coerente a exegese no sentido da aplicação analógica da regra disposta no caput do art. 18 do CPC ('O juiz ou tribunal, de ofício ou a requerimento, condenará o litigante de má-fé a pagar multa não excedente a um por cento sobre o valor da causa e a indenizar a parte contrária dos prejuízos que esta sofreu, mais os honorários advocatícios e todas as despesas que efetuou'). Nessa ordem de ideias, resguardando a boa-fé nas relações jurídicas e o interesse público de garantia da dignidade da justiça, incumbirá ao juiz, inclusive de ofício, a condenação do autor (imbuído de má-fé) ao pagamento em dobro ou do equivalente exigido a maior em virtude da conduta ilícita descrita no art. art. 940 do CC/2002" (REsp 1.111.270-PR, rel. Min. Marco Buzzi, 2ª Seção, DJe 16-2-2016). 6 GODOY, Cláudio. Código civil comentado, São Paulo, Manole, p. 786. 7 Rodrigo da Guia Silva considera que "o tratamento jurídico mais adequado da chamada devolução em dobro parece ser o de cindir tal hipótese em duas pretensões distintas, de acordo com as respectivas funções, de tal modo que a primeira parte da devolução siga o regime geral da restituição do enriquecimento sem causa (por se tratar de consequência tradicionalmente atribuída ao pagamento indevido), ao passo que a segunda parte ('o dobro') seja qualificado como efetiva pena civil". In: Enriquecimento sem causa, p. 116. 8 Ao comentar a repetição do indébito em dobro na cobrança indevida de débito oriundo de relação de consumo, Luiz Cláudio Carvalho de Almeida remete o art. 42 do Código de Defesa do Consumidor ao sistema dos punitive damages - não por haver um "dano" propriamente dito, mas por uma indenização com o propósito de sancionar o ofensor. A indenização civil pode ser utilizada como forma de pena desde que exista previsão legal neste sentido, "caso contrário estar-se-ia violando o princípio basilar da legalidade (nulla poena sine lege)". O pseudolucro do consumidor seria irrelevante frente ao benefício social trazido pela aplicação da norma, afinal "negar a indenização, nesses casos, seria imputar ao consumidor o ônus de suportar os danos decorrentes do equívoco, o que não se coaduna com os princípios vetores do Código de Defesa do Consumidor, dentre os quais se destacam os princípios da vulnerabilidade e o da confiança". A repetição do indébito em dobro no caso de cobrança indevida de dívida oriunda de relação de consumo como hipótese de aplicação dos punitive damages no direito brasileiro, Revista de Direito do Consumidor, v. 54, p. 161-172, 2005. 9 No Superior Tribunal de Justiça as decisões foram prolatadas no mesmo sentido pela 3. e 4. Turma. Informativo nº 0463 Período: 14 a 18 de fevereiro de 2011. QUARTA TURMA INDENIZAÇÃO. CONTRAFAÇÃO. PROGRAMA. COMPUTADOR. Trata-se de ação indenizatória cumulada com obrigação de não fazer na qual o recorrente alega que, em ação cautelar de antecipação de provas, ficou demonstrado que o recorrido usava, sem licença, programa de computador de sua titularidade. A Turma, reiterando a jurisprudência deste Superior Tribunal, entendeu que o montante indenizatório deve ser de dez vezes o valor de mercado de cada um dos programas indevidamente utilizados. O simples pagamento pelo contrafator do valor de mercado de cada exemplar apreendido não corresponderia à indenização pelo dano decorrente do uso indevido. Se assim fosse, o contrafator teria que pagar apenas o valor que expenderia se usasse legalmente o programa. Precedentes citados: REsp 1.136.676-RS, DJe 29/6/2010; REsp 1.016.087-RS, DJe 14/4/2010, e REsp 1.122.687-RS, DJe 14/9/2010. REsp 1.185.943-RS, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 15/2/2011. 10 §284. "Damages Upon finding for the claimant the court shall award the claimant damages adequate to compensate for the infringement, but in no event less than a reasonable royalty for the use made of the invention by the infringer, together with interest and costs as fixed by the court. When the damages are not found by a jury, the court shall assess them. In either event the court may increase the damages up to three times the amount found or assessed". 11 No mesmo sentido caminha o Trademark act , cujo §35(b) admite a imposição ao contrafator de uma marca de uma penalidade equivalente ao triplo do valor dos danos sofridos pelo titular do direito infringido.  12 Em obra de nossa autoria tivemos a oportunidade de escrever que "a pena civil é uma sanção de natureza e função penal - apesar de formalmente civil -, que persegue finalidades de prevenção geral e especial. Como atributo do princípio da legalidade, a noção de tipicidade assume um papel sistemático, no sentido de que a sanção privada de finalidade preventiva e repressiva, que comporta deveres de caráter geral endereçados à coletividade, deve ser prevista por uma regra, uma norma que consiga portar o máximo de especificidade. A qualificação formal da pena civil dentro do direito privado é apenas um ponto de partida que não pode negar a origem penal da infração. Certamente, por ser uma pena civil, ela obedecerá à forma e aos efeitos específicos do direito privado, conforme a qualificação dada pelo legislador. Ilustrativamente, é inimaginável que o descumprimento da pena civil pecuniária possa ser convertido em uma pena de detenção". (ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil, p. 190). 13 A propriedade intelectual designa o conjunto dos direitos exclusivos atribuídos às criações intelectuais. Divide-se em dois ramos: a propriedade intelectual, que compreende as invenções (patentes), as marcas, os desenhos e modelos industriais e as indicações geográficas, e os direitos de autor, que abrangem as obras literárias e artísticas. 14 Art. 210. "Os lucros cessantes serão determinados pelo critério mais favorável ao prejudicado, dentre os seguintes: I- os benefícios que o prejudicado teria auferido se a violação não tivesse ocorrido; ou II- os benefícios que foram auferidos pelo autor da violação do direito; ou III- a remuneração que o autor da violação teria pago ao titular do direito violado pela concessão de uma licença que lhe permitisse legalmente explorar o bem". 15 Fórmula esta também adotada pela Diretiva Europeia 2004/48. 16 Como uma soma de esforços de 3 legislações federais: The Sherman Antitrust Act; The Clayton Act: The Federal Trade Commission Act. Em reforço, a Divisão Antitruste também se serve de outras leis para combater atividades ilegais que surgem de condutas que acompanham violações antitruste ou que de outra forma afetam o processo competitivo, 17 Connor, John M. and Connor, John M. and Lande, Robert H., Cartels as Rational Business Strategy: Crime Pays (November 1, 2012). 34 Cardozo Law Review 427 (2012), Available at SSRN.
segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Fronteiras do Direito do Consumidor - Parte I

Introdução Em 18 de abril de 2017, Oren Bar-Gill fez uma palestra intitulada "Fronteiras do Direito do Consumidor", por ocasião de sua nomeação como Professor de Direito e Economia William J. Friedman e Alicia Townsend Friedman, na Faculdade de Direito de Harvard1. Apesar de passados cinco anos desde a palestra, o seu conteúdo segue sendo extremamente atual e de altíssima qualidade. Pela atualidade e qualidade do conteúdo, trago aqui nesta e na próxima colunas os principais temas que Bar-Gill aborda em sua palestra. Em uma serie de duas ou três colunas, vamos tratar do tema das fronteiras do direito do consumidor. Pontos de partida do problema no direito do consumidor: informação imperfeita e racionalidade imperfeita Oren Bar-Gill inicia sua palestra afirmando que "o problema no direito do consumidor começa com informação imperfeita e racionalidade imperfeita. E tudo isso parte de um mero fato, um fato realmente importante e básico: os contratos de consumo são exatamente o tipo de contratos que nós nunca lemos." "E por que nós nunca os lemos?", questiona Bar-Gill. "Porque eles são muito longos", responde ele. E prossegue: "Não é, portanto, surpreendente que os consumidores não os leiam. De fato, não faz sentido lê-los. Na verdade, é provavelmente irracional lê-los." Para ilustrar esse ponto, Bar-Gill apresentou uma foto do amigo Omri Ben-Shahar, professor da Universidade de Chicago, que imprimiu os "termos e condições" do iTunes, colou uma página na outra e as pendurou no teto da biblioteca da faculdade de Direito da Universidade de Chicago: Um outro argumento é o da difícil compreensão dos contratos: "os consumidores também não os leem porque, mesmo que o fizessem, provavelmente não os entenderiam. O fato de que não entenderiam se lessem é uma boa razão para não ler. Agora, por que não entenderiam? Primeiro, por causa do uso de jargões jurídico que mesmo alguns advogados não entendem, muito menos pessoas leigas." Além disso, complementa Bar-Gill, mesmo enfocando os termos comerciais dos contratos, como preço, termos que os consumidores devem, de fato, notar e pesquisar quando estão comparando produtos, mesmo com relação a esses tipos de termos, seria muito difícil para eles entendê-los e considerá-los de forma racional em sua tomada de decisão como consumidores. A razão para isso, argumenta Bar-Gill, "é que em muitos desses mercados de consumo, em muitos desses contratos de consumo, os termos de preço são multidimensionais e complexos a um nível muito difícil de entender." Segundo Bar-Gill, "esses problemas de informação imperfeita e racionalidade imperfeita levam a maus resultados nos mercados de consumo. Esta é a realidade onde fornecedores prometem muito em seus anúncios publicitários, mas depois tentam minar e limitar essas promessas nas 'letras miúdas' do contrato." Em face desses problemas, segundo Bar-Gill, as questões a serem enfrentadas pelo Direito são: "o que se pode e deve fazer sobre esses problemas? Quais são as ferramentas jurídicas e regulatórias à disposição para tentar proteger os consumidores e evitar que esses maus resultados ocorram?" Há diversas ferramentas disponíveis no arsenal jurídico. Em sua palestra, Bar-Gill se concentra no estudo de quatro promissoras categorias de técnicas regulatórias que estão na fronteira da regulação dos mercados de consumo: (i) novos deveres de informação, (ii) regras padrão; (iii) limites de preços e (iv) a teoria contratual. Na presente coluna, por questões de espaço, é apresentada apenas a primeira delas. As demais serão apresentadas nas próximas colunas. Deveres de divulgação ou informação (disclosure mandates) Há essencialmente duas grandes formas de divulgação ou de informação no direito do consumidor: uma primeira é a forma antiga, quando a lei obriga os fornecedores a apresentarem antecipadamente todos os termos do contrato, isto é, um tipo de divulgação obrigatória. Existem muitos exemplos que a lei exige uma divulgação muito extensa e demorada dos termos do contrato. Segundo Bar-Gill, "hoje em dia está claro para todo mundo que isso é completamente inútil. É inútil pelo motivo mencionado acima, de que os consumidores não leem o contrato." Mas há novas formas de divulgação ou de informar os consumidores que podem realmente ajudar os consumidores. E é nelas, afirma Bar-Gill, que o foco deve ser então colocado. Divulgações inteligentes (smart discloures) e problema de falsa inferência Dentre essas novas formas, há as chamadas informações ou divulgações inteligentes (smart disclosures). Trata-se de breves divulgações resumidas que os consumidores podem ler e entender rapidamente. Nos EUA, um exemplo desses tipos de divulgações é a caixa Schumer (Schumer box) para cartões de crédito. Uma caixa Schumer é uma tabela que aparece nos contratos de cartão de crédito que mostra informações básicas sobre as taxas e tarifas do cartão.2 Ainda nos EUA, outro tipo de nova divulgação seria um aviso de organismos geneticamente modificados (OGMs). Como bem explica Bar-Gill, "este tipo de divulgação é muito diferente dos termos muito longos do contrato. Esses são avisos que os consumidores podem ver, entender e agir prontamente." E, então, trata-se de divulgações que são eficazes, que podem realmente influenciar o comportamento dos consumidores. Contudo, adverte Bar-Gill do seguinte: "Mas uma vez que se está no reino das divulgações que podem realmente influenciar o comportamento do consumidor, é muito importante que se tenha segurança de fazê-lo na direção certa. Há, então, desafios realmente importantes no design dessas informações." Se elas não forem projetadas de maneira cuidadosa, resultados ruins podem ocorrer. Um exemplo desse tipo de desafio é o problema de falsas inferências de deveres de informação3. Para entender esse problema, Bar-Gill explica que é preciso fixar a premissa de que o efeito que os deveres de divulgação têm no comportamento do consumidor "depende dos motivos que os consumidores atribuem aos reguladores que decidiram por esse novo tipo de divulgação. Então, pensando em particular nos avisos de OGMs, realmente importa qual é a razão, na mente do consumidor, pela qual o regulador decidiu exigir um aviso do tipo OGM." Bar-Gill ilustra essa ideia com o seguinte exemplo: "se os consumidores pensam que a razão pela qual um regulador exigiu esse tipo de aviso é porque o regulador obteve novas pesquisas sugerindo que os alimentos transgênicos são perigosos para a saúde ou para o meio ambiente, então os consumidores vão aumentar suas crenças sobre os riscos associados a esses produtos." Por outro lado, "se os consumidores acreditam que o regulador, ao decidir sobre esse dever de divulgação, foi motivado por política, por pressão de grupos de interesse", então tem-se um efeito muito diferente nas atitudes ou crenças de risco dos consumidores. E então, na verdade, o risco percebido diminui quando o regulador impõe a divulgação em vez da não divulgação". E agora vem a questão da falsa inferência: "o problema é que muitos consumidores têm falsas crenças sobre os motivos dos reguladores. Eles não sabem por que um regulador decidiu exigir a divulgação de OGM. Com efeito, no contexto dos OGMs [nos EUA], o problema era que muitos consumidores pensavam que a razão para a imposição de divulgação era pesquisa, quando na verdade não era." E isso causa, conclui Bar-Gill, um problema de falsa inferência. "De fato, faz com que os consumidores superestimem o risco associado aos alimentos OGMs, o que levará os consumidores a comprar menos desses alimentos transgênicos, o que é prejudicial aos consumidores e interfere na eficiência do mercado." Um outro motivo para a imposição desse tipo de dever de informação foi o direito de saber: de fato, "quando os reguladores americanos estavam considerando as divulgações de OGMs, muitos deles pensaram que o motivo ou justificativa para essa divulgação era um direito de saber, de ser informado. Eles pensaram que os consumidores têm um direito de saber o que estão comendo, independentemente de quaisquer riscos ou perigos associados a esse alimento." Diante disso, reflete Bar-Gill que, se um consumidor é racional e acredita que esse é o motivo, então ele não deveria alterar sua percepção sobre o risco do produto. Mas o que se percebe é que, na realidade, "há também um aumento mesmo quando os consumidores pensam que o motivo é um direito de saber", de ser informado. Agora, de fato, pondera Bar-Gill, "pode ser que esses consumidores sejam imperfeitamente racionais. Pode ser que eles estejam confundindo o direito de saber com pesquisas realmente novas sobre danos causados por OGMs. Mas, por alguma razão, isso agrava o problema da falsa inferência e interfere na eficiência dos mercados." Em conclusão sobre esse ponto, Bar-Gill explica que isso não significa que "os deveres de divulgação sejam ruins. [...] Mas isso sugere que eles devem ser bem projetados, que se deve ter cuidado com as escolhas a respeito da divulgação ou da não divulgação de informações." Divulgações voltadas ao Sistema 1 Avançando de tema em sua palestra, Bar-Gill explica que o que foi dito até agora foi focando nos "deveres de divulgação que são projetados para facilitar o processo de pensamento deliberativo dos consumidores, usando o que os psicólogos chamam de processamento do Sistema 2. A ideia aqui é fornecer informações aos consumidores. Eles estão incorporando essas informações em seu processo de tomada de decisão deliberativa e, portanto, tomando esperançosamente decisões melhores."4 "Mas há outro tipo de divulgação", como explica Bar-Gill: "Há um tipo de divulgação que, em vez de invocar processos deliberativos do Sistema 2, na verdade visa a ativar o Sistema 1 intuitivo, emocional ou afetivo, processado em nosso cérebro. E então um excelente exemplo aqui são as divulgações gráficas, as imagens de advertência em maços de cigarro. Elas não são projetadas para fornecer informações de uma forma racional e deliberativa. Elas são fornecidas para provocar respostas emocionais, de medo e desgosto. Elas também são muito eficazes em influenciar o comportamento, mas através de um canal muito diferente." Conclusão Em conclusão a essa primeira técnica regulatória, afirma Bar-Gill que, "quando se reúne esses dois tipos de divulgação, as divulgações inteligentes do Sistema 2 e também as divulgações do Sistema 1, nota-se que a divulgação pode ser muito eficaz em influenciar o comportamento. E isso é uma coisa boa. Mas também é algo que requer cautela e design deliberado por parte dos reguladores e formuladores de políticas públicas." Tradicionalmente, em face de um problema de assimetria informacional nos mercados de consumo, as pessoas sugeriam adicionar uma imposição de divulgação. E a imposição de dever de informação sempre foi pensada como um tipo de intervenção suave, um tipo de intervenção não paternalista nos mercados. No final das contas, a indústria ficava feliz com isso, porque realmente nada de efetivo havia sido feito. E legisladores, por sua vez, ficavam satisfeitos, com a impressão de que pelo menos estavam fazendo algo, mas sem realmente nada de determinante ter sido realizado. Com relação à nova divulgação, isso não é mais verdade. Como visto, essas novas divulgações são muito poderosas para afetar os resultados do mercado. E assim não se pode mais pensar que isso é "apenas" informação ou divulgação. Elas passam a levantar, portanto, uma verdadeira questão de paternalismo. Mas isso não significa que elas não devem ser utilizadas, conclui Bar-Gill. "Significa apenas que devem ser utilizadas com cuidado." __________ 1 A palestra está disponível no YouTube: "Frontiers of Consumer Law". 2 "A caixa Schumer mostra informações sobre o custo do cartão para os consumidores, incluindo sua taxa percentual anual (TPA) para compras, TPA para transferências de saldo, TPA para adiantamentos em dinheiro, TPA de multa, período de carência, taxa anual, taxa de transferência de saldo, taxa de adiantamento de dinheiro, taxa de atraso de pagamento, taxa de excesso e taxa de pagamento devolvido. Os emissores de cartão de crédito devem incluir a caixa Schumer em todas as solicitações de cartão de crédito, seja a oferta online ou pelo correio." (Para mais informações, clique aqui) 3 Oren Bar-Gill, Cass Sunstein e David Schkade tentaram entender, identificar e medir esse tipo de problema no seguinte artigo: BAR-GILL, Oren; SCHKADE, David; SUNSTEIN, Cass R.. Drawing False Inferences from Mandated Disclosures. Harvard Public Law Working Paper n. 17-06, Febr. 2017. 4 Sobre o tema dos Sistemas 1 e 2, cf. KAHNEMAN, Daniel. Rápido e devagar. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.
Introdução. A presente coluna encerra uma série de quatro colunas sobre o papel da Suprema Corte dos Estados Unidos no reconhecimento de direitos reprodutivos. Uma primeira coluna explicou os termos do julgamento proferido em 1973 no conhecido caso Roe v. Wade, introduzindo ao leitor os fundamentos judiciais.1 Uma segunda coluna aprofundou a discussão a partir da moldura analítica formulada pelo Professor Laurence Tribe, renomado constitucionalista e Professor da Universidade de Harvard, que considera que se trata de um conflito entre valores absolutos.2 Uma terceira coluna chamou a atenção para o impacto daquele caso para os debates sobre a proteção aos direitos fundamentais pela Suprema Corte e sobre a legitimidade moral e política das decisões judiciais.3 Nesse contexto, a presente coluna conclui esse ciclo de tratamento do tema dos direitos reprodutivos, apresentando para o leitor brasileiro os termos do julgamento de Dobbs v. Jackson Women's Health Organization, que foi publicada no dia 24 de junho de 2022. O objetivo da coluna não é obviamente encerrar o tema, até mesmo porque se trata de uma questão que permanecerá em aberto e que certamente terá novos capítulos no futuro, tanto nos Estados Unidos, quanto no Brasil. Assim é que se pretende explicar os termos do julgamento da Suprema Corte dos Estados Unidos e indicar potenciais caminhos para que o tema venha a ser tratado no futuro. Nesse contexto, aliás, deve se salientar que tais objetivos são modestos e que não implicam em nenhum esforço de previsão de futuro, mas apenas e tão somente de trabalhar com possíveis cenários a partir do presente. A presente coluna será dividida em quatro partes. Além dessa introdução, será feita uma explicação da fundamentação jurídica adotada pela Suprema Corte. A partir dessa análise, serão apresentados futuros caminhos para a proteção dos direitos reprodutivos nos Estados Unidos e no Brasil. Finalmente, a última parte apresentará as considerações finais. Os Termos da Decisão e uma Análise Inicial da Fundamentação Judicial. O julgamento dizia respeito a uma lei do Mississippi que proibia a prática de aborto após o decurso do período de quinze semanas desde a concepção, tendo a constitucionalidade dessa legislação sido questionada em juízo pela clínica de aborto 'Jackson Women's Health Organization' e por um de seus médicos, que alegavam que estava sendo violados os precedentes da Suprema Corte que tinham estabelecido um direito constitucional ao aborto. Após decisões judiciais do juízo local e do tribunal reconhecendo a inconstitucionalidade da lei do Mississippi, o caso chegou até a Suprema Corte e o Estado de Mississippi então defendeu que os precedentes judiciais Roe e Casey tinham sido equívocos judiciais e que a lei seria constitucional conforme um juízo de racionalidade. No julgamento, a opinião da maioria da corte foi no sentido de que a Constituição não confere um direito ao aborto, derrubando os precedentes judiciais de Roe e Casey, e devolvendo a autoridade para regular o aborto ao povo e a seus representantes eleitos.4 Para a maioria, a Constituição não faz nenhuma referência expressa a um direito de obter um aborto e tampouco tal direito estaria enraizado na história nacional e na tradição jurídica de proteção da privacidade e da liberdade nos Estados Unidos. Ao contrário, conforme a opinião da maioria, até o final do século XX, não existia nenhum suporte para o reconhecimento de um direito de aborto no direito constitucional e nenhuma Constituição Estadual trazia cláusula constitucional expressa nesse sentido. Para a maioria, Roe teria ignorado a história constitucional e Casey teria se recusado a reconsiderar a análise histórica errada de Roe. Para a maioria, existe um conflito de interesses entre a mulher e a vida em potencial que pode ser avaliado de modo diferente pelo povo dos vários Estados e são os representantes eleitos de cada unidade da federação que devem decidir como o aborto deve ser regulado em cada local. A maioria não consegue identificar um fundamento para justificar a existência de um direito fundamental ao aborto como corolário do direito da privacidade ou do direito à autonomia, considerando que a questão moral crítica colocada pela discussão sobre o aborto deve ser tratada como uma questão política e não como uma questão judicial. Como os parâmetros estabelecidos pelo precedente Roe v. Wade se assemelham a um esquema legislativo e os fundamentos são os esperados de um corpo legislativo, a opinião da maioria afasta a tese de que o aborto seria possível quando o feto não tiver viabilidade e derruba o precedente. Como os parâmetros de Casey com relação a análise de um 'ônus indevido' é fraco em termos de operacionalização, a maioria também derruba esse precedente. A conclusão da maioria é no sentido de que o aborto não é um direito constitucional fundamental, de modo que os Estados podem regular o aborto por suas razões legítimas e, quando tais razões são questionadas em termos constitucionais, o Poder Judiciário não pode substituir suas crenças sociais e econômicas pelo julgamento dos corpos legislativos. O direito de regular o aborto, assim como ocorre com outras leis relativas à saúde e ao bem-estar, estão sujeitas a uma presunção forte de validade. Em síntese, a Constituição não proíbe os cidadãos de cada Estado de regular ou proibir o aborto, de modo que a corte derruba seus precedentes e devolve tal autoridade para o povo e seus representantes eleitos. A maioria foi formada pelos Justices Alito, Thomas, Gorsuch, Kavanaugh e Barret. O Presidente da Corte, Chief Justice Roberts, concordou com o julgamento, mas não com a opinião e elaborou um voto independente para explicar que não considerava adequado derrubar os precedentes de Roe e Casey. Por sua vez, a opinião contrária da minoria foi subscrita pelos Justices Breyer, Sotomayor e Kagan. A opinião da maioria escrita pelo Justice Alito foi justificada a partir da teoria constitucional do ex-Diretor da Faculdade de Direito de Stanford, John Hart Ely, desenvolvida em uma série de artigos acadêmicos e na obra Democracy and Distrust: A Theory of Judicial Review.5 Além disso, o voto foi baseado em uma longa análise histórica para demonstrar uma tradição de proibição do aborto nos Estados Unidos nos séculos XIX e XX, o que é evidenciado por uma coleção de normas penais incriminadoras apresentadas sob a forma de apêndice ao voto. Além de aderir ao voto, o Justice Thomas acrescentou um complemento à opinião para afirmar seu entendimento de que deveriam ser derrubados todos os precedentes judiciais elaborados com base na cláusula do devido processo legal substantivo, já que ele considera que tal doutrina seria equivocada - 'um oxímoro', em sua opinião - e que somente existe um devido processo legal formal com garantias estritamente processuais. Para o Justice Thomas, também deveriam ser derrubados precedentes judiciais que consideraram inconstitucionais leis proibindo métodos anticoncepcionais, casamentos de mesmo gênero e sodomia, porque toda decisão com base no devido processo substantivo seria demonstradamente errônea. Por sua vez, Justice Kavanaugh faz questão de adotar uma posição bastante diferente, pretendendo deixar claro que a decisão diz respeito somente ao tema do aborto e que, em sua visão, a Constituição não seria nem pró-escolha e nem pró-vida, mas neutra, não tendo lado e deixando a questão para ser resolvida pelo povo e seus representantes eleitos através do processo democrático em cada um dos Estados e no Congresso. Não caberia aos membros da Suprema Corte esvaziar o processo democrático e definir uma única política pública para os trezentos e trinta milhões de pessoas nos Estados Unidos. A questão deve ser deliberada no âmbito da política local pelo povo e seus representantes. Além disso, ainda que um Estado proíba o aborto, um cidadão não pode ser impedido de viajar para realizar o aborto em um outro local que autorize o aborto. Em sua opinião, uma solução uniforme para todo o país não fazia sentido e tornava impossível um compromisso político para o futuro, fazendo sentido que a corte derrube Roe para retornar ao compromisso político que existia anteriormente e que possibilitava uma variedade de leis e de regulações do aborto em todo o país. Em sua opinião independente, o Presidente da Suprema Corte, Chief Justice Roberts, considera que o direito de escolha deveria ainda ter sido preservado pela Suprema Corte e que o caso não autorizava a derrubada completa dos precedentes judiciais Roe e Casey. Trata-se de um voto bastante técnico, em que ele explica que os termos iniciais da questão colocada pelo Estado de Mississippi tinham um escopo mais limitado e se reduziam a 'esclarecer se as proibições do aborto antes da viabilidade do feto são sempre inconstitucionais'. O Chief Justice esclarece que somente após a decisão da Suprema Corte de aceitar julgar o caso é que o Estado do Mississippi afirmou que pretendia a derrubada completa dos precedentes Roe e Casey, sendo que seria possível julgar o caso e afirmar a constitucionalidade da lei apenas e tão somente pelo fato de que o período de quinze semanas seria suficiente para assegurar o direito de escolha. Para ele, a opinião da maioria acabou sendo um gambito contrário à prática de não estabelecer uma regra constitucional mais ampla do que aquela necessária e suficiente para o julgamento do caso. Portanto, por considerar que a lei do Mississippi preservava o direito de escolha, ele concorda com o resultado do julgamento, mas apresentou uma opinião independente por rejeitar a fundamentação da maioria. Finalmente, o voto da minoria salienta que o governo não podia controlar o corpo de uma mulher ou o curso da vida da mulher e nem poderia determinar como o futuro de uma mulher será. A Suprema Corte já tinha estabelecido uma ponderação entre equilíbrios conflitantes ao definir que o Estado poderia proibir abortos após a viabilidade fetal, contanto que a proibição contivesse exceções para proteger a vida e a saúde da mulher. Por outro lado, até que a viabilidade fosse atingida, não poderia existir um obstáculo substancial ao direito da mulher. A nova decisão afetará desproporcionalmente mulheres pobres com dificuldade para viajar para outros Estados. Além disso, existe uma redução de direitos de mulheres e do seu status como cidadãos livres e iguais, já que até ontem a Constituição garantia a liberdade reprodutiva de cada mulher e hoje o Estado pode forçar uma mulher a dar a luz: "O Estado pode transformar o que, quando livremente acontece é uma maravilha em algo que, quando forçado, pode ser um pesadelo". Presente e Futuro dos Direitos Reprodutivos nos Estados Unidos e no Brasil. O julgamento foi mais um capítulo sobre a questão e certamente não um ponto final no diálogo judicial e político sobre os direitos reprodutivos das mulheres nos Estados Unidos e no Brasil. Trata-se de uma questão tão polêmica que uma minuta do voto da maioria foi tornado acessível ao público antes de ser tornado definitivo e oficialmente publicado em um raríssimo episódio de vazamento de uma decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos antes do seu anúncio oficial.6 Não por acaso, a decisão mobilizou os movimentos políticos progressistas e conservadores, que se reuniram para respectivamente criticar e festejar os termos da decisão proferida pela maioria da Suprema Corte nesse caso.7 Em termos políticos partidários, a direita republicana buscou capitalizar o episódio, já que se tratava de um compromisso de campanha do ex-Presidente Donald Trump a pretensão de derrubar o direito constitucional ao aborto e suas nomeações de Justices conservadores foram decisivas para o resultado final.8 Por outro lado, o Presidente Joe Biden também se valeu de uma retórica política de defesa dos direitos reprodutivos das mulheres e do desenvolvimento de programas de apoio para que mulheres possam viajar para fazer abortos como uma estratégia para preservar sua maioria parlamentar nas eleições de 2022.9 No caso brasileiro, por sua vez, espera-se que a Presidente do Supremo Tribunal Federal deverá pautar o julgamento da ação que busca o reconhecimento dos direitos reprodutivos entre nós no próximo ano, antes de sua aposentadoria, para apresentar sua opinião.10 Antes da derrubada de Roe v. Wade, em julgamento pela 1ª Turma do STF em 2016, a Ministra Rosa Weber decidiu conforme o precedente judicial estadunidense, no sentido que o aborto não deve ser considerado crime, se praticado no primeiro trimestre da gravidez.11 Naquela ocasião, também votaram nesse sentido os Ministros Luís Roberto Barroso e Luís Edson Fachin.12 Contudo, a tendência da maioria da corte parece ser no outro sentido, isto é, de não reconhecer a existência de um direito constitucional ao aborto na Constituição brasileira.13 No caso brasileiro, poderia ser interessante uma decisão conforme os termos de Dobbs v. Jackson, que reconhecesse que uma solução uniforme para todo o país é uma solução inadequada e que, a exemplo do que ocorreu durante a pandemia da COVID-19, caberia a cada entidade da federação decidir como deve ser tratada essa questão de saúde pública. Uma decisão que reproduzisse os termos da decisão da maioria republicana na Suprema Corte não poderia ser acusada de ativista, já que caberia ao poder legislativo nos Municípios e nos Estados decidir pela existência ou não do direito reprodutivo. Caso o ente político não reconhecesse a existência do direito reprodutivo através de uma legislação local, subsistiria a possibilidade de incidência da lei penal incriminadora federal. Por outro lado, caso o ente político autorize a interrupção da gravidez como parte de sua política sanitária no âmbito local e regional, estaria afastada a possibilidade de incidência da norma penal incriminadora. A solução conservadora estadunidense de atribuir aos poderes legislativos à deliberação sobre a questão poderia ser importante para preservar o Supremo Tribunal Federal e possibilitar que os movimentos sociais se mobilizem em eleições locais e regionais para que a questão seja regulada conforme as necessidades de saúde pública das variadas regiões e cidades do país. Considerações Finais. O tema dos direitos reprodutivos é complexo, controvertido e difícil devido ao conflito entre valores absolutos. Na experiência dos Estados Unidos, o caso Roe v. Wade foi uma decisão judicial surpreendente e que motivou uma mobilização política para sua reversão e debates intensos sobre os valores em conflito, a questão da saúde e da vulnerabilidade da mulher ou da vida em potencial. A presente série de colunas procurou mostrar de modo analítico os termos da jurisprudência, dos debates acadêmicos e das discussões políticas sobre o aborto nos Estados Unidos, de modo a que o leitor brasileiro possa aprender mais a partir do direito comparado para refletir sobre os potenciais caminhos jurisprudenciais e políticos no Brasil. Com a reversão de Roe v. Wade e a inexistência de uma maioria favorável aos direitos constitucionais reprodutivos no Supremo Tribunal Federal, uma solução de atribuir a autoridade decisória para o poder legislativo de todas as unidades da Federação para deliberar sobre essa política pública poderia ser uma solução interessante de compromisso. Tal decisão poderia blindar o Supremo Tribunal Federal de críticas por reproduzir os termos da decisão da maioria conservadora nos Estados Unidos e ainda poderia viabilizar que o direito reprodutivo da mulher seja protegido naqueles locais em que assim decidir o Poder Legislativo municipal ou Estadual. _____________ 1 https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-privado-no-common-law/372038/os-termos-da-decisao-da-suprema-corte-dos-estados-unidos 2 https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-privado-no-common-law/373666/o-conflito-de-valores-absolutos-o-debate-academico-sobre-roe-v-wade 3 https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-privado-no-common-law/375359/deus-salve-a-suprema-corte-uma-breve-nota-sobre-o-poder-da-escolha 4 https://www.supremecourt.gov/opinions/21pdf/19-1392_6j37.pdf 5 ELY, John Hart. Democracy and distrust: A theory of judicial review. Harvard University Press, 1980. 6 https://www.politico.com/news/2022/05/02/supreme-court-abortion-draft-opinion-00029473 7 https://www.bbc.com/news/world-us-canada-61788929 8 https://www.cnbc.com/2022/06/24/roe-v-wade-decision-trump-takes-credit-for-supreme-court-abortion-ruling.html 9 https://www.bbc.com/news/world-us-canada-62096252 10 https://noticias.uol.com.br/colunas/carolina-brigido/2022/09/12/mesmo-no-comando-do-stf-rosa-weber-nao-deve-abrir-mao-da-acao-sobre-aborto.htm 11 https://veja.abril.com.br/saude/rosa-weber-que-ja-votou-pro-aborto-vai-relatar-acao-sobre-tema/ 12 https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=12580345 13 https://noticias.uol.com.br/colunas/carolina-brigido/2022/10/14/stf-tende-a-nao-descriminalizar-aborto-em-julgamento-esperado-para-2023.htm _____________ *Pedro Fortes é Professor Colaborador no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt.
O caso  O escândalo envolvendo acusações de abusos sexuais que vitimaram dezenas de atletas da equipe de ginástica olímpica dos EUA repercutiu em todo o mundo quando o principal médico do grupo, Larry Nassar - que atuou por mais de 18 anos no Comitê Olímpico, foi denunciado e posteriormente condenado pela prática de pornografia infantil. Atualmente, Larry Nassar está cumprindo pena de 60 anos de reclusão em um presídio federal, além de ainda responder por diversas acusações em âmbito estadual. Ele se declarou culpado de sete acusações de conduta sexual criminosa contra ginastas que estavam sob seus cuidados, quando trabalhou para a Michigan State University (entre 1997 a 2016), tendo sido já condenado, em 2018, a outras penas de 175 e 125 anos, por dois tribunais do Estado do Michigan.1 Em julho de 2015, o presidente e CEO da USA Gymnastics (USAG), Stephen Penny, formalizou os relatos de abusos sexuais ao escritório do FBI em Indianápolis, momento em que forneceu aos agentes federais os nomes de três das vítimas dispostas a serem entrevistadas. Nada obstante, o agente especial W. Jay Abbott, representante do FBI, não instaurou formalmente uma investigação, tendo entrevistado apenas uma testemunha meses depois da denúncia inicial, não tendo documentado formalmente a referida entrevista em um relatório oficial conhecido como "302", até fevereiro de 2017 - bem depois que o FBI prendeu Nassar sob a acusação de posse de imagens de sexo explícito infantil, em dezembro de 2016. Quando o único depoimento colhido pelo FBI foi finalmente documentado em 2017 (por um agente especial não identificado), o relatório da agência federal de investigação foi preenchido com informações imprecisas ou falsas, não tendo sido compartilhado com outras agências de investigação locais ou estaduais. O próprio FBI se manifestou posteriormente sobre o caso, classificando o comportamento do agente federal como 'terrível'. Segundo a agência, W. Jay Abbott, que se aposentou em 2018, violou a política de conflito de interesses do FBI ao discutir seu trabalho com o Comitê Olímpico dos Estados Unidos (USOPC) enquanto estava envolvido na investigação sobre os abusos de Nassar. Nem Abbott, nem o outro agente especial de supervisão não identificado que atuou no caso Nassar, foram processados por suas ações.        Comitê Judiciário no Senado (Committee on the Judiciary)  Em razão da gravidade dos fatos, foi criado um Comitê Judiciário do Senado para investigar o caso e apurar os motivos pelos quais o FBI não investigou mais cedo os crimes relatados.2 A audiência aconteceu depois de o inspetor geral do Departamento de Justiça, Michael Horowitz, emitir um relatório contundente criticando o FBI por inviabilizar a investigação após uma série de erros que permitiram que os abusos continuassem por meses.3 Várias atletas e ex-atletas foram ouvidas pelo Comitê do Senado, dentre as quais, as ginastas olímpicas Simone Biles, Aly Raisman, McKayla Maroney e a ex-ginasta Maggie Nichols, que foi a primeira vítima a denunciar o abuso à USA Gymnastics em 2015. A ex-ginasta Maggie Nichols acusou a USA Gymnastics, o Comitê Olímpico de Ginástica dos EUA e o FBI de permitir que Nassar continuasse abusando de outras pessoas, afirmando que denunciou Nassar à USA Gymnastics há muito tempo e que dezenas de outras meninas e mulheres no Estado de Michigan continuaram sendo abusadas, mesmo depois da sua denúncia. Relatou, ainda, que não foi entrevistada pelo FBI por mais de um ano depois de denunciar o abuso e que passou a ser tratada de forma hostil pelos funcionários públicos federais.4 A ginasta Simone Biles afirmou que se tratava do maior caso de abuso sexual na história do esporte americano, e que as atletas sofreram e continuavam a sofrer porque ninguém no FBI, no USAG ou no USOPC fez o que era necessário para protegê-las. Segundo Biles, referidas entidades eram encarregadas da proteção do esporte e das atletas, tendo falhado em apurar responsabilidades e impedir ou fazer cessar os abusos, desejando que todos os envolvidos no fracasso das investigações conduzidas pelo FBI fossem processados federalmente.5 A ginasta Aly Raisman pediu "responsabilidade genuína" e afirmou que isso significa uma revisão completa do sistema e uma investigação completa do FBI, do Comitê Olímpico e Paralímpico dos EUA e da USA Gymnastics.6 Por ocasião de audiência pública sobre o caso no Senado, o republicano Charles Grassley afirmou que "as crianças sofreram desnecessariamente porque vários agentes em vários escritórios do FBI se recusaram a compartilhar as alegações contra Nassar com seus colegas oficiais em agências estaduais e locais".7 Segundo o presidente do Comitê Judiciário do Senado, Dick Durbin, as falhas do FBI "pintam um quadro chocante do abandono do dever do FBI e da incompetência grosseira". Omissão do FBI Conforme apurações preliminares da própria agência, funcionários do FBI possuíam conhecimento das denúncias dos abusos sexuais cometidos pelo médico Nassar, tendo, apesar disso, negligenciado gravemente seus deveres funcionais. Essa grave omissão ou negligência teria, assim, contribuído para que aproximadamente 100 mulheres e crianças fossem abusadas, entre 28 de julho de 2015 e 12 de setembro de 2016. Há, inclusive, acusações de que os agentes federais teriam conspirado com funcionários do mais alto escalão do Comitê Olímpico e Paralímpico dos Estados Unidos e da USA Gymnastics, objetivando ocultar os casos de abuso sexual. Agentes do FBI foram grosseiramente negligentes em seus deveres ao se recusar a entrevistar ginastas que estavam dispostas a falar sobre os abusos, falhando em compartilhar as queixas para a Lansing Michigan, onde Nassar continuava abusando de meninas, ignorando suas obrigações de denunciar abuso infantil aos agentes estaduais e a outras agências federais, para além de mentir para o Congresso, para a imprensa e para mídia. Um relatório geral do Departamento de Justiça norte-americano encontrou falhas grosseiras do FBI em investigar adequadamente as reclamações de ginastas desde 2015. Apesar disso, em maio de 2022, o Departamento de Justiça anunciou que não faria acusações criminais contra os ex-agentes do FBI ??que atuaram no caso da investigação contra Nassar. Federal Tort Claims Act (FTCA)  O escândalo envolvendo a grave negligência do FBI em apurar as denúncias de abuso sexual do médico da equipe de ginástica norte-americana chama a atenção, também, pela aplicação de uma legislação sui generis a respeito da dedução das pretensões indenizatórias por parte das vítimas. Isso porque, nos EUA, processar um agente ou uma entidade do governo federal por danos revela-se tarefa mais desafiadora do que processar um cidadão comum ou uma empresa privada, em virtude da antiga e clássica doutrina da sovereign immunity - empecilho por vezes intransponível para a obtenção de reparação estatal por danos. Buscando amenizar ou relativizar referida doutrina, a legislação federal e legislações estaduais8 passaram a estabelecer condições para a admissibilidade da dedução de pretensões indenizatórias contra um agente ou entidade pública, a partir de expressa permissão governamental a respeito. É o que determina o Federal Tort Claims Act (FTCA), uma legislação federal promulgada em 1946, regulamentando as condições e o procedimento para o processamento administrativo e eventualmente judicial de pedidos de indenização por danos pessoais, morte ou danos patrimoniais causados por atos negligentes, ilícitos ou por omissão de um funcionário do governo federal.9 O Federal Tort Claims Act - conhecido anteriormente como Lei de Reorganização Legislativa -, foi aprovado logo após um acidente, em 1945, envolvendo a força aérea norte-americana: um bombardeiro B-25, pilotado pelo tenente-coronel William F. Smith Jr., colidiu com o lado norte do Empire State Building, na cidade de Nova Iorque. Tratava-se de um vôo de rotina da aeronave, envolvendo o transporte de pessoas, durante o qual o piloto ficou desorientado por força de denso nevoeiro. Mesmo tendo sido advertido a respeito das péssimas condições de visibilidade, o militar insistiu na tentativa de pouso, acabando por colidir com o icônico prédio de Nova Iorque. O acidente causou a morte de quatorze pessoas (três tripulantes e onze pessoas no prédio), além de danos estimados em US$ 1 milhão. O fato acabou sendo o estopim para a aprovação do projeto de lei que estava tramitando no Congresso norte-americano há mais de duas décadas. Em que pese a lei ter sido promulgada em 1946, foi permitido que os familiares das vítimas do acidente buscassem uma indenização. A FTCA é uma lei altamente complexa que permite tipos específicos de ações judiciais contra uma entidade do governo federal e funcionários federais que causaram lesões.10  Segundo o Federal Tort Claims Act, os requerentes são obrigados a inicialmente notificar a agência federal antes que uma ação seja ajuizada perante um Tribunal federal. Essa reclamação deve ser apresentada junto à própria agência federal acusada de negligência ou má-conduta. Para tanto, o governo federal fornece um formulário de solicitação (check-the-box) pelo qual a própria vítima pode preencher ou contratar um advogado com experiência em reclamações contra o governo.11 A reclamação, incluindo a narrativa detalhada dos fatos e dos danos sofridos, deve ser apresentada dentro do prazo de dois anos a partir do evento gerador da pretensão. Além disso, como alguns estados têm um estatuto de limitações mais restrito para danos pessoais e múltiplas entidades, pode ser que o prazo seja menor - até um ano após a ocorrência do evento. Depois de registrar a reclamação, a agência tem um prazo de seis meses para responder, podendo concordar com a vítima, indenizando-a diretamente pelos danos sofridos, ou rejeitar a reclamação, recusando-se a pagar o valor da indenização pretendida. Diante da ausência de resposta, negativa ou da discordância da agência federal com os valores indenizatórios, a vítima passa a ser autorizada a, em até seis meses, judicializar o caso. Questão controvertida reside na limitação dos valores indenizatórios: o FTCA não autoriza o pedido de punitive damages na reclamação administrativa. Para além disso, a vítima ainda pode estar suportando os reflexos dos danos sofridos, como no caso de despesas médicas oriundas de eventual tratamento, que não estariam contidos na reclamação administrativa.12 Caso a reclamação administrativa não seja atendida, a ação judicial deverá ser proposta no Tribunal Distrital dos Estados Unidos da residência da vítima ou do local onde ocorreram as ações que deram origem à reclamação. No caso das ginastas norte-americanas, em consonância com a FTCA, a reclamação administrativa foi oficializada junto à agência federal de investigação (FBI) e segue aguardando a resposta. Mais de 90 meninas e mulheres que teriam sido abusadas sexualmente apresentaram pedidos indenizatórios de mais de US$ 1 bilhão contra o FBI. As ginastas Simone Biles, Aly Raisman, McKayla Maroney e Maggie Nichols pleitearam, cada uma, US$ 50 milhões. As demais requerentes pleitearam, cada, aproximadamente US$ 10 milhões. No total, a soma das indenizações orçaria entre de US$ 1 bilhão a US$ 1,2 bilhão. __________ 1 REUTERS. Disponível aqui. Acesso em 23 de outubro de 2022. 2 COMMITTEE ON THE JUDICIARY. Dereliction of Duty: Examining the Inspector General's Report on the FBI's Handling of the Larry Nassar Investigation. Disponível aqui. Acesso em 27 de outubro de 2022. 3 COMMITTEE ON THE JUDICIARY. Dereliction of Duty: Examining the Inspector General's Report on the FBI's Handling of the Larry Nassar Investigation. Disponível aqui. Acesso em 27 de outubro de 2022. 4 COMMITTEE ON THE JUDICIARY. Dereliction of Duty: Examining the Inspector General's Report on the FBI's Handling of the Larry Nassar Investigation. Disponível aqui. Acesso em 27 de outubro de 2022, p.02. 5 COMMITTEE ON THE JUDICIARY. Dereliction of Duty: Examining the Inspector General's Report on the FBI's Handling of the Larry Nassar Investigation. Disponível aqui. Acesso em 27 de outubro de 2022. 6 COMMITTEE ON THE JUDICIARY. Dereliction of Duty: Examining the Inspector General's Report on the FBI's Handling of the Larry Nassar Investigation. Disponível aqui. Acesso em 27 de outubro de 2022. 7 COMMITTEE ON THE JUDICIARY. Dereliction of Duty: Examining the Inspector General's Report on the FBI's Handling of the Larry Nassar Investigation.  Disponível aqui. Acesso em 27 de outubro de 2022. 8 Como exemplo, o Estado da Louisiana aboliu expressamente a sovereign immunity em seu texto constitucional: "Neither the state, a state agency, nor a political subdivision shall be immune from suit and liability in contract or for injury to person or property" (La. Const. art. XII, § 10(A).   9 Disponível aqui. Acesso em 28 de outubro de 2022. 10 Disponível aqui. Acesso em 25 de outubro de 2022. 11 Justia. Disponível aqui. Acesso em 25 de outubro de 2022. 12 Disponível aqui. Acesso em 25 de outubro de 2022.
Na história do marketing esportivo, empresas se envolvem em decisões difíceis por atitudes temerárias de seus contratados. Ilustrativamente, depois que a infidelidade de Tiger Woods entrou no holofote do público, foi difícil para a Nike dispensá-lo, devido ao vulto do negócio. A Nike fez uma pausa na marca Kobe Bryant até que o seu julgamento de estupro fosse arquivado. Todos lembram da dolorosa quebra da relação da Nike com Lance Armstrong em razão de seu envolvimento em escândalo de doping. Este é o contexto para a decisão da Adidas de interromper seu relacionamento com "Ye", rapper-estilista também conhecido como Kanye West, em virtude de seus reiterados e repugnantes comentários antissemitas. Celebrado em 2016 e programado para durar até 2026, o acordo com West permitiu que licenciasse a marca Yeezy para a Adidas em troca de royalties de aproximadamente 15% das vendas dos produtos, monetizando a propriedade intelectual. O que torna a polêmica fascinante é o tamanho do negócio encerrado: trata-se da maior resolução contratual na história do marketing esportivo. O custo da decisão de interromper a Yeezy (que representa 4 a 8% da receita anual da Adidas) resulta em uma perda de US$ 10 bilhões, além do incalculável tráfego digital que canaliza à marca. Em perspectiva, apenas uma marca sai mais caro: a Jordan Brand. Como consequência as ações da empresa caíram acentuadamente. Malgrado o enorme custo financeiro, os executivos da Adidas perceberam que, no longo prazo, estar do lado certo da história é mais importante que o balanço contábil. A empresa alemã possui um histórico marcado por conexão com os nazistas (O fundador da Adidas, Adi Dassler, era membro do partido nazista, fez sapatos para a juventude nazista e fechou sua fábrica para ajudar a Alemanha durante as Guerras Mundiais). Assim, tal como fizeram Balenciaga e GAP, a gigante de roupas esportivas não teve escolha a não ser cortar os laços. Como já cantou Kanye: "When it starts to get crazy, then run away". A Adidas rapidamente seguiu o seu conselho. West é um homem notoriamente misógino, conhecido por desrespeitar aqueles ao seu redor e há muito divulga uma quantidade notável de comentários vergonhosos, tanto em público quanto em suas letras. Para a Adidas, a sua reputação é maior ativo intangível e, consequentemente, o zelo pelas cláusulas morais nos contratos das marcas com celebridades e atletas. Isto ficou claro no comunicado da empresa: "comentários e ações recentes de West foram inaceitáveis, odiosos e perigosos, e violam os valores da empresa de diversidade e inclusão, respeito mútuo e justiça". Por meio das chamadas "morals clauses", a pessoa pública se compromete a não se envolver em escândalos ao longo de seu compromisso com o contratante. Embora ilícitos criminais geralmente se enquadrem na definição de atos proibidos, comportamentos que não infringem a lei penal igualmente podem violar uma cláusula moral, tal como condutas escandalosas e ofensivas. O conceito jurídico de imoralidade em ajustes contratuais deriva do direito romano, a partir dos juristas Gaius e Julianus que formularam específicos exemplos de acordos que não criam obrigações pois o seu propósito é contrário a boa moral (contra bonos mores). Este conceito se prende ao que a doutrina atual entende como autonomia privada e autodeterminação, evitando que restrições excessivas violem direitos fundamentais. Evidente que juristas romanos não tratavam de direitos humanos, porém de pietas (o senso de dever e a afeição perante a família); existimatio (o respeito e estima desfrutados pela pessoa em sociedade) e verecundia (o inato senso de vergonha). Um ato imoral seria aquele no qual a pessoa ofendesse "pietatem existimationem verecundiam nostram".1 Os comentários do direito romano exerceram considerável influência sobre o direito inglês medievo. Contra bonos mores era utilizadas nos tribunais ingleses no século XVIII, ocasião na qual juízes se negavam a executar contratos que significassem prejuízo ao bem público. Todavia, comparativamente às jurisdições do civil law, o conceito de imoralidade como freio à contratação teve um papel bem limitado.2 Na tradição inglesa, um contrato apenas é considerado como contrário à ordem pública se restringe a liberdade individual a ponto de reduzir a pessoa uma condição de escravo, tal como no precedente Horwood v. Millar's Timber3 no qual um contador fez um mútuo com um agiota e o contrato previa que o mutuante só poderia residir no endereço atual e largar o seu emprego com om consentimento do mutuante. O contrato foi tido como ilegal, contudo, trata-se de extrema ofensa à liberdade individual. Justamente por esse mais claro distanciamento entre direito e moral, a inserção de cláusulas morais recebeu o seu berço contemporâneo na indústria de Hollywood. Elas encontraram seu lugar em ajustes com atores libertinos nos loucos anos vinte, após o escândalo Roscoe "Fatty" Arbuckle em 1921.4 O texto da cláusula da Universal Studios de 1921 dizia o seguinte: "O ator (atriz) concorda em se comportar com o devido respeito às convenções e moral públicas e concorda que não fará ou cometerá nada que tenda a o degradar na sociedade ou levá-lo ao ódio público, desprezo, desprezo ou ridículo, tendendo a chocar, insultar ou ofender a comunidade ou ultrajar a moral ou decência pública, ou tendendo ao preconceito da Universal Film Manufacturing Company ou da indústria cinematográfica. No caso de o ator (atriz) violar qualquer termo ou disposição deste parágrafo, a Universal Film Manufacturing Company tem o direito de cancelar e anular este contrato, mediante aviso prévio de cinco (5) dias ao ator (atriz) de sua intenção de fazê-lo". Com o "Red Scare"5, as cláusulas se tornaram populares como forma de "caça às bruxas" quando o macarthismo atingiu Hollywood. Justamente por esse DNA autoritário das listas negras, a partir dos anos sessenta as cláusulas morais foram proibidas por acordos coletivos. Contudo, recentemente elas retornaram no contexto do "#MeToo", como uma tentativa de impedir o mau comportamento de artistas, roteiristas e diretores. Para agravar, geralmente não são rotuladas propriamente como cláusulas morais. Ao invés, são integradas ao texto por letras miúdas em termos padronizados como anexo ao contrato principal. No caso de atletas, os patrocínios continuam sendo extremamente lucrativos, porém a explosão das mídias e da vigilância social tornou muito mais difícil para eles se comportarem mal sem serem pegos. Some-se isto a uma tolerância social reduzida ao mau comportamento dos ídolos, fazendo que com que as empresas estejam conscientes de que certas relações lucrativas podem rapidamente se tornar tóxicas. De acordo com as leis em vigor de Nova York e Califórnia, é possível resolver o contrato de um ator que viole uma cláusula expressa de moral, em cujo conteúdo se exija conformidade com convenções públicas e decência. Tal conduta transcende o dever de obedecer à lei, porém o de abster-se de comportamentos que tendam a "chocar, insultar e ofender a comunidade e a moral pública", trazendo o artista ao "descrédito, desprezo, escárnio e ridicularização", ou refletir desfavoravelmente sobre o empregador do artista ou a indústria em geral. Determinar se uma cláusula moral expressa foi efetivamente violada é uma questão de fato, dependente da redação da cláusula moral e da conduta em questão.6 O fato é que a partir dos EUA, tais cláusulas ganharam o mundo, tornando-se clara tendência empresarial para proteção de marca e reputação, a final, a celebridade que se engaja em comportamentos questionáveis pode equivocadamente conduzir a opinião pública a crer que há um apoio da marca que ostenta, o que lhe ocasiona o chamado "reputational harm". As grandes empresas podem sair de negócios com relativa facilidade caso tenham problemas com o comportamento do contratado, sem enfrentar demandas por quebra de contrato, em função da cláusula moral. Com efeito, no common law o remédio da "termination" permite que a parte vítima da violação contratual seja a partir deste instante liberada das obrigações contratuais, o que comumente ocorre quando houver ofensa a uma cláusula na qual se ajustou uma circunstância definida, bem como foram previstas detalhadamente as consequências do término. O contratante inocente delibera por noticiar ao outro contratante sobre o seu intuito de imediata e irrevogavelmente desfazer o ajuste, sem necessidade de recorrer a um tribunal ou conceder ao lesante uma oportunidade de remediar o ilícito antes do exercício do "right to terminate".7 Não é o nosso objetivo, tratar da cláusula moral no contexto brasileiro.8 Todavia, diferentemente das jurisdições do civil law, que em razão do princípio da boa-fé são cautelosos em admitir a resolução automática das avenças, o direito inglês não possui uma regra geral exigindo que as partes em contratos civis exercitem os seus direitos com razoabilidade. Particularmente em contratos comerciais as cortes geralmente interpretam e aplicam as cláusulas estritamente como ajustadas. Qualquer movimento contrário à exequibilidade das cláusulas gera insegurança jurídica. Porém nem tudo são flores... a "termination clause" conduz à algumas questões econômicas específicas no caso West: O que a Adidas pode fazer com os designs daqui para frente? Embora a empresa enfatize a propriedade dos direitos de design dos produtos, corre o risco de responsabilidade por violação de marca registrada, no caso de usar o nome Yeezy sem autorização da West para vender sapatos (mesmo que titularize os designs). Embora a declaração da Adidas feche definitivamente a porta para a venda de produtos da marca Yeezy, ela abre outra porta para a estratégia de renomeação dos designs. A Adidas não poderá utilizar marcas registradas individuais, contudo os designs podem ser reutilizados porque são de sua propriedade. Simplificando, "Yeezy" pode ser de propriedade de Ye. Mas os designs dos sapatos Yeezy são propriedade intelectual da Adidas. Entretanto, cortar laços com Kanye, mas continuar a vender o mesmo calçado que os estilos que oferecia anteriormente sob o nome Yeezy com a marca genérica "adidas" pode não agradar aos consumidores. Evidente que a grande discussão jurídica passa pela hermenêutica do significado preciso e o escopo de cláusulas morais, particularmente quando as empresas mantêm a linguagem definidora das condutas censuráveis de forma vaga e imprecisa, de maneira a cobrir uma gama de comportamentos que violariam o acordo. As cláusulas se servem de termos subjetivos como "descrédito público, humilhação, desprezo, escândalo ou ridículo", significando essencialmente que qualquer coisa que faça uma empresa parecer ruim pode ser motivo para resolução imediata. Em resumo: "Se você não se comportar, podemos demiti-lo". A discricionariedade da cláusula não se aplica apenas ao trabalho que é objeto do contrato, porém a qualquer coisa que o contratado tenha feito em sua vida e que venha à tona. Ilustrativamente, uma acusação crível de conduta proibida é suficiente para o fim do contrato, ou deve haver um ônus para a marca no sentido de estabelecer que a atitude proibida ocorreu?" Portanto, é muito importante que a cláusula seja detalhada quanto aos comportamentos inadmissíveis. Assim, no caso Nadar v. ABC, 330 F. Supp.2d 345 (SDNY 2004), o Tribunal confirmou a resilição pela ABC de um contrato de estrela de novela por vender cocaína a um policial disfarçado com base em uma cláusula de moralidade que proibia uma conduta que "poderia tender a refletir desfavoravelmente na ABC". Porém, a falta de especificidade em uma cláusula moral levou um outro tribunal a rejeitar a demissão de uma funcionária da arquidiocese que engravidou por inseminação artificial. Dias v. Arquidiocese de Cincinnati, 2012 WL 1068165 (SD Ohio 2012). O Tribunal considerou que a inseminação artificial não foi expressamente referida na cláusula. De fato, uma cláusula comportamental vaga, impondo sanção sem qualquer benefício correspectivo, situa-se em um patamar bem distinto das chamadas "cláusulas éticas", que na verdade se tratam de cláusulas de bônus por performance, como indução ao atleta no sentido de evitar propaganda prejudicial que possa manchar a imagem da empresa. Ilustrativamente, a dita cláusula no contrato de Neymar com o PSG o proíbe de fazer comentários públicos negativos sobre o clube, exigindo comportamento exemplar do jogador. Neymar deve ser "cortês, pontual, amigável e disponível para os fãs". Se evitar qualquer controvérsia, recebe um adicional de cerca de £ 5,5 milhões por ano. Como já alertou a doutrina, "Quando o valor negocial do contrato é intrinsicamente ligado ao "garoto-propaganda" e sua respectiva projeção social, é legítima a expectativa negocial por parte do contratante de que a figura do titular dos direitos de imagem corresponda a certas expectativas, ou, ao menos, não cause uma espécie de prejuízo à marca patrocinadora por fatos alheios ao seu controle". Ou seja, através do paralelo do direito da personalidade à imagem- atributo, aplica-se ao contrato de licença de uso da imagem, a ideia de que pessoa contratada projete sua personalidade no meio social conforme pré-determinado na avença contratual, como condição necessária ao recebimento dos valores convencionados.9 Os problemas de aplicação das cláusulas de moralidade não se resumem à imprecisão e ao desigual poder de barganha dos contratantes, alcançando ainda à liberdade de expressão e a privacidade. O célebre astro do Beisebol, Babe Ruth se viu sujeito a uma cláusula moral em seu contrato de 1922 que o proibia, entre outras coisas, de ficar acordado depois da 1 h da madrugada antes de um dia de jogo. Direitos fundamentais ingressam no debate como argumento pela invalidade de tais cláusulas. Contratos podem restringir a a liberdade criativa de artistas? Nos ajustes da Disney a "termination clause" pode ser acionada por qualquer ato ou omissão que em tese "possa" fazer com que a Disney incorra em descrédito público, cause ofensa à comunidade ou a qualquer extrato substancial dela. A reputação da empresa atua como mecanismo de controle nas relações econômicas e os incentivos reputacionais exigem algo semelhante ao monitoramento - observação acurada do comportamento dos colaboradores - para ter sucesso.10 Todavia, esse compliance agressivo é particularmente rígido para artistas politicamente ativos que se envolvem em comportamentos que podem ser ofensivos para certos grupos. Pedir a alguém que assine um contrato permitindo que a Disney seja o árbitro da moral é problemático por razões óbvias. __________ 1 ZIMMERMAN, Reinhard. The law of obligations. Clarendon press, Oxford 1996, p. 706/15. 2 MANSOOR, Zeeshan; CHANTAL MAK, Aurelia Colombi; Immoral contracts in Europe, p. 9/14. Cambridge: Intersentia, 2022 3Horwood v. Millar's Timber and trading co (1917) 1 KB 305 4 Em 1921, Roscoe Fatty Arbuckle foi acusado do assassinato de uma jovem atriz chamada Virginia Rappe. Ele foi julgado 3 vezes e isso destruiu sua reputação e também sua carreira como uma das estrelas mais bem pagas da era do cinema mudo. A maioria dos escritores nos 100 anos seguintes argumentou que Arbuckle foi vítima e inocente das acusações. 5 "Red Scare" é a percepção de um terror generalizado de potencial ascensão do comunismo ou outras ideologias de esquerda. É frequentemente caracterizado como propaganda política. O termo é associado a dois períodos da história dos Estados Unidos. O primeiro susto vermelho, que ocorreu imediatamente após a Primeira Guerra Mundial, girou em torno de uma ameaça percebida do movimento trabalhista americano, da revolução anarquista e do radicalismo político. O segundo susto vermelho, que ocorreu imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, preocupou-se com a percepção de que comunistas nacionais ou estrangeiros estavam se infiltrando ou subvertendo a sociedade americana e o governo federal. O nome refere-se à bandeira vermelha como um símbolo comum do comunismo. 6 Kressler, Noah B., Using the Morals Clause in Talent Agreements: A Historical, Legal, and Practical Guide. Columbia Journal of Law & the Arts, Vol. 29, Available at SSRN. 7 CARTWRIGHT, John. An introduction to the English law, p. 283. 8 Recomendamos a leitura do texto de Ana Paula Parra Leite e Zilda Consalter, intitulado, O caso Ryan Lochte e a aplicação da cláusula moral no direito negocial brasileiro. As autoras aduzem "Tendo em vista a aplicac¸a~o do princi´pio da autonomia da vontade que informa o direito contratual brasileiro, seria perfeitamente possi´vel a inserc¸a~o expressa de uma cla´usula moral tal como a utilizada no Direito norte-americano, estabelecendo quais comportamentos do contratado violariam a cláusula moral, bem como quais as suas conseque^ncias. Ademais, e sob as luzes da liberdade de contratar, bem como para evitar lacunas e possi´veis controve´rsias, o ideal seria que as próprias partes estipulas- sem quais comportamentos acarretariam a violação a` cláusula moral, bem como quais seriam as conseque^ncias de sua violac¸a~o, pois ha´ va´rios aspectos que podem influenciar na sua incide^ncia,28 tais como quais sa~o as partes envolvidas,29 quais sa~o os riscos potenciais do relacionamento entre elas e quais os potenciais danos se sobrevier um evento reprova´vel". Revista Brasileira de Direito Civil V. 12 | Abr-Jun 2017. 9 OLIVEIRA ALMEIDA, Jonathan de; PIRES, Caio Ribeiro; FERNANDES, Micaela Barros Barcelos. O caso Neymar Jr. e as 'cláusulas morais'. 10 Langevoort, Donald C., Monitoring: The Behavioral Economics of Inducing Agents' Compliance with Legal Rules (June 26, 2001). Available at SSRN.
segunda-feira, 24 de outubro de 2022

Notas sobre o princípio da accountability

"Conversa sobre accountability é onipresente no direito e política contemporâneos." Apesar disso, "o conceito não faz parte do seleto grupo de ideais políticos de primeira ordem", como "democracia, direitos humanos, constitucionalismo e Estado de Direito". Danielle Rached explica que a accountability permaneceu, em vez disso, na "porta dos fundos de nosso vocabulário jurídico ou político e opera em uma faixa de frequência mais baixa."1 Rached segue explicando que, "em vez de irradiar uma visão jurídica ou política abrangente, a accountability fornece uma caixa de ferramentas de constrição de poder que permite uma variedade de permutações. Cada permutação vai depender do papel, lugar e peso da entidade ou ator a ser responsabilizado."2 Um campo jurídico no qual a accountability tem ganhado especial atenção é o da proteção de dados. Nelson Rosenvald afirma que accountability "amplia o espectro da responsabilidade civil, mediante a inclusão de parâmetros regulatórios preventivos, que promovem uma interação entre a liability do Código Civil com uma regulamentação voltada à governança de dados, seja em caráter ex ante ou ex post."3 Bruno Bioni publicou recentemente profundo estudo sobre o princípio da accountability no contexto da regulação e proteção de dados pessoais. Segundo ele, nesse campo, "accountability é um termo historicamente e intimamente ligado [...] à filosofia regulatória estadunidense [...] de reenquadramento de qual deve ser a intervenção estatal"4. Em sua obra, Bioni analisa a "anatomia da relação (jurídica) e do objeto e objetivos regulatórios das normas de proteção dados". Segundo ele, essa visão permitiu concluir que os agentes de tratamentos de dados "também são titulares de direito": "se observarem os deveres que lhes são impostos para um uso responsável dos dados, nascerá para eles a prerrogativa de tratá-los até mesmo sem que haja autorização do cidadão (e.g., legítimo interesse)." E foi "a partir dessa dualidade de direitos-deveres" que Bioni extraiu "o diagnóstico de que a obrigação de prestação de contas é direcionada a quem detém o poder de destravar o fluxo de dados."5 Em seguida, o autor tenta precisar os sujeitos dessa relação. Em relação ao sujeito passivo "dessa obrigação de prestação de contas", afirma Bioni que "não são apenas os controladores, mas também todos aqueles que detêm e exercem algum tipo de competência decisória informacional." Assim, "das autoridades de proteção de dados até associações de classes e entidades certificadoras que negociam instrumentos contratuais para, por exemplo, desafogar a transferência internacional de dados"6. Em seguida, apresenta os sujeitos ativos, os credores: "também há uma multiplicidade de sujeitos ativos em potencial, de modo que o fórum público que julgará as contas prestadas vai muito além da tríade histórica tradicional do campo da proteção de dados formada pelo titular, autoridades de proteção de dados e agentes de tratamentos de dados." Segundo Bruno Bioni, "entidades representativas dos titulares, outros órgãos reguladores, que não apenas de proteção de dados, e quem é competidor - o próprio mercado - podem igualmente levantar a sua voz."7 Bioni transpõe a ideia de obrigação como processo - já tradicional no Brasil, tendo sido aqui inicialmente difundida por Clovis do Couto e Silva -, para o objeto de sua pesquisa e conclui que "accountability é necessariamente um processo colaborativo, dialógico entre as partes que detêm direitos e deveres concorrentes e sinérgicos entre si, para que dele sobrevenha uma codeliberação."8 Em seguida, Bioni trabalha a associação da boa-fé com a accountability, presentes no art. 6.º caput e inc. X da LGDP, respectivamente: Isso significa hermeneuticamente que o direito-dever de prestação e julgamento de contas é maximizado por toda a carga axiológica da boa-fé. Trata-se de uma equação normativa principiológica que potencializa ao máximo o dever de cooperação e, em última análise, o imaginário obrigacional de colaboração. A esse respeito, capítulo 5 ilustrou como se forja essa troca. É necessário haver um fórum público no qual haja a junção de diversos atores, titulares de posições jurídicas (antagônicas) e com competências das mais diversas, que prestam contas entre si de forma cruzada. [...] Nesse sentido, accountability é muito mais do que dar transparência. É uma concatenação de atos (processo) em que se interligam as partes que serão afetadas pela decisão a ser tomada. Conectando com o objeto desta pesquisa, trata-se de arquitetar um circuito decisório justo sobre o fluxo informacional. Essa deve ser a essência do princípio da accountability no campo da proteção de dados e o que a literatura tem denominado como devido processo informacional.9 Apesar de ser um dos campos mais férteis, o campo da proteção de dados não é o único no qual princípio da accountability se faz aplicável. Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho e Nelson Rosenvald defendem a aplicação da accountability como forma de solucionar a questão da razoável durabilidade do produto no direito do consumidor. Para se entender essa solução proposta, tem-se de entender primeiro a questão por eles enfrentada. A premissa é a de que comercialização de produto durável que acabe tendo vida útil inferior àquela que dele se poderia legitimamente esperar corresponde a vício do produto, mais especificamente a vício de inadequação do produto, previsto no art. 18 do CDC: a venda de um bem tido por durável com vida útil inferior àquela que legitimamente se esperava, além de configurar um vício de inadequação (artigo 18 do CDC), evidencia a frustração do fim do contrato, que era a compra de um bem cujo ciclo vital se esperava, de forma legítima e razoável, fosse mais longo, expectativa violada com o perecimento ou a danificação de bem durável, de forma prematura, causada por vício de fabricação.10 Partindo dessa premissa, os autores apresentam os problemas ligados à "razoável durabilidade do bem", que são o da indeterminação desse tempo e da insegurança que isso causa: A normativa da responsabilidade civil tem como destinatário um magistrado, capaz de pacificar um conflito e através do princípio da reparação integral restaurar as partes, na medida do possível, ao estágio pré-dano. Em uma demanda versando sobre vícios construtivos surgem diversos cenários ressarcitórios. Entretanto, como se interpretará em cada litígio o critério da "razoável durabilidade do bem"? Deixaremos a cada magistrado e a cada perito judicial a tarefa de determinar a medida da responsabilidade de construtores e incorporadores nos mais variados contextos? A discricionariedade das decisões enseja desequilíbrio no mercado da construção, seja por abusos por parte de consumidores no exercício de suas faculdades, como pela reação natural de fornecedores através do encarecimento de preços e adição de entraves contratuais, contribuindo para um quadro de insegurança jurídica.11 Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho e Nelson Rosenvald defendem que a solução para isso poderia advir da accountability, seja em seu caráter ex ante ou ex post: Talvez o caminho seja avançar para a accountability, a fim de ampliar o espectro da responsabilidade, mediante a inclusão de parâmetros regulatórios preventivos, que promovem uma interação entre a liability do Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor com uma regulamentação voltada à governança, seja em caráter ex ante ou ex post.12 Em relação ao plano ex ante, "a accountability é compreendida como um guia para construtores e incorporadores, protagonistas da atividade, mediante a inserção de regras de boas práticas que estabeleçam procedimentos, normas de segurança e padrões técnicos capazes de planificar e mitigar riscos e solidificar uma cultura de gestão corporativa." Como exemplo disso, Monteiro Filho e Rosenvald citam a NBR 15.575 da ABNT-2013: Nesse ponto se insere a NBR 15.575 da ABNT-2013, como uma normalização técnica, norma de desempenho capaz de atribuir critérios mínimos de mensuração de habitabilidade do imóvel, seja quanto à segurança, conforto e resistência de materiais para fins de determinação de vida útil. A norma técnica acrescenta parâmetros objetivos de accountability, proporcionando uma função preventiva à responsabilidade civil. A referida NBR não é prescritiva, mas pavimenta procedimentos e indica resultados na medida em que uma construção documentada pelas melhores práticas atua como padronização que impede interferências sobre a vida útil do projeto. O atendimento às normas técnicas é um dever do profissional de investimento em standards de integridade, constante do Código de Ética, e o seu cumprimento gera uma presunção de conformidade.13 Adicionalmente, "na vertente ex post, a accountability atua como um guia para o magistrado, tanto para identificar e quantificar responsabilidades, como para estabelecer os remédios mais adequados." Como exemplo, os autores citam mais uma vez a NBR 15.575: "Se o caso concreto evidencia uma omissão às recomendações da NBR 15.575, pode-se alcançar uma presunção da configuração do vício construtivo. O investimento em compliance à regulação por parte do fornecedor, com efetividade, poderá mesmo servir como fator de redução da indenização, espécie de sanção premial, a teor do parágrafo único do artigo 944 do Código Civil."14 Em conclusão, o percurso desse breve texto acaba por ilustrar a fala de Danielle Rached acerca da accountability, como uma "caixa de ferramentas de constrição de poder que permite uma variedade de permutações." Com forte expressão no campo da proteção de dados, como obrigação de prestação de contas, o referido princípio já tem a sua aplicação sugerida para solucionar problemas relativos a vícios construtivos e relações de consumo. __________ 1 RACHED, Danielle Hanna. The Concept(s) of Accountability: Form in Search of Substance. Leiden Journal of International Law, 29, 2016, p. 318. 2 RACHED, cit., p. 318. 3 ROSENVALD, Nelson. Conceitos de responsabilidade civil para 4ª revolução industrial e o capitalismo de vigilância. In: EHRHARDT JUNIOR, Marcos (coord.). Direito civil: futuros possíveis. Forum, 2021. 4 BIONI, Bruno Ricardo. Regulação e proteção de dados pessoais: o princípio da accountability. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 2. 5 BIONI, op. cit., p. 217-218. 6 BIONI, op. cit., p. 218. 7 BIONI, op. cit., p. 218. 8 BIONI, op. cit., p. 218-219, grifo no original. 9 BIONI, op. cit., p. 220. 10 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; ROSENVALD, Nelson. Vícios construtivos e relação de consumo: liability, accountability e responsibility. Revista Consultor Jurídico, 2 mar. 2022. 11 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; ROSENVALD, Nelson. Vícios construtivos e relação de consumo: liability, accountability e responsibility. Revista Consultor Jurídico, 2 mar. 2022. 12 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; ROSENVALD, Nelson. Vícios construtivos e relação de consumo: liability, accountability e responsibility. Revista Consultor Jurídico, 2 mar. 2022. 13 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; ROSENVALD, Nelson. Vícios construtivos e relação de consumo: liability, accountability e responsibility. Revista Consultor Jurídico, 2 mar. 2022. 14 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; ROSENVALD, Nelson. Vícios construtivos e relação de consumo: liability, accountability e responsibility. Revista Consultor Jurídico, 2 mar. 2022.
A polêmica obra do professor Laurence Tribe sobre a política e a Corte Introdução Na coluna de dois meses atrás, o caso Roe v. Wade foi apresentado com uma descrição da decisão e análise inicial da fundamentação judicial daquele julgamento histórico de 1973.1 Na coluna do mês passado, foram explicados os termos do debate acadêmico estadunidense com base na perspectiva doutrinária do Professor Laurence Tribe sobre o aborto,2 tendo sido apresentada a discussão do seu Tratado de Direito Constitucional3 e sua visão mais específica sobre os direitos reprodutivos nos Estados Unidos desenvolvida em uma monografia escrita sobre esse tema.4 A presente coluna apresenta ao público brasileiro a seguinte questão: como a discussão política entre os partidários do movimento Pró-Vida (Pro Life) e Pró-Escolha (Pro Choice) teve um impacto político partidário importante também para a polarização entre os partidos majoritários - Republicanos e Democratas - e influenciou também o processo eleitoral e de escolha dos Justices para a Suprema Corte nos Estados Unidos. O ponto de partida para a presente coluna é a obra God Save This Honourable Court: How The Choice of Justices Can Change Our Lives, que pode ser traduzida como Deus Salve Essa Honorável Corte: Como a Escolha dos Ministros Pode Mudar Nossas Vidas.5 O relevante papel do Senado no controle da escolha presidencial: O devido exercício do controle político da Corte Suprema O livro de Laurence Tribe pode ser considerado uma defesa da tese de que o Presidente dos Estados Unidos não pode estar completamente livre para realizar a nomeação de seus escolhidos para a Suprema Corte sem que exista um controle cuidadoso por parte do Senado Federal sobre as visões dos escolhidos sobre os temas constitucionais contemporâneos.6 Aliás, uma brincadeira que se fazia sobre esse livro e que eu ouvi quando fui aluno dele na Harvard Law School era de que o título queria dizer, na verdade, "Deus Salve Essa Corte Honorável de Ronald Reagan", já que o livro foi escrito justamente durante o período em que o ator de Hollywood ocupava a cadeira presidencial e buscava realizar sua revolução conservadora nos Estados Unidos. Até a publicação do livro em 1985, o 40º Presidente dos Estados tinha somente nomeado a Justice Sandra O'Connor para o cargo em 1981. Conforme já tínhamos esclarecido na coluna anterior, sua posição passou a ser decisiva para os casos relativos a direitos reprodutivos.7 Não raro, sua opinião passou a balizar os termos da proteção jurídica ao aborto nos Estados Unidos, já que ela preservou o núcleo principal da decisão de Roe v. Wade em uma série de julgamentos, ao mesmo tempo em que passou a considerar válidas algumas restrições, limitações ou condições para o exercício de direitos reprodutivos nos termos impostos por algumas leis estaduais.8 No primeiro julgamento proferido por ela sobre esse tema em 1983, com uma corte dividida ao meio, a imprensa estadunidense nos lembra que "todos presumiam que ela iria decidir pelo corte de Roe v. Wade", mas Sandra O'Connor não seguiu esse caminho e, na realidade, resolveu apresentar uma fundamentação em separado, decidindo o caso concreto de modo muito específico e salientando que poderia existir uma oportunidade no futuro para tratar do tema com maior profundidade e escopo, mas que, em sua opinião, tal tempo ainda não tinha chegado.9 Após essa decisão, ocorreu uma reação conservadora dentro do Partido Republicando no sentido de que deveriam ser nomeados Justices com uma visão de mundo mais claramente contrária aos direitos reprodutivos e que pudessem vir a derrubar a decisão proferida pela corte em Roe v. Wade. Com a decisão de aposentadoria do então Chief Justice Warren Burger, o Presidente resolveu elevar William Rehquist para a condição de Presidente da Suprema Corte, sendo que ele tinha sido justamente o autor do voto vencido naquele julgamento de 1973, conforme explicamos em coluna anterior.10 A decisão senatorial sobre essa nomeação já mostrou que existia uma divisão em linhas políticas partidárias, tendo sido aprovado pelo placar apertado de 65 a 33. Para o lugar aberto pela elevação de William Rehnquist, foi unanimemente aprovado o Justice Antonin Scalia, que viria a ser um defensor vigoroso de uma teoria constitucional conservador denominada de originalismo.11 Por sua vez, com a aposentadoria de Lewis Powell Junior em 1987, Ronald Reagan resolveu nomear o Juiz Federal ultraconservador Robert Bork para substituí-lo. Nessa ocasião, Laurence Tribe assessorou o Senador Ted Kennedy, Democrata por Massachusetts, para que liderasse uma campanha contrária à nomeação de Bork para a Suprema Corte. Após o candidato ter prestado os esclarecimentos em sua sabatina sobre sua teoria constitucional conservadora, o Senador Kennedy declarou que num Estados Unidos em que Bork fosse membro da Suprema Corte mulheres seriam obrigadas a fazer abortos em clínicas clandestinas, pessoas pretas seriam segregadas em restaurantes e crianças não teriam lições na escola sobre a evolução das espécies.12 O Senado viria a rejeitar a nomeação por um placar de 58 a 42 votos, o que viria a levar o Presidente Ronald Reagan a ter que nomear um jurista mais moderado para aquela vaga.13 Por outro lado, aquela campanha contrária à nomeação também significaria que Laurence Tribe jamais seria nomeado pelos Democratas para a Suprema Corte, já que viria a sofrer idêntica resistência por parte dos Republicanos. De fato, o Professor da Harvard Law School viria inúmeros ex-alunos na corte e teria a oportunidade de litigar e ganhar dezenas de casos naquele Tribunal Superior, mas jamais seria indicado para compor a Suprema Corte dos Estados Unidos.14 A política do aborto: de um novo direito para uma nova direita. Em sua monografia sobre o aborto como um conflito entre valores absolutos, Laurence Tribe identifica não somente uma guinada na jurisprudência constitucional da Suprema Corte dos Estados Unidos, mas também uma guinada política partidária.15 A partir de uma reação imediata e intensa da Igreja Católica, líderes religiosos chamaram Roe v. Wade de uma decisão horripilante e de uma tragédia, tendo sido cogitada inclusive a formalização de um pedido de excomunhão do único Justice católico na corte em 1973, ocorreu o surgimento de um movimento político de defesa do direito à vida.16 Líderes religiosos na cúpula da Igreja Católica nos Estados Unidos anunciaram que as visões da religião não tinham se alterado e que o aborto continuava a ser considerado um crime equivalente ao homicídio.17 A mobilização dos líderes religiosos católicos foi acompanhada pela mobilização de líderes políticos que começaram a preparar a estratégia política para que Roe v. Wade fosse derrubada.18 De um lado, no nível legislativo estadual, a estratégia de guerra passava pela criação de inúmeros obstáculos jurídicos e administrativos para restringir e inviabilizar o exercício do novo direito recém reconhecido pela Suprema Corte.19 Buscava-se impedir os abortos em uma zona cinzenta de constitucionalidade com períodos de espera de vinte-quatro horas, proibição de uso de recursos públicos, registro obrigatório de informações como pré-requisitos para abortos, exigências de vários exames médicos e regulações com consentimento de homens ou, no caso de gravidez de menores, dos seus pais.20 Por outro lado, após o impacto reduzido na campanha eleitoral de 1974, os líderes religiosos buscaram mobilizar todas as paróquias locais para que esse tema do aborto fosse decisivo na disputa político-partidária a partir da campanha nacional de 1976.21 Apesar de ter sua importância variável conforme a disputa e a conjuntura política e econômica, o tema se tornou uma parte permanente do debate político-partidário dos Estados Unidos desde a década de 1970. Aliás, não por acaso, Donald Trump prometeu que iria nomear magistrados que viriam a derrubar a decisão proferida pela Corte em Roe v. Wade,22 mas isso é o assunto da nossa próxima coluna. Considerações finais O caso Roe v. Wade deu origem à discussão política entre partidários do movimento Pró-Vida (Pro Life) e Pró-Escolha (Pro Choice), tendo o tema dos direitos reprodutivos e a visão sobre o aborto se tornado central nas sabatinas para nomeação de Justices para a Suprema Corte e nas campanhas político-eleitorais nos Estados Unidos. No final das contas, se Laurence Tribe exortava o Senado a salvar a Suprema Corte da Presidência da República na época em que Ronald Reagan era o Presidente, o precedente Roe v. Wade seria derrubado após as nomeações de magistrados conservadores por Donald Trump, o que será objeto da próxima coluna. No caso brasileiro, por coincidência, no dia de escrita dessa coluna foi publicada uma reportagem com uma projeção de que o Supremo Tribunal Federal possui uma composição contrária ao reconhecimento judicial de direito ao aborto e de direitos reprodutivos, de modo que não existira a possibilidade de uma decisão judicial análoga a Roe v. Wade.23 Por outro lado, a imprensa tem noticiado um projeto de 'empacotamento da corte' ('court packing') com proposta de ampliação do número de Ministros24 ou maior probabilidade de impeachment após os resultados das eleições para o Senado no início desse mês.25 Logo, nosso contexto é distinto, mas é importante aprender com a experiência de outras sociedades para refletir sobre nossas questões e tomar as decisões adequadas para a nossa realidade institucional. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Laurence Tribe, American Constitutional Law, New York: The Foundation Press (1978). 4 TRIBE, Laurence H. Abortion: The clash of absolutes. WW Norton & Company (1992). 5 TRIBE, Laurence H. God Save This Honorable Court: How the Choice of Justices Can Change Our Lives. New American Library (1985). 6 Idem. 7 Disponível aqui. 8 Idem. 9 Disponível aqui.  10 Disponível aqui.  11 SCALIA, Antonin. Originalism: The lesser evil. U. Cinn. L. Rev., v. 57, p. 849, 1988. 12 Disponível aqui.   13 Idem. 14 Disponível aqui.   15 TRIBE, Laurence H. Abortion: The clash of absolutes. WW Norton & Company, 1992. Capítulo 7. 16 Idem. 17 Idem. 18 Idem. 19 Idem. 20 Idem. 21 Idem. 22 Disponível aqui.  23 Disponível aqui.  24 Disponível aqui.  25 Disponível aqui. 
Introdução Em maio de 2021 analisamos, nesta coluna, de que forma a Suprema Corte norte-americana vem exercendo uma destacada função moderadora, mediante critérios de ponderação a respeito da proporcionalidade e da razoabilidade da fixação dos compensatory damages e dos punitive damages em ações de responsabilidade civil, sob as luzes da Due Process Clause of the Fourteenth Amendment.1 Dentre os casos abordados, citamos as demandas indenizatórias propostas contra a empresa Johnson & Johnson pela comercialização de seu tradicional talco para bebês, cuja contaminação por asbesto pretensamente teria causado a incidência de câncer de ovário em milhares de mulheres usuárias do produto ao longo do país. Recentemente, mais precisamente em agosto do corrente ano, a empresa Johnson & Johnson anunciou a descontinuidade da produção do talco para bebês, comercializado por aproximadamente 130 anos e que sempre foi um dos carros-chefes da marca. A venda do produto já tinha sido interrompida nos EUA e no Canadá, desde 2020. Retomamos agora a análise desse interessante caso, sob perspectiva diversa, explorando especificamente os debates a respeito das possíveis concausas relacionadas ao nexo de causalidade, que culminaram na condenação da empresa ao pagamento de bilhões de dólares e ao encerramento da fabricação e comercialização do produto no mundo inteiro. Johnson & Johnson e o amianto nos EUA A Johnson & Johnson, empresa americana fundada em 1886 em Nova Jersey, atua na produção de farmacêuticos, utensílios médico-hospitalares e, por meio de sua subsidiária de cosméticos e produtos de higiene pessoal2, comercializava há várias décadas um talco para bebê - nos EUA vendido com o rótulo de Johnson's Baby Powder3. Ocorre que o referido produto vem sendo alvo de inúmeras ações judiciais nos EUA, relacionadas ao possível desenvolvimento de câncer ovariano nas demandantes, pelo consumo do talco que conteria em sua composição a substância amianto (altamente cancerígena). Os primeiros estudos que sugeriram a possibilidade de que algumas amostras de talcos cosméticos pudessem estar contaminadas por partículas de amianto datam de meados dos anos 1970, a partir da pesquisa conduzida pelos Drs. Arthur M. Langer e Arthur N. ROHL4. A contaminação poderia resultar, sobretudo, da proximidade de depósitos naturais de amianto com a rocha de onde se extrai o pó para o talco cosmético. O amianto, também conhecido como asbesto, é uma fibra mineral e tem propriedades comprovadamente tóxicas5. Ele está relacionado ao desenvolvimento de alguns tipos de câncer e doenças pulmonares crônicas, atingindo principalmente pessoas que inalam as partículas fibrosas do minério por longos períodos, como trabalhadores que atuam diretamente na exploração do minério. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), não há níveis seguros para a exposição ao amianto6 e, até julho de 2019, um total de 67 países (incluindo a União Europeia) haviam banido completamente o seu uso7. Os Estados Unidos nunca proibiram integralmente o uso e a exploração do amianto8, apesar de ter havido fortes restrições legislativas entre os anos de 1972 e 19899. Na esfera judiciária americana, as ações cíveis e trabalhistas relacionadas à substância envolveram, até 2017, mais de 700 mil requerentes e cerca de oito mil réus10. Um relatório da seguradora Lloyd's, em parceria com a Universidade Oxford, estima que o custo total dos litígios relacionados ao amianto, somente nos EUA, pode ultrapassar a marca de US$ 275 bilhões11. Gail L. Ingham et al. v. Johnson & Johnson e JJCI (Johnson & Johnson and Consumer Inc.) O processo Na avalanche de ações propostas contra a empresa J&J e sua subsidiária JJCI, destaca-se o caso da ação reparatória (Gail L. Ingham et al. v. Johnson & Johnson e JJCI), proposta na cidade de Saint Louis (Missouri), por um litisconsórcio de 22 mulheres (algumas delas conjuntamente com seus maridos e outras representadas pelo espólio), oriundas de 12 Estados diferentes. Todas essas mulheres foram diagnosticadas com câncer no ovário, alegando terem adoecido pelo uso do talco cosmético da Johnson & Johnson, ainda que em idades, momentos e intensidades diferentes. A controvérsia envolveu, primeiramente, questões de ordem processual a respeito da competência jurisdicional e sobre a formação do litisconsórcio ativo no processo levado a julgamento. A respeito da competência jurisdicional para o julgamento do processo, a J&J alegou que 17 das 22 requerentes não residiam no Estado de Missouri, e, portanto, um único julgamento envolvendo todas as demandantes, inclusive de outros Estados, violaria o due process. A linha argumentativa, nesse sentido, foi de que as vítimas não sofreram os danos alegados dentro dos limites do Estado, nem compraram ou usaram o produto da empresa ré na referida jurisdição estadual.12 Rebatendo a referida questão processual, as autoras sustentaram a competência da jurisdição do Missouri, na medida em que uma das empresas demandadas (a JJCI) mantinha relações contratuais de longo prazo com a empresa Pharma Tech Industries, considerada como uma sister company, com sede em Missouri, para a fabricação, embalagem e fornecimento do talco Johnson's Baby, dentre outros produtos. A Corte de primeira instância decidiu por manter a jurisdição do Missouri mesmo em relação às demandas das autoras não residentes no referido Estado, em razão da relação contratual existente entre as empresas rés com a Pharma Tech Industries - entendendo-se que a conduta das rés satisfez o estatuto de "braço longo do Missouri", porque comprovadamente elas realizavam negócios no Estado de Missouri.  Outro argumento processual levantado pelas empresas rés foi a necessidade de separação das demandas individuais pela inviabilidade de formação do litisconsórcio. Segundo a J&J, cada caso deveria ser analisado singularmente, pois a prova da causa específica da origem da doença para cada autora seria diferente. De outra sorte, argumentaram as autoras que eventuais diferenças na prova da causalidade não eram suficientes para impedir a junção de reivindicações pela responsabilidade pelo fato do produto. Alegaram, em síntese, que o litisconsórcio não ofenderia o due process, na medida em que o Tribunal de primeira instância instruiu o Júri a analisar cada caso singularmente, perquirindo se o uso do produto foi a causa adequada e determinante que contribuiu diretamente para a lesão individual de cada autora. As requerentes apresentaram "evidências de causalidade específica" atestadas por especialistas, demonstrando ao Júri, de forma detalhada, a história pessoal de cada uma, opinando acerca de "quais aspectos de sua história a tornaram mais ou menos em risco de desenvolver câncer de ovário, e concluiu que a exposição ao talco causou ou contribuíram diretamente para causar seu câncer de ovário."13 Assim, ainda que as empresas rés tenham sustentado que as autoras foram expostas ao produto em diferentes períodos, o litisconsórcio permitiu ao Júri considerar a suposta presença de amianto no talco da J&J ao longo de várias décadas (desde 1960), onde diferentes minas foram usadas para fornecer talco para os produtos. A respeito da formação do litisconsórcio, portanto, o Tribunal de primeira instância negou a moção das rés para separar as demandas das requerentes, entendendo que todas elas sofreram os mesmos tipos de danos e que a causa de pedir era comum às mesmas, existindo questões comuns de fato e de direito que autorizavam o julgamento conjunto das ações. O mesmo entendimento foi mantido pelo Tribunal de Apelação do Missouri, no sentido de rejeitar o argumento das empresas rés de que o Missouri Rule of Civil Procedure, em analogia ao Federal Rule of Civil Procedure, exigia julgamentos separados. Dessa forma, o julgamento das 22 imputações de responsabilidade civil foi agrupado em uma sessão do Tribunal de Júri Popular civil, que ocorreu ao longo de seis semanas, tendo sido ouvidas mais de trintas testemunhas. Ao final do julgamento, o Tribunal do Júri considerou procedentes os pleitos indenizatórios, condenando as empresas rés ao pagamento de valores idênticos para cada uma das 22 autoras (US$ 25 milhões em compensatory damages, totalizando US$ 550 milhões) e arbitrando o montante de US$ 990 milhões como punitive damages contra a JJCI e US$3.15 bilhões em punitive damages contra a J&J.14 Referida sentença do Tribunal do Júri foi impugnada junto à Corte de Apelação do Missouri, que reavaliou diversos critérios estabelecidos pela decisão apelada, quais sejam: 1) a repreensibilidade da conduta das rés - considerando a chamada "repreensibilidade significativa", na medida em as empresas sabiam que seu talco continha amianto durante anos e ainda sim se recusaram a adotar métodos de teste mais precisos, promovendo métodos menos precisos e se recusando a usar uma alternativa segura em razão dos altos custos envolvidos; 2) a disparidade entre o dano real ou potencial sofrido e o valor dos danos punitivos - o Tribunal observou que "não existe uma linearidade a ser seguida, reconhecendo que o valor da indenização  excedendo uma proporção de um dígito entre danos punitivos e compensatórios, a um grau, irá satisfazer o devido processo"; e 3) a diferença entre os danos punitivos e as sanções civis autorizadas em casos comparáveis - ao calcular os valores, o Tribunal dividiu cada indenização punitiva da ré no valor de indenizações compensatórias pelas quais foi considerada responsável. Dando parcial provimento ao recurso, a Corte de Apelação reduziu o valor agregado de indenizações punitivas, fixando-as em $900 milhões contra a JJCI, e em mais de $715 milhões contra a J&J.15 A Suprema Corte do Missouri, por sua vez, negou o pedido de revisão da decisão da Corte de Apelação do Missouri. Em julho de 2021, a Suprema Corte dos Estados Unidos inadmitiu Writ of Certiorari16  apresentado pela Johnson & Johnson e por sua subsidiária (JJCI), para que se pronunciasse a respeito de uma possível violação da garantia do devido processo legal pela excessiva desproporção entre as condenações compensatória e punitiva. Dentre os quesitos suscitados perante a Suprema Corte por via do referido Writ, indagou-se: O valor de uma condenação por punitive damages, quando ultrapassa substancialmente o valor de uma condenação por compensatory damages, viola o princípio do devido processo legal? 17 A admissão dos Writs é discricionária e se dá por meio de simples votação dos ministros da Corte18. Dentre os motivos que ensejaram a recusa de revisão do caso pela Suprema Corte, sobressaíram a ausência de demonstração de violação ao devido processo legal e à firme orientação de precedentes a respeito da definição da proporção máxima (na casa de um dígito) entre os compensatory e os punitive damages.19 Nexo de causalidade No julgamento do caso, é interessante perceber como o sistema de justiça norte-americano avaliou o nexo de causalidade alegado pelas demandantes para imputar às empresas rés a responsabilidade civil pelo consumo do talco da J&J. Nesse sentido, as empresas rés argumentaram, fundamentalmente, que a pretensão indenizatória das autoras se fundava em alegações inconsistentes ou insubsistentes, que não conduziriam à demonstração da existência de nexo causal entre o diagnóstico da doença (câncer ovariano) e o consumo do talco por elas produzido. A ausência de nexo causal, assim, foi sustentado com base em três linhas argumentativas: I) as requerentes apresentavam fatores de risco completamente diversos para o desenvolvimento da doença, algumas tinham uma predisposição genética ou familiar para o câncer, enquanto outras não; II) as autoras teriam usado produtos à base de talco em diferentes níveis de tempo e de intensidade: e III) algumas autoras apresentaram um quadro de remissão completa da doença, enquanto outras faleceram em decorrência do agravamento do quadro clínico. É importante destacar que, na jurisdição do Estado de Missouri, dois critérios são avaliados para a determinação do nexo causal: a "causação de fato" e a "causação próxima". Assim, o autor de uma ação indenizatória deve demonstrar uma negligência do réu que tenha causado diretamente ou contribuído diretamente para causar a lesão alegada, a fim de se estabelecer o nexo de causalidade. Diante das referidas causas de fato e próxima, no julgamento em questão entendeu-se que houve prova suficiente de causação de câncer para cada autora, a partir da avaliação individualizada realizada pelo Tribunal do Júri com base na alegação de utilização do produto em relação a lesão de cada indivíduo, mediante vereditos deliberados separadamente. Nesse contexto, o grande fundamento da condenação bilionária efetivada no caso Gail L. Ingham et al. v. Johnson & Johnson e JJCI foi a gravíssima negligência das empresas rés em deixar de alertar os consumidores que o pó de talco por elas fabricado e distribuído continha amianto, escondendo esse fato por décadas.20   Para além disso, ainda a J&J jamais conseguiu demonstrar a inexistência de comprovação firme de que o produto (pó de talco) seria incapaz de causar câncer de ovário. Ao contrário, aliás, as empresas confessaram que sabiam que a Food and Drug Administration (FDA) opinara que "uma possível associação" entre talco cosmético e câncer de ovário "é difícil de descartar", e que o IARC (International Agency for Research on Cancer) opinara que "o uso perineal de pó corporal à base de talco é possivelmente cancerígeno". Em outubro de 2019, a FDA detectou evidências de contaminação de amianto no pó no talco, compelindo a J&J a fazer recall voluntário de produtos para amianto e aconselhando os consumidores "a pararem de usar produtos afetados". Em 2020, após O Congresso e o Departamento de Justiça abrirem investigações, as empresas rés finalmente cederam e removeram o talco de seus produtos vendidos nos Estados Unidos e Canadá. A Johnson & Johnson anunciou que deixará de fabricar e comercializar pó de talco para bebês em todo o mundo a partir de 2024 e que tomou a decisão comercial de fazer a transição para um portfólio de talco para bebês à base de amido de milho.21 Apesar de toda a controvérsia mundial envolvendo o amianto, a substância é amplamente produzida e usada no Brasil, em que pesem os esforços para que seja banida. O Brasil é o terceiro maior produtor e exportador de amianto, que é vendido para países como Colômbia e México. O país também é o quinto maior consumidor do produto.22 ---------- 1 "Amendment XIV (ratified July 9, 1868), Section 1. All persons born or naturalized in the United States and subject to the jurisdiction thereof, are citizens of the United States and of the State whrein they reside. No State shall make os enforce any law which shall abridge the privileges or immunities of citizens of the United States; nor shall any State deprive any person of life, liberty or property, without due process of law; nor deny to any person within its jurisdiction the equal protection of the laws". 2 Trata-se da "Divisão de Consumidores", representada pela subsidiária Johnson & Johnson Consumer Inc. (JJCI), criada em 1979. 3 No Brasil, o mesmo produto é vendido como Talco Johnson's Baby. 4 Nesse sentido, ver ROHL, Arthur N. LANGER, Arthur M. Identification and Quantification of Asbestos in Talc. Environmental Health Prospectives. Vol. 9, 1974, pp. 95-109. Disponível em: . Acesso em setembro de 2022. 5 No Brasil, o amianto foi muito utilizado na fabricação de telhas e caixas d'água. Em 2017, o Supremo Tribunal Federal julgou as Ações Diretas de Inconstitucionalidade n. 3460, n. 3470, n. 3356 e n. 3357 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 109. No mérito, o STF considerou que a Lei Federal 9.055/95, que permitia uma utilização em nível supostamente seguro do amianto, foi esvaziada de conteúdo em função da evolução científica e de seguidos estudos clínicos atinentes ao potencial cancerígeno da substância. Tanto por isso, as leis estaduais e municipais que proibiam a produção e comercialização do amianto tiveram as respectivas declarações de constitucionalidade. 6 Cf. Instituto Nacional do Câncer. INCA (online). Disponível em: . Acesso em setembro de 2022. 7 Cf. dados do International Ban Asbestos Secretariat, disponível em 8 KWUN, Aileen. "Under Trump's EPA, asbestos might be making a comeback". Fast Company (online). Disponível em: . Acesso em setembro de 2022. 9 Idem. 10 LLOYD'S. Stranded Assets: the transition to a low carbon economy. Overview for the insurance industry. Emerging Risk Report 2017: Innovation Series. Society and Security. Disponível em: . Acesso em setembro de 2022. 11 Cf. Copland, J. R. 2004. Asbestos. Point of Law [online]. Disponível em: . Acesso em setembro de 2022. 12 Conforme alegou a empresa ré "did not purchase or use Petitioners' products in Missouri, did not rely on Missouri advertising in making their purchasing decisions, and were not injured in Missouri (the nonMissouri plaintiffs. Disponível em: https://www.supremecourt.gov/DocketPDF/20/20-1223/170734/20210302153815743_Ingham%20Petition%20-%203-2%20Final.pdf. Acesso em  setembro de 2022, p. 23-24. 13 Justia U.S. Law. Disponível em: https://cases.justia.com/missouri/court-of-appeals/2020-ed107476.pdf?ts=1592925147. Acesso em setembro de 2022. 14 "The jury awarded  $550  million  in  actual  damages  ($25  million  multiplied  by twenty-two Plaintiffs) jointly and severally against Defendants.  The jury recommended, and the trial court awarded, $990 million in punitive damages against JJCI and $3.15 billion against J&J, yielding ratios of 1.8:1 for JJCI and 5.72:1 for J&J." JUSTIA US Law. Disponível em: https://law.justia.com/cases/missouri/court-of-appeals/2020/ed107476.html. Página 77, Acesso em 25 de setembro de 2022. 15 "Reduce the  punitive  damages  award  against  JJCI  to  $900  million.  Because  we  determined  there  is  personal  jurisdiction  over  J&J  on  five  of  the  twenty-two Plaintiffs'  claims,  we  reduce  the  punitive  damages  award  against  J&J  to  $715,909,091." Ibid., p. 78. 16 A íntegra da petição pode ser lida aqui: . Acesso em setembro de 2022. 17 Do original: "Whether a punitive-damages award violates due process when it far exceeds a substantial compensatory-damages award". 18 De acordo com o Regimento Interno da Suprema Corte em sua Regra ("Rule") n. 10, a aceitação de um Writ of Certiorari é matéria discricionária por parte dos Justices. O deferimento do Writ será dado quando houver "razões convincentes" (compelling reasons) e a votação se dá de forma minoritária, ou seja, pelo menos quatro dos nove membros da Corte devem votar para ouvir a arguição do caso. Se o mínimo não é atingido, publica-se apenas a decisão denegatória, sem qualquer fundamentação. Estima-se que, dos 10 mil recursos interpostos anualmente perante a Suprema Corte, um pouco menos de 100 deles são aceitos para serem arguidos. 19 Decisão disponível em: www.supremecourt.gov/DocketPDF/20/20-1223/176061/20210419150800587 20 Idem. 21 Johnson & Johnson Consumer Health to Transition Global Baby Powder Portfolio to Cornstarch | Johnson & Johnson (jnj.com) 22 Johnson's vai parar de fabricar talco para bebês: há riscos no produto? Jornal Estado de Minas, ed. 12/8/22.
Há cerca de 10 dias a procuradora-geral de NY Letititia James apresentou uma ação civil contra Donald Trump, a Trump organization e seus associados, em grande parte por disgorgement, por supostamente mentir "por bilhões". O processo lista sete causas de ação por fraude e conspiração. Embora a "New York's attorney general" solicite outros remédios, como ordens que impeçam os réus de administrar empresas públicas em Nova York, o principal remédio consiste na restituição de ganhos indevidos por irregularidades. O pedido é da ordem de US$ 250 milhões.1 Já tive a oportunidade de tratar dessa temática, não apenas em livro (Responsabilidade civil pelo ilícito lucrativo. 2. Ed. Juspodivm, 2021), como em artigos e também, por uma publicação nessa prestigiosa coluna semanal há exatos dois anos.  Costumo frisar em meus escritos que nas jurisdições do common law os conceitos dos gain-based damages, disgorgement e restitutionary damages, são utilizados para justificar os flutuantes parâmetros objetivos das diversas respostas em que um benefício ilicitamente obtido pelo ofensor deverá ser transferido para o demandante em função da relação de causalidade entre a aferição antijurídica de um ganho e a inconsentida usurpação de um interesse juridicamente protegido. Nesse sentido, os remédios restitutórios servem ao mesmo propósito fundamental: evitar que alguém lucre com a prática de um ato ilícito, pela recaptura dos ganhos auferidos com o descumprimento de um dever legal ou violação de um direito alheio. A condenação não levará em conta a real existência de prejuízos por parte do demandante, ou, se esses existiram, ou mesmo se há proporcionalidade entre as perdas e os ganhos indevidos obtidos pelo demandado. Por mais que o disgorgement seja um remédio continuamente aplicado na responsabilidade civil norte-americana, a pessoa comum não tem uma noção de seu conceito e repercussão, talvez pelo fato de que o apelo moral dos punitive damages sempre cativou a atenção do público, pois também estipulados por cidadãos americanos (os jurados), frequentemente em casos de grande repercussão, sem esquecermos do apelo hollywoodiano das vultosas condenações. Porém agora estamos em um "turning point".  O resultado das  últimas eleições ainda insufla eleitores dos dois espectros partidários e, desde Nixon, Donald Trump é certamente a figura mais polêmica do cenário dos EUA.  Portanto, quando é ajuizado um processo, cujo objeto é a alegação que durante anos atos "persistentes" e "repetidos"' de fraude e ilegalidade contra o povo de Nova York se deram na realização dos vários negócios imobiliários de Trump, a curiosidade popular é fisgada e o debate público jurídico se mescla ao político. Em suma, o que se alega é que em um período de 10 anos, verificaram-se mais de 200 incidentes, desde falsificação de registros, fraude fiscal, fraude de seguros e conspiração criminosa. Note-se que esta é uma ação civil separada das acusações criminais apresentadas contra a Trump Organization e seu ex-CFO, Allen Weisselberg. A queixa do AG alega que os réus cometeram vários crimes estaduais e federais de Nova York. Por se tratar de uma ação civil, o AG não terá que provar além de qualquer dúvida razoável (beyond a reasonable doubt) que qualquer um desses ilícitos ocorreu; as ações civis têm um padrão muito mais baixo de prova. Vale dizer, a legislação do estado de Nova York permite que seu procurador-geral ajuíze uma ação contra uma pessoa envolvida em "atos fraudulentos ou ilegais repetidos". Como este estatuto existe para proteger o povo de Nova York de práticas comerciais enganosas, ele não exige que o procurador-geral prove o tipo de elementos intencionais ou deliberados ou que indivíduos específicos foram prejudicados ou prejudicados pela fraude. Por mais que os entusiastas de Trump desprezem o processo sob a conhecida tese das "fake news" e o próprio ex-presidente rotule a demanda  de "caça às bruxas", classificando a AG James - a primeira pessoa negra eleita como procuradora-geral de Nova York - como "racista", estamos diante de alegações detalhadas e factualmente específicas, Se, por um lado, as avaliações de imóveis da família Trump são notoriamente inconstantes, e por isso pode ser difícil provar que foram fraudulentas - em vez de apenas equivocadas ou inocentemente otimistas -, lado outro,  a queixa se concentra em falsidades objetivamente prováveis. Por exemplo, a AG afirma que Trump mentiu sobre o tamanho de sua cobertura na Trump Tower, triplicando a metragem quadrada da unidade de uma maneira que o levou a avaliar a propriedade em impressionantes US$ 327 milhões. Curioso, é que Trump se recusou a testemunhar em resposta a intimações do escritório do procurador-geral. Mas enquanto a Quinta Emenda impede que o silêncio de alguém seja usado contra si em um processo criminal, esse mesmo silêncio pode ser interpretado contra o demandado em um processo civil. A ação civil tem como pretensão que o tribunal imponha penalidades dramáticas, incluindo a devolução de cerca de US$ 250 milhões em lucros e rendimentos passados (disgorgement) a dissolução e liquidação dos negócios de Trump em Nova York e uma proibição de cinco anos a Trump e membros da família servirem em cargos executivos ou postos em outras empresas. Esses são remédios draconianos, e a disposição de um tribunal em impô-los vai determinar o quão convincente o caso do procurador-geral se mostrará em julgamento. Por exemplo, os tribunais são historicamente relutantes em dissolver à força uma corporação existente, mesmo que tenham o poder legal para fazê-lo. Espere que um tribunal insista em fortes evidências de danos contínuos e futuros ao público antes de considerar essa possibilidade. Duas questões particularmente me chamam a atenção. Em janeiro de 2021, o Congresso anulou um veto legislativo do então presidente Donald Trump,  com isso aprovando a Lei de Autorização de Defesa Nacional ("NDAA"). A partir de então, a seção 6501 da NDAA altera o Securities Exchange Act de 1934 ("Exchange Act") para expandir a capacidade da SEC de buscar disgorgement e outras medidas equitativas para violações do leis federais de valores mobiliários. A NDAA autoriza expressamente a Comissão de Valores Mobiliários dos EUA ("SEC") a buscar o disgorgement em qualquer ação ou processo instaurado pela Comissão sob qualquer disposição das leis de valores mobiliários, onde qualquer pessoa tenha auferido enriquecimento injustificado como um resultado do ilícito. Ademais, a concessão estatutária de autoridade da Seção 6501 à SEC para buscar o disgorgement, isenta a SEC das restrições ao remédio imposto pela decisão da Suprema Corte dos EUA no julgamento do caso Liu v. SEC, de 2020.2 Naquela oportunidade, a SCOTUS havia confirmado a capacidade da SEC de obter disgorgement como remédio equitativo, porém limitado ao montante que não excedesse o lucro líquido do infrator após dedução das despesas comerciais legítimas e que a quantia restituída fosse destinada às vítimas". Por um ângulo a Suprema Corte ratificou a possibilidade de uso do disgorgement pela SEC, todavia mitigando drasticamente a eficácia do remédio. No caso em apreciação, os tribunais inferiores decidiram que a SEC poderia obter a devolução substancial de todos os fundos que os investidores haviam contribuído, sem dedução, nem mesmo para despesas legítimas de operação do empreendimento. Nada obstante, em sua opinion, a juíza Sonia Sotomayor escreveu para uma bancada quase unânime ( 8 X 1), que o disgorgement é um remédio de equidade, cujo objetivo é o de  privar o malfeitor de seus lucros líquidos em atividades ilegais, garantindo que ele "não seja punido" ao ponto de pagar mais do que uma compensação justa à pessoa prejudicada. Reconheceu se tratar de "princípio fundamental" estabelecido em uma opinião da Suprema Corte do século XIX: "[I]t would be inequitable that [a wrongdoer] should make a profit out of his own wrong." Sotomayor volta-se para uma discussão sobre quais limites ao disgorgement são apropriados. Ela identifica três limites específicos para o remédio equitativo tradicional. Primeiro, o efeito do "profits remedy" como os nomeia, é o  de impor uma confiança através da restituição de ganhos indevidos para vítimas injustiçadas. O remédio fazia sentido apenas como uma forma de devolver os ganhos ilícitos do réu àqueles prejudicados pela má conduta do réu. Em segundo lugar, porque o remédio se limitava aos lucros do réu, não justificando o remédio em face de vários infratores sob uma teoria de responsabilidade solidária. Terceiro, o remédio foi limitado aos lucros "líquidos" ou "ganhos obtidos em qualquer negócio ou investimento, quando tanto as receitas quanto as [despesas] são levadas em conta. A magistrada ainda assevera que a busca da SEC por disgorgement viola cada um desses três limites. Vale dizer, a SEC nem sempre devolve a totalidade dos recursos de disgorgement aos investidores, em vez disso, deposita uma parte em um fundo no Tesouro. A referida prática não se concilia com a visão do tribunal de que a natureza equitativa do disgorgement exige que a SEC restitua os ganhos a investidores para o seu próprio benefício.  Da mesma forma, a opinion critica a imposição comum da SEC de "responsabilidade solidária" em casos de disgorgement, que Sotomayor considera em desacordo com a regra do direito comum que exige responsabilidade individual por lucros ilícitos porque poderia transformar qualquer remédio focado em lucros em uma punição. Contudo, a opinion permite que o tribunal de primeira instância possa decidir que a responsabilidade solidária é apropriada em certos contextos, ilustrativamente em questões familiares onde  as finanças dos dois demandados (marido e mulher) esteja tão misturada, que ambos os cônjuges se beneficiaram dos frutos do esquema". Finalmente, Sotomayor rejeita categoricamente a prática de ordenar a devolução de todas as receitas, explicando que os tribunais devem deduzir as despesas legítimas antes de ordenar a devolução. Se, por um lado, reconhece a possibilidade de que as despesas de serviços pessoais sejam anuladas como injustas em um caso em que os réus operaram um "esquema totalmente fraudulento", por outro, frisa que não é o que ordinariamente sucede em uma variedade de despesas ordinárias, inclusive para itens como aluguéis e equipamentos para tratamento de câncer que ostentam valor independente de alimentar um esquema fraudulento. Contudo, a partir do cancelamento do veto presidencial pelo congresso, deu-se ampliação estatutária de autoridade da Seção 6501 à SEC para não apenas perseguir o disgorgement, como liberar a SEC das restrições ao remédio impostas pela  SCOTUS. Ou seja, pela via legislativa restou contornado o óbice judicial. Tendo em conta que esta reviravolta se deu nos últimos 3 anos, será que o veto de Donald Trump já tinha em mente uma possível blindagem patrimonial familiar? O segundo aspecto peculiar na demanda cível é o de que um dos demandados é o "Donald J Trump Revocable Trust", descrito como o "proprietário das entidades que constituem a "Trump Organization". Em princípio, para um civilista (como eu) soa incomum a ideia de um trust como titular de direitos. Como um trust pode ser processado? Ou isso é algum tipo de corporate trust? Enfim, se o trust não é uma entidade legal, não seria melhor que o Procurador-Geral tivesse processado os trustees (ou seja, Donald Trump Jr. e Allen Weisselberg)? Ocorre que nos EUA, há grande imprecisão sobre a noção de personalidade jurídica aplicada a trusts. Não é incomum que fundos de todos os tipos tenham contas financeiras tituladas em seus nomes e sejam tratados como titulares de propriedade. Como um comentário ao Restatement (Third) of Trusts (2003) coloca: Cada vez mais, conceitos e terminologia estatutários e de direito consuetudinário modernos reconhecem tacitamente o trust como uma "entidade" legal, consistindo no patrimônio fiduciário e a relação fiduciária associada entre o fiduciário e os beneficiários. Isso se reflete cada vez mais e de forma adequada tanto na linguagem (referindo-se, por exemplo, aos deveres ou responsabilidade de um trustee para "o trust") quanto na doutrina, especialmente na distinção entre o trustee pessoalmente - como indivíduo -  e o trustee na posição de fiduciário, com capacidade representativa. Em geral, os estatutos modernos dos EUA relativos a organizações empresariais tendem a tornar o assunto explícito, enquanto que com os trusts tendem a não o fazer. Independente disto, é usual por parte de um trust pessoal a abertura de uma conta de valores mobiliários ou titularizar propriedade em seu nome (para o trust apresentar uma declaração de imposto federal ou estadual). Aliás, no tocante a características incomuns da personalidade jurídica dos EUA (principalmente focada na limited liability company (LLC) e sua capacidade de operar sem membros, sujeita apenas a um instrumento legal ou outro acordo), recomendo a leitura da recente obra  Autonomous Organizations (Cambridge, 2021), de autoria de Shawn Bayern.  __________ 1 A peça pode ser encontrada na íntegra aqui. 2 Disponível aqui.
segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Método de resolução de casos - Parte IV

Introdução A presente coluna é a quarta e última sobre método de resolução de casos no Direito. Aqui aprofundarei a questão dos desafios para a aplicação de um método estruturado de resolução de caso no Direito brasileiro. Há, pelo menos, três desafios: 1) uma percepção generalizada no Brasil de que que não haveria resposta "correta" para casos jurídicos; 2) uma aversão do (jurista) brasileiro a método; e 3) uma inferior adequação do Código Civil a um raciocínio analítico relativo a créditos. Percepção generalizada de ausência de resposta correta Esse primeiro obstáculo chegou a ser mencionado na última coluna. Ele foi apresentado por Otavio Luiz Rodrigues Jr.. Questiona-se ele se "o estudo dos casos como método central funcionaria no Brasil". A resposta dele merece ser transcrita: O estudo dos casos como método central funcionaria no Brasil? Eis uma pergunta que me intriga. A resposta, embora não seja definitiva para mim, é negativa. O estudo dos casos não resistiria por duas razões. A primeira está em que não [há] uma deferência institucional às respostas "corretas" dos casos, tal como se dá na Alemanha. Dito de outro modo: há um enorme respeito social pelas respostas aos exames (sobre os quais se falará na próxima coluna), elaborados pelos professores, ainda que exista alguma crítica se formando em torno disso. A segunda é que o próprio modelo se estruturou com base em técnicas de subsunção, com esteio no fundamento legal (com o já referido grau de refinamento doutrinário e jurisprudencial). No Brasil, tem-se o incrível consenso de que "não há uma resposta correta", o que é um efeito natural de um Direito que se louva (no campo jurisprudencial) em "decido conforme minha consciência" (Lenio Streck) e no qual muitos juízes e professores entendem ser desnecessário usar a lei como baliza para suas decisões ou posições em classe. Se toda resposta é válida, se qualquer fundamento é aceitável, se o Direito é "sentimento", "vontade" ou "bom senso", como dizer que a resposta de um aluno para o caso proposto com suporte no pigeonhole é insusceptível de contestação?1 Entendo a crítica e partilho da apreensão. Penso, contudo, que a questão não é simplesmente se o estudo de caso funcionaria ou não como método central no Brasil. A questão é que, para funcionar, algumas mudanças precisariam se operar. E a utilização do método pode servir de propulsor para essas mudanças. Por mais que o terreno não pareça propício, a tentativa de mudança tem de começar em algum lugar. E onde melhor do que na faculdade, onde começa a formação dos juristas? Aversão a método Um outro obstáculo é uma certa aversão a método do (jurista) brasileiro. É perceptível nos juristas brasileiros, sobretudo nos estudantes, uma resistência ou mesmo aversão a método, a modelos, a padrões, a uma forma estruturada de apresentar o seu pensamento. Talvez seja algo ligado à cultura e que seja agravado pela pouca idade. Essa minha constatação de fato não está embasada em pesquisa empírica, mas não posso negar uma percepção que permeia toda a minha trajetória lidando com juristas brasileiros, formados ou em formação. Em minhas aulas, primeiro apresento o método. Depois passo para os alunos e alunas casos para eles e elas solucionarem à luz da metodologia. As respostas, contudo, quase que invariavelmente não seguem o método ensinado. Ao serem confrontados com as incongruências, as resistências começam a aparecer. Essa questão é tão recorrente que já tenho até um "antídoto" pronto. Como esse é um tema difícil, de insistir que o aluno siga um método ensinado, encontrei uma forma lúdica de enfrentá-lo. Em sala, coloco para tocar um áudio chamado "o pulo do gato em vendas", narrado por Max Gheringer2. Segundo Max, em empresas de vendas, quando se contrata novos vendedores, é comum que os vendedores mais antigos treinem os mais novos. Em mais ou menos um mês, todos os "truques" de vendas conseguem ser ensinados. Ou melhor: "quase todos". Quando os novos vendedores não conseguem alcançar os mesmos resultados dos vendedores mais antigos, a reclamação dos mais jovens é sempre a mesma: "os vendedores mais antigos não ensinam tudo o que sabem." Pelo contrário, deixariam de fora das lições o que há de mais importante: o "pulo do gato". Então, um dia, a direção da empresa decidiu ensinar para os novos vendedores como era "o pulo do gato". Para isso, eles convidaram um especialista em zoologia, que fez uma apresentação sobre "as 7 etapas do pulo gato", as quais se desenvolvem da seguinte forma: 1ª) o gato gira a cabeça para que seus olhos fiquem paralelos ao solo, mesmo que o resto do corpo ainda esteja torto; 2ª) o rabo fica esticado na posição vertical, girando constantemente para ajudar no equilíbrio; 3ª) o gato gira a coluna e alinha a parte dianteira do corpo com a cabeça; 4ª) a parte traseira do corpo é alinhada com a parte dianteira; 5ª) as quatro patas se emparelham para que possam tocar o solo ao mesmo tempo; 6ª) a poucos centímetros do chão, o gato estica bem as pernas e arqueia a coluna; 7ª) no exato momento em que toca o solo, o gato descontrai as patas e endireita a coluna. A ação funciona como um perfeito amortecedor de impacto. E aí o bichano sai caminhando sossegado, como os vendedores mais antigos faziam ao final de cada dia. Ao final da apresentação, os novos vendedores estavam com "aquela cara de quem não está entendendo nada". Daí o diretor de vendas explicou: "o gato sempre acerta o pulo porque nunca muda a sequência. Os jovens vendedores sempre tentavam queimar etapas ou fazer algo diferente do que os veteranos faziam. E esse era o problema. Em vendas, o pulo do gato chama disciplina." Pois bem. Assim como acontece com com os vendedores jovens, os alunos de direito tentam "queimar etapas", ou fazer algo diferente do que foi ensinado, quando vão resolver casos à luz do método estruturado de casos. Aqui também a solução é a disciplina. No caso dos alunos de direito, a aversão a método parece estar ligada a uma falsa impressão de que o método seria limitador, desnecessário, formal e sem sentido. Que aplicar um método estruturado para resolver casos, seria como tentar solucioná-los por meio de uma "receita de bolo". Nada disso é verdadeiro. O método não limita. Ele não restringe a criatividade ou mesmo a eventual genialidade de ninguém. Ele não dá de antemão as respostas ao caso. O que o método faz é propor uma organização do pensamento e da comunicação. É apontar uma direção lógica a partir da qual as discussões podem e devem seguir. E o caminho, ao menos na área do direito civil, é sempre baseado nas previsões legais vigentes, em especial em dispositivos legais do Código Civil O método não limita a criatividade. Pelo contrário, ele é muitas vezes elemento propulsor de ideias, questões e discussões materiais que os juristas possivelmente não teriam tido se estivessem argumentando livremente. Inferior adequação do Código Civil Um terceiro e último obstáculo é o fato de o Código Civil não estar tão bem amoldado à forma de raciocínio do método estruturado. No direito civil, especialmente no direito das obrigações, impera litígios envolvendo créditos. Normalmente, alguém quer exigir de outrem alguma prestação, seja a entrega de algo, a realização de uma atividade, ou o pagamento de uma dívida pecuniária. Para se determinar se a pessoa tem ou não razão, o ponto de partida acaba sendo sempre a existência ou não desse crédito, o que consequentemente leva à análise da respectiva base creditícia, ou seja, da norma jurídica a partir da qual surge o crédito. Pois com alguma frequência, a base creditícia no Código Civil não é tão clara. Vou mencionar aqui apenas exemplo: um caso utilizado na Alemanha como de aplicação do Gutachtenstil envolve a seguinte situação: A, de 15 anos, solicita a B, também de 15 anos, que venda a terceiro sua bicicleta, pois está precisando de dinheiro. A chega a entregar a B a sua bicicleta. Quando ficam sabendo do acordo, os pais de A dão uma bronca nele e dizem para ele desfazer essa bagunça e pegar a bicicleta de volta. Entre outras, a pergunta do caso é se A pode exigir de B a bicicleta de volta. A primeira via de tentativa é pelo contrato de mandato, que naturalmente vai se mostrar infrutífera pelo fato de as partes envolvidas serem absolutamente incapazes. Como o contrato é nulo, não pode ser através dos efeitos dele que A pode querer exigir a bicicleta de volta. Essa é a conclusão a que se chega tanto na Alemanha quanto no Brasil. Mas ponto aqui é outro. Para a base creditícia de A, a ser analisado se o seu suporte fático foi preenchido ou não, o BGB fornece uma norma muito clara, enquanto o Código Civil brasileiro não. No BGB, a base é o § 667, o qual estatui o "dever de devolução" do mandatário: "O mandatário é obrigado a devolver ao mandante tudo o que receber para cumprir o mandato e o que obtiver com a realização da operação." No Código Civil, em vão se procurará por uma base creditícia tão clara e bem delineada como essa. Na verdade, não há dispositivo que preveja um tal dever de devolução do mandatário ao final do contrato. O mais próximo a que se chega disso é com o art. 681, segundo o qual "o mandatário tem sobre a coisa de que tenha a posse em virtude do mandato, direito de retenção, até se reembolsar do que no desempenho do encargo despendeu." A base creditícia que tenho de utilizar para proceder à referida análise acaba sendo uma leitura a contrario sensu desse dispositivo: a ideia é que, se o mandatário não despendeu nada, ele não tem direito a reembolso nem de retenção da coisa. Ou seja, consequentemente teria o dever de devolver a coisa ao final do contrato quando requerido pelo mandante. Mas note-se que é uma construção bem mais indireta e sinuosa do que a presente no BGB. Conclusão Há obstáculos para aplicação de um método estruturado de resolução de casos no Brasil, mas esses obstáculos são transponíveis. Em primeiro lugar, a percepção generalizada que não há resposta "correta" pode ser combatida pela própria adoção de um método que requeira uma aplicação mais rigorosa das normas legais vigentes. A aversão ao método pode ser combatida pela sua própria utilização - inicialmente exigida impositivamente nos bancos das faculdades -, que leva o aluno a paulatinamente perceber a sua razão e sentido. E, por fim, a inferior inadequação do Código Civil pode ser contornada com alguma criatividade e flexibilidade do intérprete-aplicador. E, no longo prazo, a disseminação de um método analítico entre os intérpretes-aplicadores acaba influenciando a própria elaboração futura de leis, que acabam passando a ser mais bem elaboradas. ___________ 1 RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Como se produz um jurista em alguns lugares do mundo? O modelo alemão (Parte 3). Revista Consultor Jurídico (Conjur), 11 fev. 2015.  2 GHERINGER, Max. O pulo do gato em vendas. Disponível aqui. Acesso em: 3 set. 2022. Agradeço a João Manoel de Lima Jr. pela indicação da existência desse áudio.
Introdução Na coluna anterior foi feita uma apresentação do caso Roe v. Wade com uma descrição da decisão e análise inicial da fundamentação judicial daquele julgamento histórico de 1973.1 Na presente coluna, o objetivo consiste em apresentar os termos do debate acadêmico estadunidense com base na perspectiva doutrinária do Professor Laurence Tribe sobre o aborto. O ponto de partida será a discussão apresentada no seu Tratado de Direito Constitucional, em que o Professor de Direito Constitucional da Harvard Law School produziu análise ampla e abrangente das bases teóricas, princípios normativos e da jurisprudência constitucional estadunidense. Ademais, será apresentada também sua visão mais específica sobre os direitos reprodutivos nos Estados Unidos desenvolvida em uma monografia escrita sobre esse tema. A presente coluna será dividida em quatro partes. Além dessa introdução, a segunda parte explica como a análise relativa à existência de direitos reprodutivos pode ser construída no contexto do direito à privacidade e da personalidade. A terceira parte discute os termos do conflito entre valores absolutos contrapostos que têm caracterizado o debate. Finalmente, a última parte indicará a existência de questões políticas entre partidários do movimento Pró-Vida (Pro Life) e Pró-Escolha (Pro Choice) a serem exploradas na próxima coluna, que irá tornar a revisitar esse caso a partir de outros desdobramentos. A Análise Teórica do Direito Reprodutivo: Sua Emergência a Partir do Direito da Privacidade e da Personalidade O ponto de partida para a compreensão da perspectiva do Professor Laurence Tribe deve ser inevitavelmente o tratamento dado ao tema no seu Tratado de Direito Constitucional intitulado American Constitutional Law. Conhecido como o constitucionalista mais citado nos Estados Unidos e por seu sucesso profissional como advogado perante a Suprema Corte dos Estados Unidos, o Professor da Harvard Law School consolidou sua reputação através dessa obra de referência, que o posicionou como o principal intérprete contemporâneo da Constituição estadunidense.2 Foi o seu tratado que o projetou como alguém capaz de dar sentido coerente e harmônico não somente ao texto constitucional, mas ao conjunto de decisões da jurisprudência constitucional daquele país.3 Com a publicação da obra em 1978, Laurence Tribe passou a ser convidado para a defesa de grandes casos perante a própria Suprema Corte dos Estados por conta de seu vasto conhecimento sobre os precedentes judiciais e as possibilidades interpretativas dos casos difíceis a serem decididos pelos Justices.4 Na estrutura original do tratado de 1978, no capítulo sobre 'Direitos da Privacidade e da Personalidade', existe uma análise sobre o controle governamental sobre o corpo e decisões sobre nascimento.5 O início dos debates sobre a decisão íntima de o corpo ser um veículo para a criação de uma vida humana teria surgido a partir do caso Griswold v. Connecticut, em que a Suprema Corte decidiu que o Estado não poderia tipificar como um crime o uso de material contraceptivo por pessoas casadas e nem punir quem fornecesse tais contraceptivos com a devida informação sobre o seu uso.6 A regulação estatal foi condenada por invadir uma área de liberdades protegidas e que incluía uma zona de privacidade criada por inúmeras garantias constitucionais.7 A opinião do Justice Douglas foi bem firme ao sugerir que a polícia não deveria ser autorizada a realizar busca e apreensão nos sagrados recintos dos cômodos matrimoniais com a pretensão de localizar evidências de uso de anticoncepcionais.8 Anteriormente, na decisão de 1942 em Skinner v. Oklahoma, a corte já tinha invalidado uma lei estadual que obrigava a esterilização de alguém condenado duas ou mais vezes por delitos sexuais, considerando que o direito reprodutivo era um dos direitos civis básicos do homem e que o Estado não poderia exercer controle sobre a liberdade individual e o poder de escolha sobre como e quando gerar uma criança.9 Para Laurence Tribe, a conjugação dessas duas decisões impõe a conclusão de que a decisão sobre se e quando um corpo de uma pessoa será a fonte de uma outra vida deve ser uma decisão deixada para a escolha exclusiva daquela pessoa e somente dela.10 Mesmo se a inseminação original tiver sido voluntária, considerando difícil imaginar situação mais clara de intrusão corporal do que na restrição ao aborto, a Suprema Corte teria reafirmado o direito à privacidade reconhecido em casos anteriores como suficientemente amplo para abranger uma decisão de uma mulher sobre se termina ou não a sua gravidez.11 Apesar de coerente com a jurisprudência anterior sobre o direito à privacidade, Laurence Tribe já reconhecia a existência de argumentos críticos contundentes como feitos por John Hart Ely naquele mesmo ano de 1973,12 identificados como ponto de partida para a teoria constitucional sobre controle de constitucionalidade das leis posteriormente desenvolvida no livro Democracy and Distrust: A Theory of Judicial Review.13 Contudo, apesar do caráter polarizado do tema, da inevitável dimensão espiritual relativa ao mistério da vida e da insuficiência da justificativa para a ponderação de interesses do feto antes do período de viabilidade devido à incapacidade de sobrevivência fora do útero, Laurence Tribe considera que deve ser colocado em perspectiva o argumento de que a corte deveria ter sido deferente ao processo político. Afinal de contas, na Alemanha, proponentes da posição Pró-Vida e da crença que o aborto é um homicídio ingressaram com uma ação no Tribunal Constitucional para derrubar uma legislação aprovada pelo Parlamento e que autorizava a interrupção da gestação pelas mulheres naquele país.14 Em outras palavras, a judicialização decorreu muito mais da insatisfação com o resultado da decisão final relativa aos direitos reprodutivos do que pela legitimidade democrática de eventual reconhecimento de direitos reprodutivos pelo poder legislativo. Aliás, exemplo pródigo brasileiro provém da ação contrária às pesquisas realizadas com células-tronco, em que a legislação autorizava o uso de embriões para fins de pesquisa científicas, o que foi questionado pelos que vislumbravam ali uma vida humana a ser juridicamente protegida. Laurence Tribe abandonaria o projeto de manter atualizado o seu tratado após 27 anos, tendo anunciado que as mutações jurídicas no início do século XXI teriam inviabilizado a possibilidade de interpretação harmônica e coerente à jurisprudência constitucional estadunidense.15 Para ele, em 2005, não existia mais a possibilidade de dar unidade ao corpus do direito constitucional, que refletisse criticamente sobre os grandes temas e direções dos movimentos e decisões do Poder Judiciário.16 Existiam tantas encruzilhadas multidirecionais e conflitos sobre premissas constitucionais básicas que não se vislumbrava uma grande teoria unificadora que justificasse a atualização do seu tratado lançado em 1978, tarefa que talvez coubesse à geração de sua neta.17 É interessante notar que a parte essencialmente contestada e que provocou sua decisão de não mais atualizar sua obra dizia respeito justamente à teoria dos direitos fundamentais, eis que a parte relativa à separação dos poderes, federalismo e organização do poder político tinha sido recentemente atualizada, quando o Professor tinha decidido dividir o seu tratado em dois volumes e lançado um primeiro volume com tal temática.18 A segunda parte relativa aos direitos fundamentais era justamente o objeto de contestação, conflito e falta de perspectiva uniforme e coerente.19 Laurence Tribe considerava correta a orientação dada pela Corte Warren e, na sequência, pela Corte Burger, que deu continuidade à mesma perspectiva liberal progressista.20 Por outro lado, a própria decisão da Corte em Roe v. Wade viria a galvanizar a direita religiosa, mobilizar o movimento conservador e abrir uma série de fissuras no corpo constitucional que viria a desestabilizar a uniformidade ideológica e a coerência interpretativa da ordem constitucional estadunidense.21 O Conflito de Valores Absolutos e o Debate Doutrinário sobre Aborto Em sua monografia sobre o aborto como um conflito entre valores absolutos, Laurence Tribe identifica uma guinada na jurisprudência constitucional da Suprema Corte dos Estados Unidos. Inicialmente, legislações com medidas restritivas antiaborto seriam questionadas e, na maioria dos casos, invalidadas por inconstitucionalidade.22 Após uma série de respostas políticas para a Suprema Corte, chegou-se ao caso Webster v. Reproductive Health Services, em que a corte manteve Roe v. Wade como precedente judicial válido, mas iniciou uma bifurcação a partir da ampliação do interesse governamental na proteção da potencial vida humana intrauterina.23 O peso do interesse jurídico da mulher de escolher se interrompe a gravidez passou a ser ressignificado como um mero "interesse de liberdade", reproduzindo a terminologia que tinha sido adotada pelo voto vencido do Justice William Rehnquist na decisão de Roe v. Wade em 1973.24 A partir daquela decisão, a opinião da Justice Sandra O'Connor passou a ser decisiva para a proteção dos direitos reprodutivos em uma corte dividida entre conservadores e liberais progressistas. Sua opinião era de que eventuais regulações seriam inconstitucionais se fossem impostos ônus indevidos ('undue burden') na decisão de uma mulher de realizar um aborto, tendo decidido naquele caso concreto que a legislação de Missouri com suas exigências de um teste de viabilidade não entrava em conflito com os precedentes judiciais e nem impunha tal ônus excessivo à liberdade decisória das mulheres.25 Com sua eloquência tradicional, Laurence Tribe encontra um direito não-enumerado ao aborto nas penumbras da Constituição dos Estados Unidos: "A Suprema Corte nunca teve a oportunidade de declarar que jovens amantes tem um direito constitucional fundamental a se abraçar luxuriosamente enquanto dançam de noite, mas esse direito também está esperando para ser proclamado contra qualquer Estado ou municipalidade que seja pudica ao ponto de insistir que o jovem casal se conduza com grande decoro".26 Ao definir analiticamente os elementos jurídicos, interesses protegidos e princípios normativos por trás da questão do aborto, o Professor da Harvard Law School salienta o papel relevante dos direitos à liberdade, à privacidade, à integridade corporal e à igualdade para o reconhecimento dos direitos reprodutivos das mulheres.27 Para ele, existiria também uma discriminação de gênero pela colocação de um ônus real e substancial para a habilidade da mulher de participar como igual na sociedade.28 O outro lado da equação diz respeito à proteção do feto como uma vida em potencial. Como defensor da constitucionalidade dos direitos reprodutivos, Laurence Tribe inicia sua análise com a visão típica do realismo jurídico de que restrições não terão o poder de salvar os fetos, mas apenas forçarão mulheres desesperadas a realizar abortos inseguros em que não é protegida nem a vida fetal e tampouco a vida das mulheres.29 Por outro lado, o direito protegido por Roe v. Wade não pode ser um direito de necessariamente matar o feto, já que esse ponto seria apenas uma consequência que não pode ser evitada devido à falta de viabilidade fetal se a mulher for exercer o seu direito.30 Existe uma dificuldade em se caracterizar o embrião ou o feto como uma pessoa, porque a fertilização é classificada pela embriologia moderna não como um momento, mas como um processo.31 Uma grande parte da questão envolve a possibilidade de demanda pelo Estado de sacrifício humano forçado - seja através da lembrança de que o direito anglo-americano não exige que ninguém seja um bom samaritano e tenha a responsabilidade civil de se sacrificar pessoalmente para salvar outrem, seja pela surreal vinheta filosófica de Judith Jarvis Thomson de uma pessoa que acorda com seu corpo ligado a um famoso violonista que teve uma falência de órgãos e durante o seu sono foi ligado ao seu sistema circulatório para que pudesse sobreviver.32 O Professor da Harvard Law School considera que o direito não poderia impor tais sacrifícios aos direitos e liberdades individuais constitucionalmente protegidos, mas que esses exercícios de argumentação decorrem da própria decisão da Suprema Corte em Roe v. Wade, que salientou que deveriam ser reconhecidos tanto os interesses do feto, quanto os interesses da mulher grávida.33 Essa é a razão desse conflito de absolutos. Considerações Finais No final, sob a perspectiva argumentativa, o caso Roe v. Wade se tornou um caso tão proeminente, porque trata de questões seminais para a experiência humana, social e jurídica. Todos nós passamos pelo processo de fertilização, concepção, desenvolvimento embrionário e nascimento, sendo que desenvolvemos socialmente nossas visões e opiniões sobre a proteção da vida ou a proteção da escolha sobre a vida. Além da argumentação com base no conflito de valores absolutos e do debate doutrinário sobre o reconhecimento de um direito constitucional à interrupção da gravidez em Roe v. Wade, existe uma discussão política entre partidários do movimento Pró-Vida (Pro Life) e Pró-Escolha (Pro Choice), cujas questões devem ser exploradas na próxima coluna. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.  3 Idem. 4 Idem. 5 Laurence Tribe, American Constitutional Law, New York: The Foundation Press (1978), p. 921. 6 Idem. 7 Idem. 8 Idem. 9 Idem, p. 922-923. 10 Idem, p. 923. 11 Idem, p. 924. 12 John Hart Ely, The Wages of Crying Wolf: A Comment on Roe v. Wade, 82 Yale Law Journal (1973). 13 John Hart Ely. Democracy and distrust: A theory of judicial review. Harvard University Press, 1980. 14 Laurence Tribe, American Constitutional Law, New York: The Foundation Press (1978), p. 929. 15 Disponível aqui.  16 Idem. 17 Idem. 18 Idem. 19 Idem. 20 Idem. 21 Idem. 22 TRIBE, Laurence H. Abortion: The clash of absolutes. WW Norton & Company, 1992. P. 15. 23 Idem, p. 15-22. 24 Idem, p. 22. 25 Idem, p. 23. 26 Idem, p. 99. 27 Idem, capítulo 5. 28 Idem, p. 105. 29 Idem, p. 113. 30 Idem, p. 115. 31 Idem, p. 115-123. 32 Idem, p. 129-135. 33 Idem, 135-138.
segunda-feira, 12 de setembro de 2022

O marketing jurídico (Parte II)

Na coluna anterior (parte I), abordamos o gradativo reconhecimento jurisdicional da licitude da veiculação de publicidade por parte dos advogados nos EUA, construída a partir da garantia constitucional da liberdade de expressão. Analisamos, especialmente, dois precedentes da Suprema Corte norte-americana determinantes para o reconhecimento e para a delimitação do marketing jurídico. A publicidade veiculada pelos advogados, não sendo falsa ou enganosa, representa divulgação comercial amparada constitucionalmente pela cláusula da liberdade de expressão, que permite o marketing jurídico desde que não se revele, concretamente, enganoso. No entanto, em que pese o referido reconhecimento, o tema sempre é delicado, sendo necessário avaliar, para além do cabimento do marketing jurídico, os limites razoáveis de tal prática a fim de parametrizar a publicidade pelos profissionais da advocacia, regulando-se o marketing a partir de balizas éticas mínimas, fora das quais passe a incidir sanções disciplinares. Nesta segunda parte investigaremos como o tema referente à publicidade dos advogados tem se desenvolvido no Reino Unido e em países da civil law, especificamente, o tratamento conferido pela União Europeia e pelo ordenamento jurídico brasileiro, a fim de se avaliar seus limites e perspectivas.  Reino Unido A advocacia no Reino Unido passou por grandes transformações no início do século XXI, sobretudo a partir da Tesco Law (Legal Services Act 2007) - editada para flexibilizar a rígida regulação até então existente sobre as atividades concernentes. Nessa nova regulação, oito objetivos foram enunciados para o aprimoramento dos serviços profissionais dos advogados: i) proteger e promover o interesse público; ii) apoiar o princípio constitucional do Estado de Direito; iii) melhorar o acesso à justiça; iv) proteger e promover os interesses dos consumidores; v) promover a competição para serviços jurídicos não reservados; vi) encorajar uma profissão jurídica diversificada e forte; vii) aumentar a compreensão pública em relação aos direitos e deveres legais dos cidadãos; e viii) promover e manter a adesão aos princípios profissionais. A partir desse novo cenário, os escritórios de advocacia foram abertos para o mercado na Inglaterra e no País de Gales. Desde então, os escritórios podem ser constituídos na forma de empresas (modelos societários de Incorporated Company e Limited Liability Partnertship (LLP) que, por sua vez, podem receber investimentos ou serem propriedade de não-advogados (Alternative Business Structures). De acordo com BAPTISTA, a dinâmica da advocacia no Reino Unido difere de outros lugares do mundo, pois em solo britânico, o escritório de advocacia é considerado um negócio como outro qualquer. "Os serviços são prestados por pessoas aptas para o efeito, os preços são regulados pela concorrência e a publicidade é, digamos, a alma do negócio, permitindo-se uma publicidade promotora aos advogados, afirma-se que a fórmula do sucesso que faz com que a advocacia do Reino Unido seja a número um em todo o mundo é a aplicação das regras concorrenciais aos escritórios de advogados".1 Essa nova formatação dos escritórios no Reino Unido trouxe como consequência a tolerância de praticamente qualquer forma de publicidade - tal como ocorre com as demais empresas. Em síntese, as regras de publicidade impostas para a advocacia britânica determinam que a propaganda não seja enganosa e seja suficientemente informativa para garantir que os consumidores possam fazer escolhas informadas, vedando-se abordagens pessoais para divulgação dos serviços profissionais.2 União Europeia Na União Europeia os advogados são representados pelo Conselho das Ordens de Advogados da União Europeia (CCBE) - uma associação internacional sem fins lucrativos. Essa associação funciona como ligação entre a UE e as diversas ordens de advogados da Europa, estabelecendo as condições em que os advogados habilitados a exercer a profissão num Estado-membro podem também exercê-la de forma permanente noutro Estado-membro. De acordo com a Carta de princípios nucleares da advocacia europeia (Charter of core principles of the european legal profession) e o Código de conduta para advogados europeus (Code of conduct for european lawyers), a publicidade pessoal dos advogados é regulada por duas regras essenciais: (i)  O advogado tem o direito de informar o público sobre os seus serviços, desde que as informações sejam precisas e não enganosas, e respeitem a obrigação de confidencialidade e outros valores fundamentais da profissão; e (ii) Respeitados referidos parâmetros, é permitida a publicidade pessoal do advogado em qualquer forma de mídia (imprensa, rádio, televisão, comunicações comerciais eletrônicas.3 Observa-se, no entanto, que cada Estado-membro possui as suas especificidades e, apesar de semelhanças naturais entre elas, as normas nacionais diferem em cada país integrante do bloco. Assim, países como França, Itália, Espanha e Portugal possuem regramentos próprios que refletem tradições muito antigas quanto à publicidade da advocacia.  Todavia, gradativamente as diferenças de tratamento do tema entre os Estados-membros tendem a ceder ou a serem relativizadas, em prol da viabilidade dos advogados exercerem livremente a profissão nos países europeus, com lealdade de concorrência. Em Portugal, por exemplo, a publicidade na advocacia foi concebida com muitas reservas em razão das especificidades da profissão. Sempre se entendeu que o marketing jurídico não deveria seguir o padrão do marketing autorizado para outros prestadores de serviços. Isso se refletiu na regulação imposta pelo primeiro Estatuto dos Advogados, que "vedava ao advogado toda a espécie de reclamo, apenas permitindo a publicidade das tabuletas e de anúncios nos jornais com a simples menção do nome, endereço e horas de expediente, bem como, a título informativo, a indicação de graus acadêmicos, da sociedade profissional e a menção a cargos exercidos na Ordem."4 O atual Estatuto da Ordem dos Advogados de Portugal passou por significativas mudanças no que tange ao tema da publicidade, prevendo, em seu art. 94, uma forma de "publicidade regulada" com a possibilidade da menção a assuntos profissionais em que tenha intervindo, a referência a cargos públicos ou privados exercidos, à composição e estrutura do escritório e até a inclusão de ilustrações, dentre outros.5 Dentre as expressas vedações previstas em referido estatuto a respeito da publicidade, destacam-se: a) a colocação de conteúdos persuasivos, ideológicos, de autoengrandecimento e de comparação; b) a menção à qualidade do escritório; c) a prestação de informações errôneas ou enganosas; d) a promessa ou indução da produção de resultados; bem como e) o uso de publicidade direta não solicitada.6 A principal justificativa para a alteração do Estatuto português nas regras concernentes à publicidade dos advogados foi a de proporcionar uma concorrência justa com os demais membros da União Europeia. Brasil É relevante compreender que o cabimento e o alcance da publicidade dos escritórios de advocacia no Brasil estão intimamente relacionados com a formatação jurídica a que estão atrelados. Conforme o Estatuto da OAB (lei 8.096/94), os advogados somente podem constituir sociedade civil de prestação de serviços de advocacia, não sendo admitidas as sociedades de advogados que apresentem forma ou características mercantis, que adotem denominação de fantasia, que realizem atividades estranhas à advocacia, que incluam sócio não inscrito como advogado ou totalmente proibido de advogar (art. 16). Assim sendo - e diversamente do que ocorre em países de common law (Inglaterra e País de Gales) -, a atividade dos advogados não se confunde com qualquer espécie de atividade comercial, gerando, por consequência, notáveis restrições quanto à publicidade permitida. No primeiro Código de Ética Profissional do Brasil, editado pelo Instituto dos Advogados de São Paulo (1921), havia expressa proibição da propaganda de serviços de advogados. Conforme previa o art. 12, "É igualmente contrário à ética profissional solicitar serviços ou causas, bem como angariar estas ou aqueles por intermédio de agentes de qualquer ordem ou classe. Nem mesmo pode ser tolerada, aberrante como é das tradições da nobre profissão da advocacia, a propaganda indireta, por meios provocados, de informações e comentários da imprensa sobre a competência do advogado, excepcional importância da causa, magnitude dos interesses confiados ao seu patrocínio e quejandos reclamos. Não é defeso, entretanto, anunciar o exercício da profissão ou escritório, pela imprensa e indicadores, ou por outros modos em uso, declarando suas qualidades, títulos ou graus científicos". Atualmente, o princípio geral que rege toda a atividade da advocacia é o de que "O advogado deve proceder de forma que o torne merecedor de respeito e que contribua para o prestígio da classe e da advocacia". (art. 31 da lei 8.906/94). Especificamente a respeito da publicidade profissional dos advogados, encontra-se regulamentada pelo Código de Ética e Disciplina da OAB (Capítulo IV - Da Publicidade Profissional) e pelo Provimento 205/21, do Conselho Federal. Os princípios basilares que norteiam o marketing jurídico no Brasil são pautados pelo seu caráter meramente informativo, primando pela discrição e sobriedade, não podendo configurar captação de clientela ou mercantilização da profissão (art. 3º - Provimento 205/21). Em razão da importância e da complexidade do tema, e sobretudo diante das novas formas de publicidade - em especial, os formatos online e as ferramentas de marketing digital disponíveis para uso que não eram previstos na legislação vigente -, o tema voltou a ser debatido, tendo sido realizada pelo Conselho Federal da OAB, em 2019, consulta pública sobre "os limites da publicidade na advocacia". O objetivo da referida consulta foi ouvir os advogados por meio de um questionário para coletar informações e sugestões para uma possível atualização dos regramentos em vigor, até então o Provimento 94/00 e o Código de Ética e Disciplina.7 E assim foi feito, tendo sido elaborado um questionário com perguntas objetivas e um campo aberto para sugestões prevendo questões sobre a flexibilização das regras de publicidade, utilização das redes sociais, sites e plataformas digitais como aplicativos de localização, busca e troca de mensagens para a divulgação dos serviços advocatícios. Fruto da referida consulta pública foi a edição do Provimento 205/21, que trouxe uma importante diferenciação entre marketing jurídico e o branding jurídico - distinção que acompanha um movimento mundial sobre o tema.    Conforme previsão do art 2º do referido regulamento, "Para fins deste provimento devem ser observados os seguintes conceitos: I - Marketing jurídico: Especialização do marketing destinada aos profissionais da área jurídica, consistente na utilização de estratégias planejadas para alcançar objetivos do exercício da advocacia; II - Marketing de conteúdos jurídicos: estratégia de marketing que se utiliza da criação e da divulgação de conteúdos jurídicos, disponibilizados por meio de ferramentas de comunicação, voltada para informar o público e para a consolidação profissional do(a) advogado(a) ou escritório de advocacia; III - Publicidade: meio pelo qual se tornam públicas as informações a respeito de pessoas, ideias, serviços ou produtos, utilizando os meios de comunicação disponíveis, desde que não vedados pelo Código de Ética e Disciplina da Advocacia; IV - Publicidade profissional: meio utilizado para tornar pública as informações atinentes ao exercício profissional, bem como os dados do perfil da pessoa física ou jurídica inscrita na Ordem dos Advogados do Brasil, utilizando os meios de comunicação disponíveis, desde que não vedados pelo Código de Ética e Disciplina da Advocacia; V - Publicidade de conteúdos jurídicos: divulgação destinada a levar ao conhecimento do público conteúdos jurídicos; VI - Publicidade ativa: divulgação capaz de atingir número indeterminado de pessoas, mesmo que elas não tenham buscado informações acerca do anunciante ou dos temas anunciados; VII - Publicidade passiva: divulgação capaz de atingir somente público certo que tenha buscado informações acerca do anunciante ou dos temas anunciados, bem como por aqueles que concordem previamente com o recebimento do anúncio; VIII - Captação de clientela: para fins deste provimento, é a utilização de mecanismos de marketing que, de forma ativa, independentemente do resultado obtido, se destinam a angariar clientes pela indução à contratação dos serviços ou estímulo do litígio, sem prejuízo do estabelecido no Código de Ética e Disciplina e regramentos próprios." Como se percebe, o Provimento de 2021 configura um importante marco na tentativa de acompanhar o desenvolvimento mundial da matéria, autorizando o uso das tecnologias e das redes sociais, a participação de advogados em lives e, ainda, o uso de mídias sociais como o Whatsapp e o Google Ads (serviço de publicidade da Google). No que tange ao impulsionamento de conteúdos, são permitidas publicações jurídicas em sites ou redes sociais dos advogados para atingir um público maior, que pode ou não estar interessado nos seus serviços, ou para ser encontrado apenas pelos seus seguidores, inscritos no seu newsletter e por quem busca o seu site ou perfil. É importante destacar que, apesar dos avanços na matéria, o Provimento 205/21 não revogou a proibição de veiculação de anúncios em: i) rádio e televisão; ii) painéis de propaganda; iii) anúncios luminosos; iv) quaisquer outros meios de publicidade em vias públicas; v) cartas circulares; vi) panfletos distribuídos ao público; vii) oferta de serviços mediante intermediários, mantendo-se, portanto, o regramento do Código de Ética da OAB.8    Por fim, ressalta-se, que ainda há grande controvérsia quando se trata de analisar o cabimento e os limites da utilização de propagandas ostensivas. Para tanto, o art. 9º do referido Provimento previu a criação de um "Comitê Regulador do Marketing Jurídico", de caráter consultivo, com a finalidade de acompanhar denúncias de violação às regras de publicidade, bem como, de sanar eventuais lacunas existentes sobre o tema. Nesse sentido, ao contrário do direito norte-americano, conforme expusemos na primeira parte da presente coluna, todos os advogados brasileiros são representados por uma forma de organização marcada por sua unidade institucional com caráter nacional, sendo regidos por um só Código de Ética - o que torna viável a atuação do referido Comitê na fiscalização das práticas de publicidade. __________ 1 BAPTISTA, Joana Isabel Marques. A publicidade na advocacia. Disponível aqui. Acesso em 07 de setembro de 2022. 2 A respeito da advocacia e da publicidade jurídica na Inglaterra, consulte-se "Investimento externo vai fortalecer advocacia britânica". Acesso em 05 de setembro de 2022. 3 CCBE. Charter of core principles of the european legal profession and code of conduct for european lawyers. Disponível aqui. Acesso em 27 de agosto de 2022. 4 Estatuto da Ordem dos Advogados  - art. 80º do anterior Estatuto, revisto em 2001, na senda do artº 571º do velho Estatuto Judiciário, de 1927. 5 Estatuto da Ordem dos Advogados de Portugal. Disponível aqui. Acesso em 07 de setembro de 2022. 6 Idem. 7 OAB Nacional. Disponível aqui. Acesso em 06 de setembro de 2022. 8 Código de ética e disciplina da OAB - Disponível aqui. Acesso em 06 de setembro de 2022. "Art. 29. O anúncio deve mencionar o nome completo do advogado e o número da inscrição na OAB, podendo fazer referência a títulos ou qualificações profissionais, especialização técnico-científica e associações culturais e científicas, endereços, horário do expediente e meios de comunicação, vedadas a sua veiculação pelo rádio e televisão e a denominação de fantasia."
A característica mais marcante da legislação sobre danos climáticos nas jurisdições do common law é a escassez de responsabilidade civil para obter compensação dos agentes negligentes e punição em face daqueles que, de forma imprudente ou intencional, causam danos. É consenso científico que a queima de carvão, petróleo e gás provoca o aquecimento global. No entanto, a responsabilidade civil possui um histórico excepcionalmente tíbio em sancionar os poluidores ambientais. Por exemplo, derramamentos de óleo no porto de Sydney e uma explosão subsequente foram considerados danos muito "remotos".1 Derramamentos químicos poluindo as águas subterrâneas de Cambridge também foram reputados como consequência demasiadamente "remota" para gerar compensação de danos.2 Vale dizer, qualquer demanda contra emissores enfrenta profundos desafios doutrinários, em cada etapa do processo. Em matéria de responsabilidade civil, no tradicional ilícito de negligência, surgem três questões principais: houve dano, violação ao dever de cuidado e nexo de causalidade, que não seja muito remoto? Primeiro, há um número crescente de eventos que resultam em danos climáticos, cada vez mais extremos: inundações no Reino Unido, incêndios florestais na Austrália, furacões na América. Isso resulta em danos à propriedade, lesões a integridade psicofísica e morte. Em segundo lugar, há uma violação a um dever de cuidado? Isso depende se o dano é razoavelmente previsível, há proximidade, e é justo, justo e razoável impor um dever.3 Danos climáticos já estavam previstos em 1965, e empresas de combustíveis fósseis como a Exxon realizam extensa pesquisa sobre o assunto desde 1977. Se uma pessoa sensata deveria saber que sua ação poderia causar danos, mas age de qualquer maneira, há uma violação do dever.4  Terceiro ponto, as ações de uma empresa de combustíveis fósseis causam danos ao clima? Vários agentes poluem a atmosfera em diferentes quantidades, contudo apenas 90 empresas são responsáveis ??por 63% de todas as emissões históricas.5 Há incerteza científica sobre a ligação entre qualquer fonte de emissões e os danos resultantes, porque as emissões em um só lugar levam a padrões globais desiguais de aquecimento. Todavia, em face de tal incerteza, foi estabelecido em Fairchild v Glenhaven Funeral Services Ltd que um infrator é responsável pela ampliação material do risco que ele causa.6 O princípio preferível parece ser que os infratores são solidariamente responsáveis, embora um teoria alternativa é que eles podem ter responsabilidade proporcional, uma regra que importa onde algumas empresas se tornaram insolventes.7 A regularidade e gravidade desses eventos aumenta gradativamente, o que significa que a probabilidade percentual de que qualquer evento seja causado por danos climáticos se acentua. Quanto à indagação se a cadeia causal é muito "remota", a resposta deve ser negativa, já que os danos climáticos dos combustíveis fósseis são esperados e bem compreendidos.  Provavelmente, quando demandados, os emissores de combustíveis fósseis colocarão maior peso no argumento da causalidade. No tribunal estadual alemão de Essen, um caso em andamento chamado Lliuya v RWE AG admitiu que uma grande empresa de energia, a RWE AG, poderia ser responsabilizada em princípio por danos a uma geleira no Peru. A aldeia de Lliuya, Huaraz, ficava perto de uma geleira montanhosa derretida, aumentando o tamanho do lago Palcacocha e exigindo defesas contra inundações. Foi alegado que a RWE contribuiu com 0,47% das emissões globais de carbono e, portanto, deveria ser responsável por 0,47% do custo da proteção contra inundações. Enquanto o Tribunal Estadual indeferiu o pedido, argumentando que não havia 'cadeia casual linear', em novembro de 2017 o Tribunal Superior admitiu a passagem para a fase probatória no tocante à ameaça de deslizamentos de terra, e a contribuição exata da RWE, a ser avaliada por peritos.8 Evidentemente, se um caso estabelece a responsabilidade de uma empresa por danos climáticos, todas as empresas sob a jurisdição da Alemanha podem ser processadas por sua contribuição: isso provavelmente tornaria as empresas de combustíveis fósseis insolventes. Uma simples aplicação dos princípios vigentes no direito inglês conduz ao mesmo resultado. Uma outra questão pode ser acrescentada: Magistrados devem decidir questões profundamente políticas? Deixando de lado a guerra e o holocausto nuclear, nenhuma questão é tão importante quanto o futuro da vida na Terra. Isso levanta a questão da "justiciabilidade", como forma específica de exigibilidade em juízo. Nas jurisdições do common law, o fundamental ilícito de "negligence", requer que se pondere se é justo, e razoável impor um dever de cuidado por dano climático. Pode-se argumentar que o Acordo de Paris de 2015, ou a Lei de Mudanças Climáticas de 2008, deveria substituir a legislação sobre responsabilidade civil aplicável às emissões de gases de efeito estufa. Nos EUA, um argumento semelhante teve sucesso. Em 2007, a Suprema Corte dos EUA decidiu por 5 a 4 que sua Agência de Proteção Ambiental tinha o dever de regular as emissões de gases de efeito estufa sob a Lei do Ar Limpo de 1963.9 Essa aparente vitória durou pouco, pois no caso American Electric Power Co v Connecticut, decidiu-se por 8 a 0 que, dada a jurisdição da EPA, impediu-se a aplicação da lei federal de responsabilidade civil. A lei inglesa não replica esse raciocínio: em questões ambientais não há impedimento à aplicação da responsabilidade civil em nenhum nível, sem que hajam palavras explícitas no estatuto. A Suprema Corte dos EUA sugeriu que as leis estaduais de responsabilidade civil fossem aplicadas,10 contudo, em casos subsequentes tribunais podem concluir que, como os reflexos danosos cruzam as fronteiras estaduais, leis estaduais se tornam inoperantes, tornando a ação do poder executivo necessária no EUA para controlar a poluição em nível federal, posição esta incompatível com um sistema de justiça eficaz. É cada vez mais aceito que o sistema do common law deve ser interpretado à luz dos direitos humanos, particularmente sob a Convenção Europeia de Direitos Humanos. Por esse motivo, a decisão da Suprema Corte Holandesa em Urgenda v Estado da Holanda tornou-se influente. Ela sustentou que o governo holandês tinha que reduzir as emissões de gases de efeito estufa em 25% antes de 2020, um padrão retirado da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas em 2007 na qual são listados os países desenvolvidos que devem reduzir as emissões entre 25% e 40% até o final de 2020 para ficar 2 graus abaixo do limite para danos climáticos.11 A Suprema Corte Holandesa considerou que o não cumprimento até mesmo do limite inferior dessa meta violou tanto o direito à vida no artigo 2 da CEDH quanto o direito à vida privada e familiar no artigo 8.26 da CEDH. Em 2021, em um caso semelhante de Mudança Climática em 2021, o Tribunal Constitucional alemão considerou que o governo tinha o dever de acelerar suas medidas de proteção climática, como parte de seu dever constitucional de proteger os direitos à vida e ao meio ambiente sob a Grundgesetz 1949, artigos 2 e 20a.12 O significado de uma decisão com base nestes fundamentos é que, se seguido por outros tribunais em toda a Europa, os tribunais do Reino Unido terão fortes fundamentos para interpretar as normas do common law de modo compatível com a proteção do direito à vida e à privacidade. Há então uma escolha a ser feita sobre a aptidão da responsabilidade civil desempenhar um papel positivo, auxiliando a mitigar os danos causados ??pelos combustíveis fósseis. No litígio Friends of the Earth v Royal Dutch Shell plc, o Tribunal Distrital de Haia considerou que, de acordo com o Livro 6, seção 162(2), do Código Civil Holandês o não cumprimento do artigo 2(1) do Acordo de Paris de 2015 seria ilícito: que é "o que, de acordo com a lei não escrita, deve ser considerado como conduta social adequada". Ao interpretar este dever geral de responsabilidade civil, a Corte levou em consideração os artigos 2 e 8 da CEDH sobre os direitos à vida e à vida privada, familiar e doméstica. vida. Observou-se que "as consequências graves e irreversíveis das perigosas mudanças climáticas na Holanda... representam uma ameaça aos direitos humanos dos residentes holandeses". Frisou-se que a Shell tinha o dever de reduzir suas emissões de acordo com as obrigações do Acordo de Paris em 45% até 2030, fossem elas geradas diretamente por seu grupo corporativo ou indiretamente pelos compradores de seus produtos.13 Após o caso, a Shell plc excluiu "Royal Dutch" de seu nome e anunciou a mudança de sua sede para Londres, presumivelmente na esperança de escapar do julgamento, embora previsivelmente suas operações de relações públicas negassem tal fato. O episódio mais recente no universo do common law se encontra na Nova Zelândia, em Smith v Fonterra, cujo objetivo é processar 7 dos maiores emissores por negligência e incômodo público (public nuisance). Alega-se que essas grandes corporações violaram o dever de cuidar dos neozelandeses ao contribuir materialmente para a mudança climática. Evidentemente, há muita teoria de responsabilidade civil no argumento dos réus, concentrado na falta de conexão causal entre os emissores e o Sr. Smith. O Interessante no caso é a interação do Tikanga Maori (lei consuetudinária Maori) com a legislação de responsabilidade civil, pois o Sr. Smith representa pessoas da maior tribo na Nova Zelândia. Não é todo dia que você vê uma pessoa processando um grupo de grandes corporações no valor de dezenas de bilhões de dólares sobre danos a propriedades costeiras. Ele argumentou que o prejuízo foi causado pelo maior minerador de carvão da Nova Zelândia, uma refinaria de petróleo, uma usina de energia e outros emissores. A demanda chegou à Suprema Corte depois que os tribunais inferiores se recusaram a ouvir o caso de Smith. Os juízes entenderam que o resultado buscado por Smith representa uma mudança dramática na política nacional de mudança climática, e que ao parlamento democraticamente eleito incumbe a mudança de rumos, não os tribunais. Perante o Supremo Tribunal os demandados sustentam que os danos climáticos ocorreriam de qualquer maneira, que as suas emissões coletivas seriam "minúsculas" e que pessoas razoáveis ??no lugar dos réus não poderiam ter previsto o dano. Ademais, tal dano seria um resultado improvável ou distante das emissões dos réus.14 Esse raciocínio contradiz o famoso precedente Rookes v Barnard, no qual a House of Lords estabeleceu que punitive damages são aplicáveis quando a conduta é calculada para gerar lucro: "Onde um Réu com um desrespeito cínico pelos direitos de um Autor", disse Lord Devlin, "calculou que o dinheiro a ser ganho por seu delito provavelmente excederá os danos em risco, é necessário que a lei mostre que não pode ser quebrado impunemente".15 Contudo, o demandante solicita ao tribunal que seja ousado: Talvez a questão mais importante, se os tribunais não vão fazer isso, o que eles vão fazer? Com efeito, nesta batalha sem precedentes de 'Davi e Golias', esticam-se as cordas legais na tentativa de forçar uma intervenção sobre as mudanças climáticas. O fato é que os sete grandes emissores que Smith levou ao tribunal atuam tecnicamente dentro de seus poderes, sem violar nenhuma lei escrita aprovada pelo parlamento. O caso de Smith apela para a responsabilidade civil por atos ilícitos e solicita ao sistema de direito consuetudinário da Nova Zelândia que determine que os grandes emissores estão causando danos e não devem continuar com os negócios como de costume. Em uma analogia com a acepção clássica do delito de negligência, se você está andando de bicicleta, não presta atenção e bate no carro de uma pessoa rica: você é responsável por negligência pelos danos causados. Ademais, no que tange ao ilícito de incômodo público, há um comportamento que interfere na vida e no prazer público. Se tudo isto falhar, propugna-se pela criação de um novo tort: o ilícito por mudança climática, um convite para os juízes inventarem uma forma mais ecológica de tratar o seu próprio direito. Enfim, é difícil compreender por qual razão os tribunais inferiores da Nova Zelândia não tiveram a presença de espírito de raciocinar de maneira semelhante ao tribunal holandês.  Talvez eles simplesmente não se importem com os tratados internacionais de direitos humanos que a Nova Zelândia assinou e ratificou. Porém, a premente questão do câmbio climático impõe outro questionamento: quanto à capacidade institucional dos Tribunais de fazer políticas amplas. Isso não quer dizer que medidas urgentes não devam ser tomadas neste tema. Em vez disso, é indagar se os Tribunais estão em posição de tomar e ordenar as medidas necessárias. __________ 1 The Wagon Mound (No 2) [1961] UKPC 2. 2 Cambridge Water Co Ltd v Eastern Counties Leather plc [1993] UKHL 12, cf the Environment Act 1995 ss 5-6. 3 Caparo Industries plc v Dickman [1990] UKHL 2, adopting the reasoning of Bingham LJ [1989] QB 653. 4 Donoghue v Stevenson [1931] UKHL 3, per Lord Atkin. 5 R Heede, 'Tracing anthropogenic carbon dioxide and methane emissions to fossil fuel and cement producers, 1854-2010' (2014) 122 Climatic Change 229. 6 Fairchild v Glenhaven Funeral Services Ltd [2002] UKHL 22. McGhee v National Coal Board [1972] UKHL 7. In the US, see Sindell v Abbott Laboratories 26 Cal 3d 588 (1980). 7 Barker v Corus (UK) plc [2006] UKHL 20. 8 2015 Case No. 2 O 285/15 Essen Oberlandesgericht. 9 Massachusetts v Environmental Protection Agency, 549 US 497 (2007), under 42 USC §7521(a)(1). 10 564 US 410 (2011) Ginsburg J, leaving 'the matter open for consideration on remand.' 11 UN Framework Convention on Climate Change 1992, Annex I, and recommendation from the IPCC Working Group III, Climate Change 2007: Mitigation of Climate Change (2007) Contribution to the Fourth Assessment Report, ch 13, 776, Box 13.7. Note that the Renewable Energy Directive 2009/28/EC Annex I target for the Netherlands was just 14%. 12 Klimaschutz or Climate Change (24 March 2021) 1 BvR 2656/18. 13 (26 May 2021) C/09/571932 / HA ZA 19-379. 14 Smith v Fonterra Co-Operative Group Ltd. NZHC 419 [2020]. 15 Rookes v Barnard [1964] AC 1129, UKHL 1.
segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Método de resolução de casos - Parte III

Introdução A presente coluna é a terceira sobre o tema do método de resolução de casos no Direito. Na primeira coluna falei do método de resolução estruturada de casos jurídicos no ensino alemão, o Gutachtenstil. Na segunda, tratei da resolução de casos como método de ensino, como ocorre nas universidades americanas. A partir de agora falarei sobre método de resolução de casos no contexto brasileiro. Nesta coluna tratarei do interesse da comunidade brasileira pelo método alemão de resolução estruturada de casos (Gutachtenstil). Na próxima coluna, e última, falarei da minha experiência pedagógica, como tenho importado e aplicado esse método com meus alunos na graduação da FGV Direito Rio e os resultados disso. Interesse por casos como instrumento pedagógico no Direito Em primeiro lugar, vale chamar atenção para o fato de que há, em geral, um crescente interesse da comunidade jurídica brasileira pela análise de casos como instrumento pedagógico de ensino e de avaliação. Esse interesse mais geral vem se consolidando no Brasil. Esse foi, por exemplo, uma das bases orientadoras da criação das Escolas de Direito da FGV em 2002. Esse enfoque não só orienta as atividades de seus professores e pesquisadores até hoje, como já rendeu inclusive frutos editoriais. Para citar apenas um exemplo de Direito civil, minha área de concentração, a Flavia Püschel, professora da FGV Direito SP, organizou em 2002 obra intitulada "Uma Organização das Relações Privadas: introdução ao Direito privado com métodos de ensino participativos"1. Essa obra corresponde a esforço coletivo de professores e pesquisadores da FGV Direito SP no ano de sua criação. A obra contém propostas de aulas, baseadas em metodologias ativas de ensino, para lecionar diversos temas de teoria geral de Direito civil. Dentre elas, ganha destaque a análise e resolução de casos. O livro é excelente e o utilizo como base para diversas das aulas no meu curso de teoria geral do Direito civil. Outro exemplo editorial que demonstra esse interesse geral está presente no novo curso de Direito civil de Gustavo Tepedino em coautoria com diversos autores nos distintos volumes, chamado "Fundamentos do Direito Civil". Ao final de cada capítulo é proposto um "problema prático" para o aluno responder. Interesse pelo método alemão de resolução estruturada de casos Mas, mais especificamente, tem havido um interesse concreto no Brasil pela técnica alemã de resolução estruturada de casos jurídicos, o estilo de parecer (Gutachtenstil). A técnica alemã de resolução estruturada de casos jurídicos foi explicada brevemente na primeira coluna, para a qual remeto o(a) leitor(a) que queira se inteirar. Há, em primeiro lugar, alemães que escreveram sobre o tema em português para o público brasileiro. Em 1999, Harriet Christiane Zitscher publicou pequeno livro chamado "Metodologia do ensino jurídico com casos: teoria e prática (com exemplos do direito do consumidor e do direito civil)". Em 2014, a Revista de Direito Civil Contemporâneo publicou excelente artigo do jurista alemão Tilman Quarch, no qual ele traça "os principais pontos do ensino jurídico alemão, destacando-se a importância dada ao estudo de casos nas universidades da Alemanha e centrando-se nas formas de análise casuística, abordando as técnicas argumentativas utilizadas e os estilos Gutachtenstil e Urteilstil."2. Mas há interesse de brasileiros também. Em 2015, Otavio Luiz Rodrigues Jr. publicou uma série de colunas intituladas "como se produz um jurista em alguns lugares do mundo?". Ao abordar a Alemanha, ele naturalmente falou sobre a formação do jurista alemão que enfoca o estudo dos códigos através da resolução de casos à luz do estilo de parecer (Gutachtenstil)3. Após uma introdução do método, Otavio Rodrigues lançou interessante questão: "O estudo dos casos como método central funcionaria no Brasil?" A resposta dele merece ser transcrita: O estudo dos casos como método central funcionaria no Brasil? Eis uma pergunta que me intriga. A resposta, embora não seja definitiva para mim, é negativa. O estudo dos casos não resistiria por duas razões. A primeira está em que não [há] uma deferência institucional às respostas "corretas" dos casos, tal como se dá na Alemanha. Dito de outro modo: há um enorme respeito social pelas respostas aos exames (sobre os quais se falará na próxima coluna), elaborados pelos professores, ainda que exista alguma crítica se formando em torno disso. A segunda é que o próprio modelo se estruturou com base em técnicas de subsunção, com esteio no fundamento legal (com o já referido grau de refinamento doutrinário e jurisprudencial). No Brasil, tem-se o incrível consenso de que "não há uma resposta correta", o que é um efeito natural de um Direito que se louva (no campo jurisprudencial) em "decido conforme minha consciência" (Lenio Streck) e no qual muitos juízes e professores entendem ser desnecessário usar a lei como baliza para suas decisões ou posições em classe. Se toda resposta é válida, se qualquer fundamento é aceitável, se o Direito é "sentimento", "vontade" ou "bom senso", como dizer que a resposta de um aluno para o caso proposto com suporte no pigeonhole é insusceptível de contestação?4 Antes de analisar a conclusão de Otavio, se o método daria certo no Brasil ou não, vale chamar atenção para o fato de que ele parece aprová-lo e achar que seria um avanço caso adotado no Brasil. Tanto que ele diz, em outro trecho do texto, que a "bem-sucedida combinação do estudo dos casos e do profundo conhecimento dos códigos" é a razão para o Direito alemão ser "reconhecidamente o melhor da Europa" e "as faculdades de direito da Alemanha ocupa[re]m posição de preeminência no mundo"5. Em relação à conclusão, penso que a questão não é simplesmente se o método funcionaria ou não como método central no Brasil. A questão é que, para funcionar, algumas mudanças precisariam se operar. E a utilização do método pode servir de propulsor para essas mudanças. Por mais que o terreno não pareça propício, a tentativa de mudança tem de começar em algum lugar. E onde melhor do que na faculdade, onde começa a formação dos juristas? Tenho usado a técnica em minhas aulas e a minha experiência pedagógica tem sido boa. Voltarei a isso na próxima coluna. Em 2016, em palestra organizada pelo "Grupo de Ensino e Pesquisa Direito Penal Econômico" da FGV Direito SP. Nesta oportunidade, na introdução, Heloisa Estellita falou sobre Luis Greco: "o palestrante esteve no ano passado para proferir curso sobre teoria geral aplicada, o qual introduziu o método de análise estruturada de casos (Gutachtenstil), cuja técnica será futuramente publicada em livro."6 Entrei em contato com Greco perguntando do livro e ele me informou que, apesar do interesse, o livro nunca foi escrito. Em 2021, o juiz federal Marcio Mafra deu uma entrevista intitulada "Estilo de sentença e avaliação acadêmica"7. Mafra fez doutorado na Alemanha, na Universidade de Freiburg, onde teve contato com as técnicas de parecer (Gutachtenstil) e de sentença (Urteilstil). Na entrevista, tratou dessas técnicas e como elas "poderiam auxiliar a incrementar o desenvolvimento do raciocínio jurídico" dos juristas brasileiros, além de outros temas conexos. Falou, entre outros assuntos, sobre as diferenças de estilo de escrita e de argumentação jurídica entre juristas brasileiros e alemães, sobre as diferenças dos perfis dos juízes dos dois países em relação à utilização de "argumentos oriundos de outras ciências (por exemplo, nos moldes da Análise Econômica do Direito) ou de grandes matrizes da teoria da justiça (por exemplo, o consequencialismo)" como fundamento das decisões judiciais e, por fim, sobre ativismo judicial. Nesse contexto, Mafra dá a entender que o modelo alemão de formação dos juristas, com foco na resolução de casos através de métodos estruturados ou analíticos, pode contribuir para a formação de juristas brasileiros propiciando um estilo de escrita mais sucinto, objetivo e claro, uma argumentação e raciocínio mais orientados a e embasados em normas legais e também um menor ativismo judicial8. Em 2022, houve mais uma demonstração do interesse da comunidade brasileira pela técnica alemã de resolução de casos. Em julho, houve o lançamento do periódico "NOVA Revista de Direito Penal"9. Nessa revista, ao lado de artigos e resenhas, há uma seção chamada de "exercícios", que é reservada para "análise estruturada de casos" à luz da técnica alemã do estilo de parecer (Gutachtenstil). No primeiro volume da revista, há dois "exercícios": uma tradução da resolução de um caso do Direito alemão10 e a resolução de caso, inspirado em decisão do BGH, mas à luz do Direito brasileiro.11 Na cerimônia de lançamento da revista, Guilherme Góes, autor do segundo "exercício" publicado na revista, palestrou sobre análise estruturada de casos. Góes iniciou falando sobre a razão de publicar em uma revista uma área para resolução de casos a partir do método alemão analítico ou estruturado. Segundo ele, esse método teria o potencial para solucionar, ou ao menos remediar, dois grandes problemas do Direito brasileiro, um presente na teoria e outro na prática12. O problema da doutrina seria a frequente ausência de aplicação a casos concretos dos conceitos que são abstratamente expostos pelos autores em livros e artigos. Góes fala da angústia de "ler o manual e sentir que falta a aplicação" dos conceitos. A angústia, então, decorrente da "discussão puramente só em abstrato de alguns conceitos e nunca a aplicação em algum caso concreto". Ele cita, como exemplo claro disso, o tema do dolo no direito penal: lê-se sobre o dolo em autores penalistas e fica uma "questão muito aberta"13. E o outro problema, agora presente na prática, seria relativo à jurisprudência dos tribunais brasileiros. Da análise de decisões judiciais, Guilherme Góes afirma que se pode constatar que "há uma falta de coerência e uniformidade" e, consequentemente, de controle dessa jurisprudência14. Em resumo, Góes faz a seguinte contraposição: enquanto na doutrina há, por vezes, uma falta de "aplicação do Direito", na jurisprudência, quando os tribunais estão "aplicando o Direito", há uma dificuldade de controle e de previsibilidade das decisões15. Em seguida, Góes afirma que a importação do método de análise estruturada de casos é proveitosa e gera ganhos, porque há três características centrais da metodologia que levam a solucionar alguns problemas que se encontra na doutrina e na prática. A primeira característica é a de que o método está sempre focado em normas. O intérprete-aplicador busca verificar se determinada pessoa violou certa norma. O primeiro ganho é, portanto, o de se levar a lei a sério16. A segunda característica é a de que todo conceito que está colocado na norma precisa de uma definição. Góes chama aqui atenção para o fato de que este seria um problema da importação, pois na Alemanha haveria um histórico de definições bem sedimentadas, mas no Brasil não haveria esse "histórico de definições bem colocadas. E tudo que está colocado na lei precisa de uma certa definição". O segundo ganho é, portanto, o de passar a ter uma maior atenção para as definições dos conceitos presentes nas normas, uma maior demanda por definições claras para cada elemento das normas17. A terceira característica está ligada à subsunção, "que é o passo seguinte da análise estruturada", de verificar a aplicação da norma ao caso. Parte-se da norma, define-se os seus elementos e, em seguida, analisa-se os fatos e verifica-se se o que ocorreu corresponde ou não ao suporte fático descrito na norma18. Góes, então, arremata: ao se "levar a sério uma norma", estabelecer definições dos elementos que estão presentes nela e aplicá-las, "a gente consegue em certa medida começar a suprir os dois problemas que foram citados de forma bem genérica no começo": de um lado, o de uma doutrina que só discute no abstrato, pois aqui está se propondo a sua aplicação a casos; de outro, uma aplicação do Direito pela jurisprudência sem controle e sem uniformidade, porque não tem uma base de definições e de raciocínio lógico, pois o método propõe uma base de definições e uma base lógica de raciocínio.19 Segundo Guilherme Góes, se for possível "criar uma cultura de estruturar o raciocínio" e de publicações que não só discutam os conceitos em abstrato, mas também no caso concreto, então, conclui ele, chega-se à resposta daquilo que se quer com a importação do método estruturado de análise de casos.20 Ao final, Góes fala que o método vai encontrar barreiras e obstáculos no Brasil, mas não aprofunda a questão. Acredito que as barreiras mais profundas foram apontadas acima por Otavio Rodrigues Jr., de cultura jurídica, de achar que não existe uma resposta correta, que toda resposta é válida, tornando qualquer resposta do estudante insuscetível de contestação. Esse problema é real, mas, como nos posicionamos acima, superável. Por fim, mais recentemente, Alexander Leonard Martins Kellner, doutorando da FGV Direito Rio, escreveu artigo intitulado "Um ensaio sobre diferentes possibilidades para aprimorar o ensino jurídico no Brasil: Der Gutachtenstil" . Segundo o autor, "o objetivo desse artigo, introduzido pelo título, parece vago, mas não e´. Busca-se contribuir para aprimorar o ensino jurídico no Brasil com a descrição de aspectos formais ou predominantemente formais do raciocínio jurídico. A estratégia central e´ se valer da metodologia alemã de resolução de casos concretos 'Der Gutachtenstil' como exemplo para descrever aspectos minimamente objetivos que, talvez, possam ser transmitidos de modo mais eficiente aos alunos do curso de direito."22 Kellner inicia o artigo descrevendo o ensino no Direito no Brasil como "um processo de transmissão oral de conteúdo jurídico, resumido de fontes escritas, cujo sucesso supostamente depende da 'didática' do professor (locutor) e do 'interesse' do aluno (interlocutor)." A atenção dos professores estaria em um tripé formado por doutrina, textos legais e jurisprudência. Acontece que "a análise de textos doutrinários parece depender de uma pré-seleção em algum grau arbitrária por parte do   professor." Além disso, "os textos legais são inúmeros e se encontram em constante alteração legislativa, o que talvez coloque em dúvida a eficácia do aprendizado em um momento futuro."23 Entre outros pontos levantados pelo autor, merece destaque o da seleção enviesada de casos por parte dos professores, que tendem a escolher casos difíceis para apresentar aos alunos nas aulas. Essa seleção passa para o aluno uma "percepção equivocada" de  que a maioria dos casos são difíceis "e de que a legislação escrita pouco auxilia o jurista na resolução de casos concretos." Segundo Kellner, o "apreço à jurisprudência dos Tribunais Superiores a exemplo do STF contribui para essa visão distorcida de que todos os casos são complexos e precisam ser analisados de forma aprofundada com base em princípios constitucionais." De maneira contrária, afirma ele que "a maioria dos casos é julgada por juízes de primeira instância com base em literalidade de dispositivos legais." E, então, conclui: "se esse for o caso, o Gutachtenstil parece ter espaço no ensino jurídico brasileiro."24  Conclusão É crescente o interesse da comunidade jurídica brasileira pela utilização da resolução de casos como estratégia pedagógica. Mas não só isso, é também crescente o interesse pela importação e utilização na formação dos juristas brasileiros da técnica alemã de resolução estruturada de casos (Gutachtenstil). Não só concordamos que essa importação deve ser feita como a temos feito em nossa atividade docente. A próxima coluna serve para explicar como temos feito isso. __________ 1 PÜSCHEL, Flavia. Uma Organização das Relações Privadas: introdução ao Direito privado com métodos de ensino participativos. São Paulo: Quartier Latin, 2002. 2 QUARCH, Tilman. Introdução a` hermenêutica do direito alemão: der Gutachtenstil. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v.1, outubro-dezembro de 2014. 3 RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Como se produz um jurista em alguns lugares do mundo? O modelo alemão (Parte 3). Revista Consultor Jurídico (Conjur), 11 fev. 2015. Acesso em: 25 ago. 2022. 4 RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Como se produz um jurista em alguns lugares do mundo? O modelo alemão (Parte 3). Revista Consultor Jurídico (Conjur), 11 fev. 2015. Acesso em: 25 ago. 2022. 5 RODRIGUES JR., Otavio Luiz. Como se produz um jurista em alguns lugares do mundo? O modelo alemão (Parte 3). Revista Consultor Jurídico (Conjur), 11 fev. 2015. Acesso em: 25 ago. 2022. 6 Disponível aqui. Acesso em: 2 ago. 2022. 7 A entrevista é a primeira rodada do "Ciclo de Diálogos" sobre "Hard Cases e Teoria da Decisão Judicial", organizado por Daniel Oitaven Pearce e Alessandra Oitaven Pearce. Disponível aqui. Acesso em: 24 ago. 2022. O vídeo é um dos com maior número de visualizações - quiçá o com maior número - do Ciclo de Diálogos, o que serve, ao menos como indício, do interesse do público brasileiro acerca do tema da técnica de resolução estruturada de casos. 8 Disponível aqui. Acesso em: 24 ago. 2022. 9 Disponível aqui. Acesso em: 23 ago. 2022. 10 HEMMER, Karl-Edmund; WÜST, Achim. O caso da morte tardia. Nova Revista de Direito Penal, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 1-9, 2022. Tradução de Heloísa Estellita e Fernanda Tucunduva van Heemstede. 11 GÓES, Guilherme de Toledo. O caso do corredor presunçoso. Nova Revista de Direito Penal, Belo Horizonte,  v. 1, n. 1, p. 10-40, 2022. 12 Disponível aqui. Acesso em: 2 ago. 2022. 13 Disponível aqui. Acesso em: 2 ago. 2022. 14 Disponível aqui. Acesso em: 2 ago. 2022. 15 Disponível aqui. Acesso em: 2 ago. 2022. 16 Disponível aqui. Acesso em: 2 ago. 2022. 17 Disponível aqui. Acesso em: 2 ago. 2022. 18 Disponível aqui. Acesso em: 2 ago. 2022. 19 Disponível aqui. Acesso em: 2 ago. 2022. 20 Disponível aqui. Acesso em: 2 ago. 2022. 21 KELLNER, Alexander Leonard Martins. Um ensaio sobre diferentes possibilidades para aprimorar o ensino jurídico no Brasil: Der Gutachtenstil. In: Coletânea Cadernos FGV Direito Rio, no prelo. 22 KELLNER, Alexander Leonard Martins. Um ensaio sobre diferentes possibilidades para aprimorar o ensino jurídico no Brasil: Der Gutachtenstil. In: Coletânea Cadernos FGV Direito Rio, no prelo. 23 KELLNER, Alexander Leonard Martins. Um ensaio sobre diferentes possibilidades para aprimorar o ensino jurídico no Brasil: Der Gutachtenstil. In: Coletânea Cadernos FGV Direito Rio, no prelo. 24 KELLNER, Alexander Leonard Martins. Um ensaio sobre diferentes possibilidades para aprimorar o ensino jurídico no Brasil: Der Gutachtenstil. In: Coletânea Cadernos FGV Direito Rio, no prelo.
Introdução Nas nossas colunas sobre o direito privado na common law, até o presente momento, ainda não se tinha discutido o papel da Suprema Corte dos Estados Unidos no reconhecimento de direitos reprodutivos. O presente texto busca explicar os termos da decisão original proferida em 1973 na famosa decisão proferida no julgamento do caso Jane ROE, et al, Apelantes, v. Henry WADE, 410 U.S. 113, 93 S. Ct. 705, 35 L.Ed.2d 147, por se tratar de uma decisão essencial para a reflexão sobre as transformações no direito estadunidense ao longo dos últimos cinquenta anos.1 O objetivo da presente coluna é modesto, na medida em que pretende apenas sumarizar os pontos principais daquela decisão para uma audiência brasileira. Nas próximas colunas, os termos do debate serão aprofundados a partir dos desdobramentos do caso, tanto em termos dos posicionamentos doutrinários, quanto em termos da discussão sobre o próprio papel do Poder Judiciário no reconhecimento de direitos fundamentais. A presente coluna será dividida em quatro partes. Além dessa introdução, será feita uma explicação sobre os fatos relativos ao caso concreto que resultaram no julgamento da Suprema Corte, bem como uma análise inicial da fundamentação jurídica adotada pela Suprema Corte para que o leitor brasileiro tenha maiores detalhes sobre a justificação adotada pelos votos vencedores e vencidos naquela decisão. Finalmente, a última parte indicará questões doutrinárias e interdisciplinares a ser exploradas nas próximas colunas, que irão tornar a revisitar Roe v. Wade e aprofundar a análise a partir dos desdobramentos do caso. A Origem do Caso: Uma Ação Coletiva Pela Defesa dos Direitos de Realização de um Aborto Seguro no Estado do Texas O ponto de partida para a compreensão desse caso deve ser a compreensão de que se tratava de uma ação coletiva, ajuizada a partir do modelo da Class Action estadunidense, em que um único indivíduo pode ajuizar uma determinada ação judicial, afirmar que se trata de uma questão coletiva, postulando que aquela demanda seja certificada como uma demanda de interesse de toda uma classe de pessoas e não apenas de um único indivíduo.2 Um esclarecimento inicial importante é que o nome 'Jane Roe' é uma identidade fictícia, adotada para que a demandante pudesse ingressar em juízo e simultaneamente preservar sua privacidade. Por outro lado, a Suprema Corte fez questão de afirmar que se trata de um nome fictício, mas que existia uma mulher solteira grávida que residia em Dallas em 1970 e que tinha a pretensão concreta de obter uma interrupção de gravidez através de um procedimento de aborto realizado de modo oficial por um médico oficial em condições clínicas seguras. Logo, tratava-se de um caso concreto real de negativa de aborto, ainda que o nome fosse fictício. Como a continuação da gravidez não causava risco para a vida da demandante, o Estado do Texas não autorizava o procedimento. Além disso, sua condição econômica impedia que ela viajasse para outros Estados em que o aborto era reconhecido como um direito reprodutivo da mulher. Segundo os termos de sua petição, a redação das leis penais incriminadoras do aborto era inconstitucionalmente vaga e violaria seus direitos constitucionais à privacidade, conforme os termos das 1ª, 4ª, 5ª, 9ª e 14ª Emendas à Constituição dos Estados Unidos. Um detalhe interessante do caso é que somente através de uma emenda à petição inicial que 'Jane Roe' afirmou que litigava em seu 'próprio nome e de todas as mulheres em situação similar'. Nas demandas coletivas nos Estados Unidos, existe uma prática recorrente de intervenção de terceiros, que posteriormente aderem ao caso concreto com o objetivo de participar da produção de provas, apresentar seus argumentos jurídicos e de se beneficiarem dos efeitos da decisão proferida naquela ação de classe. No caso de Roe v. Wade, o médico James Hulbert Hallford se apresentou como um terceiro e buscou intervir na ação, alegando que já tinha sido preso e processado pela prática de aborto, que estava respondendo a investigações e que as leis penais do Texas violavam não somente os direitos dos pacientes, mas também a própria relação entre médico e paciente e o seu direito ao livre exercício da medicina. Igualmente, um casal identificado ficticiamente como 'John Doe' e 'Mary Doe' tinha ingressado com uma ação em busca do reconhecimento ao direito de um aborto legal e seguro. Apesar de se tratar de um casal sem filhos em que a mulher não estava grávida, devido a uma desordem temporária neurológica, a mulher tinha recebido a recomendação médica de interromper o uso de pílulas anticoncepcionais e de não engravidar devido aos riscos de potencial gravidez naquele momento. Tanto o caso do médico, quanto o do casal foram excluídos do âmbito da decisão da Suprema Corte. Com relação ao médico, decidiu-se que ele deveria buscar a proteção dos seus direitos no âmbito de eventual investigação ou processo penal em que fosse investigado ou réu, mas não naquela ação coletiva. Com relação ao casal, considerou-se que se tratava de uma pretensão especulativa, já que não existia nenhum risco concreto a bem jurídico a ser tutelado, mas apenas um risco indireto insuficiente para que fosse reconhecido o interesse processual. Finalmente, deve ser salientada a discussão sobre se ainda existiria interesse processual no caso de 'Jane Roe', já que o caso tinha se iniciado em 1970 quando a mulher por trás da identidade fictícia estava grávida, mas a situação fática do caso tinha se alterado ao longo da via processual. A Suprema Corte adotou como parâmetro decisório o fato de que uma gestação humana dura, em média, cerca de 266 dias e, nesse caso, seria inviável qualquer julgamento completo a respeito dessa questão. É que se o término da gravidez também implicasse a perda superveniente do interesse, jamais o processo coletivo chegaria a um julgamento definitivo pela Suprema Corte. Segundo o voto vencedor do Justice Blackmun, "nosso direito não pode ser assim tão rígido", especialmente porque "a gravidez costuma ocorrer mais de uma vez na vida da mulher, e na população em geral, se a raça humana sobreviver, estará sempre conosco". Portanto, a Suprema Corte decidiu que se tratava de um caso em que não poderia ser reconhecida a perda superveniente do interesse processual. Os Termos da Decisão e uma Análise Inicial da Fundamentação Judicial O principal ponto do caso para a demandante é que as leis penais do Texas invadiriam de modo impróprio um direito da mulher grávida de escolha pela interrupção da gravidez. Tal direito seria decorrente do conceito de liberdade pessoal embutido na 14ª Emenda à Constituição. Também seria protegido a partir de uma longa série de precedentes judiciais que reconhecem o direito à privacidade sexual, familiar e marital na Carta de Direitos Fundamentais (na terminologia estadunidense, o 'Bill of Rights') e, segundo uma expressão adotada pelo voto do Justice Blackburn, nas suas 'penumbras', isto é, nos desdobramentos lógicos e implícitos dos direitos reconhecidos pela própria jurisprudência da corte. O voto vencedor também fez um tour de force pela história, com referência à prática de abortos na antiguidade grega e romana, analisando também a questão a partir da tradição da Common Law. Historicamente, a prática de aborto até a 16ª semana de gestação não era considerada como um crime nos termos da Common Law inglesa. Somente no século XIX é que tal panorama teria sido alterado com a promulgação de leis penais incriminadoras da prática do aborto. Interessante, o voto também apresenta uma análise da evolução da posição da Associação Médica Americana - American Medical Association (AMA) sobre esse tema, informando que a postura da entidade de classe médica era contrária ao aborto no século XIX, mas que ocorreu uma mudança de perspectiva sobre a questão, que se tornou mais polarizada a partir dos pronunciamentos na década de 60 e 70 do século XX. Uma resolução definiu o aborto como um procedimento médico a ser realizado por médico licenciado em hospital acreditado após consulta a outros dois médicos e conforme a legislação estatal, sendo que nenhuma parte desse procedimento deve ser vista colocada em uma posição de violação a seus princípios morais e pessoais. No mesmo sentido, a posição da Associação Americana de Saúde Pública - American Public Health Association - cujo Conselho Executivo aprovou padrões para serviços de aborto em outubro de 1970, recomendando que procedimentos rápidos e seguros de aborto estivessem prontamente disponíveis nos estabelecimentos de saúde locais e estaduais, públicos e privados. O voto também destaca que a Ordem dos Advogados - American Bar Association (ABA) - tinha aprovado por maioria (com 17 votos contrários) a elaboração de um projeto de lei uniforme de aborto em 1972. Segundo o voto, as leis incriminadoras do aborto se explicam pelo conservadorismo dos costumes da era vitoriana, pelos riscos decorrentes de procedimentos abortivos não tão seguros e pela existência de um interesse legítimo do Estado na proteção da vida pré-natal. Contudo, ao realizar a ponderação dos interesses em questão, o voto considera que existe um direito à privacidade que é suficientemente amplo para incluir a decisão da mulher de interromper ou não a sua gravidez. A proibição de aborto causaria prejuízo direto e específico para a mulher não somente em termos de sua saúde física e emocional, mas também na questão de ter que manter uma criança não desejada e do estigma relativo com a condição de ser uma mãe solteira. Apesar de considerar que existe um direito de realizar o aborto, o voto majoritário impôs limites temporais ao seu exercício, estabelecendo uma gradação entre o primeiro, o segundo e o terceiro trimestre da gestação, de modo que existe maior margem para a escolha da mulher na primeira etapa, para a regulação estatal na segunda etapa e para a proibição do procedimento na terceira etapa. O voto contrário do Justice Rehnquist criticou de modo sucinto a proibição de que os Estados pudessem intervir na questão e impor proibição à realização do aborto no primeiro trimestre. Apesar de considerar que existem direitos fundamentais não expressos na 14ª Emenda à Constituição e de não ter dúvida de que seriam inconstitucionais leis penais que proibissem o aborto em casos de gravidez de risco para a saúde da gestante, sua opinião é de que não seria justificada a partir da cláusula do devido processo legal uma invalidação tão ampla de todas as leis estaduais incriminadoras do aborto durante o primeiro trimestre da gestação, nos termos da decisão proferida pela Suprema Corte. Tanto o voto vencido, quanto o voto vencedor fizeram referência ao emblemático voto vencido de Oliver Wendell Holmes no caso Lochner v. New York (1905), amplamente identificado como um exemplo de crítica contundente ao uso equivocado do devido processo legal substantivo.3 Para o Justice Rehnquist, a maioria teria citado Holmes de modo indevido, já que o voto emularia a maioria naquela decisão por se tratar de um novo caso em que a Suprema Corte estaria atuando como espécie de legislador judicial ao criar uma distinção entre os graus de proteção nos três trimestres da gestação. Finalmente, Rehnquist criticou o fato de que a lei texana estava sendo considerada totalmente inconstitucional, se a própria decisão admitia a possibilidade de gradações e mesmo de proibição de aborto no último trimestre da gestação. Considerações Finais No final, a decisão foi formada por sete a dois, estando vencido também o Justice White. Além de concordar integralmente com o voto vencedor, o Justice Stewart fez questão de acrescentar um complemento ao voto em defesa do amplo escopo do direito à liberdade embutido na 14ª Emenda à Constituição. O caso Roe v. Wade merece nossa atenção especial nesse momento não apenas por ter sido derrubado recentemente, mas também pelo seu impacto para os debates sobre a proteção aos direitos fundamentais pela Suprema Corte e sobre a legitimidade moral e política das decisões judiciais, o que será objeto de debate em colunas futuras. Posteriormente, uma coluna deve também apresentar os termos da decisão com a descrição e análise inicial da fundamentação judicial do caso Dobbs, State Health Officer of The Mississippi Department of Health, et al, v. Jackson Women's Health Organization et al, com o sumário da decisão proferida em 24 de junho de 2022. Por ora, o objetivo da coluna dessa semana era mais modesto: apresentar um caso extremamente conhecido e muito citado da jurisprudência estadunidense, de modo a torná-lo mais acessível para o nosso leitor. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui.
segunda-feira, 15 de agosto de 2022

O marketing jurídico - Parte I

Conforme já tivemos oportunidade de salientar em colunas anteriores, a reciprocidade das influências entre os sistemas de common law e de civil law nunca foram tão marcantes como na atualidade. Muito embora subsistam profundas diferenças entre os referidos sistemas, a aparente incompatibilidade - tradicionalmente fundamentada em supostas e inconciliáveis visões de mundo, cede espaço à uma gradativa e necessária aproximação.  Nesse sentido, um tema que merece melhor reflexão a partir das possíveis influências derivadas do sistema de common law diz respeito à viabilidade e aos limites da publicidade dos serviços de advocacia veiculadas pelos profissionais. Nesta primeira parte, analisaremos de que forma houve o gradativo reconhecimento jurisdicional da licitude da veiculação de publicidade por parte dos advogados nos EUA, a partir da garantia constitucional da liberdade de expressão, bem como sua subsequente regulação pela American Bar Association. Trata-se de investigação de relevante valia para o sistema de justiça brasileiro, que possui um sistema diametralmente oposto. Precedentes dos EUA: Caso Bates vs State Bar of Arizon e Caso Jacoby v. State Bar Anúncios publicitários eram proibidos para advogados nos Estados Unidos até meados da década de 1970. Isso começou a mudar a partir do julgamento do caso Bates vs State Bar of Arizona (1977), no âmbito do qual a Suprema Corte americana entendeu inconstitucional a vedação da publicidade aos advogados, por violação à First Amendment to the United States Constitution - que consagra o direito à liberdade de expressão. No caso em questão, advogados licenciados e membros da Ordem dos Advogados do Estado do Arizona foram acusados ??de violar regras disciplinares que proibiam anúncios publicitários em jornais ou outras mídias. A reclamação foi baseada em um anúncio de jornal veiculado por advogados oferecendo "serviços jurídicos a preços muito razoáveis" e listando seus honorários para certos serviços.  A Suprema Corte do Arizona, confirmando a conclusão de um comitê de advogados, afirmou a ilicitude da conduta.1 A Suprema Corte norte-americana, por sua vez, reanalisando o caso, desmistificou diversas questões relativas à publicidade na advocacia, entendendo que: i) o caso não envolvia publicidade quanto à qualidade dos serviços jurídicos, mas sim se os advogados poderiam anunciar os preços pelos quais determinados serviços de rotina seriam executados; ii) a crença de que os advogados estão de alguma forma acima do "comércio" é um anacronismo, e um advogado anunciar seus honorários não prejudicará o verdadeiro profissionalismo; iii) a publicidade de serviços jurídicos não é inerentemente enganosa. Apenas serviços de rotina se prestam à publicidade e, para esses serviços, as taxas fixas podem ser estabelecidas de forma significativa, como demonstra o próprio Programa de Serviços Jurídicos da Ordem dos Advogados do Estado do Arizona.2 Com base nessas premissas, o entendimento da Suprema Corte foi de que a publicidade de serviços legais se enquadrava no escopo da proteção da Primeira Emenda. Outro precedente a respeito do tema foi firmado no caso Jacoby v. State Bar (1977), envolvendo dois advogados que processaram a American Bar Association (ABA), que tentou sancioná-los por uma promoção comercial que lhes rendeu muita visibilidade na imprensa. O Tribunal Superior da Califórnia decidiu que proibir os advogados de se promover através de entrevistas violava o direito à liberdade de expressão.3 O caso em questão envolveu os advogados Meyers e Jacoby que, em 1972, abriram um escritório de advocacia denominado Clínica Jurídica de Jacoby e Meyers, com o intuito de fornecer serviços jurídicos de baixo custo para aqueles que, nada obstante não atendessem aos padrões de indigência dos programas de assistência jurídica, não eram abastados o suficiente para contratar a maioria dos escritórios de advocacia. A divulgação dos pacotes de serviços ofertados pelos advogados atraiu a atenção do presidente de uma organização estadual de consumidores, que decidiu disseminar o conceito da referida clínica num grande evento com participação de diversos representantes da mídia. Esse evento gerou grande repercussão, oportunizando aos advogados participação em várias entrevistas a respeito do funcionamento da clínica de serviços jurídicos. Por conta da grande visibilidade pública atingida, das entrevistas concedidas e pelo uso da denominação "Clínica Jurídica", a Ordem dos Advogados do Estado iniciou processos disciplinares contra os advogados responsáveis. Apreciando referido caso - e já com fundamento no precedente anteriormente citado -, a Suprema Corte dos EUA considerou que a publicidade veiculada pelos advogados, não sendo falsa ou enganosa, representa divulgação comercial amparada constitucionalmente pela cláusula da liberdade de expressão, que permite o marketing jurídico desde que não se revele, concretamente, enganoso. Em que pese o entendimento da Suprema Corte norte-americana acerca da licitude da veiculação de publicidade comercial por parte dos advogados com fundamento na proteção constitucional da liberdade de expressão, o tema sempre se revelou delicado. Trata-se de verificar, para além do cabimento do marketing jurídico, os limites razoáveis de tal prática a fim de parametrizar a publicidade pelos profissionais da advocacia, regulando-se o marketing a partir de balizas éticas mínimas, fora das quais passe a incidir sanções disciplinares.4 De acordo com Thomas D. Morgan, professor da George Washington University e que atua como consultor em questões envolvendo ética profissional na advocacia, a veiculação de marketing jurídico, por si só, não ofende a ética dos advogados, desde que não se revele enganosa. Segundo o jurista, ainda, na atualidade seria inimaginável um sistema de justiça sem as referidas práticas.5 Regulamentação do marketing jurídico pela American Bar Association - Model Rules of Professional Conduct - Table of Contents  Diante das diversas discussões suscitadas pelo tema da publicidade comercial dos serviços jurídicos, a American Bar Association estabeleceu uma série de regras de conduta profissional que passaram a servir de base regulatória para todo o país. Assim, de acordo a regra 7.1 do Model Rules of Professional Conduct - Table of Contents da American Bar Association6 (que trata especificamente acerca da comunicação concernente aos serviços advocatícios), ao advogado é vedada qualquer comunicação falsa ou enganosa sobre ele mesmo ou sobre seus serviços ("a lawyer shall not make a false or misleading communication about the lawyer or the lawyer's services"). Conforme referido dispositivo, ainda, uma comunicação publicitária deve ser considerada falsa ou enganosa "if it contains a material misrepresentation of fact or law, or omits a fact necessary to make the statement considered as a whole not materially misleading."7 Como se percebe, o que se proíbe não é a prática da publicidade em si, mas o que se noticia por via dela. Destaca-se, inclusive, que o termo "communication" sobre os serviços legais substitui as expressões marketing e advertisement que eram utilizadas anteriormente. Por outro dispositivo (regra 7.2), o Model Rules permite a comunicação de forma ampla e irrestrita através de qualquer mídia ("Communications Concerning a Lawyer's Services: Specific Rules (a) A lawyer may communicate information regarding the lawyer's services through any media)."8 Insere-se na referida normativa a proibição aos advogados de oferecer pagamentos ou qualquer outra forma de recompensa pela indicação de seus serviços. Autoriza-se, contudo, a contratação, pelo próprio advogado, de serviços de propagandas ou comunicações - viabilizando, portanto, que uma empresa de publicidade seja responsável por seus anúncios. Ainda, há previsão de que o profissional só pode anunciar que é especialista em determinada área se: i) o advogado foi certificado como especialista por uma organização aprovada por uma autoridade apropriada do estado ou do Distrito de Columbia ou de um território dos EUA ou que foi credenciada pela American Bar Association; ii) o nome da entidade certificadora está claramente identificado na comunicação. A despeito do posicionamento da Suprema Corte norte-americana e da regulação providenciada pela American Bar Association sobre o marketing jurídico, ainda são frequentes ao longo do país práticas ilegais veiculadas em anúncios comerciais, o que forçou a ABA a expedir diversas 10 recomendações a respeito do tema, quais sejam: "1. A publicidade do advogado deve encorajar e apoiar a confiança do público na competência e integridade do advogado individual, bem como o compromisso da profissão jurídica em atender às necessidades jurídicas do público na tradição do direito como profissão erudita; 2. Uma vez que a publicidade pode ser o único contacto que muitas pessoas têm com os advogados, a publicidade dos advogados deve ajudar o público a compreender os seus direitos legais e o processo judicial e deve defender a dignidade da profissão de advogado; 3. Embora "dignidade" e "bom gosto" sejam termos passíveis de interpretação subjetiva, os advogados devem considerar que a publicidade que reflete os ideais declarados pela ABA provavelmente será digna e adequada à profissão;  4. Uma vez que a publicidade deve ser verdadeira e precisa, e não falsa ou enganosa, os advogados devem perceber que a publicidade ambígua ou confusa pode ser enganosa; 5. Deve-se ter um cuidado especial na descrição de taxas e custos nos anúncios. Se um anúncio indica uma taxa específica para um determinado serviço, deve deixar claro se todos os problemas desse tipo podem ou não ser tratados por essa taxa específica. Cuidados semelhantes devem ser tomados na descrição das áreas de atuação do advogado; 6. Os advogados devem considerar que o uso de música dramática inadequada, slogans impróprios, porta-vozes hawkish, ofertas premium, rotinas espalhafatosas  ou configurações estranhas na publicidade não inspira confiança no advogado ou na profissão legal e mina o propósito sério dos serviços jurídicos e o sistema judicial; 7. A publicidade desenvolvida com uma identificação clara de seu público potencial tem maior probabilidade de ser compreensível, respeitosa e adequada a esse público e, portanto, mais eficaz. Os advogados devem considerar o uso de profissionais de publicidade e marketing para ajudar a identificar e alcançar um público adequado; 8. A publicidade que transmite sua mensagem é tão importante quanto a própria mensagem. Os advogados devem considerar o uso de consultores profissionais para ajudá-los a desenvolver e apresentar uma mensagem clara ao público de maneira eficaz e apropriada; 9. Os advogados devem conceber a sua publicidade de forma a atrair assuntos jurídicos para os quais tenham competência; e 10. Os advogados devem se preocupar em tornar os serviços jurídicos mais acessíveis ao público. A publicidade de advogados pode ser projetada para construir bases de clientes, de modo que eficiências de escala possam ser alcançadas que se traduzam em serviços jurídicos mais acessíveis."9  Limites da publicidade dos advogados - O caso Florida Bar v. Went for It, Inc., et al. Atualmente, a discussão a respeito dos limites do marketing jurídico nos EUA se direciona especialmente aos advogados de personal injury - que frequentemente se utilizam de uma forma de captação de clientes abusiva, através de um assédio direto às vítimas e com formas de  publicidade agressiva por via da televisão, outdoors e outras formas de mídia. Nesse campo, gradativamente vêm sendo determinadas algumas restrições às práticas de marketing consideradas abusivas. Exemplo dessas restrições pode ser colhido do julgamento, pela Suprema Corte dos EUA, do caso Florida Bar v. Went for It, Inc., et al, no Estado da Flórida, ocasião na qual proibiu-se aos advogados que atuam na área de reparação por danos pessoais o envio de publicidade por via de mala direta direcionadas às vítimas e seus parentes num período compreendido até 30 dias após a ocorrência de um acidente ou desastre.10 Conforme referido julgamento, "há um interesse substancial tanto em proteger a privacidade e a tranquilidade das vítimas de danos pessoais e seus entes queridos contra o contato invasivo e não solicitado por advogados quanto em evitar a erosão da confiança na profissão que essas repetidas invasões engendraram." É interessante destacar que, na apreciação do referido caso, foi levado em consideração estudo realizado pela Florida Bar a respeito dos efeitos da publicidade na opinião pública. Referido estudo contém dados estatísticos e anedóticos que apoiam as alegações da Ordem dos Advogados, no sentido de que a opinião pública do estado da Flórida considera as publicidades de advogados via mala direta logo após a ocorrência de acidentes como uma inapropriada intrusão na privacidade - o que reflete negativamente sobre a visão que se tem sobre a advocacia. Na sequência da presente coluna, investigaremos como o tema referente à publicidade dos advogados têm se desenvolvido em países da civil law (com ênfase no sistema de justiça brasileiro), a fim de se avaliar seus limites e perspectivas. __________      1 Justia US Supreme Court. Disponível em https://supreme.justia.com/cases/federal/us/433/350/. Acesso em 06 de agosto de 2022. A Primeira Emenda veda a promulgação de leis que impeçam o livre exercício de qualquer religião, que restrinjam a liberdade de expressão, que violem a liberdade de imprensa, que interfiram no direito de se reunir pacificamente em associações e que proíbam o direito de petição a órgãos do governo. 2 Idem. 3 Justia US Law. Disponível aqui. Acesso em 06 de agosto de 2022. 4 BORTOFF, Sarah. Advertising Rules Every Lawyer Should Know: The Do's and Don'ts of Marketing Your Law Firm. The National Law Review, Volume XI, Number 344. Disponível aqui. Acesso em 09 de agosto de 2022. 5 The George Washington Law. Morgan, Thomas. Disponível aqui. Acesso em 09 de agosto de 2022. E, ainda, Ética profissional - advogado pode anunciar, só não pode enganar. Acesso em 09 de agosto de 2022. 6 No sistema norte-americano quem regulamenta a profissão de advogado são associações denominadas "bar associations", sendo que cada estado pode ter a sua própria associação, com regras e modelos que podem variar de estado para estado. Destaca-se que a ABA (American Bar Association) é a mais antiga instituição privada de advogados que atua a nível federal, tendo sido fundada em agosto de 1878. ABA. Disponível aqui. Acesso em 07 de agosto de 2022. Consultar, ainda, ALMEIDA, Gregório Assagra. O sistema jurídico nos estados unidos - common law e carreiras jurídicas (judges, prosecutors e lawyers): o que poderia ser útil para a reforma do sistema processual brasileiro? Revista de Processo. V. 251, Jan.,2016. Disponível aqui. Acesso em 06 de agosto de 2022. 7 American Bar Association . Disponível aqui. Acesso em 07 de agosto de 2022. 8 American Bar Association. Disponível aqui. Acesso em 07 de agosto de 2022. 9 American Bar Association. Disponível aqui. Acesso em 06 de agosto de 2022. 10 Justia US Supreme Court. Diponível aqui. Acesso em 09 de agosto de 2022.
Fascinante o caso Abdulaziz v. McKinsey & Co., Inc. Em fevereiro de 2021, o demandante Omar Abdulaziz apresentou uma queixa na Suprema Corte de Nova York alegando reclamações contra o réu McKinsey & Company, por Inflição com negligência de Angústia Emocional. As alegações de Abdulaziz surgem de um relatório preparado pela McKinsey identificando o autor como um dos três críticos mais influentes do Reino da Arábia Saudita ("KSA") e Mohammad Bin Salman ("MBS"). O demandante é um dissidente político do Reino da Arábia Saudita que recebeu asilo político do Canadá porque enfrenta perseguição depois do assassinato de seu amigo Jamal Khashoggi. Enquanto estudava em Montreal, o Autor começou a usar o Twitter e outras plataformas de mídia social para publicar comentários políticos sobre a Arábia Saudita. Assuntos frequentes das críticas do autor são a forma como o regime administrava o país, as violações desenfreadas dos direitos humanos, a família real, a corrupção e a política externa equivocada. Lado outro, a McKinsey possui uma longa história de assessoria regular e extensiva às agências governamentais da Arábia Saudita, a ponto de o Ministério do Planejamento daquele país ter adquirido o apelido de "Ministério da McKinsey" por alguns sauditas, incluindo a corte real. No final de 2016, a McKinsey preparou um relatório na forma de uma apresentação em PowerPoint que identificou os três dissidentes mais influentes que se valem do Twitter para criticar o plano de austeridade do príncipe herdeiro Mohammad Bin Salman ( "Relatório McKinsey") . O autor foi um dos três indivíduos que a McKinsey identificou em seu Relatório. O demandante Abdulaziz alegou que, depois de receber o relatório, o governo saudita respondeu com tentativas de assassinato e prendeu, torturou e assediou seus familiares e amigos que vivem atualmente na Arábia Saudita. Em setembro de 2021, o tribunal distrital rejeitou a queixa na íntegra. Abdulaziz apelou da decisão e, em julho de 2022, o Segundo Circuito da United States Court of Appeals, concluiu que a McKinsey carecia de um dever de cuidado sob a lei de Nova York, em grande parte com base no fato de que "geralmente, não há dever de controlar a conduta de terceiros para evitar que causem danos a outros'" A McKinsey possui um processo de revisão ou gerenciamento de risco para avaliar projetos de negócios em potencial com estrangeiros governos que poderiam levar a potenciais abusos de direitos humanos ou outras consequências adversas? o demandante estava processando a McKinsey não por sua falha em controlar o governo saudita, mas por suas próprias ações, tendo fornecido informações ao governo saudita que supostamente ajudaram a causar o prejuízo a ele. O tribunal lidou com isso concluindo que, além da previsibilidade do risco, Abdulaziz não forneceu nenhuma razão pela qual compartilhar o relatório foi em si uma violação de um dever de cuidado reconhecível que vai da McKinsey a Abdulaziz, somado ao fato que o demandante não conseguiu distinguir esse suposto dever de outros semelhantes rejeitados pelos tribunais de Nova York. Neste sentido, o precedente Valeriano v. Rome Sentinel Co1 ("sem dever de não publicar informações pessoais de outra pessoa, sem um dever estatutário, contratual ou fiduciário de proteger a confidencialidade das informações pessoais do autor"). Assim, mesmo que a McKinsey soubesse ou devesse saber que o governo saudita teria como alvo Abdulaziz depois de ter conhecimento de sua atividade dissidente no relatório, Abdulaziz não alegou plausivelmente uma violação de um dever de cuidado reconhecível sob a lei de Nova York. Todavia, o precedente "Valeriano" lidou apenas com o suposto dano de publicar informações pessoais do demandante, sendo que a corte de Nova York geralmente não reconhece delitos de privacidade. Todavia, em Abdulaziz v. McKinsey & Co, a alegação é a de danos decorrentes das supostas tentativas de assassinato e lesões físicas a familiares e amigos. Estamos diante do universo de casos que envolvem o ato de facilitar ou induzir a transgressão de outros. Daí indagamos: se eu der uma arma a alguém, quando deveria saber que ele provavelmente a usaria para fins criminosos, eu seria culpado de negligência? Se eu der informações a alguém, quando deveria saber que ele provavelmente as usaria para fins criminais, isso também não seria uma alegação de negligência presumivelmente válida, ou uma possível regra sem dever decorrente do status especial da informação, e não de uma teoria do "não dever de controlar terceiros"? A propósito, no caso Remsburg v. Docusearch2, o tribunal permitiu um processo de negligência contra um investigador particular que encontrou informações de que um perseguidor utilizou para matar seu alvo: "A parte que percebe ou deve perceber que sua conduta criou uma condição que envolve um risco irracional de dano a outrem tem o dever de tomar cuidado razoável para evitar que o risco ocorra. A ocorrência exata ou lesões precisas não precisavam ser previsíveis. Assim, se a divulgação de informações por um investigador particular ou corretor de informações a um cliente criar um risco previsível de má conduta criminal contra o terceiro cuja informação foi divulgada, o investigador tem o dever de tomar cuidado razoável para não sujeitar a terceira pessoa a um risco irracional de dano". Vale dizer, normalmente as pessoas têm o dever de cuidar de outras pessoas quando sabem ou devem razoavelmente prever que sua conduta pode causar danos físicos a essas pessoas ou seus bens. A previsibilidade razoável de dano físico é geralmente suficiente para impor um dever de cuidado a uma pessoa que sabe ou deveria razoavelmente prever que dano físico é um resultado provável de sua conduta. No caso Abdulaziz v. McKinsey & Co, era possível - mas não normal - que a divulgação das informações conduzisse a danos injustos. O dano era previsível, mas é razoavelmente previsível? Creio eu que confiar negligentemente em alguém com uma arma envolve uma maior probabilidade de dano. Mas se realmente fosse assim, haveria um dever de evitar lidar ou prestar serviços a governos desonestos? Um fornecedor de armas para os sauditas enfrentaria/deveria ser responsabilizado por um infeliz cidadão iemenita na capital Saná? Ou então, se um amigo diz a outro que sua esposa o está traindo, e ele previsivelmente a ataca (ou seu amante). Serei responsável por negligência? Ou digamos, uma mulher conte ao namorado que alguém a estuprou (ou de outra forma a maltratou), e ele previsivelmente ataca o agressor. Ela responderia por negligência? Todavia, a justificativa para isso não teria que ser uma limitação de dever, em vez de previsibilidade? Afinal, se estou violando uma lei de trânsito e sofro um acidente, o acidente seria visto como previsível, embora, provavelmente, eu sofra um acidente apenas uma pequena fração das vezes em que violei uma lei de trânsito. Não seria assim a probabilidade de que um homem informado da infidelidade de sua esposa atacar o seu amante ainda maior? Observe que acabei de escrever "atacar" e não "matar" - pois para se cogitar de previsibilidade, teria que haver uma probabilidade suficiente de algum ataque físico. Obviamente, eu gostaria de pensar que você seria mais cuidadoso ao dizer a um regime tirânico que sou um dissidente do que ao dizer ao meu cônjuge que estou tendo um caso. Mas a difícil questão nesses casos é se está certo (legalmente) ser tão descuidado quanto você quiser, porque você não tem obrigação de cuidar em primeiro lugar. Uma simplificação grosseira do cenário parece ser a seguinte: se alguém causar danos corporais a outrem que você poderia ter previsto como uma possibilidade real de antemão, provavelmente será responsável por negligência, a menos que: a) Você tenha sido legalmente autorizado a fazê-lo; b) O dano que você causou resultou de uma falha em fazer algo (uma omissão) e não um ato comissivo; c) O dano foi causado pelas ações de algum outro ator responsável que você não conseguiu controlar; Essas razões "políticas" para negar um dever não parecem estar presentes neste caso, pois não é alegado que a McKinsey não conseguiu controlar os sauditas, simplesmente que eles revelaram informações que previsivelmente levaram a uma reação saudita. Possivelmente isso se aplicaria a qualquer dano físico direto causado a Abdulaziz. A responsabilidade civil nos EUA tem duas maneiras básicas de conceber a previsibilidade. Uma maneira é a "Hand Formula". A previsibilidade é apenas a probabilidade de algum evento acontecer - para alguma classe de referência que, intuitivamente, achamos que sabemos. Mas há outra maneira, mais antiga, mas ainda vibrante, de pensar sobre a previsibilidade. Essa outra forma está incorporada na doutrina da pessoa medianamente razoável e pergunta, basicamente, o que esperamos que aconteça. Nesse caso, indaga como esperamos que o cônjuge informado reaja. Isso tende a ancorar a investigação sobre a previsibilidade em torno do que "normalmente acontece". Posso imaginar um tribunal dizendo que "normalmente, um cônjuge informado da infidelidade de seu cônjuge não ataca fisicamente o cônjuge ou seu amante". Isso pode levá-los a dizer "não previsível por uma questão de direito". De qualquer forma, o ponto é o mesmo: o que é previsível parece diferente quando você o vê através do prisma da doutrina ARP (average reasonable person), em vez do prisma da Hand formula. Subjacente a essa discussão se encontra a questão comunicativa. O discurso sempre apresenta uma questão especial de responsabilidade. A pessoa com quem se fala tem que agir de acordo com o que é dito. Em princípio, você pode pensar que alguém que apenas diz algo a outra pessoa nunca é responsável por danos subsequentes causados pela pessoa com quem se fala. Ou seja, tratamos a decisão da pessoa com quem se fala como uma causa substitutiva de dano em todos os casos. Contudo, por vezes, a informação parece mais um instrumento que permite que alguém faça algo errado, do que uma ferramenta que permite que eles decidam por si mesmos o que desejam fazer. A agência da pessoa com quem se fala não surge como um problema significativo quando a informação é apenas uma ferramenta que permite que essa pessoa cometa um ilícito que tem a intenção de cometer, mas de outra forma não poderia. Nada obstante, entre "informação a ser processada pela pessoa com quem se fala" e "instrumento" estão os casos de indução intencional ou negligente de alguém a fazer algo prejudicial a si mesmo ou a outros. De forma contrária ao aspecto comunicativo, podem ser fornecidos outros argumentos. A título ilustrativo, o caso é análogo à responsabilidade dos anfitriões sociais pela condução embriagada daqueles a quem forneceram bebida anos, como no caso Childs v Desormeaux3. Uma abordagem acadêmica dominante no common law é focar no demandado: O réu, por sua ação negligente, causou razoavelmente a lesão do autor? Sim. Fim da história. Outra forma de endereçar a questão consiste em indagar que mal sofreu o demandante? Ele foi atropelado por um motorista bêbado [anfitrião social], baleado [vendedor de armas], sofreu tentativas de assassinato/ tortura de familiares e amigos [Abdulaziz v. McKinsey]. Se A adquirir, autoriza ou ratifica as ações de B, ou conspira com B para praticar um ilícito, a conduta antijurídica de B será atribuída a A. Todavia, se A apenas facilita as ações de B, isso é insuficiente para lhe atribuir responsabilidade. Anfitriões sociais, vendedores de armas e a consultoria McKinsey, em comum, todos figuram na categoria de facilitação. Isso é suficiente para responsabilizá-los pelos ilícitos alheios? A ação que constituiu o ilícito foi a ação do réu? Se pensarmos que o ilícito consiste na exposição de outros ao risco de lesão, então o anfitrião social, o vendedor de armas e a McKinsey cometeram um ilícito. Assim como o motorista, o atirador e o governo saudita. Todavia, se acreditarmos que o ilícito é constituído pela lesão (ser atropelado, ser baleado etc.) isso nos fornece uma resposta diferente, pois o anfitrião social, o vendedor de armas e a McKinsey não fizeram essas coisas. Em vez disso, eles fizeram algo que levou outra pessoa a fazer essas coisas. De qualquer forma, em ambos os pontos de vista, pode haver outro tipo de ilícito constituído pela violação de um suposto dever de cuidar. Talvez, a diferença de posicionamentos seja em grande parte semântica. Para aqueles que assumem o protagonismo do nexo de causalidade, em um caso em que o réu negligentemente cria um perigo, mas o requerente se expõe de forma imprudente a esse perigo e sofre danos, os tribunais eximem o réu de responsabilidade porque a única causa legal do dano foi o fato exclusivo da vítima. O mesmo raciocínio se aplica à terceiros intervenientes negligentes. Enfim, retornando ao caso em análise, a McKinsey tinha o dever para com Abdulaziz de não o colocar em perigo, identificando-o como um dos três críticos mais eficazes da Arábia Saudita? Pode ser que a resposta do tribunal de Nova York consistiu em estabelecer uma regra de "não dever" decorrente de política pública. As ações do réu previsivelmente causaram o dano ao autor, mas por várias razões podemos concluir que eles devem, no entanto, ser imunes. É assim que conceituamos a regra americana contra a responsabilidade do anfitrião social - por razões de política pública, não queremos colocar pessoas comuns em uma posição em que tenham que policiar o consumo de álcool de seus hóspedes. Da mesma forma, pode haver razões de política pública semelhantes pelas quais não queremos impedir as pessoas de contar a seus amigos sobre eventos em suas vidas, mesmo quando sabem que os amigos podem ficar com raiva e ferir alguém como resultado. Em suma, pode haver algum outro princípio fundamental em jogo - especificamente a liberdade de expressão. Especialmente na lei norte-americana, a preocupação com a liberdade de expressão pode ser incluída na estrutura de delitos. Aqui está um trecho dos comentários ao Restatement (Third) of Torts (Physical & Emotional Harm sec. 7) que articula bem a análise da decisão do Segundo Circuito: "Comentário c. Conflitos com as normas sociais sobre responsabilidade. Ao decidir se adotam uma regra de não dever, os tribunais geralmente se baseiam em normas sociais gerais de responsabilidade. Por exemplo, muitos tribunais têm considerado que os estabelecimentos comerciais que servem bebidas alcoólicas têm o dever de ter cuidado razoável para evitar danos a outras pessoas que possam ser feridas por um cliente embriagado, mas que os anfitriões sociais não têm um dever semelhante àqueles que podem ser feridos. feridos por seus convidados.... Regras isentas de deveres são apropriadas apenas quando um tribunal pode promulgar regras de direito relativamente claras, categóricas e claras aplicáveis a uma classe geral de casos". Enfim, a polêmica possui uma série de nuances e demonstra quão complexa é a tarefa da responsabilidade civil na resolução de conflitos sociais. ---------- 1 842 N.Y.S.2d 805, 806 (4th Dep't 2007) 2 149 N.H. 148 (2003): "o risco de má conduta criminosa é suficientemente previsível para que um investigador tenha o dever de exercer o cuidado razoável na divulgação de informações pessoais de terceiros a um cliente. E nós assim seguramos. Isso é especialmente verdadeiro quando, como neste caso, o investigador não conhece o cliente ou o propósito do cliente ao buscar as informações".  3 https://www.stevehedley.com/odg/admin/2006.htm 
segunda-feira, 27 de junho de 2022

Métodos de resolução de casos - Parte 2

[Ambiente: sala de aula do primeiro ano da Harvard Law School, com todas as carteiras ocupadas por alunos e alunas. Início da primeira aula do semestre letivo. O lendário professor Kingsfield procura por um aluno na multidão e aleatoriamente seleciona o Sr. Hart.] - Sr. Hart, você poderia narrar os fatos de Hawkins v. McGee? Este é mesmo o seu nome, não é? Você é o Sr. Hart? - Sim, meu nome é Hart. - Você não está falando alto o suficiente, Sr. Hart. Você poderia falar mais alto? - Sim, meu nome é Hart. - Sr. Hart, você ainda não está falando alto o suficiente. Você poderia ficar de pé? - Agora que você está de pé, Sr. Hart, talvez a classe possa entender você. Você está mesmo de pé, Sr. Hart? - Sim, eu estou de pé. - Alto, Sr. Hart! Encha essa sala com a sua inteligência. Agora, você poderia nos contar os fatos do caso? - Eu não li o caso. - As tarefas do primeiro dia de aula são colocadas nos quadros de avisos nos corredores Langdell e Austin. Você deveria saber disso. - Não. - Você supôs que essa primeira aula seria expositiva, uma introdução ao curso. - Sim, senhor. - Nunca suponha nada em minhas aulas! Sr. Hart, eu mesmo lhe direi os fatos do caso. - Hawkins v. McGee é um caso em direito dos contratos, tema da nossa disciplina. Um menino queimou sua mão tocando em um fio elétrico. Um médico, que estava ansioso para testar o procedimento de enxerto de pele, operou a mão, garantindo que ele a restauraria 100%. Ele tirou um pedaço de pele do peito do menino e enxertou na pobre mão do garoto. A operação falhou em produzir uma mão saudável. Em vez disso, produziu uma mão peluda. Uma mão não só queimada, mas também coberta por cabelo denso e emaranhado. Sr. Hart, que indenização você acha que o médico deve pagar? [Sr. Hart hesita, mas termina por ficar novamente de pé]. O que o médico prometeu? - Houve uma promessa para restaurar a mão de volta à forma que era antes de ter sido queimada. - E o resultado da operação? - A mão ficou muito pior do que antes de ele ter ido ao médico. - Como o tribunal deve quantificar a indenização? O que o médico deve pagar ao menino? - O médico deveria... Ahãm... O médico deveria pagar pelo que fez. E deveria pagar pela diferença entre o que o garoto tinha, uma mão queimada, e o que o médico deu a ele... uma mão queimada e peluda? - Sr. Pruit! [A cena é interrompida e, logo em seguida, Sr. Hart aparece correndo, em um banheiro da faculdade, abrindo desesperadamente a porta de uma cabine com vaso sanitário e nela ingressando curvado em direção à latrina, ao som de uma descarga sendo acionada]. Esse trecho inicial é uma tradução e descrição da primeira cena do filme "The Paper Chase" - que foi lançado no Brasil sob o nome de "O Homem que eu escolhi". Quem não assistiu, sugiro que assista. Ela é curta e está disponível no YouTube. Quem se empolgar, aproveita o embalo e assiste ao filme todo. Trata-se de um filme norte-americano de 1973, escrito e dirigido por James Bridges, com roteiro baseado no romance homônimo de John Jay Osborn Jr.: "O filme retrata a vida universitária nos EUA, ainda que seja, essencialmente, o estudo de dois personagens - um aluno jovem e inteligente e um professor que é um gigante intelectual. O filme é sobre a vida dos alunos durante o primeiro ano do curso de direito em Harvard." A cena inicial é exatamente para enfatizar a pressão psicológica pela qual os alunos são submetidos durante o exigente curso de direito. Entre 2016-2017, fui pesquisador visitante na Harvard Law School e frequentei como ouvinte as aulas do curso de contratos. No primeiro dia de aula, a professora projetou em sala essa cena para assistirmos. Teve naturalmente um sabor diferente assistir à cena na disciplina e na universidade retratadas no filme, e antes de discutir em sala o mesmíssimo caso Hawkins v. McGee. De volta ao Brasil, durante alguns semestres, eu projetava essa cena em sala para os alunos na primeira aula do meu curso de contratos. A minha intenção naturalmente era a de ilustrar e enfatizar para os estudantes que minhas aulas não seriam expositivas. Que eu trabalharia com leitura prévia e com casos nas aulas. E não que haveria um regime de cobrança similar ao retratado. Eu explicava isso, inclusive, após a projeção da cena. Quase todos os alunos entenderam a mensagem. Com exceção de um que, na avaliação no fim do semestre, escreveu algo assim: "o professor passou no primeiro dia de aula uma cena de um aluno que, após ser pressionado pelo professor, vomitava. Eu achei horrível! Mas com o passar do semestre, percebi que Daniel não era duro como o professor do filme." Apesar da ressalva no final, depois dessa, por via das dúvidas, desisti de projetar a cena no início da disciplina. Nos cursos que frequentei em Harvard não encontrei propriamente um método para resolução de casos, como o estilo de parecer e de sentença, presentes na Alemanha e referidos na minha coluna anterior. Mas encontrei outra coisa, também nova para mim, jurista brasileiro: um método pedagógico, de transmissão do conhecimento jurídico, comumente referido como método socrático. O método socrático também é retratado no filme "The Paper Chase". Em outra cena, Prof. Kingsfield descreve-o como sendo um processo de perguntas e respostas por meio do qual o aluno aprende a ensinar a si mesmo, "a desenvolver a habilidade de analisar o vasto complexo de fatos que constitui a relação de membros de uma dada sociedade." Kingsfield adverte os alunos que, em alguns momentos, eles terão a impressão de ter achado a resposta certa. Mas ele assegura aos estudantes "que isso é uma total ilusão": "Vocês nunca encontrarão a resposta final e absoluta. Na minha sala de aula, sempre haverá uma outra pergunta. Outra pergunta em seguida à sua resposta." Esse é a forma clássica do método socrático. Em Harvard, não frequentei todas as matérias do curso de direito. Mas frequentei, entre outras, tort law (responsabilidade civil) e contract law (direito dos contratos), que são duas matérias obrigatórias e centrais do currículo do curso. Nessas duas disciplinas pude perceber que essa forma clássica não era aplicada. Questionei um dos meus orientadores, Prof. Henry Smith, e ele respondeu que o método socrático é aplicado de formas diferentes pelas distintas Universidades americanas. Mas a forma tradicional não é mais popular hoje em dia. O Prof. Beau Baez explica que a forma tradicional é tida como uma forma rigorosa demais, cujo objetivo acaba sendo o de "quebrar o estudante, de maneira similar ao que acontece quando alguém se alista ao exército e sai em acampamento. Hoje em dia o professor não tenta destruir o estudante fazendo-lhe um número excessivo de perguntas."1  As diferenças do sistema americano em relação ao sistema brasileiro já começam na preparação para a aula. Os alunos, com uma frequência espantosa para um jurista brasileiro, chegam em sala com o material lido. Eu, por exemplo, nunca vi um aluno falhar ao ser chamado para falar. Mesmo porque, costuma acontecer, o professor fixa-se nos alunos que são aleatoriamente escolhidos para falar naquela aula. Aqueles serão os alunos que irão "dialogar" com ele durante toda a aula. Nunca vi acontecer, mas, como a cena do filme ilustra, mesmo que o aluno surpreenda e demonstre que não leu o caso da aula, o professor pode insistir em fazer-lhe perguntas e não "deixá-lo em paz" tão facilmente. Isso tudo serve como estímulo adicional para que ninguém chegue despreparado em sala. O material preparatório e discutido em sala são decisões judiciais. De fato, não se apreende a regra através da leitura de um ou vários dispositivos legais, mas da leitura de decisões judiciais paradigmáticas. Isso afeta toda a forma de transmissão do conhecimento. Por exemplo, os estudantes americanos não se preparam normalmente por livros de doutrina como os manuais ou cursos que temos aqui no Brasil, que tratam de e explicam institutos jurídicos e regras legais. Nos EUA, há case books, que são livros em que são reunidas as decisões que serão trabalhadas na disciplina. As decisões são muitas vezes "editadas" para ficarem mais "enxutas" e conterem apenas o essencial para o tema abordado. Às vezes esses livros contêm, ao final da transcrição das decisões, comentários dos autores. As aulas não são expositivas. Apesar de não ser mais um processo incessante de perguntas e respostas, como explicado acima, o método socrático se propõe a instigar o aluno, a estimulá-lo através da pergunta e da resposta a aprender a raciocinar com mais autonomia e a ter espírito crítico. Absorvi muito disso e aplico hoje em dia na minha prática como professor. Essa influência americana misturou-se com a influência alemã que descrevi na última coluna. Na próxima e última coluna desta trilogia, vou apresentar como cada uma dessas heranças atuam na minha prática profissional como professor. Com isso, apresentarei também um projeto que estou gestando e que se espera que possa contribuir para a formação do jurista brasileiro. Até breve! __________ 1 Fonte disponível aqui.
segunda-feira, 20 de junho de 2022

O reconhecimento global do direito à desconexão

Já tivemos a oportunidade de abordar, em colunas anteriores, o tema da responsabilidade civil das plataformas digitais pelo conteúdo das postagens realizadas por seus usuários nas redes sociais, que causa enorme controvérsia envolvendo a contraposição entre o poder moderador exercido pelas empresas de tecnologia e o exercício da liberdade de expressão. Abordamos, ainda, a responsabilidade civil das empresas de aplicativos (especificamente o caso da Uber), que bem ilustra os desafios do tratamento jurídico dos danos gerados pelo emprego de novas tecnologias - especialmente no que respeita à necessidade e conveniência de sua regulação pelo Estado. Trata-se de assuntos de alcance mundial, envolvendo uma multiplicidade de fatores que impactam diretamente o modo de ser da sociedade atual. É justamente nesse contexto que o tema da presente coluna - o direito à desconexão - se desenvolve, tendo em comum o mesmo fio condutor, qual seja, a era digital, marcada por uma nova forma organizacional em redes cujo eixo central é a TIC - tecnologia da informação e da comunicação.1 Se, de um lado, é fato que as novas tecnologias propiciam facilidades e benefícios incomensuráveis à vida em sociedade, por outro lado, constituem fontes geradoras de danos até então inimagináveis. Muito embora o direito à desconexão possa ser analisado sob plurais aspectos da vida social, é no campo das relações trabalhistas que se situam as maiores preocupações quanto à sua concretização e eventual sancionamento por danos causados aos trabalhadores. O direito à desconexão surge como uma prerrogativa do "trabalhador de se desligar (fora do horário de trabalho, nos finais de semana, nas férias), da rede telemática, do arreio eletrônico que liga o trabalhador a seu empregador". Ressalta, aqui, o direito de não ser interrompido em seus momentos de descanso, envolvendo uma desvinculação plena do trabalho.2 Nesse contexto, a desconexão não deixa de constituir um mecanismo de contenção do comportamento do empregador e não um "novo direito do empregado". Diante do ritmo frenético que se impõe às relações profissionais e das facilidades geradas pelo uso das novas tecnologias (e-mails, mensagens via aplicativos e redes sociais, dentro outras), tornou-se um grande desafio garantir aos empregados o direito ao descanso. Como afirma AMADO, "o trabalhador goza, assim, de um 'direito à não conexão' (dir-se-ia: de um right to be let alone) por parte da empresa, de um do not disturb! resultante do contrato de trabalho e da norma laboral aplicável."3 Como se percebe, o direito à desconexão está ligado diretamente ao direito à privacidade, ao descanso e ao lazer, com vistas à preservação da saúde e da vida privada asseguradas constitucionalmente. Nunca é o bastante destacar que a pandemia do coronavírus naturalmente acarretou uma expansão vertiginosa do home-office, incrementado por meios telemáticos, gerando o fenômeno da hiperconexão. De acordo com comunicados do Parlamento Europeu, "embora o teletrabalho tenha salvado empregos e permitido que muitas empresas sobrevivam à crise do coronavírus, também esvaziou a distinção entre o foro pessoal e o profissional e fez com que muitas pessoas trabalhassem fora do horário normal de trabalho, piorando deste modo o equilíbrio entre a vida profissional e vida privada."4 Ainda, segundo a comissão europeia, "a economia das plataformas digitais está a crescer rapidamente. Entre 2016 e 2020, as receitas deste setor quase quintuplicaram, subindo de cerca de 3 mil milhões de EUR para cerca de 14 mil milhões de EUR. Estas receitas poderão ter sido mais elevadas e ascender a 20,3 mil milhões de EUR. segundo outro estudo. Atualmente, mais de 28 milhões de pessoas na UE trabalham através das plataformas digitais. Em 2025, prevê-se que este número atinja 43 milhões."5 A regulação mundial do direito à desconexão Um dos primeiros países a consagrar legislativamente o direito à desconexão foi a França. Por via da lei 2016-1088, de 8 de agosto de 2016 (vigente a partir de janeiro de 2017), acresceu-se um parágrafo sétimo ao art. 2242-8 do Código do Trabalho, aplicável às empresas com 50 ou mais funcionários. Referido dispositivo passou a regulamentar "As condições para o pleno exercício pelo empregado de seu direito à desconexão e a implantação pela empresa de dispositivos de regulação do uso de ferramentas digitais, a fim de assegurar o respeito aos períodos de repouso e folga, bem como à vida pessoal e familiar. Não havendo acordo, o empregador elabora um regulamento, depois do parecer do Conselho de Trabalhadores ou, na sua falta, os representantes do pessoal. Este regulamento define os procedimentos para o exercício do direito desconexão, bem como prevê a implementação de ações de treinamento e conscientização para funcionários, gerência e pessoal de gestão para o uso razoável de ferramentas digitais."6 Assim, para a implementação efetiva de um direito de desconexão, na França os empregadores devem negociar com os representantes sindicais a respeito de eventuais atividades fora do horário de trabalho. A lei não impõe regras sobre como os funcionários devem "desligar"; em vez disso, exige que as empresas nas quais um ou mais sindicatos tenham estabelecido uma "seção sindical" (normalmente empresas com pelo menos 50 funcionários) devem entrar em negociações anuais obrigatórias para definir como os funcionários podem exercer seu direito de desconexão e (se não houver acordo com os sindicatos) adotam uma "carta" unilateral a este respeito, após consulta ao seu conselho de trabalhadores. Estas negociações devem abranger também o estabelecimento de "acordos para regular a utilização de equipamentos digitais, de forma a garantir o cumprimento dos períodos de descanso e férias e proteger a vida pessoal e familiar".7 De acordo com a lei francesa, não há sanções diretas às empresas pelo descumprimento dessas regras. Todavia, os funcionários podem processá-las se sentirem violados quanto ao direito à desconexão. Como exemplo, em uma ação indenizatória baseada nessa lei, um funcionário de uma grande empresa de controle de pragas recebeu 60.000 euros em compensação por estar "de plantão", depois que um tribunal francês decidiu que a empresa havia exigido que o empregado deixasse seu telefone permanentemente ligado para atender clientes, caso surgissem problemas fora de seu horário de trabalho.8 Seguindo o exemplo da França, em dezembro de 2018 a Espanha aprovou a Nova Lei de Proteção de Dados, internalizando o GDPR - Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados da União Europeia (UE), passando a prever um novo conjunto de direitos digitais para cidadãos e funcionários. Destaca-se, nesse sentido, o art. 88 (Derecho a la desconexión digital en el ámbito laboral), segundo o qual os trabalhadores nos setores privado e público deverão ter assegurado o direito à desconexão para garantir o respeito aos seus períodos de folga, licença e férias, assim como para a sua privacidade pessoal e familiar.9 Na Itália, o direito à desconexão foi regulado por via da lei 81/17, que regulamenta o Smart Working (trabalho inteligente), com o intuito de promover e fornecer um arcabouço para novas formas de trabalho remoto e para melhorar o equilíbrio entre a vida pessoal e profissional dos trabalhadores. Afirma-se o direito de os funcionários que trabalham remotamente se desconectarem das ferramentas e sistemas da empresa usados ??para realizar seu trabalho. Destaca-se que o direito à desconexão está limitado aos trabalhadores realizando o smart work, não se aplicando referida lei, de forma geral, à força de trabalho como um todo.10 Em Portugal, recentemente foi promulgada a lei  83/21, que modificou o regime jurídico do teletrabalho. O legislador lusitano inseriu ao Código Trabalhista, o art. 199.º- A, prevendo o "dever de abstenção de contacto", pelo qual "O empregador tem o dever de se abster de contactar o trabalhador no período de descanso, ressalvadas as situações de força maior".11 No âmbito do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJ/UE), há farta jurisprudência atinente aos critérios de determinação do tempo de trabalho, incluindo o tempo de permanência e o serviço de chamada, à importância do tempo de descanso, à obrigação de medir o tempo de trabalho e aos critérios para determinar o estatuto de um trabalhador.12 Em razão disso, recentemente (janeiro de 2021) o Parlamento Europeu - composto por representantes dos 27 países membros da União Europeia -, aprovou uma resolução (2019/2181) recomendando à Comissão Europeia que legisle a respeito do direito à desconexão, instando-a a "avaliar e abordar os riscos de não proteger o direito a desligar" e a estabelecer normas mínimas para o trabalho remoto.13 Conforme consta da página oficial do parlamento europeu, "o direito a desligar não está definido na legislação da UE e o Parlamento quer mudar isso.14 Cite-se, ainda, apenas a título de informação, a existência de regulação do direito à desconexão em outros países, tais como Bélgica, Canadá, Chile (primeiro país fora da Europa a reconhecer referido direito) e Argentina. Nos EUA, ainda parece haver pouco interesse político na regulamentação do direito à desconexão. A forte cultura capitalista norte-americana tem sido apontada como o principal entrave a uma tal regulação, na medida em que poderia representar obstáculo à maximização da produtividade e dos lucros - para o quê se espera que os trabalhadores estejam disponíveis a todo momento.15 Talvez por esse motivo, não prosperou um projeto de lei apresentado em março de 2018, perante o New York City Council (Chapter 14 - Disconnecting from work), com o propósito de vedar que os empregadores do setor privado com mais de 10 funcionários exigissem que seus funcionários se mantivessem conectados ao trabalho após o término formal do dia de trabalho, exceto em casos de emergência. Pelo projeto, os funcionários poderiam exercer o seu direito à desconexão, ficando impedidos de verificarem ou responderem emails e/ou outras comunicações eletrônicas fora do horário de trabalho. De forma inovadora, o projeto ainda previa a possibilidade de mecanismos de enforcement and penalties para os empregadores que não observassem o direito à desconexão, sujeitando-os a sanções pecuniárias, para além da criação de um canal para o recebimento de denúncias anônimas.16 Após discussões iniciais a respeito da proposta, inclusive com a realização de audiência pública, referido projeto acabou sendo arquivado.17 Similar tratamento legislativo relativamente ao direito à desconexão vem sendo defendido também para o Estado da Califórnia, apesar de muitos juristas sustentarem que o Estado não precisaria de uma lei específica acerca do tema - na medida em que sempre se destacou pela regulamentação progressista, sendo considerado "one of the most employee-friendly states in the country". Mas, será que um dos berços da tecnologia, ainda que remunere expressivamente horas-extras, consegue contornar os inúmeros transtornos à saúde de uma geração hiperconectada?18 Brasil O Brasil ainda não conta com legislação específica sobre o tema, muito embora a lei 13.467/17 tenha acrescentado à CLT uma regulação relativa ao teletrabalho (capítulo II-A, artigos 75-A à 75-E). Nada se menciona, todavia, a respeito do direito à desconexão, em que pese a existência de farta jurisprudência dos tribunais nacionais que o reconhecem expressamente, servindo de fundamento para amparar indenizações a trabalhadores lesados. Como afirma ROSENVALD, "no Brasil, inexiste o rótulo do 'direito de desconectar'. O que temos é um controle 'ex post' dos danos injustos decorrentes das patologias associadas ao desempenho das atividades profissionais, sobremaneira a síndrome de 'burnout'. Pela via da responsabilidade civil, a justiça trabalhista converte em um 'passivo' da empresa, a impossível tarefa de restaurar a saúde do empregado ao 'status quo' anterior ao exaurimento profissional".19 Nos tribunais trabalhistas brasileiros o direito à desconexão vem sendo reconhecido nas hipóteses em que o empregador estabelece comunicação com o empregado durante o seu período de descanso. Conforme já decidiu o TST, "o entendimento desta Corte Superior é no sentido de que a submissão do empregado a jornada extenuante que 'subtraia do trabalhador o direito de usufruir de seus períodos de descanso, de lazer, bem como das oportunidades destinadas ao relacionamento familiar, ao longo da vigência do pacto contratual' configura dano existencial. II. Tendo a Corte regional concluído que 'da jornada descrita, denota-se claramente a falta de preservação do convívio familiar, bem como relaxamento, lazer, direitos estes inerentes a qualquer trabalhador', a decisão regional está de acordo com a iterativa, notória e atual jurisprudência do TST."20 Muito se discute a respeito da conveniência ou mesmo da necessidade da implementação de uma regulamentação específica do direito à desconexão no Brasil. Seria mesmo necessária qualquer inovação legislativa para reassentar um direito implicitamente já reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência nacional? Conclusões O pioneirismo do tratamento legislativo a respeito do direito à desconexão na França não deixa de ilustrar uma reafirmação cultural dos valores característicos da sociedade francesa.21 No entanto, o tema é emblemático para o mundo inteiro na medida em que se preconiza, por via do reconhecimento do direito à desconexão, a reafirmação do direito à privacidade e à intimidade das pessoas, a quem se deve garantir o seu livre exercício. E isso tudo, com ainda maior gravidade, dentro de um contexto histórico no qual a produtividade e a hiperconexão passaram a ser virtudes quase incontestáveis, submetendo os seres humanos a um ritmo de vida (e não apenas de trabalho) inegavelmente angustiante, gerador de lesões de toda ordem aos valores que nos parecem mais caros. Concomitante a isso, vivenciamos a lógica de um mercado pujante que premia e exige respostas rápidas, pautado na apresentação de resultados eficientes. Para tanto, parece não haver mais lugar para pessoas que não se proponham a estar "disponíveis" em período integral, na medida em que sempre existirá, em algum lugar, alguém disposto a sacrificar sua vida privada para suprir a demanda diante de uma economia globalizada. Diante desses dilemas, não é fácil responder até que ponto pode ou deve o Estado, pela via legislativa, delimitar o grau e a densidade de disponibilidade individual reputados razoáveis para se reger as relações de trabalho, por exemplo. Seja como for, não se pode deixar de anotar que as recorrentes e cada vez mais insidiosas práticas abusivas do inter-relacionamento humano dentro da sociedade online, muito mais do que capazes de violar um "direito à desconexão", atentam contra vários direitos fundamentais assegurados constitucionalmente, tais como o direito ao lazer, à vida privada, à intimidade, à saúde, e à integridade psíquica, dentre outros. E para tais espécies de violações, na medida em que impeçam a realização do projeto de vida do ser humano individual ou coletivamente considerado, tanto a doutrina como a jurisprudência brasileira já consagram a categoria própria dos chamados danos existenciais.22 Em que medida a consagração de uma nova categoria de danos (derivados de um "direito à desconexão") representaria efetivamente um avanço no campo da responsabilidade civil é uma questão a ser respondida pelos diversos sistemas de justiça, tomando em consideração as diversidades culturais, políticas e econômicas dos países que os integram. ______ 1 CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Economia, sociedade e cultura. 9. ed. Vol. 1. São Paulo: Paz e Terra, 2006. 2 HARFF, Rafael Neves. Direito à desconexão: estudo comparado do direito brasileiro com o direito francês. Revista do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, Porto Alegre, ano XIII, n. 205, p. 53-74, jul. 2017. Disponível aqui. 3 AMADO, João Leal. Tempo de trabalho e tempo de vida: sobre o direito à desconexão profissional. Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, Campinas, n. 52, p. 254-268, 2018. E, ainda, A desconexão profissional e a DGAEP: tomemos a sério o dever de abstenção de contacto. Disponível aqui. 4 Comunicação da comissão ao parlamento europeu, ao conselho, ao comité económico e social europeu e ao comité das regiões - Melhores condições de trabalho para uma Europa social mais forte: explorar os benefícios da digitalização para o futuro do trabalho. Disponível aqui. 5 Ibid., p. 03. 6 Disponível aqui.  7 Idem. 8 PONZILACQUA, Marcio H. Pereira e SILVA, Luciana Graciana. O direito à desconexão do trabalho francês: perspectivas de implementação no Direito brasileiro. Disponível aqui.  9 Ley Orgánica 3/2018, "Protección de Datos Personales y garantía de los derechos digitales", 5.12.2018. Disponível aqui.  10 Lei n. 81 de 22 de maio de 2017. Disponível aqui. 11 Lei n. 83-2021. Disponível aqui.  12 Dentre as diversas decisões, entre outros, os acórdãos do Tribunal de Justiça de 5 de outubro de 2004 (Pfeiffer e o., C-397/01 e C-403/01, ECLI:EU:C:2004:584, 93); de 7 de setembro de 2006 (Comissão contra Reino Unido, C-484/04, ECLI:EU:C:2006:526, 36); de 17/11/16 (Betriebsrat der Ruhrlandklinik, C-216/15, ECLI:EU:C:2016:883, 27); de 21/2/18 (Matzak, ECLI:EU:C:2018:82, C-518/15, 66) e de 14/5/19 (Federación de Servicios de Comisiones Obreras (CCOO), C-55/18, ECLI:EU:C:1999:402, 60). Disponível aqui. 13 Resolução do Parlamento Europeu, de 21 de janeiro de 2021, que contém recomendações à Comissão sobre o direito a desligar (2019/2181(INL)).  Disponível aqui. 14 Comunicação da comissão ao parlamento europeu, ao conselho, ao comité económico e social europeu e ao comité das regiões - Melhores condições de trabalho para uma Europa social mais forte: explorar os benefícios da digitalização para o futuro do trabalho. Disponível aqui.  15 Essa é a conclusão de Liuba BELKIN, professor da Lehigh University's College of Business, disponível aqui. . 16 Bill 0726-2018. A Local Law to amend the New York city charter and the administrative code of the city of New York, in relation to private employees disconnecting from electronic communications during non-work hours", March 2018. Disponível aqui. 17 Disponível aqui.  18 "It's not unreasonable to think that California may draft a law similar in scope to the new Portuguese one," says Michael Alexis, CEO of Washington-based TeamBuilding, which runs virtual team building activities for remote teams". Could Califórnia ever pass right to disconnect law? Disponível aqui.  19 ROSENVALD, Nelson. O direito de desconectar. Disponível aqui.  20 RECURSO DE REVISTA. ACÓRDÃO REGIONAL PUBLICADO NA VIGÊNCIA DA LEI 13.015/14. 1. DANO EXISTENCIAL. JORNADA EXTENUANTE. NÃO CONHECIMENTO. I. O entendimento desta Corte Superior é no sentido de que a submissão do empregado a jornada extenuante que "subtraia do trabalhador o direito de usufruir de seus períodos de descanso, de lazer, bem como das oportunidades destinadas ao relacionamento familiar, ao longo da vigência do pacto contratual" configura dano existencial. II. Tendo a Corte Regional concluído que "da jornada descrita, denota-se claramente a falta de preservação do convívio familiar, bem como relaxamento, lazer, direitos estes inerentes a qualquer trabalhador", a decisão regional está de acordo com a iterativa, notória e atual jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho, o que inviabiliza o processamento do recurso de revista, conforme os óbices do art. 896, § 7º, da CLT e da Súmula 333 do TST. III. Recurso de revista de que não se conhece. [.]. (RR-1001084-55.2013.5.02.0463, 4ª turma, relator ministro Alexandre Luiz Ramos, DEJT 22.11.2019.) Em sentido semelhante: RECURSO DE REVISTA REGIDO PELA LEI 13.015/14. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS EM DECORRÊNCIA DE DANOS EXISTENCIAIS. JORNADA EXAUSTIVA (12 HORAS). DANO IN RE IPSA. No caso, o Tribunal Regional [...] consoante jurisprudência desta Corte, a submissão à jornada excessiva ocasiona dano existencial, em que a conduta da empresa limita a vida pessoal do empregado, inibindo-o do convívio social e familiar, além de impedir o investimento de seu tempo em reciclagem profissional e estudos. Assim, uma vez vislumbrada a jornada exaustiva, como no caso destes autos, a reparação do dano não depende de comprovação dos transtornos sofridos pela parte, pois se trata de dano in re ipsa, ou seja, deriva da própria natureza do fato gravoso. Indenização fixada no valor de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), na esteira das decisões proferidas por esta Turma em casos semelhantes. Recurso de revista conhecido e provido. (TST - ARR: 9828220145040811, Relator Delaíde Miranda Arante, Data do Julgamento: 10/4/19, 2ª Turma.) 21 Nesse sentido, ROSENVALD, Nelson. O direito de desconectar. Disponível aqui.  22 Conforme já decidiu o STJ, os danos existenciais constituiriam mera espécie de dano moral (AgInt no AREsp 1.380.002/MS, relator ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 2/4/19, DJe de 15/4/19), não podendo ser fixados cumulativamente com esses, sob pena de ocorrência de bis in idem (REsp 1.968.131, ministro Benedito Gonçalves, DJe de 21/2/22). 1. Segundo o entendimento do STJ, prescreve em três anos a pretensão de reparação de danos, nos termos do art. 206, § 3º, do CC/02, prazo que se estende, inclusive, aos danos extrapatrimoniais. Precedentes. 2. Agravo interno a que se nega provimento. (AgInt no AREsp 1.380.002/MS, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 2/4/19, DJe de 15/4/19.)
Na influente obra "uma teoria da justiça" (1971), John Rawls revisita e remete a um nível mais alto de abstração a teoria do contrato social - encontrada em Hobbes, Locke, Rousseau. Em sua crítica ao utilitarismo e valorização dos imperativos da dignidade e inviolabilidade da pessoa humana, a teoria da justiça como equidade se revela a mais influente perspectiva de justiça liberal existente. Rawls acrescenta muito mais da ética Kantiana em sua teoria política do que o próprio Kant: a pessoa como um fim em si é uma ideia central de toda a estrutura rawlsiana. Nada obstante, as regras de justiça surgem como um arranjo institucional para atender uma racionalidade idealizada em um público específico de homens livres, iguais em capacidade e capazes de atividades produtivas que, para sair do estado de natureza, concebem um esquema de cooperação para vantagens mútuas. Restam excluídos do pacto as pessoas com deficiência física e psíquica, que terminam escondidas em instituições ou abandonadas. Por não contarem com representantes no desenho do princípio da justiça, culminam por não serem contempladas com medidas que atendam às suas necessidades específicas. O paradoxo é que mesmo pessoas com necessidades normais - aquinhoadas pela teoria do contrato social - também passam por momentos de sua vida em que necessitam da assistência de outra pessoa, como na infância e velhice. Eventualmente, a dependência assimétrica resulta de um acidente ou uma crise e depressão podem se tornar temporária ou permanentemente improdutivas, demandando cuidados especiais. Em contrapartida, vários outros teóricos iluministas, adotaram abordagens comparativas endereçadas às realizações sociais. Ou seja, compararam sociedades que já existiam com as que poderiam surgir. Tal comparação tem como principal interesse a remoção de injustiças evidentes no mundo que viam (Smith, Bentham, Marx, Stuart Mill). Essas teorias substantivas não indagam o que seriam instituições perfeitamente justas, porém "como a justiça seria promovida" na sociedade em que vivem, de forma a prevenir e mitigar inaptidões. Trata-se de uma visão de justiça focada em realizações e feitos e não em arranjos, pois a justiça não pode ser indiferente as vidas que as pessoas podem viver de fato. Neste rol de pensadores, mais recentemente se encontram Amartya Sen e Martha C. Nussbaum. A ela dedicaremos maior espaço, homenageando sua obra intitulada "Fronteiras da Justiça" (Trad. Susana de Castro, Ed. Martins Fontes, São Paulo, 2013). Partindo da concepção aristotélica do ser humano como ser social e político que se realiza através de suas relações com outros e da virtude como habilidade em inculcar atitudes corretas nas pessoas que apoiarão mudanças amplas na distribuição dos bens existentes, Martha Nussbaum apresenta o enfoque das capacidades - como espécie de enfoque dos direitos humanos - muito mais apto a determinar qual a justiça que cabe às pessoas com impedimentos sérios e incomuns do que a teoria da justiça procedimentalista de Rawls. Para ele, a escolha dos melhores princípios de justiça depende unicamente da determinação de um procedimento justo de escolha. Neste "institucionalismo transcendental" os sujeitos primários de justiça são os mesmos que escolhem os princípios. Já para Nussbaum, não é o procedimento, mas sim as consequências a serem atingidas que devem guiar a escolha dos princípios. Trata-se de uma teoria orientada para resultados, uma complementação necessária para a linguagem nem sempre "transparente" dos direitos humanos, na qual a incorporação de pessoas com necessidades especiais requer princípios que levem em consideração aquilo que elas possuem em comum com todos os outros seres humanos, a saber o desejo de florescer fazendo uso de suas capacidades humanas de modo adequado. Partindo do princípio básico de que cada pessoa é um fim, Nussbaum, segue o enfoque das capacidades humanas para explicar o que as pessoas são de fato capazes de fazer e ser instruídas. Ao rejeitar as concepções políticas de pessoa fundadas em uma racionalidade idealizada, fornece a base filosófica sobre as garantias humanas centrais que devem ser implementadas por qualquer governo como um mínimo social básico do que o respeito pela dignidade humana requer. Em sociedades liberais plurais as "capacidades" introduzem um consenso entre pessoas que possuem concepções amplas de bem muito diferentes entre si. Mesmo se reconhecendo esta ínsita diversidade, há um nível mínimo para cada capacidade, abaixo do qual se acredita que aos cidadãos não está sendo disponibilizado um funcionamento verdadeiramente humano. Parafraseando Marx (Manifestos Econômicos e Filosóficos,1844), uma vida que tenha "funcionamentos verdadeiramente humanos", requer uma rica pluralidade de atividades vitais e capacidades para as quais todas as pessoas estão autorizadas, sendo que a racionalidade não é o único aspecto pertinente à noção de funcionalidade verdadeira humana. Com esse ponto de partida, Nussbaum justifica uma lista - aberta e sujeita a contínua revisão - de um consenso sobreposto de dez capacidades como exigências centrais para uma vida com dignidade, com espaço para diversas possibilidades de realização: 1) Vida. Ter a capacidade de viver até o fim de uma vida humana de duração normal; não morrer prematuramente ou antes que a própria vida se veja tão reduzida que não valha a pena vivê-la; 2) Saúde física. Ser capaz de ter boa saúde, incluindo a saúde reprodutiva; de receber uma alimentação adequada e dispor de um lugar adequado para viver; 3) Integridade física. Ser capaz de se movimentar livremente de um lugar para outro; estar protegido contra ataques de violência, inclusive agressões sexuais e violência doméstica; dispor de oportunidades para a escolha em questões de reprodução; 4) Sentidos, imaginação e pensamento. Fazer essas coisas de um modo verdadeiramente humano, um modo informado e com educação adequada. Ser capaz de usar a imaginação e o pensamento em conexão com o experimentar. Usar a própria mente de modo protegido por garantias de liberdade de expressão; 5) Emoções. Ser capaz de manter relações afetivas com coisas e pessoas fora de nós mesmos. Não ter o desenvolvimento emocional bloqueado por medo e ansiedade; 6) Razão prática. Ser capaz de formar uma concepção de bem e de ocupar-se com a reflexão crítica sobre o planejamento da própria vida; 7) Afiliação. Ser capaz de viver voltado para os outros, reconhecer e mostrar preocupação com outros seres humanos. Ter as bases sociais de autorrespeito e ser capaz de ser tratado como um ser digno cujo valor é igual ao dos outros. Isso inclui disposições de não discriminação com base em raça, sexo, orientação sexual, etnia, casta, religião, origem nacional; 8) Outras espécies. Ser capaz de viver uma relação próxima e respeitosa com animais, plantas e o mundo da natureza; 9) Lazer. Ser capaz de rir, brincar, gozar de atividades recreativas; 10) Controle sobre o próprio ambiente, seja ele político - participando efetivamente das escolhas políticas que governam a própria vida - ou material, sendo capaz de ter propriedade, candidatar-se a emprego, participando de relacionamentos significativos de reconhecimento mútuo com os demais trabalhadores. A abordagem das capacidades aponta para um foco informacional sobre a vantagem individual, julgada com relação à oportunidade e não um design específico de como uma sociedade deva ser organizada. Concentra-se na vida humana e não em rendas ou mercadorias que a pessoa possua. Bens primários são apenas meios para outras coisas, em especial para satisfazer os fins e a liberdade substantiva para realizá-los. Não se trata apenas do que uma pessoa realmente acaba fazendo, mas também o que ela é de fato capaz de fazer, quer escolha aproveitar ou não uma oportunidade. A métrica das capacidades é superior à métrica dos recursos, pois se concentra nos fins e não nos meios, lidando melhor com discriminações em face de pessoas incapacitadas, sendo sensível às variações individuais em funcionamentos. Enfim, uma vida com apropriada dignidade humana é constituída, pelo menos em parte, pela posse de um nível mínimo para cada qual das 10 capacidades da lista, abaixo do qual não há uma vida decentemente digna. Uma vez identificado esse limite extremo, procuramos um limite mais alto, aquele acima do qual não apenas a mera vida, mas a boa vida se torna possível. Assim, o enfoque das capacidades explica a cooperação como justiça e inclusão como fins de valor intrínseco, para o qual seres humanos se unem por laços altruísticos e não por vantagens mútuas. Somos seres animais necessitados e temporários e o bem dos outros não é apenas um limite à busca dessas pessoas pelo próprio bem: faz parte de seu próprio bem. Assim, ao invés de ser um tema restrito às concepções individuais de bem - como na teoria de Rawls - um forte compromisso com o bem alheio faz parte da concepção pública compartilhada de pessoa. Relações não simétricas podem conter reciprocidade e verdadeira funcionalidade humana. A final, não somos obrigados a ser produtivos para ganharmos o respeito dos outros, pois a sociedade se une em função de um campo de afetos e compromissos, somente alguns dos quais dizem respeito à produtividade. A dignidade não é definida antes e independentemente das capacidades, mas sim de modo imbricado com elas e com suas definições. "A capacidade é um aspecto da liberdade e se concentra especialmente nas oportunidades substantivas". Como coloca Amartya Sen, a vantagem de uma pessoa é considerada menor que a de outra se ela tem menos capacidade - menos oportunidade real - para realizar as coisas que tem razão para valorizar. A ideia de liberdade substancial diz respeito a sermos livres para determinar o que queremos, o que valorizamos e, em ultima instância, o que decidimos escolher. O conceito de capacidade está, portanto, ligado intimamente com o aspecto de oportunidade de liberdade. Ao propor um deslocamento fundamental do foco de atenção, passando dos meios de vida para as oportunidades reais de uma pessoa, a abordagem das capacidades altera bastante a compreensão dos autores e destinatários de políticas públicas. Nenhuma Constituição protege a capacidade de forma abstrata. Deve haver uma avaliação prévia que estabeleça quais são boas e quais são as mais centrais, posto claramente envolvidas na definição das condições mínimas para uma vida humana digna. Aqui entra o cuidado como concepção de justiça.  Conceber o cuidado como um direito social primário, significa refletir sobre um campo amplo de necessidades do lado tanto do que cuida, quanto daquele que é cuidado. A boa assistência aos dependentes, sejam eles crianças, idosos ou pessoas com deficiência, coloca o apoio às capacidades no âmbito da vida, da saúde e da integridade física no centro das atenções. Um bom apoiador para uma pessoa com vulnerabilidade psíquica - e boas políticas públicas que apoiem o cuidado individualizado - deve conhecer e adequar-se à natureza particular do impedimento da pessoa, alimentando sua necessidade estímulo cognitivo e seu interesse em não estar confinada em um único ambiente físico. Um ponto fulcral sobre impedimentos e deficiências nasce da seguinte pergunta: deve-se promover apenas a capacidade em cada uma das dez áreas ou a efetiva funcionalidade? Os funcionamentos e as capacidades são diversos, porque tratam de diferentes aspectos de nossa vida e nossa liberdade. Talvez forçar todos os cidadãos a realizar essas funcionalidades seria antiliberal, mesmo em se tratando de objetivos sociais apropriados (como participação política e atividade religiosa). Por razões pessoais, alguém pode renunciar à funcionalidade concreta em questão. Lado outro, é apropriado para o planejamento político promover a saúde efetiva como um objetivo social. Se, por um lado, não é correto excluir escolhas pessoais de condução de vida que envolvam atividades arriscadas - sendo as pessoas previamente informadas do risco -, quando se trata de pessoas com impedimentos mentais, várias dessas não poderão fazer escolhas sobre sua assistência de saúde, consentir em relações sexuais, ou avaliar o perigo de uma ocupação. Assim, haverá muitas áreas para muitas dessas pessoas nas quais a funcionalidade em vez da capacidade, deverá ser o objetivo apropriado. Vale dizer, a lista de capacidades permanecerá a mesma quando considerarmos pessoas com impedimentos mentais? E o nível social mínimo também permanecerá o mesmo? A resposta é positiva. Todos devemos ter a chance de desenvolver o âmbito total das faculdades humanas em qualquer nível que a condição pessoal permita, não por causa da produtividade social, mas porque isso é humanamente bom. Nada obstante, muitas pessoas com déficits cognitivos extremos jamais serão colocadas em uma posição em que certas capacidades assumam um nível significativo. A despeito dos melhores esforços alguns encontram extraordinárias barreiras em sua realização que nem sempre serão removidas por uma ação social inteligente. Onde a outorga direta de poder não for possível a sociedade deve oferecer a pessoa as capacidades por um sistema de apoios. O tipo de apoio deve ser estritamente adaptado para atender a pessoa onde a assistência for necessária, de modo que convide a pessoas a participar o quanto possível na tomada de decisão. Infelizmente, a tendência persistente de todas as sociedades modernas é a de denegrir a competência das pessoas como impedimentos. Impedimentos são "naturalizados" por um cálculo econômico que nega o investimento em políticas públicas que defiram a essas pessoas atingir em algumas áreas um alto nível de funcionalidade. O ponto correto consiste em utilizar a linguagem da "realização humana" e disponibilizar o cuidado quando as pessoas querem e precisam dele. Por isto é perigoso utilizar uma lista diferente de capacidades para pessoas com impedimentos, mantendo-se uma lista única como conjunto não negociável de diretos fundamentais, para trazer todos, dentro do possível, aos limites mínimos de capacidade estabelecido para os outros cidadãos. Talvez, um dos maiores méritos da abordagem das capacidades seja o de eliminar o descordo filosófico de direitos humanos sobre o conceito de "dignidade da pessoa humana". Pode-se argumentar plausivelmente que as premissas gerais subjacentes à teoria dos direitos humanos já abrangem muito do paradigma da deficiência, mas na prática não impõem esses padrões com eficácia. Para Nussbaum a posse efetiva de um conjunto de capacidades básicas não se baseia no talento individual de cada pessoa, porém do fio condutor do nascimento de uma pessoa em uma comunidade humana. Por isto que o enfoque das capacidades entende a garantia de um direito como uma tarefa afirmativa no plano material e institucional, o quê concede maior efetividade a sua proposta, ou seja, não se trata apenas de inibir a interferência da ação do Estado sobre certa pessoa. Garantir ao cidadão um direito à participação política e a liberdade de expressão significa colocá-lo em posição de capacidade de agir e de funcionar nessas áreas, como algo intrínseco à condição humana. Paradoxalmente, o virtuosismo da tese de Nussbaum da abordagem das capacidades pode ser a sua maior fragilidade. O paradigma dos direitos humanos enfatiza a igual dignidade das pessoas com deficiência e reconhece sua autonomia para dirigir seu próprio desenvolvimento, independentemente de atingirem os níveis de funcionamento típico da espécie exigidos em cada uma das dez capacidades centrais de Nussbaum. A estrutura da deficiência, portanto, continua a se concentrar no papel da dignidade pessoal como um elemento-chave no discurso dos direitos humanos, enquanto a abordagem das capacidades de Nussbaum torna o grau de sua inclusão contingente à capacidade funcional que justifica suficientemente receber consideração. Ademais, talentos são mais específicos ao indivíduo do que as capacidades e, por definição, não são universalmente compartilhados. Assim, enquanto Nussbaum se concentra nas capacidades que são comuns aos seres humanos, uma estrutura de direitos das pessoas com deficiência aborda talentos que são cruciais para o florescimento humano individual e não na falta de capacidade geral medida em relação a uma linha de base funcional. O desenvolvimento de algum talento é um imperativo moral devido a cada pessoa, e para alguns pode ser menor do que para outros. Assim, a visão dos direitos humanos da deficiência da vida humana não é "apenas" sobre o florescimento individual, mas também sobre a dignidade e, portanto, necessita de uma visão maior de todas as pessoas que contribuem e estão presentes na sociedade. Historicamente as pessoas com deficiência estão entre os membros mais politicamente marginalizados, economicamente empobrecidos e menos visíveis da sociedade. Muitas sociedades viram (e muitas continuam a ver) esta exclusão social como uma consequência "natural" das incapacidades inerentes às pessoas com deficiência e, portanto, justificada. Adotar um modelo de direitos humanos da deficiência e, em seguida, estendê-lo para outros grupos, reposiciona a deficiência como um conceito universal e inclusivo de sua posição de outsider para grupos tradicionalmente reconhecidos. Como seres humanos, cada um de nós tem pontos fortes e fracos, habilidades e limitações. Uma estrutura de direitos humanos para pessoas com deficiência valoriza o potencial sobre a função existente. Também reconhece o valor de cada indivíduo para seu próprio fim e avalia a eficácia da proteção dos direitos humanos à luz de fatores exógenos que afetam o desenvolvimento de cada pessoa. Fazer isso abraça a deficiência como uma variação humana universal, e não como uma aberração.
O papel da análise comportamental nos regimes de danos na literatura acadêmica. Introdução Nas três últimas colunas sobre o direito privado na common law, discutimos o direito comportamental com uma perspectiva propedêutica, com uma perspectiva empírica e sob a perspectiva dos direitos reais a partir de textos publicados no The Oxford Handbook of Behavioral Economics and the Law. A presente coluna revisa e sumariza o texto elaborado pelos Professores Yoed Halbersberg e Ehud Guttel, que se trata de uma análise aplicada do behavioral law and economics para à área da responsabilidade civil.1 Trata-se de mais um capítulo do manual de Oxford sobre direito e economia comportamental com a discussão específica de aplicação a uma área jurídica em particular. Aliás, o próprio capítulo traz logo a recordação de que o próprio campo interdisciplinar da análise econômica do direito se iniciou a partir de trabalhos seminais publicados sobre tort law por Ronald Coase e Guido Calabresi na década de 1960, a saber, The Problem of Social Cost2 e Some Thoughts on Risk Distribution and the Law of Torts3. O texto atualiza a discussão sobre a análise econômica comportamental da responsabilidade civil a partir da perspectiva da variedade de vieses que podem afetar a avaliação que as pessoas fazem da probabilidade, até mesmo porque os acidentes são, por sua própria natureza, probabilísticos, o que significa que tanto os indivíduos devem considerar sua avaliação ao eleger suas preferências de ação, quanto os planejadores sociais (legisladores e tribunais) devem considerar as avaliações das partes no desenho e implementação dos regimes de responsabilidade civil. No caso dos tribunais estadunidenses, por exemplo, foi desenvolvida a chamada fórmula Learned Hand que estabelece a natureza estocástica dos acidentes e determina que devem ser feitas estimativas probabilísticas para a definição da responsabilidade em casos de conduta negligente, conforme articulado no precedente judicial de United States v. Caroll Towing Co, 159 F. 2 169 (2d Circ. 1947): "a falha em adotar uma precaução é negligente (...) se o custo da precaução (...) é menor do que a probabilidade de um acidente do que a precaução teria prevenido multiplicado pela perda que o acidente teria causado, se tivesse ocorrido".4 Os remédios para danos - especialmente para danos não-patrimoniais - são particularmente complexos, envolvendo estimativas abertas, avaliações de probabilidades de eventos futuros incertos e julgamentos morais, sendo que a análise de concessão de danos para a dor e o sofrimento exige que as cortes entrem em avaliações psíquicas das vítimas, estando mais suscetível a questões heurísticas e vieses do que a determinação de sanções no direito penal e a estimativa de prejuízos decorrentes de quebras contratuais. Além disso, as partes em um litígio decorrente de um ato ilícito civil extracontratual são mais heterogêneas do que as partes de um litígio contratual ou de um litígio corporativo típico. No caso dos Estados Unidos, o modo de financiamento dos litígios de responsabilidade civil através de honorários contingenciais também pode ter uma influência sobre os resultados dos casos, tornando-os mais suscetíveis a heurísticas e vieses do que outras áreas do direito, o que torna especialmente relevante a análise da economia comportamental.5 A aplicação da Economia Comportamental para a Responsabilidade Civil O modelo da economia comportamental se distancia do modelo básico neoclássico de análise econômica do direito dos acidentes. A análise tradicional considerava que a responsabilidade civil deveria minimizar três tipos de custos: os custos primários que consistem na soma dos prejuízos esperados do acidente somados aos custos das precauções tomadas pelas partes antes do acidente; os custos secundários decorrentes do processo de compartilhamento do risco; os custos terciários derivados da administração do regime de responsabilidade civil. Para essa perspectiva tradicional, o principal objetivo da responsabilidade civil não é a obtenção da compensação das vítimas - uma função mais bem cumprida pelos seguros contra acidentes - mas o estabelecimento de um regime de incentivos para os atores sociais relevantes alinhado com o bem-estar social agregado e que minimize o custo social dos acidentes. Nesse sentido, o regime de responsabilidade civil deveria estimular o potencial causador de um prejuízo a internalizar os seus custos, de modo a minimizar a soma do prejuízo esperado e os custos das precauções. As premissas básicas são de que os agentes são racionais e neutros com relação a risco e podem ter níveis perfeitos de informação, mas os custos de transação são proibitivos e impedem que as partes venham a negociar antes da ocorrência da conduta ilícita.6 A contribuição da economia comportamental é feita através da incorporação de insights próprios no modelo clássico de análise econômica do direito. Assim, por exemplo, a escolha dos tribunais por um determinado modelo de responsabilidade civil pode depender dos vieses cognitivos dos próprios tribunais. O viés do olhar retrospectivo distorce a análise ex-post das pessoas na avaliação da probabilidade ex ante e da previsibilidade de um evento, dado o fato de que o evento já ocorreu, existindo a tendência de se olhar para um resultado negativo que já ocorreu como decorrente de um comportamento menos cuidadoso do que na hipótese de um caso semelhante em que a conduta foi idêntica, mas não ocorreu um resultado negativo. Uma outra situação ocorre com o viés do resultado, em que a divulgação da probabilidade do resultado negativo afeta a percepção das pessoas, isto é, se as pessoas são informadas que uma cirurgia de coração é marcada pelo risco de morte do paciente de 8%, possuem uma tendência a considerar que a decisão do cirurgião de realizar a operação foi muito menos razoável do que se são informadas que a cirurgia do coração possui uma probabilidade de sucesso de 92%.7 A partir da constatação da existência desses vieses e do seu impacto sobre o processo decisório dos julgadores, uma literatura acadêmica tem se desenvolvendo sobre as informações que devem ser compartilhadas antes do julgamento. Por exemplo, Christine Jolls, Cass Sunstein e Richard Thaler chegam ao extremo de sugerir que não seja compartilhada informação com os jurados nos julgamentos civis de casos de responsabilidade civil nos Estados Unidos justamente para evitar os efeitos negativos do viés retrospectivo e do viés do resultado, de modo a se prevenir uma superestimação da probabilidade de ocorrência de um acidente.8 Além disso, outras análises de viés aparecem na literatura, como por exemplo o excesso de otimismo que poderia, em tese, vir a causar uma insensibilidade com relação à probabilidade. Richard Posner, por exemplo, considera que pessoas com altos níveis de otimismo podem adotar um comportamento desprovido dos níveis ótimos eficientes de cuidado e que pessoas com nível moderado de otimismo podem adotar precauções superiores ao nível eficiente de cuidado.9 O modelo apresentado por Posner é teórico e não o resultado de estudos empíricos ou de experimentos em laboratório, tendo sido recebido com ceticismo e sido criticado por que na vida real o excesso de otimismo dificilmente poderia coincidir com níveis excessivos de cautela, eis que a tendência comportamental do indivíduo otimista é de imaginar que "isso nunca vai acontecer comigo.10 Nesse contexto, parece mais interessante a análise de experimentos que tenham capturado os efeitos cumulativos dos vieses comportamentais e da heurística nas mentes dos participantes sob o efeito de uma série de regras diferentes de responsabilidade civil, correspondentes ao que acontece com os agentes do mundo real. Assim é que Kornhauser e Schotter realizaram experimentos laboratoriais que indicaram que os participantes tendiam a tomar cautela ora excessiva e ora insuficiente nas situações de responsabilidade civil objetiva, ao passo que os níveis de cautela seriam mais eficientes e adequados nas situações de responsabilidade civil subjetiva, o que fez com que suscitassem a hipótese de que os participantes tem maior dificuldade em avaliar como devem se comportar em situações sob o regime de responsabilidade estrita do que nas situações de responsabilidade culposa, em que consideram mais fácil entender o nível eficiente de cuidado que devem ter.11 Estes artigos deram início a uma série de trabalhos para avaliar a eficiência dos regimes de responsabilidade civil objetiva e subjetiva, tendo sido desenvolvido cenários com regimes de responsabilidade estrita, culposa e de não-responsabilidade para aferir as condutas adotadas e o nível de cuidado dos participantes de tais experimentos laboratoriais.12 A consideração sobre a economia comportamental também é relevante para o debate sobre a preferência por um regime jurídico de responsabilidade civil ou por um mecanismo de regulação, sendo que a literatura tradicional de law and economics considera que a análise depende dos seguintes fatores: nível de informação da parte, dos reguladores e dos tribunais (quanto maior a informação das pessoas, maior a preferência pela responsabilidade civil ao invés da regulação); capacidade de solvência das partes (quanto menor a capacidade de solvência das partes, maior a preferência por um regime regulatório apoiado em tributação ou uma modalidade de seguro obrigatório); a probabilidade de as partes buscarem uma solução judicial (quanto menor a possibilidade de aplicação privada do direito, maior a preferência por um regime regulatório); os custos relativos do regime de responsabilidade civil em comparação com os custos do sistema regulatório (se os custos de coleta de evidências não for muito alto, regulação pode ser relativamente barata). A contribuição da economia comportamental para essa discussão decorre do fato de que o regime regulatório pode ser mais estruturado contra certos vieses decorrentes das decisões individuais das partes, induzindo uma aplicação mais coerente de standards com base em normas técnicas e uma aplicação com eficácia dissuasória maior do que o regime de responsabilidade civil. Também é possível que a estrutura de aplicação de sanções econômicas com base em multas regulatórias seja mais estruturada do que as sanções decorrentes de ações judiciais ajuizadas conforme as preferências individuais dos autores de ações judiciais de responsabilidade civil. Por outro lado, existem outros fatores que podem levar a uma preferência pelo regime de responsabilidade civil ao invés da regulação. Como a regulação resulta de uma demanda pública, o viés do excesso de otimismo pode reduzir a regulação do risco e, por exemplo, os consumidores podem se sujeitar ao consumo de produtos perigosos e inseguros por subestimar a necessidade de regulação. Aliás, existem estudos que evidenciam que a regulação pode ser ineficiente justamente por ser afetada por considerações de ordem política e por vieses de percepção do risco.13 Particularmente com relação ao tema dos danos sofridos na responsabilidade civil, existem duas importantes tendências comportamentais na literatura que mostram como os julgadores são afetados na fixação dos valores de indenização a serem pagos pelos responsáveis pelos prejuízos decorrentes de atos ilícitos. Em primeiro lugar, os efeitos de enquadramento ("framing effects") influenciam as avaliações de indivíduos com relação ao montante adequado de compensação pela dor e sofrimento. Se o enquadramento for feito com base no cenário anterior, o foco será em perdas ao passo que seria enfocado nos ganhos, se fosse realizado a partir do cenário posterior. Em segundo lugar, existe uma falha dos julgadores em identificar que as vítimas podem se adaptar ao seu novo cenário, o que pode induzir uma excessiva compensação para a vítimas às custas dos responsáveis pelos prejuízos. Como as pessoas possuem uma capacidade de se readaptar às novas circunstâncias de vida, a caracterização da perda como uma tragédia a partir de uma visão hedonista dos danos pode expandir a compensação dos danos pagos para as vítimas como se tivesse ocorrido uma perda do prazer de viver que é, não raro, uma descrição exagerada do que realmente acontece, já que as pessoas possuem uma capacidade comportamental de se readaptar às circunstâncias de vida após o seu acidente.14 Considerações finais Em seu texto para o Manual de Oxford sobre a Economia Comportamental e a Responsabilidade Civil, os Professores Yoed Halbersberg e Ehud Guttel elaboraram uma revisão da literatura sobre as contribuições da análise econômica comportamental do direito com relação à análise econômica neoclássica do direito, apresentando impactos decorrentes do viés retrospectivo, do viés do resultado, da análise dos regimes de responsabilidade civil e do regime regulatório e das tendências comportamentais relativas aos efeitos de enquadramento e à capacidade de readaptação das vítimas de acidente. Além disso, os autores apontaram áreas com escassez de pesquisa e potencial para novas contribuições, identificando a necessidade de desenvolvimento de uma análise comportamental da responsabilidade vicarial e da heterogeneidade das vítimas de acidentes. A presente coluna pretende apresentar mais esse capítulo do Manual de Oxford de Análise Econômica Comportamental do Direito para estimular pesquisas de autores brasileiros e a nossa academia a refletir sobre as possibilidade e limites do behavioural law and economics dentro do contexto dos debates sobre o direito privado na tradição da common law. __________ 1 HALBERSBERG, Yoed; GUTTEL, Ehud. Behavioral Economics and Tort Law. The Oxford Handbook of Behavioral Economics and the Law, 2014. 2 COASE, Ronald H. The Problem of Social Cost. Palgrave Macmillan, 1960. 3 CALABRESI, Guido. Some thoughts on risk distribution and the law of torts. Yale Lj, v. 70, p. 499, 1960. 4 HALBERSBERG, Yoed; GUTTEL, Ehud, p. 406. 5 Idem. 6 Idem. 7 Idem. 8 SUNSTEIN, Cass R.; JOLLS, Christine; THALER, Richard H. A behavioral approach to law and economics. Stanford Law Review, v. 50, p. 1471, 1998. 9 POSNER, Eric A. Probability errors: Some positive and normative implications for tort and contract law. Supreme Court Economic Review, v. 11, p. 125-141, 2004. 10 HALBERSBERG, Yoed; GUTTEL, Ehud, p. 414. 11 KORNHAUSER, Lewis; SCHOTTER, Andrew. An experimental study of single-actor accidents. The Journal of Legal Studies, v. 19, n. 1, p. 203-233, 1990; KORNHAUSER, Lewis A.; SCHOTTER, Andrew. An experimental study of two-actor accidents. CV Starr Center for Applied Economics, New York University, 1992. 12 GHOSH, Sanmitra; KUNDU, Rajendra Prasad. Efficiency of Liability Rules: An Experimental Analysis. Available at SSRN 1684009, 2010; ANGELOVA, Vera; ATTANASI, Giuseppe Marco; HIRIART, Yolande. Relative performance of liability rules: Experimental evidence. 2012. 13 HALBERSBERG, Yoed; GUTTEL, Ehud, p. 418-419. 14 Idem, p. 420-423.
segunda-feira, 30 de maio de 2022

Métodos de resolução de casos - Parte 1

Introdução Inauguro aqui uma série de 2 ou 3 colunas sobre métodos de solução de casos em diferentes sistemas jurídicos. A minha intenção é analisar a forma americana, alemã e brasileira de abordagem e solução de casos jurídicos. Essa série se assemelha à que meu colega de coluna Pedro Fortes desenvolveu com seus 3 textos sobre "Paradigmas Pedagógicos do Ensino Jurídico", falando sobre o estilo dos professores em Harvard, Standford e Oxford1. Comparativamente, a presente série é, por um lado, menos abrangente, pois enfoca a abordagem e resolução de casos e não todo o horizonte pedagógico dos sistemas jurídicos selecionados; por outro, é mais abrangente, pois envolve não só a experiência em universidades de países do common law, mas também no direito alemão e brasileiro. A escolha pelos modelos dos EUA, Alemanha e Brasil não é acidental. Trata-se dos 3 países nos quais tive oportunidade de pesquisar e vivenciar o ensino jurídico. Nem mesmo a ordem da análise é aleatória: iniciarei pelo modelo alemão e depois o americano, pois primeiro tive a oportunidade de pesquisar na Alemanha, durante o meu doutoramento, e, apenas depois de concluído o doutorado, estive como pesquisador visitante nos EUA. Por fim, ao tratar do modelo brasileiro, além de uma abordagem mais ampla, apresentarei a minha experiência com casos no ensino da graduação da FGV Direito Rio. Inicio, portanto, pelo modelo alemão. Grande parte do que vai ser colocado aqui é uma mescla da minha própria experiência na Universidade de Munique junto com a rica e didática explicação do jurista alemão Tilman Quarch, em artigo que escreveu para o público brasileiro sobre o sistema alemão de ensino jurídico, intitulado "Introdução a` hermenêutica do direito alemão: der Gutachtenstil", publicado pela Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 1, de 2014. Sistema alemão de ensino jurídico: foco na resolução de casos "O ensino jurídico alemão centra-se no estudo de casos." Ou, de outra maneira, pode-se dizer que "o estudo de casos desempenha função central no raciocínio jurídico alemão." Durante a graduação, um dos principais objetivos é o de que o aluno ou aluna, em face de um caso ou problema concreto, saiba determinar a sua solução à luz do direito positivo. A constatação da relação entre o caso concreto e o dispositivo legal e' tido um ofício essencial do jurista a ser lapidado. De maneira quase trivial, é possível dizer que, durante o curso, o estudante é ensinado a responder o seguinte tipo de questão: "Esse caso se enquadra no art. X da Lei Y?" A esse respeito, pela completude e qualidade, vale transcrever a seguinte descrição de Tilman Quarch: o estudo de casos desempenha função central no raciocínio jurídico alemão. Essa função se deve a` importância que os fatos têm na formação dos conceitos jurídicos: uma argumentação meramente abstrata e' tão inapta para achar soluções viáveis quanto aquela argumentação que se prende aos fatos. Isso porque o raciocínio jurídico consiste no estabelecimento de ligações entre fatos concretos e noções abstratas. Enquanto os fatos correspondem aos problemas da vida real, as instituições jurídicas representam o balanceamento dos interesses por detrás dos problemas encontrados no nível dos fatos. As instituições jurídicas são, portanto, soluções abstratas. Nelas consubstanciam-se ponderações de interesses individuais e/ou coletivos feitas pelo legislador in abstracto. [...] A verificação da ligação entre o caso concreto e a instituição abstrata e' um ofício do jurista. Usando-se palavras muito simples, poder-se-ia perguntar: "Este problema que tenho diante de mim se enquadra no tipo X da Lei XYZ?"2 Isso se deve bastante à estruturação do sistema alemão. Ao final da faculdade, o estudante se submete a provas para poder atuar na prática e essas provas são compostas essencialmente de resolução de casos práticos. Aulas e grupos de trabalho No sistema de ensino alemão, além das aulas "expositivo-teóricas", as Vorlesungen, há também os chamados grupos de trabalho, as Arbeitsgemeinschaften. Nas Vorlesungen, os estudantes têm aulas em turmas maiores com os professores catedráticos. Apesar de serem "expositivo-teo'ricas", essas aulas seriam consideradas por um jurista brasileiro como muito mais práticas do que as aulas que se tem normalmente no Brasil, uma vez que a exposição e' centrada muito menos em posicionamentos doutrinários e muito mais no acerto ou desacerto dos tribunais na aplicação da lei a` resolução de casos. Em paralelo, nas Arbeitsgemeinschaften, os alunos se dividem em grupos menores, em oficinas de resolução de casos. Esses encontros não são conduzidos pelos professores catedráticos, mas sim por assistentes (em geral doutorandos, orientandos do professor). Nessas oficinas, os alunos resolvem casos ligados ao tema da matéria que esta' sendo vista com o professor catedrático. Estilo de parecer (Gutachtenstil): os elementos Na resolução de casos, é utilizado formato de silogismo chamado de Gutachtenstil, isto é, estilo de parecer. Como bem explica Tilman Quarch, o Gutachtenstil "constitui o elemento-chave da hermenêutica alemã tal como é ensinada nas universidades e utilizada na praxe forense"3. O estilo de parecer é "essencialmente uma estrutura para a aplicação dos dois silogismos jurídicos da subsunção e da ponderação com a finalidade da solução de casos práticos."4 O Gutachtenstil pressupõe três elementos: os fatos, as leis, e as conexões entre ambos, isto é, os dois silogismos mencionados acima. Elo fundamental da cadeia de passos mentais que liga a análise dos fatos com a descrição detalhada da solução jurídica. Em uma representação quase-formal, pode-se dizer que o silogismo é composto por: (1) premissa superior (Obersatz); (2) premissa inferior (Untersatz); e (3) conclusão (Schlussfolgerung). "Preenchendo-se esse esquema com um conteúdo jurídico, obtém-se o seguinte: (1) Se A se configura em alguma das hipóteses fáticas, então vale para esse fato a consequência legal de B (A => B). (2) Os fatos específicos X configuram a hipótese fática de A, i.e., X é um 'caso' de A. (3) A X aplica-se B."5 Mais uma vez, pela qualidade e completude, vale transcrever a descrição de Tilman Quarch: O estudante alemão começa a treinar esse silogismo acima apontado desde o primeiro semestre. No centro desse treinamento está a elaboração cuidadosa das duas premissas (Obersatz e Untersatz). Estimula-se o estudante a discernir a estrutura tipificada dos dispositivos legais e a entender o raciocínio básico do "se..., então..." (wenn-dann). Além disso, o estudante é incentivado a distinguir entre fatos relevantes e fatos irrelevantes para a solução jurídica do caso concreto. Para alcançar tal objetivo, a complexidade dos casos é cada vez maior, os casos iniciais sendo muito simples. Uma ferramenta que o estudante aprende desde o início é o 'esboço do caso' (Sachverhaltsskizze), que visa a visualizar a estrutura de interesses possivelmente colidentes e a simplificar casos muito complexos (em que várias pessoas atuam ou vários negócios jurídicos se seguem).6 Solução de casos: modelo básico No parecer, define-se uma pergunta a ser respondida. Em se tratando de parecer jurídico, "a pergunta sempre concerne a` qualificação jurídica de um fato real." Normalmente, "a pergunta diz respeito diretamente ao efeito legal previsto em certo dispositivo legal"7, como: pode Daniel exigir indenização de Gustavo?  1) Premissa Na resposta, "começa-se sempre por repetir a pergunta (expressa ou implícita) colocada no final dos fatos contidos no texto da prova, parafraseando-a para já inserir a premissa inferior em forma de pergunta indireta."8 Por exemplo: se a questão for "examine, num parecer, se Daniel pode pedir indenização de Gustavo", a primeira premissa (= frase) no parecer será: "Daniel poderá pedir indenização de Gustavo se ele tiver uma pretensão de perdas e danos contra ele." 2) Requisito do fato-tipo legal O passo seguinte à formulação da premissa inferior como primeira frase do parecer é a definição dos elementos que juntos constituem o dispositivo cujo preenchimento produz o efeito jurídico desejado." Nesse momento, "ao providenciar tanto os elementos a serem definidos quanto as definições, o(a) jurista prova que conhece o sistema jurídico e que o domina porque sabe aplica'-lo."[9] Para dar um exemplo trivial com base no Código Civil brasileiro, poderíamos utilizar os art. 186 c/c 927. O art. 927 estipula a obrigação de indenizar, prevendo como requisito o cometimento de ato ilícito: "Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo." O art. 186, por sua vez, descreve uma das hipóteses de ato ilícito: "Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito." Para haver obrigação de indenizar, portanto, tem de estar presentes os seguintes 5 requisitos: 1) fato humano ("aquele que, por ação ou omissão"), 2) ilicitude ("violar direito"), 3) culpa ("voluntária, negligência ou imprudência"), 4) nexo de causalidade ("causar") e 5) dano ("dano a outrem, ainda que exclusivamente moral"). 3) Subsunção Nesse passo, analisa-se se os fatos específicos do caso configuram a hipótese/suporte fático descrito nos dispositivos identificados na premissa. Aqui que o estudante vai demonstrar se conhece os conceitos jurídicos e se sabe identificá-los em um caso concreto. Ou seja, seguindo mais uma vez o exemplo da responsabilidade civil, vai-se analisar se o comportamento de Gustavo, descrito no caso gerador, configura uma (1) ação humana, (2) ilícita, (3) culposa e (4) causadora de (5) dano. Caso positivo, haverá a obrigação de Gustavo de indenizar Daniel.  4) Conclusão O último passo é a "fixação dos resultados. Embora esse elemento coincida muitas vezes com a subsunção, vale a pena expor os resultados separadamente para cada nível importante do parecer para não se perder num caso muito complexo."10 Vantagens e desvantagens A título de conclusão, vale apresentar aqui as principais vantagens e desvantagens do modelo alemão. Em primeiro lugar, em relação às vantagens, tem-se que "o raciocínio do jurista vem sendo moldado para pensar em termos práticos. O ensino da prática forense não e', portanto, terceirizado, como ocorre no caso da universidade brasileira."11 Em segundo lugar, o formato do estilo de parecer "dá uma estrutura ao pensamento jurídico que possibilita" o fracionamento e consequente redução da complexidade de casos muito complexos. Isso gera segurança ao jurista ainda inexperiente. Ademais, "os juristas conhecem de cor o raciocínio padrão do juiz. Essa intimidade lhes permite redigir suas peças de tal maneira que haja poucos mal-entendidos entre juízes e advogados, o que facilita e acelera a tramitação do processo."12 Por outro lado, há desvantagens ou lacunas. Em primeiro lugar, "uma consiste no foco excessivo dado aos problemas que não têm tanta relevância no caso real. Depois de muitos anos de treino, torna-se difícil para o jovem jurista entender que o trabalho do advogado muitas vezes requer que se previnam problemas ou que, pelo menos, não se toque neles por razões estratégicas." Uma segunda desvantagem do mesmo gênero "e' a desconsideração da importância dos fatos para a prática forense 'real'. O jovem jurista alemão muitas vezes aceita os fatos do caso da mesma maneira que um juiz de Revision os deve aceitar."13 Por fim, vale ainda "chamar a atenção para duas lacunas que são menos nítidas que as duas anteriores". De um lado, "a atitude crítica em relação ao direito e às leis em geral" e, de outro, "a escassez do ensino do direito comparado." Com explica Quarch, "ambas as lacunas se devem ao tempo e a` importância que o sistema educacional dedica ao aprendizado dos métodos hermenêuticos e do aperfeiçoamento contínuo da sua aplicação ao direito (alemão) vigente." Por conta disso, "o questionamento da lex lata com base na filosofia do direito, na sociologia, na economia etc. e' algo que muitas vezes só ocorre no momento do doutorado ou de outra pós-graduação." Da mesma forma, "a natureza quase que 'hermética' do direito alemão - e a impossibilidade de aplicar o cânone metodológico alemão tel quel no direito estrangeiro - faz com que o ensino alemão não dê espaço para o aluno ocupar-se com o direito estrangeiro." __________ 1 Para acessá-los, basta clicar nos seguintes links: Harvard e os professores socráticos, Stanford e os professores científicos, Oxford e os professores analíticos. 2 Tilman Quarch. Introdução a` hermenêutica do direito alemão: der Gutachtenstil. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 1, p. 251-285, out.-dez. 2014. 3 QUARCH, Introdução à hermenêutica do direito alemão, cit. 4 QUARCH, Introdução à hermenêutica do direito alemão, cit. 5 QUARCH, Introdução à hermenêutica do direito alemão, cit. 6 QUARCH, Introdução à hermenêutica do direito alemão, cit. 7 QUARCH, Introdução à hermenêutica do direito alemão, cit. 8 QUARCH, Introdução à hermenêutica do direito alemão, cit. 9 QUARCH, Introdução à hermenêutica do direito alemão, cit. 10 QUARCH, Introdução à hermenêutica do direito alemão, cit. 11 QUARCH, Introdução à hermenêutica do direito alemão, cit. 12 QUARCH, Introdução à hermenêutica do direito alemão, cit. 13 QUARCH, Introdução à hermenêutica do direito alemão, cit.
Introdução Causou impacto na imprensa internacional a notícia de que a cantora Jennifer Lopez, 52, e o ator Ben Affleck, 49, anunciaram seu casamento no início de abril. Noivos pela segunda vez, eles voltaram a ser assunto dos tablóides não apenas pela retomada do relacionamento após 20 anos, mas sobretudo pela inserção de uma curiosa cláusula no acordo pré-nupcial. Segundo o jornal espanhol La Vanguardia, uma das obrigações conjugais firmadas entre os dois é a frequência de, no mínimo, quatro relações sexuais por semana.1 Em outro caso mais antigo (meados dos anos 2000) e bastante conhecido, a atriz Catherine Zeta-Jones condicionou a oficialização da união com o ator Michael Douglas à submissão do noivo ao tratamento de um distúrbio ninfomaníaco. O descumprimento dessa promessa implicaria na aplicação de multa de US$ 5 milhões. Ficou acertado, ainda, que Zeta-Jones ganharia US$ 1,6 milhão a cada ano completo de casamento, devendo receber, em caso de   divórcio, um total de aproximadamente US$ 20 milhões.2 A união conjugal entre a atriz Nicole Kidman e o cantor e compositor Keith Urban também se notabilizou pelas condições do pacto pré-nupcial. O cantor country sofreu com os vícios do álcool e da cocaína, tendo sido internado diversas vezes em clínicas de reabilitação. Por conta disso, Kidman exigiu que constasse do acordo pré-nupcial cláusula proibindo o marido de usar qualquer tipo de droga ilícita, sob pena de, em caso de recaída nos referidos vícios, ocorrer a imediata ruptura da relação conjugal, sem qualquer direito a benefício financeiro sobre o patrimônio da esposa. No referido contrato, Kidman ainda prometeu ao marido, um "prêmio" de US$ 600 mil por ano, caso ele conseguisse ficar sóbrio e não levar outras mulheres para a cama.3 A despeito de toda a espetacularização que esses casos renderam no mundo do showbiz, eles não deixam de simbolizar a cultura dos acordos pré-nupciais no sistema da common law, retratando uma peculiar forma de exercício da autonomia privada à qual o mundo da civil law não está habituado, e que extrapola, em muito, supostas balizas previstas no ordenamento jurídico brasileiro. Cultura norte-americana dos acordos pré-nupciais Culturalmente enraizado no direito norte-americano, o acordo pré-nupcial (pre-marital agreement) consubstancia-se em um documento redigido pelas partes envolvidas, sendo possível a sua elaboração mesmo depois do casamento (post-marital agreement). Os interessados podem redigir primeiramente um esboço do acordo pré-nupcial antes de submetê-lo a um advogado especialista, ou desenhar um modelo específico de acordo juntamente com o seu(s) representante(s), com vistas à segurança, validade e eficácia da avença. Pode ser escolhido apenas um representante para as partes envolvidas, ou podem elas ser representadas por advogados diferentes, garantindo que seus interesses sejam totalmente protegidos e não comprometidos por possíveis conflitos de interesse.4 Na maior parte dos Estados norte-americanos são admitidas cláusulas pré-nupciais versando sobre os mais variados assuntos, não se limitando a aspectos patrimoniais resultantes da união conjugal pretendida. Dessa forma, não são incomuns cláusulas regulando, desde a rotina doméstica, até questões mais complexas a respeito dos deveres conjugais. Como explica Maria Rita XAVIER, "os contratos antenupciais celebrados em numerosos Estados dos Estados Unidos são pródigos em cláusulas que concretizam os deveres dos cônjuges. Os autores descrevem cláusulas sobre a distribuição de tarefas no lar, sobre o exercício de profissões, sobre a frequência de relações sexuais, sobre práticas religiosas, sobre animais de estimação, sobre o local de residência, etc."5 Assim, o acordo pré-nupcial nos EUA pode regular desde o gerenciamento de contas bancárias conjuntas com o futuro cônjuge, passando por orientações a respeito de como lidar com declarações de impostos e contas domésticas, como fazer pagamentos com cartão de crédito ou quanto dinheiro deverá ser economizado pelo casal. A cultura dos acordos pré-nupciais no direito norte-americano muito se explica pela clareza financeira que esse tipo de arranjo pode proporcionar. Um acordo pré-nupcial bem desenhado pode evitar ou reduzir conflitos derivados do fim do relacionamento conjugal. Isso porque, na hipótese de inexistir um acordo pré-nupcial, o patrimônio do casal será dividido de acordo com as leis de cada Estado - o que pode desinteressar as partes envolvidas. A lei do Estado em que um casal se divorcia determina exatamente como o patrimônio será distribuído, em caso de conflito, pelo Poder Judiciário. Nesse sentido, os Estados norte-americanos geralmente adotam dois sistemas: o sistema da community property e o sistema da equitable distribution. Nos Estados de community property, (Arizona, California, Idaho, Louisiana, Nevada, New Mexico, Texas, Washington, Wisconsin), qualquer bem adquirido durante o casamento é geralmente considerado propriedade conjugal a ser dividida igualmente. Assim, primeiramente o Tribunal decidirá acerca das categorias de bens: comuns e particulares e, tudo que for classificado como bem comum, será dividido igualmente entre os cônjuges.6 Já o sistema da equitable distribution é o mais utilizado, sendo aplicado em 40 estados norte-americanos. Nesse caso, os Tribunais distribuem todos os ganhos, bens pessoais e dívidas entre os cônjuges, mediante divisão que seja considerada justa (aos olhos do juiz), mas não necessariamente igual. Em contraste com os Estados de community property, onde os bens particulares são reservados exclusivamente para o cônjuge que os possui, nos Estados de equitable distribution é possível que o juiz determine que um dos cônjuges compartilhe alguns de seus bens particulares com o intuito de tornar justa a divisão.7 Os acordos pré-nupciais podem versar não apenas sobre os bens que cada cônjuge possui, mas também sobre as suas dívidas. Isso significa que cada cônjuge pode vir a ser protegido da responsabilidade pelas dívidas do outro cônjuge. Casais com filhos de casamentos anteriores podem usar um acordo pré-nupcial para garantir que possam deixar seus bens separados para eles quando falecerem.8 Um acordo pré-nupcial, ainda, permite que sejam mantidos certos bens considerados importantes na família, tornando-os insuscetíveis de qualquer negociação. Às vezes, uma preciosa herança de família terá sido passada de geração em geração, adquirindo um significado pessoal muito além de seu valor de mercado. De todo modo, diante da inexistência de um acordo pré-nupcial, os meios de resolução extrajudicial de conflitos sempre é a alternativa mais utilizada quando da dissolução da sociedade conjugal. Dentre os mecanismos de alternative dispute resolution, destacam-se, no sistema norte-americano, a resolução de disputas conjugais pela avaliação neutra de terceiro e pela intervenção de um mediador9, sem a necessidade de se recorrer à assistência de um Tribunal. Limites Mesmo no sistema de justiça norte-americano, há limites para os acordos pré-nupciais. Ainda que a autonomia privada seja fortemente reconhecida, os ajustes concernentes ao regime patrimonial, por exemplo, não podem prejudicar legítimos interesses de membros da família. Dessa forma, os acordos pré-nupciais não podem impor restrições à pensão alimentícia, à guarda dos filhos ou a quaisquer outros direitos relativos aos filhos de uma relação conjugal que chega ao fim. Antes de um Tribunal dar cumprimento a um acordo pré-nupcial, ele procurará determinar se o pacto é escrito, claro e justo. O Tribunal considerará muitos fatores, incluindo a necessidade de as partes divulgaram adequadamente suas finanças, serem representadas por um advogado e avençarem voluntariamente o acordo, sem qualquer coação. O Tribunal também analisará os termos do acordo para ver se as obrigações nele inseridas são justas e não unilaterais ou inconcebíveis.10 Em regra, o acordo pré-nupcial deve se ater essencialmente a arranjos financeiros, mas sem desconsiderar efeitos reflexos que interferirão diretamente nas relações conjugais. Assim, o pacto antenupcial não deve se estender às relações com outros membros da família, suas decisões sobre se e quando ter filhos, ou quem deve fazer certas tarefas. Nesse sentido, muitas das cláusulas pré-nupciais que estabelecem obrigações conjugais extrapatrimoniais têm sido consideradas inválidas pelos Tribunais, como, por exemplo, "as relativas à frequência das relações sexuais ou as respeitantes aos filhos de anterior casamento, por hipótese, proibindo-os de viverem com os actuais nubentes". Por outro lado, os Tribunais americanos têm admitido que "as partes se comprometam a educar os futuros filhos segundo uma determinada religião."11 O pacto antenupcial no Brasil No Brasil, ao menos até alguns anos atrás, não existia uma cultura de pactos antenupciais. Em que pese a necessidade de elaboração do acordo quando da escolha do regime diverso do atual modelo regra (isto é, o da comunhão parcial), os nubentes se limitavam a seguir fielmente as regras estabelecidas pelo Código Civil. No entanto, gradativamente se percebe uma mudança nesse cenário, na medida em que são assimiladas as vantagens da elaboração de um pacto pré-nupcial em consonância com o perfil e as necessidades dos envolvidos.12 Para que possa parametrizar o sentido e o alcance do pacto antenupcial é preciso compreender, preliminarmente, a sua natureza jurídica. A depender da concepção do que realmente venha a constituir juridicamente referida avença, é possível sustentar uma maior ou menor amplitude das cláusulas nela inseridas - eventualmente, até, versando sobre obrigações extrapatrimoniais. Por um lado, alguns autores defendem que o pacto antenupcial seria um verdadeiro contrato.13 Por outro lado, há na doutrina quem sustente se tratar de um negócio jurídico de direito de família.14 Nesse contexto, a partir da interpretação da natureza jurídica, especula-se a respeito dos limites do pacto antenupcial no direito brasileiro, suscitando-se na doutrina as seguintes possibilidades: i) as cláusulas previstas no pacto devem se ater estritamente ao espectro dos regimes de bens escolhido;15ii) seria possível a previsão de cláusulas de conteúdo patrimonial, consagrando outros temas que não estritamente regras atinentes ao regime de bens;16iii) seria possível a adoção de cláusulas de conteúdo extrapatrimonial no pacto antenupcial.17 Na verdade, o pano de fundo dessa discussão possui estreita conexão com os limites da interferência do Poder Público nas relações interprivadas: até que ponto a autonomia da vontade dos nubentes deve prevalecer em matéria de pactos antenupciais? A ingerência do Estado nas relações interpessoais, não obstante fundamentada na suposta proteção e na manutenção da ordem pública e dos bons costumes, pode e deve ser continuamente repensada, a partir da necessidade de acomodar os diversos fatores de pressão envolvidos e de afirmar a adequada proteção dos direitos da pessoa. Como afirmam Bodin de Moraes e Multedo, "a privatização das relações   conjugais e convivenciais permite que as pessoas estabeleçam as próprias regras de convivência, evitando-se, assim, intervencionismo injustificado e desnecessário, salvaguardando-se a intervenção somente para as situações patológicas. (...) Nesse aspecto, a atuação estatal deve ser balizada pelos limites de uma "reserva de intimidade", de forma a promover os princípios constitucionais, somente intervindo efetivamente mediante solicitação judicial por parte dos próprios cônjuges, se impossível a solução de conflitos internos da relação conjugal."18 Não há como negar a fratura existente entre as necessidades impostas pela vida social do século XXI e o modelo estrutural das relações jurídicas tradicionais. O Direito Civil contemporâneo é marcado pela relativização e fragmentação conceitual, sobretudo em razão da gradativa e dinâmica alteração da estrutura dos conceitos jurídicos, oriunda do modo de ser da sociedade atual, a reclamar pela funcionalização conceitual em busca da concretização da igualdade substancial. Diante disso, a revisão de certos institutos jurídicos - tal como o pacto antenupcial - torna-se não apenas viável, mas necessária. Somente mediante uma tal releitura parece ser possível sustentar a previsão de cláusulas de conteúdo extrapatrimonial nos pactos antenupciais, desde que não ofendam os princípios basilares do Direito das Famílias. De toda forma, parece certo que qualquer obrigação estabelecida pelo pacto antenupcial (de conteúdo patrimonial ou extrapatrimonial) sempre será submetida a um controle da licitude, tendo como grande parâmetro a salvaguarda do subjetivo valor inerente à "ordem pública" e a preservação das entidades familiares. Daí que, exemplificativamente, por contrariarem o ordenamento jurídico, algumas disposições impositivas de obrigações não-patrimoniais seriam invariavelmente consideradas nulas, tal como aquelas que definem previamente que a guarda de futura prole seja exercida por um dos cônjuges, em detrimento do outro, em caso de divórcio. Contudo, a análise da validade de toda e qualquer cláusula deve ser realizada à luz do caso concreto, sendo certo que a limitação genérica de conteúdo do pacto antenupcial à estrita definição do regime de bens não observa os princípios da autonomia privada, da intimidade e do livre planejamento familiar, indo de encontro ao Direito das Famílias contemporâneo. _____ 1 Jennifer López y la curiosa cláusula en su acuerdo matrimonial con Ben Affleck. Disponível aqui.  2 Informações disponíveis aqui.  3 Idem. 4 Pre-Marital and Post-Marital Agreements. Disponível aqui. 5 XAVIER, Maria Rita. Limites à autonomia privada na disciplina das relações patrimoniais entre os cônjuges. Lisboa: Livraria Almedina - Coimbra, 2000, p. 509-510. 6 Alaska, South Dakota e Tennessee (allow spouses to opt into a community property framework if they meet certain requirements, which vary by state). "Community property is an alternative system of dividing property. Although only about 10 states and Puerto Rico follow the community property system, it is the method of property division in some of the nation's most populous states, such as California and Texas. Before dividing the property, the court will decide whether each item should be classified as community property or as the separate property of one spouse. Then, everything that is classified as community property is divided equally between the spouses, while each spouse keeps all of his or her separate property". Community Property vs. Equitable Distribution Divorce. Disponível em https://www.justia.com/family/divorce/dividing-money-and-property/community-property-vs-equitable-distribution-divorce/.  7 Dividing Money and Property in Divorce. Disponível aqui.  8 Pre-Marital and Post-Marital Agreements. Disponível aqui.  9  Divorce Mediation. Disponível aqui.  10 Pre-Marital and Post-Marital Agreements. Disponível aqui. 11 XAVIER, Maria Rita. Limites à autonomia privada na disciplina das relações patrimoniais entre os cônjuges. Lisboa: Livraria Almedina - Coimbra, 2000, p. 509-510. 12 Há um aumento expressivo no número de pactos antenupciais lavrados no país. Nesse sentido, consultar Sistema do Colégio Notarial do Brasil. Disponível aqui.  13 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direito de família, v. 5, 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 208; RODRIGUES, Silvio. Direito civil: Direito de família, v. 6, 28. ed, São Paulo, Saraiva, 2004, p. 137; SIMÃO, José Fernando; TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Direito de Família, v. 5, 8ª ed. São Paulo: Método, 2013, p. 123. 14 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Código Civil comentado, in: AZEVEDO, Álvaro Villaça. Código Civil comentado, v. XVI, São Paulo: Atlas, 2003, p. 270; GOZZO, Débora. Pacto Antenupcial, São Paulo: Saraiva, 1992, p. 36. 15 Nesse sentido: DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 29ª ed. São Paulo: Saraiva, 2014. Vol. 5, p. 176 e GOMES, Orlando. Direito de família. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 167-169. 16 Nesse sentido: FACHIN, Luiz Edson. Direito de família: elementos críticos à luz do Código Civil brasileiro, cit., p. 187, e MADALENO, Rolf. Direito de família. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 217.  17 Nesse sentido: DIAS, Maria Berenice Dias. Manual do Direito das Famílias. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2017, p. 331; TEPEDINO, Gustavo.  Temas de direito civil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p.15 e ROSENVALD, Nelson e FARIAS, Cristiano Chaves. Curso de direito civil: famílias. Vol. 6. 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2015, p, 315. 18 MULTEDO, Renata Vilela; BODIN DE MORAES, Maria Celina. A privatização do casamento. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 5, n. 2, 2016. Disponível aqui. Consultar, ainda, BROCHADO, Ana Carolina. Resenha à obra "Liberdade e Família: Limites para a intervenção do Estado nas relações conjugais e parentais", de Renata Vilela Multedo. Civilistica.com, a. 6, n. 2, 2017.