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Paradigmas pedagógicos do ensino jurídico: Harvard e os professores socráticos

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Atualizado às 08:01

Introdução: Um tributo aos professores

A presente coluna é publicada na segunda-feira dia 18 de outubro de 2021, mas seu texto é sempre fechado na sexta-feira anterior, ou seja, no caso do presente texto, no dia 15 de outubro de 2021, em que se comemora no Brasil o dia dos professores. Nesse contexto, o texto é um tributo aos professores que tive ao longo de minha formação na academia anglo-americana. Além da homenagem, existe também uma reflexão sobre os paradigmas pedagógicos do ensino jurídico. A pergunta que sempre me fazem é a seguinte: qual é a melhor faculdade de direito? Harvard ou Stanford? Depois de eu ter concluído o doutorado em Oxford em 2017, perguntam se é melhor estudar nos Estados Unidos ou na Inglaterra e se Oxford é melhor do que Harvard e Stanford? A única resposta possível é que não existe melhor ou pior quando se trata de Harvard, Stanford e Oxford. São instituições de alto nível e que fazem sentido conforme os objetivos educacionais, os aprendizados pretendidos e os projetos acadêmicos de cada pessoa. Contudo, existem paradigmas adotados e modelos de professores que fizeram parte da minha experiência em Harvard, Stanford e Oxford: os professores socráticos, científicos e analíticos. O presente artigo se refere ao paradigma dos professores socráticos a partir da minha experiência no Master of Laws (LL.M) na Harvard Law School. Aproveito para homenagear meus professores e todos os professores de direito pela sua contribuição para a excelência do ensino jurídico dentre nós. Parabéns!

O Paradigma da Harvard Law School: Os orofessores socráticos

A tradição de ensino da Harvard Law School é identificada com o método de estudo de caso desde o final do século XIX, quando o Diretor da Faculdade de Direito, Professor Christopher Columbus Langdell, fez uma ampla reforma curricular e pedagógica, estabelecendo as disciplinas de 'Contratos', 'Propriedade', 'Responsabilidade Civil', 'Direito Processual' e 'Direito Penal' como parte obrigatória do currículo do primeiro ano do curso de direito e substituindo o estilo antigo de aulas-conferência pelo novo método pedagógico que exigia um nível maior de engajamento e de interação entre os professores e os estudantes.1 Como Professor de Contratos, o Professor Langdell editou em 1871 o primeiro livro de casos de contratos,2 sendo que abria o seu curso com uma breve exposição sobre a natureza do contrato e, em seguida, convocava um dos seus estudantes para apresentar o caso Payne v. Cave - o primeiro de uma ampla coleção de casos especialmente selecionados para lecionar a matéria.3 Tal método de casos se tornou um paradigma para o ensino jurídico nos Estados Unidos ao longo do século XX e a postura socrática dos professores se caracterizava como uma atitude de questionamento dos estudantes sobre os aspectos fáticos dos casos e as questões jurídicas que poderiam ser extraídas e discutidas de modo sistemático.

No ano de 2006, quando minha classe ingressou no curso de Master of Laws (LL.M.), dizia-se que o método socrático estaria em declínio na Harvard Law School.4 Na semana de ambientação, foi programada uma sessão com a nossa turma para assistir ao filme 'Legalmente Loira' ('Legally Blonde'), uma comédia em que uma jovem estudante ingressa na Faculdade de Direito e é exposta ao ambiente extremamente competitivo da Harvard Law School. Em seu primeiro dia de aula, a personagem Elle Woods, vivida por Reese Whiterspoon, é chamada para explicar o caso Gordon v. Steele, como ponto de partida para a aula sobre responsabilidade civil e se sente humilhada pela dificuldade em liderar a discussão sobre o precedente relativo ao erro médico logo no início do seu curso de direito.5 Fomos informados que a equipe do filme tinha feito pesquisas para a composição das personagens no campus da Faculdade de Direito e que a Professora Elizabeth Warren teria servido de inspiração para a construção da personagem Professora Stromwell, vivida pela grande atriz Holland Taylor, e que serve de inspiração para que a estudante Elle Woods supere seus desafios e se torne uma advogada bem sucedida.

Também na semana de ambientação, a então Professora e atual Senadora Elizabeth Warren nos deu uma aula de demonstração sobre o método socrático, sendo que tínhamos recebido um material com casos pré-selecionados e deveríamos nos apresentar para a aula preparados para a apresentação dos fatos do caso e para a discussão jurídica. A aula socrática foi extremamente interessante e rica como um exercício de análise indutiva e de discutir as variáveis de um caso concreto, a partir das regras aplicáveis e dos princípios jurídicos, bem como de expectativas sobre o comportamento que poderiam ter sido adotados pelas partes na controvérsia. Por outro lado, fomos informados que talvez não teríamos aulas semelhantes, na medida em que os cursos do primeiro ano é que mantém a estrutura mais tradicional do método de casos e em que os professores mantém uma postura socrática mais clássica. Aliás, os desafios do primeiro ano da Faculdade de Direito de Harvard também são descritos pelo escritor Scott Turow em seu livro One L: The Turbulent True Story of a First Year at Harvard Law School.6

De fato, como não tive aulas do currículo de primeiro ano, não tive a experiência do método socrático clássico, de ser chamado friamente para apresentar um caso com todas as suas peculiaridades e de extrair indutivamente a análise jurídica em diálogo com o professor. Contudo, embora seja mitigado nos demais cursos e na metodologia dos demais professores, o espírito do método socrático permeia a experiência acadêmica da Harvard Law School. No curso de 'American Constitutional Law', com o Professor Laurence Tribe, por exemplo, a matéria é trabalhada a partir dos casos e existem recomendações de leitura prévia de precedentes judiciais, artigos acadêmicos e do Casebook. No curso de 'Comparative Constitutional Law', a seu turno, embora o enfoque do Professor Frank Michelman fosse na jurisprudência sul-africana, a estrutura do curso também era pautada por uma coleção de casos e de textos acadêmicos com a disposição antecipada de conteúdo para fins de debate. Embora as aulas tivessem uma estrutura mais tradicional de conferência, existia oportunidade para debate e para a discussão crítica, com questionamentos, comentários e análises pelos estudantes dos materiais previamente compartilhados.

Mesmo nos cursos que não eram estruturados em torno de casos - Legal Theory com Roberto Mangabeira Unger, International Human Rights com James Cavallaro, International Law Workshop com William Alford e Ryan Goodman, e Talking About Taboo Subjects com Allan Dershowitz - eram caracterizados por alta competitividade entre os estudantes e por um debate de alta intensidade, em que críticas internas ao argumento apresentado eram esperadas e mesmo estimuladas. Um amigo professor também formado pela Harvard Law School chega a comparar a experiência com uma luta de Ultimate Fight Championship (UFC), evocando a figura do octógono para se referir às salas de aula e a possibilidade de que o seu argumento seja desconstruído por várias disciplinas com a analogia de que o bom debatedor precisa dominar as várias artes argumentativas, assim como o bom lutador precisa enfrentar as várias artes marciais. De fato, os termos do debate na Harvard Law School podem combinar direito, ciência política, economia, sociologia, análise de política pública, teoria crítica, filosofia, dentre outras possibilidades argumentativas que tornam o debate rico, interessante e desafiador. Nesse contexto, os professores são brilhantes por terem competência para estabelecer pontos de contato entre os inúmeros argumentos, traduzindo perspectivas interdisciplinares e transdisciplinares e contrapondo diversas perspectivas na condução dos debates.

Aprendi enormemente com os meus professores. Laurence Tribe fez um tour de force pelo universo do direito constitucional e da Suprema Corte, com a autoridade de autor do tratado mais importante sobre a disciplina,7 de autor de uma série de artigos seminais8 e de advogado bem sucedido na defesa de argumentos orais perante a própria Suprema Corte.9 Frank Michelman compartilhou a experiência de arquiteto do desenho constitucional sul-africano e de teórico consagrado de defesa do republicanismo,10 dos direitos econômicos-sociais11 e do papel potencial do direito na transformação social e redução da pobreza e da desigualdade.12 Roberto Mangabeira Unger apresentou suas reflexões teóricas e críticas com uma discussão profunda da literatura da filosofia do direito anglo-americana e a apresentação de sua proposta alternativa.13 William Alford e Ryan Goodman conduziram um seminário com convidados de altíssimo nível e debates interessantíssimos. Alan Dershowitz abriu novos horizontes de reflexão com sua provocativa discussão sobre os tabus jurídicos e sua experiência como advogado criminalista renomado e estórias sobre o julgamento de O.J. Simpson e Mike Tyson, por exemplo. Finalmente, James Cavallaro proporcionou um aprendizado enorme sobre o tema dos direitos humanos internacional, não somente por nos preparar para as críticas desconstrutivas a partir dos exemplos pródigos de David Kennedy14 e de Makau Mutua15 discutidos em sala de aula, mas também pelo amplo conhecimento teórico e prático sobre advocacia em direitos humanos, pela possibilidade de participar de uma pesquisa empírica relevante na Clínica de Direitos Humanos16 e pela orientação da minha dissertação.

Obviamente, também aprendi enormemente com outros professores da Harvard Law School. Por exemplo, exceto pelo Professor Roberto Mangabeira Unger, não cursei disciplinas com os demais expoentes do movimento Critical Legal Studies (CLS), mas tive a oportunidade de assistir palestras e de aprender inúmeros temas e conceitos, como já evidenciado em algumas colunas anteriores.17-18-19 O corpo docente é enorme, composto por centenas de professores com uma formação diversificada e agenda de pesquisa variada. Aliás, no discurso de abertura do ano acadêmico de 2006-2007, a então Diretora da Faculdade de Direito e hoje Justice Elena Kagan se referiu à Harvard Law School como sendo a Nova York das Escolas de Direito, no sentido se ser enorme, diversificada, cosmopolita, intensa e ininterrupta.

Aliás, a Professora Elena Kagan se tornou conhecida pela iniciativa de servir café gratuito para os estudantes20 e eu tenho lembranças não somente do café gratuito pela manhã, mas também da fila de estudantes de madrugada no quarto andar da Biblioteca para tomar café expresso gratuito e continuar a preparação para os exames e a conclusão de seus trabalhos, dissertações e teses pela madrugada afora. No ambiente extremamente competitivo de Harvard, as avaliações eram tradicionalmente em curva decrescente, sendo que as notas A eram reservadas para os melhores 10%, as notas A- para os subsequentes 20% e os demais alunos recebiam B+, B e B-. Somente provas excepcionalmente boas recebiam a nota A+ e provas excepcionalmente ruins poderiam receber as notas C e D.21 Esse sistema foi alterado em 2009 para um sistema com três conceitos - "Com Honras" ('Honors'); "Aprovado" ('Pass'); "Aprovado Abaixo" ('Low Pass') - e a avaliação não é mais tão rigorosa como era até então.22 Apesar de o sistema de avaliação ter sido atenuado, o estimulado à discussão crítica e profunda e ao debate aberto e intenso não se alterou e ainda persiste como uma característica marcante da Harvard Law School e da sua pedagogia socrática.

Considerações finais: Nossos professores compõem o professor que nos tornamos

A experiência acadêmica no curso Master of Laws (LL.M.) na Harvard Law School foi um divisor de águas na minha formação, pelo fato de ter rompido com uma série de paradigmas da minha formação anterior. Apesar de ter tido uma exposição anterior ao método de casos nas aulas de Direito Constitucional do Professor Joaquim Falcão na Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, de sempre ter considerado essencial a perspectiva interdisciplinar e as lições do direito comparado, o estilo argumentativo da academia brasileira e da prática da profissão jurídica evita o questionamento aberto e direto, a crítica interna e frontal ao argumento e estimula uma certa cordialidade ao invés da competitividade.23 Posteriormente, no meu retorno ao Brasil e na minha experiência como Professor da FGV Direito Rio, tive a oportunidade de aplicar algumas ideias, estratégias e posturas pedagógicas aprendidas a partir da minha experiência internacional, sempre com o cuidado de não fazer uma mera importação de ideias fora do lugar, mas de procurar adaptar e traduzir para o contexto brasileiro.24-25

Nesse sentido, o espírito socrático pautado pela necessidade de uma enorme preparação para conhecimento, discussão e análise de inúmeras dimensões de um caso se tornaram parte do professor que me tornei. Não por acaso, atualmente como Professor Visitante no PPGD da UFRJ, o programa da disciplina "Teoria das Instituições e Aspectos Filosóficos dos Desenhos Institucionais" é centrado no estudo de nove livros com o diálogo e o debate entre os Professores Adrian Vermeule e Cass Sunstein, ambos da Harvard Law School.26 Uma das características mais importantes da postura socrática é a atitude de crítica constante, de modo que os textos são adotados como ponto de partida para a reflexão, análise crítica e problematização, não devendo ser canonizados e nem devendo o professor adotar uma postura de pontificar sobre o material a ser trabalhado. Problematizar é preciso.

__________

1 SCHOFIELD, William. Christopher Columbus Langdell. The American Law Register (1898-1907), v. 55, n. 5, p. 273-296, 1907.

2 LANGDELL, Christopher Columbus (Ed.). A selection of cases on the law of contracts: With references and citations. The Lawbook Exchange, Ltd., 1999.

3 SCHOFIELD, William. Christopher Columbus Langdell. The American Law Register (1898-1907), v. 55, n. 5, p. 273-296, 1907.

4 KERR, Orin S. The decline of the Socratic method at Harvard. Neb. L. Rev., v. 78, p. 113, 1999.

5 Disponível aqui.

6 TUROW, Scott. One L: The turbulent true story of a first year at Harvard Law School. Farrar, Straus and Giroux, 2010.

7 TRIBE, Laurence H. American constitutional law. 1978.

8 Veja, por exemplo, TRIBE, Laurence H. The curvature of constitutional space: What lawyers can learn from modern physics. Harvard Law Review, p. 1-39, 1989; TRIBE, Laurence H. Taking text and structure seriously: Reflections on free-form method in constitutional interpretation. Harv. L. Rev, v. 108, p. 1221, 1994; TRIBE, Laurence H. Lawrence v. Texas: The Fundamental Right That Dare Not Speak Its Name. Harv. L. Rev., v. 117, p. 1893, 2003.

9 Disponível aqui.

10 MICHELMAN, Frank I. Law's republic. Yale Lj, v. 97, p. 1493, 1987.

11 MICHELMAN, Frank I. In Pursuit of Constitutional Welfare Rights: One View of Rawls' Theory of Justice. U. Pa. l. rev., v. 121, p. 962, 1972; MICHELMAN, Frank I. Welfare rights in a constitutional democracy. Wash. ULQ, p. 659, 1979.

12 MICHELMAN, Frank I. Foreword: On protecting the poor through the fourteenth amendment. Harv. L. Rev., v. 83, p. 7, 1969.

13 UNGER, Roberto Mangabeira. What should legal analysis become?. Verso, 1996, UNGER, Roberto Mangabeira. Legal analysis as institutional imagination. The Modern Law Review, v. 59, n. 1, p. 1-23, 1996.

14 KENNEDY, David. International human rights movement: part of the problem?. Harv. Hum. Rts. J., v. 15, p. 101, 2002.

15 MUTUA, Makau. Savages, victims, and saviors: The metaphor of human rights. Harv. Int'l LJ, v. 42, p. 201, 2001.

16 Disponível aqui.

17 Disponível aqui.

18 Disponível aqui.

19 Disponível aqui.

20 Disponível aqui.

21 Disponível aqui.

22 Disponível aqui.

23 DE HOLANDA, Sérgio Buarque; CÂNDIDO, Antônio; DE MELLO, Evaldo Cabral. Raízes do brasil. J. Olympio, 1936.

24 Sobre a FGV Direito Rio, veja FORTES, Pedro. A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO E DA PESQUISA JURÍDICA: DECODIFICANDO O DNA DA FGV DIREITO RIO. REI-REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, v. 5, n. 1, 2019; FALCÃO, Joaquim; DELFINO, Pedro. Experimentalismo e Análise Institucional no Curso FGV Direito Rio: Um Projeto em Construção. REI-REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, v. 5, n. 1, p. 1-19, 2019; GUERRA, Sergio. REFLETINDO SOBRE O ENSINO JURÍDICO NO MESTRADO EM DIREITO DA REGULAÇÃO. REI-REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, v. 5, n. 1, p. 20-33, 2019; LACERDA, Gabriel; FALCÃO, Joaquim; RANGEL, Tânia Abrão. Aventura e legado no ensino jurídico. FGV Direito Rio, 2012; TRUBEK, David M. Reforming legal education in Brazil: from the Ceped experiment to the law schools at the Getulio Vargas Foundation. Univ. of Wisconsin Legal Studies Research Paper, n. 1180, 2011.

25 Com relação à metodologia pedagógica da FGV Direito Rio, também recomendo a leitura da série Cadernos FGV Direito Rio, que tive a oportunidade de editar dentre 2013 e 2017.

26 VERMEULE, Adrian. Judging Under Uncertainty: An Institutional Theory of Legal Interpretation. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2006; VERMEULE, Adrian. Mechanisms of Democracy: Institutional Design Writ Small. New York, NY: Oxford University Press, 2007; SUNSTEIN, Cass. #Republic: Divided Democracy in the Age of Social Media. Princeton: Princeton University Press, 2017; VERMEULE, Adrian. The System of the Constitution. New York, NY: Oxford University Press, 2011; VERMEULE, Adrian. The Constitution of Risk. New York, NY: Cambridge University Press, 2014; POSNER, Eric; VERMEULE, Adrian. The Executive Unbound: after the Madisonian republic. New York, NY: Oxford University Press, 2010; SUNSTEIN, Cass R.; VERMEULE, Adrian. Law and Leviathan. Harvard University Press, 2020; THALER, Richard H., SUNSTEIN, Cass R., Nudge: Improving decisions about health, wealth, and happiness. 2009; VERMEULE, Adrian. Law's Abnegation. Harvard University Press, 2016.