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A responsabilidade civil pela crise dos opióides nos EUA

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Atualizado às 09:18

Empresas de vários setores enganaram o público ao esconder os riscos de seus produtos. Fabricantes de açúcar camuflaram os perigos do xarope de milho com alto teor de frutose e desviaram a atenção do público para a gordura, causando uma epidemia de diabetes, obesidade e doenças cardíacas. Empresas de combustíveis fósseis manipularam o público sobre as causas, certezas e efeitos do aquecimento global, resultando em emissões massivas de CO2 não regulamentadas e causando uma das maiores ameaças à humanidade.

Por sua vez, os fabricantes de opióides camuflaram os perigos e a dependência dos analgésicos, levando à crise dos opióides.

Segundo o Professor Wes Henricksen, todos esses esquemas pertencem a uma categoria de ilícitos denominada "Esquemas de fraude pública para ocultar os perigos do produto". Estes esquemas não se enquadram em nenhuma estrutura tradicional de delitos e aqueles que são prejudicados não têm como buscar reparação contra os transgressores. Ilustrativamente, se um vendedor de carros usados não divulgar que um carro à venda sofreu um acidente ou errar a quilometragem em seu hodômetro, essa conduta enganosa é rotulada de "fraude" e punida de acordo com a lei. A pessoa prejudicada pela fraude pode pedir indenização ao vendedor ou à concessionária de automóveis. No entanto, quando um fabricante de opióides afirma que seus analgésicos são totalmente seguros e não causam dependência, e ainda oculta estudos que demonstram a falsidade de ambas as afirmações, a conduta enganosa não é chamada de fraude. Pelo contrário, é permitida. A declaração falsa do vendedor de carros usados tem um pequeno efeito sobre um indivíduo, o comprador. Se acreditar em suas mentiras, o comprador perde dinheiro. A declaração falsa do fabricante do opióide possuí um efeito muito maior, em um número massivo de pessoas. Vício, sofrimento e morte não só podiam resultar dessa mentira, mas também resultavam dela e continuam a acontecer todos os dias.1

Os problemas de saúde pública têm uma economia política enraizada que refletem a distribuição de poder na sociedade e moldam suas respostas políticas. Conforme ensinam os Professores de Stanford, Cuéllar & Humphreys,2 a resposta política à explosão do uso, dependência e overdose de opióides nos EUA - desencadeada pela quadruplicação da sua prescrição a partir de meados da década de 1990 - requer uma compreensão dos incentivos e pressões institucionais associadas à distribuição e uso de drogas legais aditivas e particularmente como essas pressões podem diluir a eficácia da governança regulatória. As empresas farmacêuticas e médicos encontraram uma combinação de brechas regulatórias bem como frouxos padrões de fiscalização estadual e federal. As clínicas de dor e as "fábricas de remédios" de prescrição proliferaram. Para as empresas farmacêuticas, a capacidade de comercializar drogas aditivas por meio de relacionamentos íntimos com médicos foi facilitada por uma variedade de estratégias legais que permitiram a "cegueira intencional" por parte dos médicos, o que limitava seu risco de responsabilidade administrativa e criminal. A responsabilidade civil lança uma sombra sobre alguns aspectos da epidemia de opióides, pois o seu alcance neste contexto depende das restrições que afetam o litígio e acesso aos tribunais (incluindo limites para ações coletivas e remédios jurídicos).

Em 9/11/21, a Suprema Corte de Oklahoma anulou um veredicto de US$ 465 milhões contra a Johnson & Johnson, acusada de criar um public nuisance por meio de uma campanha de marketing enganosa que promovia o uso de opióides. Para a Suprema Corte Estadual a campanha de marketing de opióides da fabricante não pode ser equiparada a um ilícito porque dizia respeito à venda de um produto legal. A decisão de 1. Grau havia declarado a responsabilidade da demandada, por entender que este ilícito não exige demonstração de interferência na propriedade alheia, sendo suficiente a interferência com os direitos da comunidade em geral. Inclusive dois outros réus no caso - as fabricantes Purdue Pharma e Teva Pharmaceuticals - haviam aceitado um acordo antes do julgamento. A Suprema Corte Estadual considerou que aplicar as leis de public nuisance em face de produtos legais, criaria uma responsabilidade ilimitada para aqueles que fabricam, comercializam e vendem produtos legais. O ilícito de interferência no direito à saúde envolveria animais doentes, água potável poluída ou despejo de esgoto em uma propriedade, fatos que não geram qualquer benefício à comunidade. Todavia, os opióides prescritos têm um uso benéfico no tratamento da dor. Em complemento, a Corte admitiu que a Johnson & Johnson estava ou deveria estar ciente dos perigos associados ao abuso e dependência de opióides e, portanto, poderia ter alertado o público. Contudo, a falha na publicidade remete à responsabilidade pelo produto (product liability), um delito que é distinto de um public nuisance. O tribunal citou o Restatement (Third) of Torts, que embasou decisões nas quais a maioria dos tribunais rejeitou as teorias de public nuisance em casos envolvendo produtos que causaram danos. Outro argumento para afastar a obrigação de indenizar é que os fabricantes de opióides não têm controle sobre o uso indevido de seus produtos após a venda. O tribunal fez um paralelo com casos que rejeitam responsabilidade dos fabricantes de armas, sob o fundamento de que teriam o dever de mitigar o risco de tráfico ilegal e também considerou que tratar o caso como aplicação da teoria do public nuisance seria uma forma de contornar regras sobre prazos prescricionais, tornando os demandados continuamente responsável por seus produtos", em uma espécie de responsabilidade infinita (endless liability).

Um fato importante é que esta decisão é a segunda que, no intervalo de um mês, neste mês em que um tribunal lida com a alegação de public nuisance contra fabricantes de opióides. Em uma demanda que evidencia a epidemia de opióides - que custou a vida de mais de 700.000 americanos - a um custo de mais de 500 bilhões de dólares para a economia nos últimos vinte anos - em média 130 pessoas morrem todos os dias de uma overdose de opióides (com agravamento durante a pandemia), surpreendentemente quatro fabricantes de opióides conquistaram a primeira grande vitória legal da indústria farmacêutica. Um juiz do Tribunal Superior Estadual do Condado de Orange, (Califórnia), decidiu que os demandantes não conseguiram mostrar quantas receitas clinicamente desnecessárias foram prescritas como resultado de alegado marketing enganoso por parte dos fabricantes de opióides. Mesmo que fosse possível inferir que o marketing enganoso causou um aumento nas prescrições inadequadas, não havia evidências que demonstrassem o quanto o volume de tais prescrições contribuiu para um incômodo público. Vale dizer, os demandantes não conseguiam distinguir o aumento nas prescrições legítimas de analgésicos aprovados pelo governo federal daquelas prescrições ilegítimas ou de outra forma ilícitas. Mesmo que as empresas tenham perpetrado marketing falso ou enganoso - relatou o juiz - "quaisquer consequências adversas subsequentes decorrentes de prescrições medicamentem adequadas não ofereceram evidências para mostrar que, sem especulação generalizada, o volume dessas prescrições ajudou a criar o incômodo público e, em caso afirmativo, em que medida".

Ambas as decisões ressaltam o que os experts jurídicos afirmaram desde o início sobre o litígio de opióides: que a tentativa de repartição da responsabilidade (apportioning responsibility) seria muito difícil, porque os opióides passam por uma série de entidades - incluindo fabricantes, distribuidores de suprimentos médicos, médicos e farmácias, incluindo grandes varejistas - até alcançarem o paciente. Com efeito, já existem demandas contra redes de farmácias e distribuidores.

Em termos de estratégia nacional para as várias ações coletivas propostas contra fabricantes de opióides, os precedentes de Oklahoma e Califórnia podem influenciar os demandantes a aceitar uma proposta de acordo nacional de US$ 5 bilhões feita pela Johnson & Johnson (no caso a sua divisão farmacêutica, Janssen, que fabricava seus opióides) na medida em que se os próximos casos forem litigados ao invés de acordados, haja oportunidades para os réus obtenham novas vitórias. Nessa linha, outra fabricante - Teva - afirmou que uma vitória clara para os muitos pacientes nos EUA que sofrem de dependência de opióides só virá quando forem finalizados acordos abrangentes e os recursos forem disponibilizados para todos os que deles precisam.

É difícil prever se as decisões são atípicas, pois se tratam dos primeiros casos decididos entre milhares que empregam estratégias de defesa semelhantes. De qualquer forma, na avaliação dos experts, o jogo apenas começou, não apenas em Oklahoma e Califórnia, como em vários outros Estados norte-americanos. Ou seja, outros juízes poderão divergir dos precedentes e reputar a abordagem macro dos demandantes persuasiva. Especificamente na Califórnia, o Estado irá recorrer. Segundo os advogados: "O povo da Califórnia terá a oportunidade de buscar justiça em apelação e garantir que nenhum fabricante de opióides possa se envolver em práticas corporativas imprudentes que comprometam a saúde pública no estado para seu próprio lucro".

Inegavelmente, dois dados objetivos ameaçam o êxito destas demandas. Primeiramente, o fato da medicação ser aprovada pelo governo federal. Ademais, é um grande desafio estabelecer o nexo causal entre as corporações e o tráfico ilegal de opióides. As empresas demandadas estabeleceram a necessidade de os demandantes precisarem exatamente qual seria o seu comportamento de marketing ilegal que causou a epidemia de opióides ou se a crise teria surgido de qualquer maneira.

Em um contexto mais amplo, a utilização do public nuisance também não funcionou para aqueles prejudicados por outros esquemas, seja um fumante que desenvolveu câncer de pulmão causado pela fumaça do tabaco, seja por demandantes que tenham processado empresas de combustíveis fósseis e emissores de gases de efeito estufa, com base no aquecimento global. O problema é que a tese do public nuisance não aborda a fraude proposital dos esquemas corporativos. Embora envolvam claramente um comportamento enganoso que intencionalmente engana o público em busca de vantagens econômicas, os esquemas passam imunes pois não há responsabilidade civil baseada em fraude que ofereça aos reclamantes prejudicados uma alternativa viável para buscar indenizações contra os infratores. Consequentemente, os demandados lucram imensamente, enquanto as vítimas continuam a sofrer danos econômicos e físicos e, em muitos casos, morte, como resultado dos esquemas enganosos.

À primeira vista, a responsabilidade objetiva pelo produto distribuído ou fabricado com defeito, que entra no fluxo do comércio e causa danos aos consumidores (product liability), seria o ilícito que forneceria um caminho viável para que os reclamantes prejudicados buscassem reparação contra os infratores. Por mais que essa demanda exima o demandante da prova de previsibilidade, ela ignora a natureza ilícita da conduta. Assim, o dano reparado não teria sido causado pela conduta aqui em causa, que é a fraude do demandado. Além disso, os demandantes enfrentariam enormes obstáculos para provar que o produto em questão era "excessivamente perigoso", uma exigência fundamental. Independentemente de qual teste será aplicado - expectativa do consumidor ou risco-utilidade - o réu é capaz de fazer uso de "ciência comprada e paga" gerada por cientistas financiados pela indústria para argumentar que o produto não era excessivamente perigoso.

Outra via possível em tese seria o ajuizamento de demandas fundamentadas na negligência. O ilícito de negligence é o principal tort das jurisdições do common law, consistindo na falha em exercer o padrão de cuidado que uma pessoa razoavelmente prudente teria exercido em uma situação semelhante. Seus elementos incluem: (1) um dever do demandado de protegê-lo de danos; (2) o não cumprimento desse dever; e (3) danos ao demandante que são reais e proximamente causados pela falha do réu em exercer o dever de cuidado. Reclamações de negligência são inadequadas para o esquema dos opióides, condutas intencionais e ilícitas. Eles não são o resultado de um acidente ou descuido. Além disso, as questões de causalidade que afetam as reivindicações contra os infratores também estão presentes nas ações de negligência. As causas reais e imediatas são potencialmente problemáticas devido à natureza atenuada e de desenvolvimento lento dos danos - como o câncer, aquecimento global e danos ambientais. A negligência, assim como as leis de proteção ao consumidor, falhou em proibir os esquemas, punir aqueles que os executam ou fornecer reparação adequada aos prejudicados por eles.

Para piorar, a fragilidade no arcabouço jurídico norte-americano também inclui a esfera criminal. O problema da prescrição excessiva de opióides persiste porque a lei atual que criminaliza essa conduta não é clara e carece de uniformidade nacional. Portanto, a criação de um novo estatuto federal voltado especificamente para os médicos é a resposta adequada à epidemia de opióides. A promulgação de uma nova lei criminal federal, incorporada ao Código Penal Federal, que visa especificamente cenários que definiram a crise de opióides, é uma estratégia significativamente eficaz, seja para amparar profissionais de saúde engajados em práticas legítimas de controle da dor para continuar utilizando esses medicamentos para aliviar o sofrimento de seus pacientes, mas também como punição apropriada e um impedimento eficaz para médicos cujas práticas de prescrição causam a morte de seus pacientes.3

Diante da insuficiência da tutela atual, a proposta doutrinal é a de colmatar a lacuna legislativa, de forma a promover vários objetivos da política de responsabilidade civil. Como sugere a Professora da Loyola Law School, Rebecca Delfino, a aprovação de uma lei de responsabilidade para protagonistas de esquema de fraudes permitiria transferir as perdas para os responsáveis por causá-la, expandindo o escopo da responsabilidade para aqueles que cometem conduta ilícita intencional. Os demandantes prejudicados pelo consumo de açúcar, produtos do tabaco e analgésicos opióides, bem como aqueles prejudicados pela elevação do nível do mar e outros efeitos causados pelo aquecimento global, são membros do público que não lucrou com o produto perigoso. Pelo contrário, são as empresas que comercializam e vendem os produtos tóxicos, cuja fraude permitiu que os produtos fossem utilizados que causam o dano.4

Voltando à responsabilidade civil, defende-se a aplicação nos EUA daquilo que dispõe o Restatement (Third) of torts: Intentional torts to person (§110) "Se a culpa reside em sua intenção e em seu ato, e não na identificação de uma vítima em particular, então a responsabilidade pela intenção e o ato parece perfeitamente apropriado, mesmo se a vítima em particular não fosse a pretendida .... Além disso, pode-se dizer que um agressor intencional deve assumir o risco de que sua agressão resulte em lesão não intencional ou que o agressor deve ser submetido a incentivos apropriados para deter a agressão".

Vale dizer, assim como a tese da "intenção transferida" foi aplicada a atos ilícitos intencionais, determinando que os infratores não escapem da responsabilidade perante aqueles que foram prejudicados, também os prejudicados pelos esquemas fraudulentos merecem permissão para buscar indenização contra as empresas cujos esquemas fizessem com que seus produtos tóxicos entrassem no fluxo do comércio e causassem danos.

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1 Henricksen, Wes, Deceive, Profit, Repeat: Public Deception Schemes to Conceal Product Dangers (2020). Cardozo Law Review, Forthcoming, Available at SSRN.

2 Cuéllar, Mariano-Florentino and Humphreys, Keith N., The Political Economy of the Opioid Epidemic (December 12, 2019). Yale Law & Policy Review, Vol. 38, No. 1, 2019, Available at SSRN.

3 Delfino, Rebecca, The Prescription Abuse Prevention Act: A New Federal Statute to Criminalize Overprescribing Opioids (February 10, 2020). Loyola Law School, Los Angeles Legal Studies Research Paper No. 2020-03, Forthcoming, to be published in Yale Law & Policy Review Vol. 39 pp. XX (2021), Available at SSRN or here.

4 Henricksen, Wes, Deceive, Profit, Repeat: Public Deception Schemes to Conceal Product Dangers (2020). Cardozo Law Review, Forthcoming, Available at SSRN.