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O programa de Yale em Direito e modernização: Registro histórico e influência no Brasil

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Atualizado às 07:48

Introdução: A Memória do Programa de Yale em Direito e Modernização

Parte relevante do debate sobre a formação do Direito Privado na Common Law abrange as discussões sobre a educação jurídica e o desenvolvimento de certas escolas de pensamento na academia jurídica estadunidense e britânica. Nesse contexto, os professores eméritos David Trubek (Universidade de Wisconsin) e Richard Abel (Universidade da Califórnia em Los Angeles) tiveram a iniciativa de promover uma mesa redonda na Conferência da Law and Society Association (LSA) no dia 29 de maio de 2021, em que se reuniram com os professores Duncan Kennedy (Universidade de Harvard), Boaventura de Sousa Santos (Universidade de Coimbra), Bryant Garth (Universidade da Califórnia em Irvine) e Afroditi Giovanopoulou (Doutora em Direito pela Universidade de Harvard e Doutoranda em História pela Universidade de Columbia). O tema da mesa redonda era a memória e reflexão sobre o Programa de Yale em Direito e Modernização, iniciado em 1969, justamente sob a liderança de David Trubek e Richard Abel, e que contou com a participação de Duncan Kennedy e Boaventura de Sousa Santos então como estudantes, sendo que Bryant Garth e Afroditi Giovanopoulou fizeram o papel de observadores externos. Os trabalhos apresentados na conferência LSA foram publicados no final do mês passado pela Revista Estudos Institucionais e são uma fonte valiosa de memória sobre a formação de algumas escolas importantes para o pensamento jurídico contemporâneo, como o 'Direito e Desenvolvimento' (Law and Development) e os 'Estudos Jurídicos Críticos' (Critical Legal Studies). Além do registro histórico, tal programa teve importante influência para o direito brasileiro.

Revisitando o Programa de Yale em Direito e Modernização: O panorama geral

Em seu texto de abertura para o simpósio intitulado 'The Yale Program in Law and Modernization: From the Cold War to Comparative Legal Sociology and Critical Legal Studies', David Trubek e Richard Abel relembram da obtenção de um financiamento de um milhão de dólares em 1969 para que Yale proporcionasse assistência jurídica, treinamento, pesquisas e que disseminasse conhecimento jurídico em apoio a projetos de modernização.1 Tais recursos obtidos junto à Agência Estadunidense de Desenvolvimento Internacional (USAID) foram o ponto de partida para desenvolvimento do programa como parte da estratégia dos Estados Unidos no âmbito da guerra fria.2 David Trubek tinha trabalhado como consultor jurídico da USAID no Brasil e tinha desenvolvido em 1966 um projeto-piloto experimental para modernizar a educação jurídica, a profissão jurídica e as instituições jurídicas.3 O Centro de Estudos e Pesquisas no Ensino do Direito (CEPED) foi uma iniciativa pioneira de treinamento de advogados brasileiros através de um programa de pós-graduação montado na Fundação Getúlio Vargas (FGV), que foi responsável pela formação profissional de centenas de profissionais brasileiros e teve efeito multiplicador, na medida em que inúmeros ex-alunos assumiram posições de relevo e reproduziram como juristas, professores e noutras atividades a perspectiva desenvolvida durante o CEPED.4

Importante, a decisão de chamar o programa de 'Direito e Modernização' ao invés de 'Direito e Desenvolvimento' foi consciente, na medida em que seus líderes consideravam que o escopo de 'desenvolvimento' seria naquela época mais limitado ao desenvolvimento econômico e a terminologia 'modernização' possuía um caráter mais abrangente, incluindo o desenvolvimento político, econômico e social.5 Com um enorme volume de recursos - equivalente a cerca de oito milhões de dólares em valores atuais - o Programa acrescentou uma série de cursos inovadores ao currículo acadêmico de Yale e permitiu que um número de professores com formação interdisciplinar fosse convidado para lecionar aos estudantes. O curso básico do programa era inicialmente denominado de 'Introdução às Teorias do Direito na Sociedade' e viria a ser totalmente remodelado como sendo um curso de 'Sociologia Jurídica Comparada'. Tal remodelagem do curso foi parte de um esforço de reconceituação da própria área e do próprio programa, no sentido de se estabelecer a distinção entre o direito moderno e o direito tradicional, bem como as relações entre instituições jurídicas e mudanças sociais, econômicas e políticas no terceiro mundo.6 Em termos de produção acadêmica decorrente do programa, sobressaem-se três trabalhos publicados naquele período e que se tornaram artigos acadêmicos de enorme impacto, tendo sido citados múltiplas vezes, a saber: Scholars in Self-Estrangement, de David Trubek e Marc Galanter;7 Why the Haves Come Out Ahead, de Marc Galanter;8 The Law of the Oppressed, de Boaventura de Sousa Santos.9

Com o recrudescimento dos protestos contra a Guerra do Vietnã e a radicalização do movimento estudantil, o próprio programa também serviu como um espaço privilegiado para a emergência da tradição crítica estadunidense, na medida em que eram discutidos temas de teoria social e existia a abertura para a discussão de teoria crítica nos Seminários de Direito e Modernização.10 O Programa de Yale em Direito e Modernização se tornaria central para o desenvolvimento posterior do movimento de 'Estudos Jurídicos Críticos' (Critical Legal Studies) e, não por acaso, a maioria dos organizadores da primeira conferência CLS em 1977 tinha estado envolvida com esse programa.11 Por outro lado, a Direção de Yale e os Professores mais sêniores viam com restrições a aproximação entre os jovens professores com os estudantes mais radicais, como Duncan Kennedy e Mark Tushnet, de modo que não foram feitas ofertas de posições permanentes a David Trubek e a Richard Abel que logo deixariam Yale.12 Em 1977, após oito anos, o Programa de Yale em Direito e Modernização seria descontinuado.13

Diários de Bordo: Memórias das Jornadas de Direito e Modernização

O simpósio publicado pela Revista Estudos Institucionais (REI) traz uma série de relatos históricos com as memórias dos participantes da mesa redonda sobre o Programa de Yale em Direito e Modernização, que podem ser considerados como diários de bordo e memórias de suas jornadas individuais.

Nesse sentido, por exemplo, Richard Abel revela que se considera sortudo de ter estado em Yale como jovem professor justamente no início do Programa e, apesar de não ter sido aprovado para uma posição permanente, afirma que aqueles cinco anos e meio foram fundacionais na sua vida profissional, quando desenvolveu sua perspectiva sociológica de pesquisa e de educação jurídica.14 Além de ser um especialista no direito africano, Richard Abel lecionava 'responsabilidade civil' (torts), tendo sido aluno de Guido Calabresi (quando esse era Professor Visitante em Columbia) e o Professor de Hilary Clinton dessa disciplina, vindo a desenvolver posteriormente uma abordagem sociológica sobre a responsabilidade civil.15 Após sua mudança para a UCLA em 1974, Richard Abel viria a incorporar a profissão jurídica em sua agenda de pesquisa, tornando-se um dos maiores especialistas no mundo sobre o estudo do tema.16

David Trubek inicia sua memória pelo período como missionário jurídico do projeto da modernização do direito, quando, a partir de 1962, trabalhou como um consultor jurídico do USAID no Brasil, tendo colaborado com a redação de contratos de empréstimo do governo dos Estados Unidos para a ditadura militar, com o projeto de reforma legislativa de estabelecimento do mercado de capitais em 1965 e com a reforma da educação jurídica através do CEPED.17 Após seu ingresso no corpo docente da Faculdade de Direito de Yale em 1967, David Trubek buscou uma forma de desenvolver um programa voltado para a modernização do direito e trabalhou com William Felstiner - que também tinha sido consultor jurídico da USAID, mas na Turquia e na Índia - para obter financiamento para o Programa de Yale em Direito e Modernização.18 Em seu curso sobre 'Direito e Modernização', David Trubek iria sempre manter um interesse no Brasil como estudo de caso, mas seus materiais foram se transformando e os textos contemporâneos seriam substituídos por clássicos da teoria social - Max Weber, Emile Durkheim e Karl Marx - e por textos de teoria crítica.19 A mudança teria sido provocada pela presença do seu ex-aluno de 'direitos reais' (property), Duncan Kennedy, que promoveu uma crítica contundente das teorias da modernização do direito e uma série de contra-narrativas que iriam resultar na crise existencial sumarizada no artigo Scholars in Self-Strangement, bem como na reflexão sobre a necessidade de buscar trabalhar o potencial emancipador do direito e desenvolvimento.20

Por sua vez, os diários de bordo dos demais participantes também estão repletos de detalhes extremamente interessantes para a sua formação. No caso de Duncan Kennedy, por exemplo, a coincidência de ter passado 1961 em Paris quando acompanhou a independência de inúmeras colônias africanas e seu período de trabalho na CIA entre 1965 e 1967 foram marcantes para a sua posterior radicalização.21 Já Boaventura de Sousa Santos esclarece como pretendia fugir da aridez do positivismo jurídico em Yale e na busca pelo aprofundamento em sociologia do direito no Programa de Direito e Modernização viria a abraçar a teoria social dentro de uma perspectiva crítica.22 Como observador externo, a seu turno, Bryant Garth classifica como revolucionários os participantes do programa em Yale, recordando-se como teve contato com as marcantes ideias ali desenvolvidas e como elas influenciaram sua própria agenda de pesquisa, registrando, aliás, passagem de sua trajetória acadêmica e os trabalhos clássicos escritos em co-autoria com Mauro Cappelletti e, posteriormente, com Yves Dezalay.23 Finalmente, Afroditi Giovanopoulou posiciona o programa no contexto político da década de 1970 entre o gerencialismo típico das pretensões modernistas de engenharia social e a contracultura que serviria de berço para o pensamento jurídico crítico estadunidense.24

Considerações Finais: A Influência do Direito e Modernização no Brasil

A memória sobre o Programa de Yale em Direito e Modernização é particularmente relevante para o público brasileiro, porque nossa experiência jurídica é marcada por transplantes de institutos jurídicos dos Estados Unidos e da Europa com o objetivo de modernização do nosso direito e das nossas instituições jurídicas. Aliás, o próprio Brasil foi um dos principais estudos de caso desse programa, tendo sido objeto de pesquisas tanto do Professor David Trubek, quanto do estudante Boaventura de Sousa Santos, que fez sua pesquisa de campo sobre o direito existente na Favela do Jacarezinho, a que poeticamente se referiu como 'Passárgada'. Através do CEPED foram treinados centenas de profissionais jurídicos, sendo que alguns deles também viriam a cursar mestrados (LL.M.s) em Faculdades de Direito dos Estados Unidos e reproduziriam o seu conhecimento jurídico através de sua prática profissional ou como professores de direito nas Faculdades brasileira. Aliás, ex-alunos do CEPED viriam inclusive posteriormente fundar as Escolas de Direito da FGV Direito Rio e da FGV Direito SP com uma abordagem de solução pragmática de problemas concretos e metodologia de ensino participativo, que tem influenciado mudanças na academia jurídica brasileira.25 Além disso, por ocasião da fundação do movimento Critical Legal Studies, o Professor brasileiro Roberto Mangabeira Unger também teve participação extremamente relevante, tendo se tornado um dos principais expoentes e líderes intelectuais do pensamento jurídico crítico.26 Portanto, a influência do Programa de Yale em Direito e Modernização no Brasil deve servir de estímulo para que os leitores brasileiros se interessem sobre o tema e eventualmente se aprofundem através da leitura dos artigos originais e inéditos publicados no mês passado pela Revista Estudos Institucionais nesse simpósio internacional especial.

__________

1 ABEL, Richard; TRUBEK, David. THE SHORT HAPPY LIFE OF THE YALE PROGRAM IN LAW AND MODERNIZATION FROM THE COLD WAR TO COMPARATIVE LEGAL SOCIOLOGY AND CRITICAL LEGAL STUDIES. REI-REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, v. 7, n. 2, 2021.

2 Idem.

3 Idem.

4 TRUBEK, David M. From Legal Missionary to Critical Scholar: My Law and Modernization Journey. REI-REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, v. 7, n. 2, p. 793-813, 2021.

5 ABEL, Richard; TRUBEK, David. THE SHORT HAPPY LIFE OF THE YALE PROGRAM IN LAW AND MODERNIZATION FROM THE COLD WAR TO COMPARATIVE LEGAL SOCIOLOGY AND CRITICAL LEGAL STUDIES. REI-REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, v. 7, n. 2, 2021.

6 Idem.

7 TRUBEK, David M.; GALANTER, Marc. Scholars in self-estrangement: some reflections on the crisis in law and development studies in the United States. Wis. L. Rev., p. 1062, 1974.

8 GALANTER, Marc. Why the haves come out ahead: Speculations on the limits of legal change. Law & Soc'y Rev., v. 9, p. 95, 1974.

9 DE SOUSA SANTOS, Boaventura. The law of the oppressed: the construction and reproduction of legality in Pasargada. Law and society review, p. 5-126, 1977.

10 ABEL, Richard; TRUBEK, David. THE SHORT HAPPY LIFE OF THE YALE PROGRAM IN LAW AND MODERNIZATION FROM THE COLD WAR TO COMPARATIVE LEGAL SOCIOLOGY AND CRITICAL LEGAL STUDIES. REI-REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, v. 7, n. 2, 2021.

11 Idem.

12 Idem.

13 Idem.

14 ABEL, Richard. Law and Tradition. REI-REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, v. 7, n. 2, p. 729-752, 2021.

15 Idem.

16 ABEL, Richard L.; LEWIS, Philip Simon Coleman (Ed.). Lawyers in society: the civil law world. Beard Books, 1988.

17 TRUBEK, David M. From Legal Missionary to Critical Scholar: My Law and Modernization Journey. REI-REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, v. 7, n. 2, p. 793-813, 2021.

18 Idem.

19 Idem.

20 Idem.

21 KENNEDY, Duncan. MY PATH TO LAW AND MODERNIZATION AT YALE, 1968-70: A MEMOIR OF RADICALIZATION. REI-REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, v. 7, n. 2, p. 753-767, 2021.

22 DE SOUZA SANTOS, Boaventura. MY LAW AND MODERNIZATION JOURNEY. REI-REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, v. 7, n. 2, p. 768-792, 2021.

23 GARTH, Bryant G. LEGAL REVOLUTIONARIES AT YALE IN A TIME OF POLITICAL AND SOCIAL CHANGE. REI-REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, v. 7, n. 2, p. 814-828, 2021.

24 GIOVANOPOULOU, Afroditi. BETWEEN MANAGERIALISM AND THE LEGAL COUNTERCULTURE: THE YALE PROGRAM IN LAW AND MODERNIZATION IN THE HISTORY OF THE GLOBAL 1970S. REI-REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, v. 7, n. 2, p. 829-848, 2021.

25 LACERDA, Gabriel; FALCÃO, Joaquim; RANGEL, Tânia Abrão. Aventura e legado no ensino jurídico. FGV Direito Rio, 2012.

26 UNGER, Roberto Mangabeira. The critical legal studies movement. Harvard law review, p. 561-675, 1983.