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Esquinas do Direito Municipal

Espaço de reflexão e diálogo sobre os temas que atravessam a vida das cidades brasileiras.

Rafael Carvalho Rezende Oliveira, Andrea Veloso Correia e Arícia Fernandes Correia
É relativamente frequente a utilização dos contratos de patrocínios no âmbito da Administração Pública, com o objetivo de incentivar eventos ou projetos de interesse público e reforçar a imagem institucional da Administração Pública patrocinadora. Mencione-se, exemplificativamente, a concessão de patrocínio para realização de shows musicais, realização do carnaval, competições esportivas, feiras científicas, Fórmula 1, corrida de São Silvestre etc. Não obstante a celebração frequente de contratos de patrocínio na Administração Pública, o tema ainda carece de maior aprofundamento jurídico, especialmente pela ausência de tipificação legislativa do ajuste e pelas discussões advindas, casuisticamente, dos patrocínios realizados pelos diversos Entes da Federação, normalmente marcadas por dúvidas quanto à conveniência do patrocínio e das razões para escolha do evento patrocinado.  Além de viabilizar a realização de eventos privados, que tenham relevância para a coletividade, relacionados ao desenvolvimento econômico, esportivo, social, turístico, cultural, artístico, entre outros interesses coletivos, o patrocínio concedido pela Administração pública possibilita a divulgação do nome e símbolos da entidade estatal patrocinadora, com reforço da sua imagem e reputação institucional perante o público específico do evento ou o público em geral.  Naturalmente, a reputação institucional não se constrói a partir apenas da concessão de patrocínios, com a vinculação da imagem da Administração Pública a eventos ou projetos de relevância pública. Vários fatores são relevantes para boa reputação institucional, tais como:1 instrumentos de governança e compliance; capacitação permanente de servidores públicos; cumprimento efetivo dos ajustes celebrados pela Administração Pública; canais de participação dos particulares na tomada de decisões públicas; transparência; etc. Existem várias razões para que as instituições públicas se preocupem com a sua reputação positiva, uma vez que a confiança gerada nas referidas instituições acarreta externalidades positivas, destacando-se, exemplificativamente: a) maior deferência dos órgãos de controle em relação às decisões adotadas pelo órgão ou entidade administrativa;2 b) maior economicidade nas contratações públicas, em razão da sensação de menor risco de inadimplemento estatal gerada pela boa reputação nos pagamentos tempestivos de suas obrigações; c) maior facilidade na obtenção de financiamentos, inclusive no contexto internacional, já que a boa reputação interfere diretamente nos riscos que são avaliados pelos financiadores; etc. Ainda que existam outros instrumentos jurídicos, inclusive mais efetivos, que reforçam a visão positiva dos órgãos e entidades estatais, não se pode olvidar que a concessão de patrocínio pode auxiliar, em alguma medida, para o reforço positivo da reputação institucional da Administração Pública e da confiança nas instituições estatais. Em síntese, o patrocínio público de eventos privados de relevância pública tem dois objetivos principais: a) fomentar a realização dos referidos eventos, com a satisfação do interesse público; e b) reforçar positivamente a imagem e a reputação institucional do órgão ou entidade administrativa. Inserido no Direito Privado, o contrato de patrocínio pode ser considerado contrato privado atípico (art. 425 do CC), em razão da ausência do detalhamento legislativo dos seus contornos jurídicos. Ademais, o contrato de patrocínio também pode ser considerado bilateral e oneroso, uma vez que ambas as partes (patrocinadora e patrocinado) assumem direitos e deveres, prestações e contraprestações.  Aliás, a partir da ideia de que o contrato de patrocínio é oneroso, afasta-se a sua qualificação como convênio ou instrumento congênere, que exigiria a convergência de interesses entre os partícipes.3 No mesmo sentido, o enunciado PGM 49 da Procuradoria do município do Rio de Janeiro dispõe:  "Enunciado PGM nº 49 - Estabelece a diferenciação das hipóteses jurídicas entre Contrato de Patrocínio e Convênio de Fomento. 'Contrato de patrocínio' é o instrumento formal de apoio prestacional (pagamento de quantia, fornecimento de bens ou serviços, etc.) a projetos e/ou atividades de terceiros, com o objetivo direto de divulgar o nome, a imagem e/ou a marca da entidade patrocinadora (Município do Rio de Janeiro, suas autarquias, fundações e/ou estatais) e, com isso, mediatamente, atender ao interesse público. Trata-se de contrato privado da administração, atípico, bilateral e oneroso.  'Convênio de fomento' é o instrumento formal de apoio e promoção a projetos e/ou atividades de terceiro que atendam diretamente ao interesse público, por meio do desenvolvimento social (incluídos os prismas cultural, esportivo, artístico, científico, assistencial, educacional, de saúde ou bem-estar dos munícipes - 'fomento social') e/ou do desenvolvimento econômico de atividades de relevância social ou interesse geral ('fomento econômico'). Cuida-se de espécie de convênio administrativo, ou seja, pacto onde os interesses dos participantes convergem a um objetivo/interesse comum, podendo sua instrumentalização ocorrer sob diferentes modalidades (ex. termo de fomento, convênio stricto sensu)."  Independentemente da natureza jurídica do patrocínio, entendemos que a prestação de contas representa medida imperativa, especialmente para verificar se a cota de patrocínio foi efetivamente utilizada para realização do evento/projeto patrocinado e se as contrapartidas foram cumpridas pela entidade patrocinada.4 Ademais, é oportuno mencionar que o contrato de patrocínio não se confunde com contrato de publicidade. Enquanto no contrato de patrocínio a Administração Pública apoia um projeto privado e associa a sua imagem ao respectivo evento e à imagem da entidade patrocinada, no contrato de publicidade, a Administração Pública contrata sociedade empresária especializada em publicidade para prestação de serviços que têm por objetivo promover a venda de bens ou serviços, difundir ideias ou informar o público em geral. A associação de imagens entre o patrocinador e o patrocinado é uma característica marcante do contrato de patrocínio que não é encontrada no contrato de publicidade.5 A partir das considerações acima, é possível conceituar o contrato de patrocínio ativo como contrato de Direito Privado da Administração Pública, atípico, oneroso e submetido ao regime jurídico predominantemente privado, por meio do qual a Administração Pública (patrocinadora) divulga o seu nome, imagem e/ou marca, mediante pagamento de valores ou fornecimento de bens e serviços (cota de patrocínio) à entidade privada (patrocinada) que realiza evento de relevância pública e tem o dever de divulgar o nome, imagem e/ou marca da entidade patrocinadora. Não é necessária a exigência de autorização legal específica ou tipificação prévia para celebração de contratos pela Administração Pública, especialmente pelo fato de que a atividade contratual é fundamental para promoção do interesse público, por meio da efetivação dos direitos fundamentais. É recomendável, todavia, a expedição de atos normativos para definição de regras procedimentais e substantivas relacionadas aos contratos de patrocínio no âmbito de cada Ente federado, com os objetivos de garantir segurança jurídica e isonomia aos referidos ajustes e de efetivar os princípios moralidade, publicidade, eficiência e demais princípios que devem ser observados em qualquer atuação estatal.6 Nesse contexto, é salutar que, respeitada a autonomia federativa, as regulamentações dos contratos de patrocínio estabeleçam disposições relacionadas a tópicos relevantes da contratação, que garantem boas práticas administrativas, em especial: a) requisitos para celebração dos contratos (exs: justificativa para escolha do projeto/evento, rol de documentos que devem ser exigidos na contratação, publicidade); b) hipóteses em que o patrocínio será vedado (exs: pessoas declaradas inidôneas, proibição de promoção pessoal de agentes públicos, divulgação de partidos políticos, eventos que acarretam ofensa à raça, ao sexo ou à origem social); c) procedimentos para apresentação da proposta de patrocínio que pode ocorrer por iniciativa do particular, responsável pelo evento, ou da própria Administração Pública; d) modalidades de contraprestação da Administração Pública (exs: recursos financeiros, cessão de bens, serviços); e) as contrapartidas decorrentes do patrocínio (exs: divulgação da marca/nome da Administração Pública patrocinadora do evento, reserva de cotas de convites, ingressos e credenciais à entidade patrocinadora); f) limitação de gastos orçamentários com patrocínios estatais; e g) regras de prestação de contas pela entidade patrocinada.  A partir do quadro normativo constitucional e infraconstitucional vigente, é possível perceber que o ordenamento jurídico não exige a realização de licitação para celebração de contratos de patrocínio. No referido ajuste, a Administração Pública não contrata terceiros para fornecimento de bens ou serviços, o que afasta a incidência do art. 37, XXI, da CRFB e do art. 2º da lei 14.133/21.7 O objetivo, de fato, é contribuir com valores ou fornecimento de bens e serviços (cota de patrocínio) à entidade privada (patrocinada), que é a responsável pela organização e execução do evento, com o objetivo de divulgar o nome, imagem e/ou marca da Administração Pública patrocinadora. A Administração Pública, ao celebrar o contrato de patrocínio, não contrata a realização do evento, mas apoia o evento organizado e executado pelos particulares por entender a sua relevância pública e o potencial reforço da reputação institucional da Administração perante o público-alvo do evento ou a coletividade em geral.8 Reitere-se, mais uma vez, que o contrato de patrocínio não se insere na definição de contrato administrativo regulado pela lei 14.133/21, inexistindo a aplicação automática de cláusulas exorbitantes na avença, o que afasta a aplicação preponderante do Direito Público, inclusive do procedimento licitatório.9 Nesse sentido, o STF já decidiu que o contrato de patrocínio não se caracteriza como contrato administrativo submetido à licitação.10 Ainda que seja considerado aplicável, de forma supletiva, o regime jurídico de Direito Público aos contratos de patrocínio, a licitação seria inexigível, em razão da inviabilidade de competição, na forma do art. 74, caput, da lei 14.133/21. A celebração do contrato de patrocínio pode ser caracterizada como hipótese de inexigibilidade de licitação, uma vez que a concessão do patrocínio decorre das características personalíssimas, únicas ou singulares do evento que será patrocinado, com a impossibilidade de competição, e dos potenciais benefícios que serão gerados para a imagem institucional da Administração Pública.11 A inexigibilidade de licitação e a aplicação do regime predominantemente privado aos contratos de patrocínio não impede a aplicação, no que couber, de normas de Direito Público, desde que compatíveis e necessárias ao cumprimento adequado dos princípios aplicáveis à Administração Pública. Afigura-se razoável, por exemplo, a exigência de demonstração da habilitação jurídica e fiscal do contratado, com o intuito de certificar a existência jurídica e a regularidade fiscal que é exigida, inclusive pelo art. 195, § 3º, da CRFB,12 mas não a demonstração de regularidade trabalhista, uma vez que o contrato de patrocínio não envolve a prestação de serviços, com dedicação predominante ou exclusiva de mão de obra, e não possui natureza continuada. Frise-se, ainda, que a inexigibilidade de licitação deve levar em consideração as circunstâncias concretas da contratação do patrocínio, com a demonstração de que o evento a ser patrocinado possui características únicas e singulares. Em determinados casos, contudo, a concessão de patrocínio pode ser precedida de procedimentos administrativos simplificados, com critérios isonômicos, objetivos e transparentes, nas situações em que o patrocínio é pela Administração Pública para eventos ou projetos que preencham os requisitos previamente estabelecidos no edital de chamamento público.  Ao lado da concessão de patrocínio pela Administração Pública (patrocínio ativo) aos eventos ou projetos privados de relevância pública, que foi analisado até o momento, afigura-se possível também que os particulares ou até mesmo outras entidades administrativas patrocinem eventos ou projetos realizados pela Administração Pública (patrocínio passivo). Aliás, o patrocínio privado concedido à Administração Pública pode ser considerado relevante instrumento viabilizador da realização de eventos públicos que, naturalmente, atendem os interesses da coletividade, notadamente se considerarmos a escassez de recursos públicos e as limitações impostas pela LC 101/00. Assim como ocorre com o patrocínio ativo, o contrato de patrocínio passivo também é enquadrado como contrato de Direito Privado da Administração Pública, atípico, oneroso e submetido ao regime jurídico predominantemente privado, mas com os polos contratuais invertidos: a entidade privada (patrocinadora), com o objetivo de divulgar o seu nome, imagem e/ou marca, transfere recursos financeiros, bens ou serviços (cota de patrocínio) ao órgão ou entidade administrativa (patrocinada) para auxiliar a realização do evento ou projeto estatal. Os argumentos apresentados para o afastamento da licitação e da lei 14.133/21 da concessão de patrocínio pela Administração Pública são, em grande medida, aplicáveis ao patrocínio concedido por particulares aos eventos promovidos pelo Poder Público. Ressalvada a inexigibilidade de licitação ou de procedimento seletivo similar, a Administração Pública, na captação de patrocínios, deve realizar, em regra, processo administrativo seletivo simplificado, com regras objetivas, impessoais e transparentes, definidas em edital de chamamento público, com a seleção do particular que patrocinará o evento público, com a cautela de avaliar se a reputação da entidade privada patrocinadora é compatível com o interesse público subjacente ao evento.13 Abre-se o caminho, ainda, para realização do citado processo de chamamento público para credenciamento de entidades privadas, que preencherem os requisitos previamente estabelecidos no edital, para patrocínio do evento ou projeto público. Nessa hipótese, todas as entidades privadas, que cumprirem as exigências do edital de credenciamento, serão obrigatoriamente credenciadas e poderão associar o nome, a imagem e/ou a marca ao evento ou projeto público, mediante a transferência da cota de patrocínio.14  Em conclusão, é possível perceber que apesar da ampla utilização prática dos contratos de patrocínio no âmbito da Administração Pública, a ausência de critérios procedimentais e substanciais uniformes no ordenamento jurídico acarreta, em certa medida, insegurança jurídica e abre caminho para desvios de finalidades na utilização dos contratos de patrocínio, contrariando, em última análise, o interesse público. Nesse cenário, a jurisprudência e parcela da doutrina apresentam balizas importantes que buscam compatibilizar a utilização do contrato de patrocínio com os princípios gerais da Administração Pública.  Além de descrever o estado da arte do contrato de patrocínio no cenário brasileiro, o presente estudo apresentou as boas práticas a serem observadas pela Administração Pública, com a recomendação de edição de atos normativos para incorporação dos referidos parâmetros na concessão de patrocínio aos eventos privados. Sem olvidar a relevância dos patrocínios ativos e passivos, é preciso evitar o uso indevido de patrocínios na Administração Pública, o que exige foco no planejamento, na isonomia, na fiscalização, na transparência e no controle das respectivas contratações. Em suma, os institutos jurídicos, ainda que sejam previstos com boas intenções, devem ser testados e analisados na sua aplicação prática para que não sejam desvirtuados. ___________________________ 1 BENEDETTO, Maria de; LUPO, Nicolo; RANGONE, Nicoletta. The crisis of confidence in legislation. Baden-Baden: Nomos, 2020, p. 36. 2 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Ativismo judicial, pragmatismo e capacidades institucionais: as novas tendências do controle judicial dos atos administrativos. Revista Brasileira de Direito Público - RBDP, Belo Horizonte, v. 10, n. 39, p. 9-34, out./dez. 2012. 3 No mesmo sentido: RIBEIRO, Erick Tavares. Os contratos de patrocínio com o Estado como forma de fomento ao turismo no país. Fórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 13, n. 156, p. 27, dez. 2014.  Em sentido contrário: FREITAS, Rafael Véras de. O regime jurídico dos contratos de patrocínio celebrados pelo Poder Público, Revista de Direito Público da Economia - RDPE, Belo Horizonte, ano 11, n. 43, p. 221, jul./set. 2013.  4 Nesse sentido: TCU, Acórdão 1544/2025, Plenário, Rel. Min. Aroldo Cedraz, data da sessão 16/07/2025; TCU, Acórdão 900/2019, Plenário, Rel. Min. Benjamin Zymler, data da sessão 16/04/2019; TCU, Acórdão 2594/2013, Plenário, Rel. Min. Walton Alencar Rodrigues, data da sessão 25/09/2013. 5 TRF4, Apelação Cível 5023905-83.2013.4.04.7100, 4ª Turma, Rel(a). Vivian Josete Pantaleão Caminha, data da publicação: 03/11/2021. De forma semelhante: ALVES, Diego Prandino. A Administração Pública patrocinadora: o contrato de patrocínio como instrumento de concretização do interesse público. Revista Digital de Direito Administrativo, vol. 4, n. 2, p. 146, 2017. 6 Em âmbito federal, por exemplo: art. 3º, IV, do Decreto 6.555/2008; Instrução Normativa 2/2019 da SECOM. Nas empresas estatais, vide: art. 27, § 3º, da Lei 13.303/2016. Alguns Entes federativos regulamentaram a concessão de patrocínio, cabendo mencionar, exemplificativamente: Município do Rio de Janeiro (Decreto Rio 53.521/2023), Distrito Federal (Decreto 36.451/2015), Goiás (Lei 23.052/2024), Piauí (Decreto 22.822/2024), Acre (Decreto 11.348/2023). 7 Nesse sentido: PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres; DOTTI, Marinês Restelatto. Fórum de Contratação e Gestão Pública - FCGP, Belo Horizonte, ano 16, n. 189, p. 43, set. 2017. 8 TCU, Acórdão 2770/2018, Plenário, Rel. Min. Vital do Rego, data da sessão 28/11/2018. 9 Sobre a distinção entre contratos administrativos e contratos privados da Administração Pública, vide: OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Licitações e contratos administrativos: teoria e prática, 14 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2025, p. 145-146. 10 STF, RE 574636/SP, Rel(a). Min(a). Cármen Lúcia, Primeira Turma, DJe 14/10/2011. No mesmo sentido: TJ/RJ, Arguição de Inconstitucionalidade 0015401-22.2009.8.19.0001, Rel. Des. Mauro Dickstein, Órgão Especial, data da Publicação: 13/07/2001. 11 Nesse sentido, no contexto da antiga Lei de Licitações: TCU, Decisão 953/1999, Plenário, Rel. Min. Humberto Guimarães Souto, data da sessão 15/12/1999; TCU, Decisão 855/1997, Plenário, Rel. Min. Adhemar Paladini Ghisi, data da sessão 03/12/1997. 12 Nesse sentido: art. 20 da Instrução Normativa SECOM 2/2019; Acre (art. 7°, III, do Decreto 11.348/2023); Goiás (art. 8°, §3º, da Lei 23.052/2024) e Piauí (art. 8°, §2º, do Decreto 22.822/2024). 13 Sobre o tema, podem ser citadas, por exemplo, a Lei 23.052/2024 do Estado de Goiás e a Lei 22.135/2024 do Estado do Paraná. 14 TCE/MG, Processo 1088802, Rel. Conselheiro Durval Angelo, data da publicação: 26/08/2025.
1. Introdução: A crise econômica bate à porta das estatais As empresas estatais, sejam elas empresas públicas ou sociedades de economia mista, não estão imunes aos riscos do mercado. Tal como as suas congêneres privadas, estão sujeitas a crises econômico-financeiras decorrentes de má gestão, oscilações de mercado, passivos vultosos ou incapacidade de competição. Um exemplo recente e notório é a situação da empresa brasileira de Correios e Telégrafos (Correios) que, diante de um déficit financeiro significativo, avalia a necessidade de vultosos empréstimos para garantir sua operação, evidenciando que a participação estatal no capital social não é, por si só, uma garantia de solvência perpétua1. O ordenamento jurídico brasileiro, contudo, sempre tratou essas entidades de forma ambivalente. A CF/88 segmentou a atuação estatal, distinguindo, grosso modo, as empresas estatais prestadoras de serviços públicos (muitas vezes em regime de monopólio ou exclusividade, como companhias de saneamento ou transporte urbano) daquelas que exploram atividade econômica em sentido estrito, atuando em regime de concorrência com a iniciativa privada (como o Banco do Brasil ou a Petrobras). Essa dualidade funcional levanta uma questão central no Direito Empresarial e Administrativo: se uma estatal, que compete no mercado e age sob a lógica privada, poderia fazer uso dos mesmos instrumentos legais que seus concorrentes em caso de insolvência? Ou seja, seria cabível a aplicação da lei 11.101/05 (LREF - lei de recuperação judicial, extrajudicial e falência) a essas entidades? Por décadas, a doutrina e a jurisprudência oscilaram. Recentemente, o STF foi instado a pacificar a matéria no julgamento do RE 1.249.945/MG (Tema 1.101), cuja decisão será o cerne deste artigo. 2. O Estado empresário: A tensão entre o regime de Direito Público e o de Direito Privado A intervenção do Estado no domínio econômico é uma faculdade prevista no art. 173, caput, da CF/88, mas de natureza excepcional, justificada apenas quando "necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo". Para exercer tal mister, o Estado cria pessoas jurídicas de Direito Privado - as empresas públicas e sociedades de economia mista. Ocorre que o § 1º do mesmo art. 173 impõe a essas entidades um regime jurídico híbrido, fonte de toda a tensão dogmática. Especificamente, o inciso II do § 1º determina "a sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários". Este dispositivo é o principal argumento dos que defendem a aplicação da LREF às estatais, sob o argumento da isonomia e da livre concorrência (art. 170, IV, CF/88). Se a estatal compete, deve competir em igualdade de condições, suportando os mesmos riscos, inclusive o da falência. Em contrapartida, essas entidades não se desvinculam totalmente de sua origem pública. Sua criação depende de autorização legislativa específica (art. 37, XIX, CF/88) e sua finalidade, mesmo quando lucrativa, está atrelada ao "relevante interesse coletivo" que justificou sua fundação. Elas estão sujeitas ao controle dos Tribunais de Contas e, em muitos aspectos, aos princípios da Administração Pública. Essa tensão gera a dúvida central: quando uma estatal entra em crise, qual regime deve prevalecer? O regime de Direito Privado, que aponta para a recuperação judicial, extrajudicial ou a falência como solução para a insolvência; ou o regime de Direito Público, que invoca o interesse coletivo e a supremacia do interesse público para afastar as soluções de mercado? 3. A oscilação da legislação e a pacificação da matéria pelo STF (Tema 1.101) A incerteza sobre o tema não é nova e foi alimentada por uma verdadeira oscilação legislativa, que por sua vez fomentou três correntes doutrinárias distintas. 3.1. Do art. 242 da lei das S.A. à LREF Historicamente, o debate foi pautado pelo antigo art. 242 da lei 6.404/76 (lei das sociedades por ações), que previa expressamente: "As companhias de economia mista não estão sujeitas à falência [...]". Este dispositivo era alvo de duras críticas dos comercialistas, que o viam como um privilégio odioso e inconstitucional frente ao já mencionado art. 173, § 1º, II, da CF/88. Em 2001, a lei 10.303/01, que reformou a LSA, finalmente revogou o art. 242. Esse movimento legislativo foi comemorado por parte da doutrina como o alinhamento do sistema à Constituição, passando-se a admitir a falência das sociedades de economia mista. Contudo, a aparente pacificação durou pouco. Em 2005, adveio a nova lei de recuperação e falência (lei 11.101/05), que, em seu art. 2º, inciso I, estabeleceu categoricamente: "Art. 2º. Esta Lei não se aplica a: I - empresa pública e sociedade de economia mista;" O legislador, portanto, reintroduziu a vedação2, agora de forma ainda mais ampla (incluindo empresas públicas) e no diploma central de insolvência. A controvérsia foi restabelecida, agora focada na (in)constitucionalidade deste novo dispositivo. 3.2. As três correntes doutrinárias Diante desse cenário, a doutrina se cindiu, conforme bem sintetizado no voto do ministro Flávio Dino no RE 1.249.9453: Primeira corrente (inconstitucionalidade total): Sustentava a inconstitucionalidade do art. 2º, I, da LRF, por afronta direta ao art. 173, § 1º, II, da CF/88. Sob essa ótica, a submissão ao regime privado é plena, incluindo o regime de insolvência, como corolário da livre concorrência. Segunda corrente (interpretação conforme): Defendia uma interpretação conforme a Constituição. O veto da LREF seria legítimo apenas para as estatais prestadoras de serviço público em regime não concorrencial (que se submetem ao regime de precatórios). Contudo, o veto seria inconstitucional para as estatais que exploram atividade econômica em regime de concorrência, pois estas deveriam, sim, submeter-se à LREF. Terceira corrente (constitucionalidade plena): Afirmava a plena constitucionalidade do art. 2º, I, da LRF. O fundamento central é dúplice: (a) o "relevante interesse coletivo" (art. 173, caput) que justifica a criação da estatal é superior aos interesses privados dos credores; e (b) a aplicação do princípio do paralelismo das formas (ou simetria das formas), segundo o qual, se a entidade foi criada por autorização legislativa (art. 37, XIX), somente por lei pode ser extinta, e não por uma decisão judicial falimentar. 3.3. A decisão do STF no RE 1.249.945 (Tema 1.101) No caso concreto, a ESURB - Empresa Municipal de Serviços, Obras e Urbanização de Montes Claros/MG, em grave crise econômica, pleiteou sua recuperação judicial, defendendo a tese da segunda corrente (interpretação conforme). O STF, contudo, ao julgar o mérito do RE 1.249.945, com repercussão geral reconhecida (Tema 1.101), rechaçou a pretensão e adotou integralmente os fundamentos da terceira corrente. A Corte fixou a seguinte tese: "É constitucional o art. 2º, I, da Lei nº 11.101/2005 quanto à inaplicabilidade do regime falimentar às empresas públicas e sociedades de economia mista, ainda que desempenhem atividades em regime de concorrência com a iniciativa privada, em razão do eminente interesse público/coletivo na sua criação e da necessidade de observância do princípio do paralelismo das formas." Em seu voto, o relator, ministro Flávio Dino, destacou que a própria existência de uma estatal, mesmo concorrencial, pressupõe um interesse público subjacente que não pode ser ignorado pelo "Estado-Juiz". O argumento decisivo, no entanto, foi o do paralelismo das formas: a falência, ao decretar a extinção da pessoa jurídica, usurparia a competência do Poder Legislativo para autorizar tal extinção. O STF citou o exemplo da RFFSA - Rede Ferroviária Federal S/A, que, ao ser extinta, teve seu destino (incluindo o pagamento de credores) disciplinado por uma lei específica (lei 11.483/07). 4. Conclusão: Pacificação e o limbo das estatais que exploram atividade econômica em regime de concorrência A decisão do STF no Tema 1.101 traz, por um lado, segurança jurídica, pacificando décadas de debate acadêmico4. A regra agora é clara: nenhuma empresa estatal, independente de prestar serviço público ou explorar atividade econômica em regime de concorrência, pode se socorrer dos instrumentos previstos na lei 11.101/05. Contudo, essa pacificação gera um problema para as estatais que atuam em regime de concorrência, expondo um vácuo normativo preocupante. Para as estatais prestadoras de serviço público em regime não concorrencial, a decisão do STF já era, de certo modo, esperada. A própria Suprema Corte, em diversas oportunidades (como na ADPF 1.2115), já havia firmado o entendimento de que tais entidades - desde que não distribuam lucros e não atuem em concorrência - pagam seus débitos judiciais pelo regime de precatórios (art. 100, CF/88), tal como a Fazenda Pública. Para elas, a LREF nunca foi uma alternativa viável. O verdadeiro problema surge para as estatais que atuam em regime de concorrência. A jurisprudência do STF é firme em negar a elas o regime de precatórios, justamente por força do art. 173, § 1º, II. Cria-se, assim, um "limbo" jurídico: A estatal que explora atividade econômica em regime de concorrência e que esteja em crise econômico-financeira não pode se valer do regime de precatórios (pois compete com o mercado); E, agora, por decisão do Tema 1.101, ela não pode se valer da recuperação judicial ou falência (pois é uma estatal). Ao vedar que tais empresas se socorram das ferramentas de reestruturação da LREF, o STF limita drasticamente suas hipóteses de socorro. Diante de uma crise de insolvência, qual alternativa resta a tais estatais? A resposta parece ser única: a estatal terá que recorrer ao tesouro (ente público ao qual está vinculada). Dessa forma, a decisão do STF, embora tecnicamente fundada no princípio do paralelismo das formas, acaba por gerar uma distorção econômica: o risco do insucesso empresarial, que no setor privado é absorvido pelos credores e pelo próprio empresário, é, no caso das estatais que exploram atividade econômica em regime de concorrência, invariavelmente socializado. Ao fim e ao cabo, a conta pela ineficiência ou crise de mercado é paga por todos os contribuintes. __________________________ 1 Conforme reportagem da CNN Brasil ("Correios avaliam empréstimo de R$ 20 bi para salvar caixa até fim de 2026"), a estatal enfrenta graves dificuldades financeiras, necessitando de intervenção para manter sua liquidez. Reportagem disponível aqui. Acesso em 22/10/2025. 2 MEYER, José Alexandre Corrêa. A Sociedade de Economia Mista e Sua Exclusão da Nova Lei de Falências. In: SANTOS, Paulo Penalva (Coord.). A nova lei de falências e de recuperação de empresas: Lei nº 11.101/05. Rio de Janeiro: Forense, 2006. 3 Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 1.249.945/MG. Voto do Relator Min. Flávio Dino. Julgamento concluído em 20/10/2025. 4 Acabou por prevalecer a corrente defendida por JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 12ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 143. Assim, foram afastadas as teses que entendiam inconstitucional o inciso I do art. 2º da LREF, como a defendida por SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. 3. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022, pp. 72/75. 5 Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 1.211/PB. Relator: Min. Flávio Dino. Julgado em 16/06/2025. A decisão reafirmou a aplicação de precatórios à CODATA (Companhia de Processamento de Dados da Paraíba), por ser prestadora de serviço público essencial, sem fins lucrativos e sem concorrência.
A consolidação da governança pública municipal depende da observância dos princípios constitucionais da legalidade orçamentária, da separação dos Poderes e da segurança jurídica. Nesse contexto, o reconhecimento, pelo STF, da submissão das empresas estatais dependentes do município do Rio de Janeiro ao regime constitucional dos precatórios (art. 100 da CF) representa não apenas um avanço jurídico, mas também um marco institucional de fortalecimento da Administração Pública. 1) As estatais municipais e o enquadramento constitucional O município do Rio de Janeiro possui diversas estatais prestadoras de serviços públicos essenciais, entre as quais a CET-Rio - Companhia de Engenharia de Tráfego do Rio de Janeiro, a Comlurb - Companhia Municipal de Limpeza Urbana, a Rioluz - Companhia Municipal de Energia e Iluminação e a RioSaúde - Empresa Pública de Saúde do Rio de Janeiro S.A. Todas essas empresas são integralmente dependentes do erário, atuam em regime não concorrencial e sem finalidade lucrativa, preenchendo os critérios delineados pelo STF nas ADPFs 387, 437, 524, 789 e 1.088, que consolidaram a aplicabilidade do art. 100 da CF/88 às sociedades de economia mista e empresas públicas que desempenham serviços públicos próprios do Estado. 2) Vitórias institucionais e avanços na governança pública O reconhecimento, pelo STF, da sujeição das estatais municipais ao regime constitucional dos precatórios traduz um avanço relevante na consolidação da governança pública e da segurança jurídica. O município do Rio de Janeiro, ao lado de suas empresas, tem obtido decisões que reforçam a importância da gestão responsável das finanças públicas e da observância das prerrogativas inerentes à Fazenda Pública. Na reclamação 79.764/RJ, referente à CET-Rio, o ministro Edson Fachin reafirmou que as estatais dependentes devem observar o regime de precatórios e destacou que "não há preclusão para a discussão a respeito dos privilégios da Fazenda Pública na execução", reconhecendo que tais prerrogativas se aplicam conforme o regime processual vigente no momento da execução e, por conseguinte, afastando o argumento de coisa julgada, muitas vezes utilizado pelo Judiciário Trabalhista para obstar a aplicação do regime de precatórios a essas entidades. Em seguida, na reclamação 83.157/RJ, o ministro Flávio Dino acolheu o pedido formulado pela Comlurb, a fim de lhe garantir a observância do regime constitucional dos precatórios e, ao julgar embargos de declaração opostos pela Comlurb e pelo município, determinou a expedição de ofício ao TRT da 1ª região, para que juízes e desembargadores passem a observar o entendimento do STF em todos os processos envolvendo a Companhia. Com isso, acabou por conferir efeitos mais amplos à decisão proferida, prevenindo a repetição de decisões conflitantes e garantindo a aplicação uniforme do entendimento da Corte Constitucional. O mesmo entendimento foi aplicado à Rioluz na reclamação 86.387/RJ, relatada pelo ministro Alexandre de Moraes, reafirmando a sujeição da estatal ao regime de precatórios e demais prerrogativas da Fazenda Pública. Por fim, a RioSaúde teve reconhecido o mesmo direito no RE com agravo 1.567.026/RJ, relatado pelo ministro Dias Toffoli - caso em que o município, embora não tenha figurado como parte, obteve resultado que reforça o mesmo arcabouço constitucional. Em todos esses casos, verificou-se resistência de parte da Justiça do Trabalho, especialmente no âmbito do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª região, em aplicar o entendimento do Supremo. As decisões do STF, contudo, reforçam a coerência do sistema constitucional e o aprimoramento da governança pública, ao assegurar tratamento jurídico uniforme às empresas estatais dependentes e previsibilidade à execução orçamentária do município. 3) Resistência e riscos à segurança jurídica Apesar da clareza dos precedentes do STF, parte da Justiça do Trabalho, especialmente no âmbito do TRT-1, ainda resiste em aplicá-los de forma uniforme. Essa postura tem gerado insegurança jurídica e desequilíbrio institucional, pois decisões que afastam o regime de precatórios desorganizam o planejamento fiscal, comprometem a isonomia entre credores e impõem custos desnecessários à máquina pública. A persistência desse cenário acarreta prejuízos não apenas ao erário, mas também aos próprios credores, que acabam por enfrentar longos trâmites processuais na tentativa de contornar um regime constitucional que, na prática, lhes garantiria maior previsibilidade e celeridade no pagamento. Importa frisar que a alegação de "coisa julgada" não se sustenta, já que, conforme assentado pelo ministro Edson Fachin na reclamação 79.764/RJ, "não há preclusão para a discussão a respeito dos privilégios da Fazenda Pública na execução". As prerrogativas processuais vinculadas ao regime de precatórios são instrumentos de racionalidade administrativa e de equilíbrio federativo, e não privilégios. A correta aplicação desses parâmetros assegura a primazia da juridicidade e da função pública da Administração, pilares que sustentam o modelo de Estado de Direito e a efetividade da governança pública. 4) A necessidade de uniformidade e a proposta de aprimoramento do sistema jurídico A eficácia concreta das decisões do STF reclama uniformidade de aplicação, sob pena de torná-las inócuas. Permitir que decisões isoladas desconsiderem o que já foi assentado pela Corte Suprema equivaleria a esvaziar a própria razão de ser da reclamação constitucional, instrumento previsto no art. 102, I, "l", da CF/88 e no art. 988, II e III, do CPC, destinado a preservar a autoridade das decisões do Supremo e a integridade da jurisprudência constitucional. A ratio decidendi dessas decisões não se prende ao conteúdo das execuções trabalhistas, mas à natureza jurídica objetiva das estatais dependentes, prestadoras de serviço público essencial, em regime não concorrencial e sem intuito lucrativo. A submissão ao regime de precatórios decorre dessa condição institucional, e não de particularidades processuais. Restringir seus efeitos ao caso concreto revela incompreensão da função integradora da reclamação constitucional, esvaziando sua finalidade e multiplicando demandas idênticas. A prática impõe ao ente público a necessidade de ajuizar centenas de novas reclamações com o mesmo objeto, em afronta aos princípios da celeridade, da economia processual e da eficiência. Essa fragmentação, além de comprometer a autoridade do Supremo, subverte a coerência do sistema jurídico. O Direito deve ser aplicado de forma sistêmica, e não mecanicamente, sob pena de se converter em um fim em si mesmo, dissociado de sua função social de organizar a vida pública. Por isso, de lege ferenda, propõe-se que o STF atribua efeitos erga omnes às decisões proferidas em reclamações constitucionais que versem sobre a natureza jurídica das estatais dependentes, de modo a assegurar uniformidade de aplicação, isonomia entre credores e estabilidade do planejamento orçamentário - conforme defendido pela Procuradoria do município do Rio de Janeiro em manifestação apresentada na reclamação que envolve a CET-Rio 5) Considerações finais O reconhecimento do regime de precatórios para as empresas públicas e sociedades de economia mista dependentes do município do Rio de Janeiro - entre as quais CET-Rio, Comlurb, Rioluz e RioSaúde - representa um avanço institucional expressivo em prol da governança pública, da previsibilidade fiscal e da segurança jurídica. Essas decisões refletem a maturidade do sistema jurídico brasileiro em compatibilizar a efetividade das decisões judiciais com os princípios do planejamento e da responsabilidade fiscal, assegurando que a execução contraentes dependentes do erário se realize de forma isonômica, transparente e compatível com a ordem constitucional de finanças públicas. Mais do que garantir prerrogativas processuais, o conjunto de precedentes firmados pelo STF reafirma o compromisso com a estabilidade institucional e com a integridade das práticas de governança, orientadas pelos valores da eficiência, da juridicidade e da boa Administração Pública.
Nasce, aqui, a coluna Esquinas do Direito Municipal, um espaço de reflexão e diálogo sobre os temas que atravessam a vida das cidades brasileiras. Coordenada por procuradores do município do Rio de Janeiro, a coluna pretende, contudo, ir além do olhar institucional: será também um ponto de encontro aberto a acadêmicos, profissionais do Direito e a todos os interessados em debater os desafios e as potencialidades do Direito Municipal. Assim como nas esquinas urbanas, onde diferentes caminhos se cruzam, este espaço buscará reunir múltiplas perspectivas sobre a função, os limites e as inovações desse ramo jurídico que toca diretamente a vida cotidiana da sociedade.  A proposta desta coluna é mostrar que será possível abordar desde questões técnicas, como o Plano Aprovado de Loteamento (P.A.L.) e seus ônus, que impactam diretamente o cotidiano urbano, até mudanças em normas urbanísticas voltadas à preservação cultural, como ocorre com as famosas APACs (Áreas de Proteção do Ambiente Cultural).  Mais do que se dedicar à chamada "função promocional do Direito" (Bobbio), a coluna também buscará enfrentar os desafios concretos da advocacia pública municipal neste século XXI: processos estruturantes que se desestruturam em sua aplicação prática; o ativismo jurisdicional em decisões que determinam medidas específicas, mesmo quando o Supremo Tribunal Federal, no Tema 698, reservou ao Executivo a escolha de ações casuísticas por meio de planos de ação; e as resistências institucionais ao consensualismo extrajudicial como forma legítima de realizar justiça.  A informalidade urbanística está presente em cada esquina da cidade. O Direito Municipal lida com ela de diferentes formas: ora regularizando (como no caso das permissões de uso de cortinas de vidro retráteis e transparentes, ou da regularização fundiária urbana), ora reprimindo (como nas operações da Guarda Municipal ou na fiscalização de licenças para atividades econômicas). Muitas vezes, cabe ao gestor ou legislador decidir; ao advogado público municipal, orientar.  A coluna também trará debates sobre questões relevantes em matéria fiscal, especialmente os impactos da Reforma Tributária nos entes federativos e no sistema como um todo. Entre os desafios que se avizinham estão a implementação da cobrança do IBS e da CBS, que começa em 2026 com a alíquota-teste; a adaptação a uma competência tributária compartilhada - novidade trazida pela Emenda Constitucional 132/2023 -; e a instalação do Comitê Gestor, que alguns já chamam de um "quarto poder".  Além das novas incidências e regras de transição, surgirão discussões sobre possíveis sobreposições tributárias, como entre ITCMD e ITBI. Outro ponto de atenção será o processo judicial tributário, que pode demandar uma nova Emenda Constitucional para criar o chamado Tribunal 4.0, reunindo julgadores da Justiça comum e da Justiça Federal.  Não menos importante será a reflexão sobre os tributos que permanecem na competência dos municípios, como o IPTU e a COSIP (Contribuição de Iluminação Pública), que podem ser utilizados como instrumentos de desenvolvimento urbano e de promoção de políticas públicas, reforçando sua função extrafiscal.  A coluna também se dedicará a temas de Direito Administrativo aplicados à realidade municipal. Os desafios de interpretar e aplicar a lei 14.133/21 (Lei de Licitações e Contratos) no âmbito local são inúmeros: a convivência com normas gerais federais, os reflexos no pacto federativo e a necessidade de interpretação constitucional que preserve o espaço próprio do Direito Municipal.  Em tempos de inteligência artificial generativa e de transformação digital na advocacia pública, também estarão na pauta: a aplicação da LGPD na Administração Pública; os desafios de transparência e integridade nas relações público-privadas; o regime jurídico dos servidores públicos; questões de equidade de gênero, raça, credo e origem; saúde física e mental no serviço público; parcerias com entidades privadas sem fins lucrativos; temas urbanísticos e ambientais, com especial atenção à transição climática e ao planejamento preventivo contra desastres; além do poder de polícia municipal como instrumento de garantia de direitos fundamentais.  Com esse espírito, a coluna Esquinas do Direito Municipal pretende não apenas apresentar a visão da advocacia pública municipal, mas também estimular diálogos, trocas e olhares diversos sobre a realidade jurídica das cidades. Mais do que oferecer respostas prontas, buscamos levantar perguntas instigantes, propor reflexões críticas e aproximar teoria e prática. Convidamos, portanto, todos aqueles que transitam por essas esquinas jurídicas a se juntar a nós nessa caminhada, para pensar, juntos, os rumos do Direito Municipal no Brasil contemporâneo.