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Métodos de resolução de casos - Parte 1

segunda-feira, 30 de maio de 2022

Atualizado às 07:42

Introdução

Inauguro aqui uma série de 2 ou 3 colunas sobre métodos de solução de casos em diferentes sistemas jurídicos. A minha intenção é analisar a forma americana, alemã e brasileira de abordagem e solução de casos jurídicos.

Essa série se assemelha à que meu colega de coluna Pedro Fortes desenvolveu com seus 3 textos sobre "Paradigmas Pedagógicos do Ensino Jurídico", falando sobre o estilo dos professores em Harvard, Standford e Oxford1. Comparativamente, a presente série é, por um lado, menos abrangente, pois enfoca a abordagem e resolução de casos e não todo o horizonte pedagógico dos sistemas jurídicos selecionados; por outro, é mais abrangente, pois envolve não só a experiência em universidades de países do common law, mas também no direito alemão e brasileiro.

A escolha pelos modelos dos EUA, Alemanha e Brasil não é acidental. Trata-se dos 3 países nos quais tive oportunidade de pesquisar e vivenciar o ensino jurídico. Nem mesmo a ordem da análise é aleatória: iniciarei pelo modelo alemão e depois o americano, pois primeiro tive a oportunidade de pesquisar na Alemanha, durante o meu doutoramento, e, apenas depois de concluído o doutorado, estive como pesquisador visitante nos EUA. Por fim, ao tratar do modelo brasileiro, além de uma abordagem mais ampla, apresentarei a minha experiência com casos no ensino da graduação da FGV Direito Rio.

Inicio, portanto, pelo modelo alemão. Grande parte do que vai ser colocado aqui é uma mescla da minha própria experiência na Universidade de Munique junto com a rica e didática explicação do jurista alemão Tilman Quarch, em artigo que escreveu para o público brasileiro sobre o sistema alemão de ensino jurídico, intitulado "Introdução a` hermenêutica do direito alemão: der Gutachtenstil", publicado pela Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 1, de 2014.

Sistema alemão de ensino jurídico: foco na resolução de casos

"O ensino jurídico alemão centra-se no estudo de casos." Ou, de outra maneira, pode-se dizer que "o estudo de casos desempenha função central no raciocínio jurídico alemão." Durante a graduação, um dos principais objetivos é o de que o aluno ou aluna, em face de um caso ou problema concreto, saiba determinar a sua solução à luz do direito positivo. A constatação da relação entre o caso concreto e o dispositivo legal e' tido um ofício essencial do jurista a ser lapidado. De maneira quase trivial, é possível dizer que, durante o curso, o estudante é ensinado a responder o seguinte tipo de questão: "Esse caso se enquadra no art. X da Lei Y?"

A esse respeito, pela completude e qualidade, vale transcrever a seguinte descrição de Tilman Quarch:

o estudo de casos desempenha função central no raciocínio jurídico alemão. Essa função se deve a` importância que os fatos têm na formação dos conceitos jurídicos: uma argumentação meramente abstrata e' tão inapta para achar soluções viáveis quanto aquela argumentação que se prende aos fatos. Isso porque o raciocínio jurídico consiste no estabelecimento de ligações entre fatos concretos e noções abstratas. Enquanto os fatos correspondem aos problemas da vida real, as instituições jurídicas representam o balanceamento dos interesses por detrás dos problemas encontrados no nível dos fatos. As instituições jurídicas são, portanto, soluções abstratas. Nelas consubstanciam-se ponderações de interesses individuais e/ou coletivos feitas pelo legislador in abstracto.

[...]

A verificação da ligação entre o caso concreto e a instituição abstrata e' um ofício do jurista. Usando-se palavras muito simples, poder-se-ia perguntar: "Este problema que tenho diante de mim se enquadra no tipo X da Lei XYZ?"2

Isso se deve bastante à estruturação do sistema alemão. Ao final da faculdade, o estudante se submete a provas para poder atuar na prática e essas provas são compostas essencialmente de resolução de casos práticos.

Aulas e grupos de trabalho

No sistema de ensino alemão, além das aulas "expositivo-teóricas", as Vorlesungen, há também os chamados grupos de trabalho, as Arbeitsgemeinschaften.

Nas Vorlesungen, os estudantes têm aulas em turmas maiores com os professores catedráticos. Apesar de serem "expositivo-teo'ricas", essas aulas seriam consideradas por um jurista brasileiro como muito mais práticas do que as aulas que se tem normalmente no Brasil, uma vez que a exposição e' centrada muito menos em posicionamentos doutrinários e muito mais no acerto ou desacerto dos tribunais na aplicação da lei a` resolução de casos.

Em paralelo, nas Arbeitsgemeinschaften, os alunos se dividem em grupos menores, em oficinas de resolução de casos. Esses encontros não são conduzidos pelos professores catedráticos, mas sim por assistentes (em geral doutorandos, orientandos do professor). Nessas oficinas, os alunos resolvem casos ligados ao tema da matéria que esta' sendo vista com o professor catedrático.

Estilo de parecer (Gutachtenstil): os elementos

Na resolução de casos, é utilizado formato de silogismo chamado de Gutachtenstil, isto é, estilo de parecer. Como bem explica Tilman Quarch, o Gutachtenstil "constitui o elemento-chave da hermenêutica alemã tal como é ensinada nas universidades e utilizada na praxe forense"3.

O estilo de parecer é "essencialmente uma estrutura para a aplicação dos dois silogismos jurídicos da subsunção e da ponderação com a finalidade da solução de casos práticos."4

O Gutachtenstil pressupõe três elementos: os fatos, as leis, e as conexões entre ambos, isto é, os dois silogismos mencionados acima. Elo fundamental da cadeia de passos mentais que liga a análise dos fatos com a descrição detalhada da solução jurídica.

Em uma representação quase-formal, pode-se dizer que o silogismo é composto por: (1) premissa superior (Obersatz); (2) premissa inferior (Untersatz); e (3) conclusão (Schlussfolgerung). "Preenchendo-se esse esquema com um conteúdo jurídico, obtém-se o seguinte: (1) Se A se configura em alguma das hipóteses fáticas, então vale para esse fato a consequência legal de B (A => B). (2) Os fatos específicos X configuram a hipótese fática de A, i.e., X é um 'caso' de A. (3) A X aplica-se B."5

Mais uma vez, pela qualidade e completude, vale transcrever a descrição de Tilman Quarch:

O estudante alemão começa a treinar esse silogismo acima apontado desde o primeiro semestre. No centro desse treinamento está a elaboração cuidadosa das duas premissas (Obersatz e Untersatz). Estimula-se o estudante a discernir a estrutura tipificada dos dispositivos legais e a entender o raciocínio básico do "se..., então..." (wenn-dann). Além disso, o estudante é incentivado a distinguir entre fatos relevantes e fatos irrelevantes para a solução jurídica do caso concreto. Para alcançar tal objetivo, a complexidade dos casos é cada vez maior, os casos iniciais sendo muito simples. Uma ferramenta que o estudante aprende desde o início é o 'esboço do caso' (Sachverhaltsskizze), que visa a visualizar a estrutura de interesses possivelmente colidentes e a simplificar casos muito complexos (em que várias pessoas atuam ou vários negócios jurídicos se seguem).6

Solução de casos: modelo básico

No parecer, define-se uma pergunta a ser respondida. Em se tratando de parecer jurídico, "a pergunta sempre concerne a` qualificação jurídica de um fato real." Normalmente, "a pergunta diz respeito diretamente ao efeito legal previsto em certo dispositivo legal"7, como: pode Daniel exigir indenização de Gustavo? 

1) Premissa

Na resposta, "começa-se sempre por repetir a pergunta (expressa ou implícita) colocada no final dos fatos contidos no texto da prova, parafraseando-a para já inserir a premissa inferior em forma de pergunta indireta."8 Por exemplo: se a questão for "examine, num parecer, se Daniel pode pedir indenização de Gustavo", a primeira premissa (= frase) no parecer será: "Daniel poderá pedir indenização de Gustavo se ele tiver uma pretensão de perdas e danos contra ele."

2) Requisito do fato-tipo legal

O passo seguinte à formulação da premissa inferior como primeira frase do parecer é a definição dos elementos que juntos constituem o dispositivo cujo preenchimento produz o efeito jurídico desejado." Nesse momento, "ao providenciar tanto os elementos a serem definidos quanto as definições, o(a) jurista prova que conhece o sistema jurídico e que o domina porque sabe aplica'-lo."[9]

Para dar um exemplo trivial com base no Código Civil brasileiro, poderíamos utilizar os art. 186 c/c 927. O art. 927 estipula a obrigação de indenizar, prevendo como requisito o cometimento de ato ilícito: "Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo." O art. 186, por sua vez, descreve uma das hipóteses de ato ilícito: "Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito."

Para haver obrigação de indenizar, portanto, tem de estar presentes os seguintes 5 requisitos: 1) fato humano ("aquele que, por ação ou omissão"), 2) ilicitude ("violar direito"), 3) culpa ("voluntária, negligência ou imprudência"), 4) nexo de causalidade ("causar") e 5) dano ("dano a outrem, ainda que exclusivamente moral").

3) Subsunção

Nesse passo, analisa-se se os fatos específicos do caso configuram a hipótese/suporte fático descrito nos dispositivos identificados na premissa. Aqui que o estudante vai demonstrar se conhece os conceitos jurídicos e se sabe identificá-los em um caso concreto.

Ou seja, seguindo mais uma vez o exemplo da responsabilidade civil, vai-se analisar se o comportamento de Gustavo, descrito no caso gerador, configura uma (1) ação humana, (2) ilícita, (3) culposa e (4) causadora de (5) dano. Caso positivo, haverá a obrigação de Gustavo de indenizar Daniel. 

4) Conclusão

O último passo é a "fixação dos resultados. Embora esse elemento coincida muitas vezes com a subsunção, vale a pena expor os resultados separadamente para cada nível importante do parecer para não se perder num caso muito complexo."10

Vantagens e desvantagens

A título de conclusão, vale apresentar aqui as principais vantagens e desvantagens do modelo alemão. Em primeiro lugar, em relação às vantagens, tem-se que "o raciocínio do jurista vem sendo moldado para pensar em termos práticos. O ensino da prática forense não e', portanto, terceirizado, como ocorre no caso da universidade brasileira."11 Em segundo lugar, o formato do estilo de parecer "dá uma estrutura ao pensamento jurídico que possibilita" o fracionamento e consequente redução da complexidade de casos muito complexos. Isso gera segurança ao jurista ainda inexperiente. Ademais, "os juristas conhecem de cor o raciocínio padrão do juiz. Essa intimidade lhes permite redigir suas peças de tal maneira que haja poucos mal-entendidos entre juízes e advogados, o que facilita e acelera a tramitação do processo."12

Por outro lado, há desvantagens ou lacunas. Em primeiro lugar, "uma consiste no foco excessivo dado aos problemas que não têm tanta relevância no caso real. Depois de muitos anos de treino, torna-se difícil para o jovem jurista entender que o trabalho do advogado muitas vezes requer que se previnam problemas ou que, pelo menos, não se toque neles por razões estratégicas." Uma segunda desvantagem do mesmo gênero "e' a desconsideração da importância dos fatos para a prática forense 'real'. O jovem jurista alemão muitas vezes aceita os fatos do caso da mesma maneira que um juiz de Revision os deve aceitar."13

Por fim, vale ainda "chamar a atenção para duas lacunas que são menos nítidas que as duas anteriores". De um lado, "a atitude crítica em relação ao direito e às leis em geral" e, de outro, "a escassez do ensino do direito comparado." Com explica Quarch, "ambas as lacunas se devem ao tempo e a` importância que o sistema educacional dedica ao aprendizado dos métodos hermenêuticos e do aperfeiçoamento contínuo da sua aplicação ao direito (alemão) vigente." Por conta disso, "o questionamento da lex lata com base na filosofia do direito, na sociologia, na economia etc. e' algo que muitas vezes só ocorre no momento do doutorado ou de outra pós-graduação." Da mesma forma, "a natureza quase que 'hermética' do direito alemão - e a impossibilidade de aplicar o cânone metodológico alemão tel quel no direito estrangeiro - faz com que o ensino alemão não dê espaço para o aluno ocupar-se com o direito estrangeiro."

__________

1 Para acessá-los, basta clicar nos seguintes links: Harvard e os professores socráticos, Stanford e os professores científicos, Oxford e os professores analíticos.

2 Tilman Quarch. Introdução a` hermenêutica do direito alemão: der Gutachtenstil. Revista de Direito Civil Contemporâneo. vol. 1, p. 251-285, out.-dez. 2014.

3 QUARCH, Introdução à hermenêutica do direito alemão, cit.

4 QUARCH, Introdução à hermenêutica do direito alemão, cit.

5 QUARCH, Introdução à hermenêutica do direito alemão, cit.

6 QUARCH, Introdução à hermenêutica do direito alemão, cit.

7 QUARCH, Introdução à hermenêutica do direito alemão, cit.

8 QUARCH, Introdução à hermenêutica do direito alemão, cit.

9 QUARCH, Introdução à hermenêutica do direito alemão, cit.

10 QUARCH, Introdução à hermenêutica do direito alemão, cit.

11 QUARCH, Introdução à hermenêutica do direito alemão, cit.

12 QUARCH, Introdução à hermenêutica do direito alemão, cit.

13 QUARCH, Introdução à hermenêutica do direito alemão, cit.