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Os fundos reparatórios e a desjudicialização da compensação de danos - Parte II

segunda-feira, 7 de junho de 2021

Atualizado às 08:45

Na coluna anterior (parte I), analisamos alguns modelos de fundos reparatórios já utilizados pelo sistema de justiça norte-americano, revelando sua instrumentalidade para a concretização da multifuncionalidade da responsabilidade civil em casos de danos graves que afetam vítimas em massa.

Por via de tais mecanismos - que se qualificam como verdadeiras claim resolution facilities, simplificam-se ou se otimizam os processos de definição das vítimas elegíveis à indenização, os critérios para a liquidação dos danos causados e a distribuição das compensações devidas, a imposição de medidas para se evitar a reincidência das condutas lesivas e para punir os responsáveis.

Nesta segunda parte, analisaremos o modelo brasileiro de fundos reparatórios, assim como outros mecanismos que, superando a concepção da mera criação de fundos para distribuição equitativa de compensações, também se prestam à operacionalização do sistema de responsabilidade civil nas hipóteses de danos causados a direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.

Os fundos reparatórios

No sistema de tutela coletiva brasileira, em havendo condenação pecuniária no âmbito de ações coletivas propostas objetivando a reparação dos danos produzidos a quaisquer direitos de natureza transindividual, as indenizações devem ser destinadas para Fundos Administrativos, previstos originalmente pela lei 7.347/85 (Lei da ação civil pública).1

Em âmbito federal, o Fundo de Defesa dos Direitos Difusos é administrado por um Conselho Gestor, ao qual compete anualmente definir, mediante seleção de projetos de investimento que lhe são encaminhados por pessoas jurídicas de direito público ou por entidades não governamentais sem fins lucrativos, a aplicação dos recursos destinados à recomposição social das lesões difusas.2

Ainda, referidos Fundos são também os destinatários legais da chamada fluid recovery prevista pelo artigo 100, do Código de Defesa do Consumidor.3 Na medida em que muitas vítimas de um mesmo evento lesivo acabem não sendo localizadas, ou não compareçam judicialmente para executar o responsável pelos danos individuais homogêneos, há a possibilidade de se apurar o montante pecuniário não buscado pelas mesmas, a fim de se integralizar o respectivo Fundo Reparatório.   

Como se percebe, trata-se de um sistema que busca a melhor forma de compensação possível dos danos transindividuais (a critério dos conselhos gestores dos fundos), ao mesmo tempo em que pretende não deixar impunes os responsáveis pelos danos provocados, como acontece frequentemente por força dos obstáculos de acessibilidade à justiça das vítimas pela via das ações individuais.

Em tese, ao menos, o modelo dos Fundos Reparatórios criado pela Lei da Ação Civil Pública promete não apenas a adequada compensação de danos, mas também a inibição eficaz, capaz de dissuadir a reiteração ou a continuidade da violação aos direitos essenciais, individuais ou transindividuais. Para além disso, a compreensão desses fundos de natureza administrativa parece afastar qualquer alegação a respeito de eventual locupletamento ilícito das vítimas, derivado de eventual agravamento das indenizações, por via da fixação de danos morais coletivos, por exemplo, nos casos de dolo ou culpa grave do responsável.

De fato, a condenação fundamentada na produção de danos morais coletivos, já consagrada no sistema de justiça nacional de tutela coletiva, gera recursos que também são destinados aos referidos Fundos públicos.

Como já tivemos a oportunidade de analisar, a jurisprudência nacional, apesar de inicialmente desabonar a concepção do dano moral coletivo,4 gradativamente vem se consolidando no sentido não apenas da consagração de tal teoria como, também, da necessidade da plena compensação coletiva dos danos morais, mediante os tradicionais critérios já estabelecidos pelos Tribunais Superiores, concernentes à ponderação entre a multifuncionalidade das funções da responsabilidade civil, sem desbordar para o enriquecimento sem causa das vítimas.

Contudo, o modelo dos Fundos Reparatórios não se presta a operacionalizar toda e qualquer pretensão de reparação de danos de natureza difusa, coletiva ou individual homogênea.

Como parece evidente, para cada tipo de conflito social devem ser utilizadas técnicas e procedimentos apropriados, seguindo-se a lógica não apenas da efetividade da tutela jurisdicional e da adequada proteção dos direitos, mas também da necessidade de sua eficiente instrumentalização. 

É precisamente a partir dessas premissas que começam a ser utilizados e projetados, no Brasil, outros mecanismos judiciais e extrajudiciais objetivando a plena e eficaz implementação das funções da responsabilidade civil. Trata-se da incorporação de institutos típicos do common law, tal como as claim resolution facilities, já tratadas pela doutrina nacional como entidades de infraestrutura específica.5

Tais estruturas já vêm sendo utilizadas no Brasil, integrando desenhos resolutórios de conflitos coletivos em diversas áreas, tais como a sócio-ambiental. A análise de alguns casos concretos envolvendo a aplicação desses mecanismos pode auxiliar na sua melhor compreensão.

O caso Mariana

Na tarde de 5 de novembro de 2015, uma barragem de rejeitos de mineração controlada pela Samarco S.A. - uma joint-venture da Vale com a anglo-australiana BHP Billiton Brasil - se rompeu nas proximidades do município de Mariana/MG. Esse desastre acarretou o despejo de um volume de aproximadamente 62 milhões de metros cúbicos de detritos, numa enxurrada que atingiu 41 cidades ao longo a bacia do Rio Doce e chegou ao oceano atlântico após percorrer um trajeto superior a 600 quilômetros entre os Estados de Minas Gerais e Espírito Santo.6

Trata-se do maior desastre ambiental já registrado no Brasil e do maior acidente com barragem de rejeitos de mineração de que se tem conhecimento em nível mundial7.

Os danos causados pelo rompimento da Barragem do Fundão em Mariana não foram apenas ambientais. No rastro de destruição causado pela lama tóxica, 19 pessoas perderam a vida, outras 600 ficaram desalojadas e milhares de usuários tiveram o abastecimento de água prejudicado devido à contaminação dos reservatórios ao longo da bacia do rio Doce.

Até o momento, a Samarco assinou ao todo 24 acordos pelos quais assumiu publicamente a obrigação de reparar os danos indenizáveis decorrentes do rompimento da barragem.

Merece destaque, dentre todos esses acordos, o Termo de Transação e Ajuste de Conduta (TTAC),8 celebrado em 2 de março de 2016 entre a Samarco, Vale, BHP Brasil, a União e os Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo9. Esse TTAC define projetos socioeconômicos destinados ao público impactado direta10 e indiretamente11 pelo rompimento da barragem de Mariana.

Por via desse TTAC, houve a constituição da Fundação Renova12 e do Programa de Indenização Mediada (PIM), custeado pela Samarco e responsável pelo desenvolvimento e implementação de 42 programas de reparação e compensação socioeconômicos e socioambientais.13

A Fundação Renova pode ser considerada um modelo de entidade de infraestrutura específica para a reparação de danos. Por seu intermédio, criou-se o chamado Sistema Indenizatório Simplificado, o qual, até abril de 2021, atingiu a marca de R$ 1 bilhão em pagamentos de indenizações a algumas categorias de vítimas que apresentam grandes dificuldades na comprovação dos danos sofridos em decorrência do rompimento da barragem, tais como lavadeiras, artesãos, areeiros, carroceiros, extratores minerais, pescadores de subsistência e informais, entre outros14.

O Sistema Indenizatório Simplificado destina valores com quitação única e definitiva, que variam de R$ 17 mil a R$ 567 mil, de acordo com a categoria do dano15. A adesão é facultativa e deve ser feita por representação legal dentro do próprio site da Fundação.

Para a formação do patrimônio da Fundação Renova e para a execução dos programas socioeconômicos e socioambientais, o TTAC estipulou aportes anuais destinados a duas categorias: recursos compensatórios e recursos reparatórios16.

Os recursos compensatórios tiveram valor determinado em R$ 4,1 bilhões, sendo R$ 500 milhões destinados ao Programa de Coleta e Tratamento de Esgoto e de Destinação de Resíduos Sólidos entre 2016 e 2018 nos municípios situados ao longo do rio Doce, e os restantes R$ 3,6 bilhões distribuídos em parcelas anuais de R$ 240 milhões, durante 15 anos17, em recuperação de áreas de preservação permanentes, recuperação de nascentes e ações compensatórias em geral18.

Os recursos reparatórios, cujo objetivo é mitigar, remediar e reparar os impactos socioambientais e socioeconômicos decorrentes do acidente, não tiveram um limite máximo de valor fixado. Isso quer dizer que, para as ações reparatórias que se fizerem necessárias, não haverá restrição com relação aos aportes anuais fixados preliminarmente pelo TTAC19.

Até abril de 2021, R$ 13,1 bilhões foram destinados às ações de reparação e compensação, R$ 4,09 bilhões foram pagos em indenizações e auxílios financeiros emergenciais e outro R$ 1,08 bilhão pago em indenizações pelo Sistema Indenizatório Simplificado ao público atingido pelo rompimento com dificuldade de comprovação dos danos sofridos20.

Apesar desses valores bilionários pagos em reparações por via dessa claim resolution facility, em fevereiro de 2021 o Ministério Público de Minas Gerais ajuizou Ação Civil Pública (autos nº 5023635-78.2021.8.13.0024, em trâmite perante a 5ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte), pedindo a extinção da Fundação Renova. Conforme argumenta o MPMG, a Fundação "(...) vem atuando muito mais como um instrumento de limitação da responsabilidade das empresas mantenedoras (Vale e BHP Billiton) do que como agente de efetiva reparação humana, social e ambiental".21 Ademais, diante do alegado desvio de finalidade e ineficiência, a prestação de contas da entidade foi rejeitada por quatro vezes, o que ensejou o pedido do MPMG para que seja determinada liminarmente a intervenção judicial no seu conselho curador.

Como se percebe, a utilização de um mecanismo estrutural especialmente construído para viabilizar, extrajudicialmente, a justa, adequada e eficiente reparação de todos os múltiplos danos causados pelo rompimento da barragem em Mariana, nem sempre se revela suficiente ou satisfatório.

Quase seis anos após o rompimento da barragem em Mariana, é possível afirmar que nenhum dos programas reparatórios idealizados pelo referido TTAC foi integralmente concluído. De acordo com Procuradores da República integrantes da Força-Tarefa Rio Doce, do Ministério Público Federal (MPF), apenas 10.885 famílias (de um total de 31.755 famílias cadastradas) receberam algum tipo de indenização até agosto de 2020. Isso equivale a 34% do público total a ser indenizado22. Diante da insatisfatoriedade de uma resposta compensatória efetiva, várias ações judiciais foram propostas pelas vítimas, inclusive no Reino Unido, discutindo a responsabilidade da empresa BHP Billiton pelo desastre de Mariana. 

O caso Brumadinho

Em 25 de janeiro de 2019, pouco mais de 38 meses após o desastre ambiental de Mariana, a barragem B1 da Mina Córrego do Feijão, controlada pela Vale S.A. e localizada na região de Brumadinho/MG, rompeu-se e criou um tsunami de rejeitos que varreu construções industriais, casas, florestas e córregos, deixando um rastro de destruição e morte por onde passou.

Até maio de 2021, o número oficial de vítimas fatais era de 270, muitas das quais soterradas pela lama sem que qualquer sirene pudesse alertá-las a tempo. Dez pessoas continuam desaparecidas desde então.23      

Estima-se que 12 milhões de metros cúbicos24 de rejeitos transpuseram a barragem naquele dia, escoando a lama tóxica até o Rio Paraopeba, afluente do São Francisco, que corta o estado de Minas Gerais rumo a estados do Nordeste25. Dados geoespaciais do IBGE apontaram que o mar de lama se estendeu ao longo de 17 municípios às margens do Paraopeba, bem como para os reservatórios das usinas hidrelétricas de Três Marias e Retiro Baixo26, afetando em larga medida a qualidade da água na região e o abastecimento.

Nos primeiros meses após a tragédia, o Ministério Público de Minas Gerais ajuizou duas Ações Civis Públicas atinentes às áreas socioambiental27 e socioeconômica.28 Foram firmados com a VALE, ainda, 27 Termos de Ajustamento de Conduta (contando as retificações feitas ao TAC original), visando estabelecer medidas emergenciais e formas de compensação relativas à tragédia em Brumadinho, bem como a realização de obras em outras regiões e o aprimoramento dos mecanismos de avaliação de segurança dos locais de mineração por meio de auditoria externa.

Em janeiro de 2020, o MPMG ofereceu denúncias criminais por 270 homicídios dolosos duplamente qualificados contra 16 pessoas, entre engenheiros e dirigentes da Vale e da empresa alemã TüvSüd, responsável pelos laudos de segurança do local do acidente.29

Na esfera trabalhista, no bojo da Ação Civil Pública nº 0010261-67.2019.5.03.0028, que ainda tramita na 5ª Vara do Trabalho de Betim/MG, o Ministério Público do Trabalho firmou um acordo30 com a Vale, por meio do qual a empresa destinará aos familiares de empregados e terceirizados falecidos ou desaparecidos na tragédia valores a título de danos morais e materiais, segundo critérios próprios e mediante adesão dos familiares ao acordo.

Pelos termos firmados, irmãos de trabalhadores falecidos receberão individualmente R$ 150 mil a título de dano moral. Cônjuges ou companheiros, pais e filhos (incluindo os menores) receberão individualmente R$ 500 mil pelos danos morais e, adicionalmente, o valor de R$ 200 mil referente ao seguro adicional por acidente de trabalho.

Os critérios para a aferição dos danos materiais consideraram como base de cálculo o salário mensal, a gratificação natalina, as férias acrescidas de um terço, a Participação nos Lucros e Resultados (PLR) de 3,5 salários e cartão-alimentação ou ticket de R$ 745,00 por mês, até a data em que a vítima (empregados próprios e terceirizados) completaria 75 anos.

Para além dessas reparações acordadas, a Vale pagou, ainda, indenização por danos morais coletivos de R$ 400 milhões em 6 de agosto de 2019, valor este que foi depositado em juízo e cuja destinação será definida por comitê composto pela Justiça do Trabalho, MPT e Defensoria Pública da União.

Em fevereiro de 2021, a Vale firmou um acordo31 com o Estado de Minas Gerais, a Defensoria Pública mineira e os Ministérios Públicos Federal e Estadual para reparação integral dos danos ambientais e sociais decorrentes da tragédia. O acordo foi mediado no âmbito do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC) e homologado pelo presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.32

O acordo, no valor de R$ 37,6 bilhões, abrange apenas os projetos de reparação socioeconômica e socioambiental de danos difusos e coletivos decorrentes da tragédia. Os danos transindividuais supervenientes, assim como os danos de natureza individual, não foram inseridos nesse acordo. Segundo dados fornecidos pelo Observatório Nacional Sobre Questões Ambientais, Econômicas e Sociais de Alta Complexidade e Grande Impacto e Repercussão, do Conselho Nacional de Justiça, e pelo Conselho Nacional do Ministério Público, até agosto de 2020 havia 3.799 processos individuais tramitando na Justiça Estadual, 1.442 na Justiça do Trabalho e 5 na Justiça Federal.33

Do valor global do acordo, foram destinados R$ 4,4 bilhões para a criação do Programa de Transferência de Renda à população atingida, programa esse que será estruturado, implementado e gerenciado pelo Poder Judiciário. Até então, a Vale vinha adotando critérios próprios para o pagamento de verba emergencial aos atingidos.

Além disso, o acordo prevê a realização de obras para melhorar a qualidade de vida dos atingidos, investimentos na recuperação de municípios da Bacia do rio Paraopeba e destinação de recursos para áreas de saúde, saneamento e infraestrutura dessa região.

O caso do acidente aéreo do voo TAM-3054

O acidente do voo TAM 3054, ocorrido em 17 de julho de 2007 em São Paulo, foi considerado o maior acidente aéreo no Brasil. A aeronave, que provinha de Porto Alegre, ao tentar pousar no Aeroporto de Congonhas/SP não conseguiu parar, ultrapassando os limites da pista e atingindo um posto de gasolina e um prédio comercial da própria companhia aérea TAM. Ao todo foram 199 vítimas fatais, incluindo 187 passageiros e tripulantes e mais 13 pessoas em terra.

Três meses após o acidente, foi constituída a Associação de Familiares e Amigos das Vítimas do Voo Tam 3054 - AFAVITAM, cuja atuação ficou marcada pela coordenação dos processos de tomada de decisões a respeito das indenizações devidas, para o que atuaram diversos advogados cíveis e criminais, inclusive no âmbito de uma Câmara de Mediação especialmente criada para viabilizar acordos entre os envolvidos. 

A criação da Câmara de Mediação foi aventada inicialmente pela Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, tendo sido apresentada ao Ministério Público, à Defensoria Pública e ao Procon do Estado de São Paulo.34 A partir da sua constituição, começaram as negociações entre os membros componentes da AFAVITAM e as empresas responsáveis pela compensação dos danos causados, tendo sido firmado um Termo de Ajustamento de Conduta.35

No âmbito da Câmara de Indenização TAM 3054 (como ficou conhecida), foram intermediados 55 acordos, dos 59 casos que lhe foram submetidos. Foram indenizados 207 familiares de 45 vítimas. As indenizações foram pagas pela TAM e por sua seguradora no momento da assinatura dos acordos ou após a homologação judicial (nos casos envolvendo menores de 18 anos). Os valores pagos não foram divulgados em virtude de cláusula de sigilo nos acordos. A Câmara de Mediação encerrou as suas atividades em julho de 2009, com 92% dos casos solucionados.36

Para além dos acordos mediados pela referida Câmara, foi ainda concebido o desenho reparatório da negociação direta com a companhia aérea (com ou sem advogados), sem detrimento do ajuizamento de ações próprias contra o transportador, no Brasil e nos Estados Unidos.37 

O desafio da adequada formatação dos designs de resolução de conflitos

A partir das experiências extraídas dos casos relatados, percebe-se que a adequada reparação de danos causados a múltiplas vítimas, em decorrência de graves eventos (naturais ou humanos), não pode depender da aposta em um único meio de resolução de disputas.

A integração da tutela jurisdicional e dos meios extrajudiciais resolutórios (conciliação, mediação, negociação e arbitragem, dentre outros) passa a ser indispensável, na exata medida da diversidade dos danos, da fragmentação dos interesses em disputa, da quantidade das vítimas, da dificuldade de serem elas adequadamente representadas e dos interesses dos responsáveis pela reparação em se submeter a um modelo resolutório específico.

Ainda assim, muitas vezes a conjugação de mecanismos judiciais e extrajudiciais não é suficiente. Tal como nos revelaram as disputas ocorridas nos casos de Mariana, de Brumadinho e do acidente aéreo do voo TAM 3054, outras técnicas, procedimentos e estruturas podem se revelar necessárias para atender às especificidades das pretensões reparatórias transindividuais e individuais.

É nesse contexto que os Fundos Reparatórios, os programas indenizatórios administrativos e as entidades de infraestrutura específica passam a constituir importantes opções para a implementação de designs adequados para a resolução de conflitos.

De acordo com FALECK, "sistemas de indenização bem executados são arranjos capazes de trazer benefícios a todas as partes envolvidas: beneficiários são indenizados em um meio seguro, confiável e supervisionado, de acordo com critérios objetivos legítimos, com tratamento digno e um ambiente que proporciona justiça procedimental, sem custos, riscos ou a demora de uma ação judicial".38

Certamente ainda há um longo caminho a ser percorrido com vistas à prospecção e formatação de diversos designs que permitam instrumentalizar a prevenção ou a adequada e justa compensação de danos de qualquer natureza, dentro de um prazo razoável e pelos menores custos possíveis. Todavia, parece claro que o sistema de justiça brasileiro, gradativamente, vem se abrindo para essa nova forma de compreender a resolução dos conflitos e da concretização do direito da responsabilidade civil.

__________

1 Consoante o art. 13 da Lei da ação civil pública, "Havendo condenação em dinheiro, a indenização pelo dano causado reverterá a um fundo gerido por um Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais de que participarão necessariamente o Ministério Público e representantes da comunidade, sendo seus recursos destinados à reconstituição dos bens lesados."

2 Conforme estabelece o art. 1º, § 1º da lei 9.008/95, o Fundo de Defesa dos Direitos Difusos "tem por finalidade a reparação dos danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico, paisagístico, por infração à ordem econômica e a outros interesses difusos e coletivos", constituindo seus recursos, segundo o § 2º do referido dispositivo, "o produto da arrecadação: I - das condenações judiciais de que tratam os arts. 11 e 13 da lei 7.347, de 1985; II - das multas e indenizações decorrentes da aplicação da lei 7.853, de 24 de outubro de 1989, desde que não destinadas à reparação de danos a interesses individuais; III - dos valores destinados à União em virtude da aplicação da multa prevista no art. 57 e seu parágrafo único e do produto da indenização prevista no art. 100, parágrafo único, da Lei n.º 8.078, de 11 de setembro de 1990; IV - das condenações judiciais de que trata o § 2º do art. 2º da lei 7.913, de 7 de dezembro de 1989; V - das multas referidas no art. 84 da lei 8.884, de 11 de junho de 1994; VI - dos rendimentos auferidos com a aplicação dos recursos do Fundo; VII - de outras receitas que vierem a ser destinadas ao Fundo; VIII - de doações de pessoas físicas ou jurídicas, nacionais ou estrangeiras. § 3º Os recursos arrecadados pelo FDD serão aplicados na recuperação de bens, na promoção de eventos educativos, científicos e na edição de material informativo especificamente relacionados com a natureza da infração ou do dano causado, bem como na modernização administrativa dos órgãos públicos responsáveis pela execução das políticas relativas às áreas mencionadas no § 1º deste artigo."

3 Art. 100. Decorrido o prazo de um ano sem habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano, poderão os legitimados do art. 82 promover a liquidação e execução da indenazação devida. Parágrafo único. O produto da indenização devida reverterá para o fundo criado pela lei 7.347, de 24 de julho de 1985.

4 VENTURI, Elton, VENTURI, Thaís G. Pascoaloto. O dano moral em suas dimensões coletiva e acidentalmente coletiva. Dano Moral Coletivo. Organizado por Nelson Rosenvald e Felipe Teixeira Neto. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2018. 

5 Sobre o tema, CABRAL, Antonio; ZANETI JR., Hermes. Entidades de infraestrutura específica para a resolução de conflitos coletivos: as claims resolution facilities e sua aplicabilidade no Brasil.  Revista de Processo. São Paulo: RT, 2019, vol. 287.

6 SCHREIBER, Mariana. "Desastre em Mariana foi acidente ou crime? 'É precipitado avaliar', diz ministro". BBC Brasil (on-line). Publicado em 11 nov. 2015. Disponível aqui. Acesso em 27 mai. 2021.

7 AZEVEDO, Ana Lucia. "Acidente em Mariana é o maior da História com barragens de rejeitos". O Globo (on-line). Publicado em 17 nov. 2015. Disponível aqui. Acesso em 27 mai. 2021.

8 Íntegra do documento disponível aqui.

9 Este e os demais acordos foram celebrados no bojo das ações civis públicas n. 69758.61.2015.4.01.3400 e n. 23863-07.2016.01.3800, em curso perante o juízo da 12ª Vara Federal de Minas Gerais, movidas pela União Federal, Estados de Minas Gerais e Espírito Santo e Ministério Público Federal.

10 De acordo com o inciso II da Cláusula 01 do TTAC, os impactados diretamente pelo rompimento da barragem são as pessoas físicas e jurídicas que se enquadram num dos quadros listados nas alíneas "a" a "j", quais sejam: a) perda de cônjuge, companheiro, familiares até o segundo grau, por óbito ou desaparecimento; b) perda, por óbito ou por desaparecimento, de familiares com graus de parentesco diversos ou de pessoas com as quais coabitavam e/ou mantinham relação de dependência econômica; c) perda comprovada pelo proprietário de bens móveis ou imóveis ou perda da posse de bem imóvel; d) perda da capacidade produtiva ou da viabilidade de uso de bem imóvel ou de parcela dele; e) perda comprovada de áreas de exercício da atividade pesqueira e dos recursos pesqueiros e extrativos, inviabilizando a atividade extrativa ou produtiva; f) perda de fontes de renda, de trabalho ou de autossubsistência das quais dependam economicamente, em virtude de ruptura do vínculo com áreas atingidas; g) prejuízos comprovados às atividades produtivas locais, com inviabilização de estabelecimento ou das atividades econômicas; h) inviabilização do acesso ou de atividade de manejo dos recursos naturais e pesqueiros, incluindo as terras de domínio público e uso coletivo, afetando a renda e a subsistência e o modo de vida de populações; i) danos à saúde ou mental; e j) destruição ou interferência em modos de vida comunitários ou nas condições de reprodução dos processos socioculturais e cosmológicos de populações ribeirinhas, estuarinas, tradicionais e povos indígenas.

11 De acordo com o inciso III da Cláusula 01 do TTAC, os impactados indiretamente pelo rompimento da barragem são as pessoas físicas e jurídicas que não se enquadram nos casos listados anteriormente, e que "(...) residam ou venham a residir na área de abrangência e que sofram limitação no exercício de seus direitos fundamentais em decorrência das consequências ambientais ou econômicas, diretas ou indiretas, presentes ou futuras, do [rompimento da barragem], que serão contemplados com acesso à informação e a participação nas discussões comunitárias, bem como poderão ter acesso aos equipamentos públicos resultantes dos programas".

12 Website oficial.

13 "Fui nomeado como Coordenador da Mediação do PIM, liderando uma equipe independente de 68 mediadores alocados nos diversos municípios do trecho, com o objetivo de conduzir, de maneira neutra e imparcial, as mediações entre os impactados e a Fundação Renova, lastreadas nos critérios de indenização construídos democraticamente. Nosso papel inclui também mediar a construção dos próprios critérios e políticas de indenização envolvendo a Fundação Renova e algumas das comunidades impactadas". FALECK, Diego. Manual de Design de Sistemas de Disputas: criação de estratégias e processos eficazes para tratar conflitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p.47.

14 Disponível aqui.

15 Tabela oficial disponível aqui.

16 FUNDAÇÃO RENOVA. Relatório de Administração 2017. Fundação Renova (website institucional). Disponível aqui. Acesso em 28 mai. 2021.

17 Começando em 2016, com reajuste anual pelo IPCA.

18 FUNDAÇÃO RENOVA. Relatório de Administração 2017. Fundação Renova (website institucional). Disponível aqui. Acesso em 28 mai. 2021.

19 Idem.

20 Dados extraídos do website oficial da Fundação Renova, disponível aqui. Acesso em mai. 2021.

21 "MPMG pede na Justiça extinção da Fundação Renova". MPMG (Website Oficial). Disponível aqui. Acesso em 27 mai. 2021.

22 TOKARNIA, Mariana. "Tragédia de Mariana faz 5 anos e população ainda aguarda reparações". Agência Brasil (on-line). Disponível aqui. Acesso em 27 mai. 2021.

23 PIMENTEL, Thais. FIÚZA, Patrícia. "Brumadinho: mais uma vítima da tragédia da Vale é identificada". G1 (online). Publicado em 27 mai. 2021. Disponível aqui. Acesso em 28 mai. 2021.

24 Volume equivalente a 2.800 piscinas olímpicas.

25 ALVES, Pedro. "Rejeitos de Brumadinho chegaram ao Rio São Francisco, diz Fundação Joaquim Nabuco". G1 (online). Publicado em 29 mar. 2019. Disponível aqui. Acesso em 01 jun. 2021.

26 PARADELLA, Rodrigo. "Novos dados geoespaciais mostram área atingida pelo rompimento da barragem". Publicado em 15 fev. 2019. Agência IBGE Notícias (online). Disponível aqui. Acesso em 01 jun. 2021.

27 Trata-se da ACP nº 5000056-68.2019.8.13.0090, distribuída à 1ª Vara Cível, Criminal e da Infância e da Juventude da Comarca de Brumadinho/MG.

28 Trata-se da ACP nº 5000053-16.2019.8.13.0090, distribuída à 1ª Vara Cível, Criminal e da Infância e da Juventude da Comarca de Brumadinho/MG.

29 MPMG. "Brumadinho 2 anos: MPMG não abre mão das compensações devidas pela Vale". Publicado em 25 jan. 2021. MPMG (online). Disponível aqui. Acesso em 01 jun. 2021.

30 Disponível na íntegra.

31 Acordo Judicial para Reparação Integral Relativa ao rompimento das barragens B-I, B-IV E B-IVA / CÓRREGO DO FEIJÃO. Processo de Mediação SEI n. 0122201-59.2020.8.13.0000. TJMG / CEJUSC 2º GRAU. 

32 TJMG. "Presidente do TJMG homologa acordo histórico entre a Vale e instituições públicas". Tribunal de Justiça de Minas Gerais (website oficial). Publicado em 04 fev. 2021. Disponível aqui. Acesso em 01 jun. 2021.

33 CANOFRE, Fernanda. "Famílias de Vítimas em Brumadinho Enfrentam Recursos da Vale para Indenizações". Folha de S.Paulo (online). Publicado em 13 ago. 2020. Disponível aqui. Acesso em 01 jun. 2021.

34 FALECK, Diego. Introdução ao Design de Sistemas de Disputas: Câmara de Indenização 3054. Revista Brasileira de Arbitragem. Porto Alegre e Curitiba, ano V, n. 23, p. 7-32, jun.-ago.set. 2009.

35 Disponível aqui. Acesso em 30 de mai.2021.

36 Disponível aqui. Acesso em 30 de mai.2021.

37 OLIVEIRA, Josmeyr Alves de. SEIDL, Ruben M. Indenização em acidentes aéreos: lições aprendidas de casos reais. Acidente aéreo: o que todo familiar de vítima pode e deve saber. ASSALI, Sandra (coordenadora), 1 ed. São Paulo: ASA, 2021, p. 223-224.

38 FALECK, Diego. Manual de Design de Sistemas de Disputas: criação de estratégias e processos eficazes para tratar conflitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p.168.