COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. German Report >
  4. Negação do holocausto e queima de cruzes: tratamento distinto do discurso de ódio na Alemanha e nos EUA

Negação do holocausto e queima de cruzes: tratamento distinto do discurso de ódio na Alemanha e nos EUA

terça-feira, 22 de março de 2022

Atualizado às 09:38

A coluna German Report desta semana recebe o contributo de Graziela Harff, Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), abordando a espinhosa problemática da liberdade de expressão e seus contornos. O tema não é novo, mas atualíssimo tendo em vista o fenômeno da desinformação na era digital.

Se em outros tempos, antes da difusão da internet e do desenvolvimento das novas tecnologias de informação, o problema era a falta ou dificuldade de acesso à informação, hoje o grande desafio é lidar com o excesso de informação e, pior, com a desinformação.

A crença de que fake news e discursos de ódio se deixam aplacar no livre mercado de ideias através do contradiscurso mostrou-se insustentável face ao uso deturpado das inovações tecnológicas.

Maria Ressa, jornalista filipina vencedora do Nobel da Paz em 2021, em recente entrevista ao jornal Valor Econômico, fez severas críticas à forma como os algoritmos e as redes sociais vêm sendo manipulados para impulsionar a difusão de informações falsas1.

No SXSW, o maior evento sobre inovação digital nos Estados Unidos, ela denunciou que as redes sociais e os algoritmos têm sido utilizados como meios de divulgação massiva de informações falsas, tornando-se perigosa ameaça às democracias ao redor do mundo.

Segundo Ressa, eles deixaram de ser mecanismos de liberdade de expressão e se tornaram mecanismos de distribuição de fake news e de ideias antidemocráticas e hostis a grupos minoritários, que se propagam em velocidade assustadora impulsionadas por contas-robôs e disparos em massa que alcançam milhões de usuários, tudo sob a confortável condescendência das plataformas digitais de comunicação, que comodamente faturam cifras astronômicas com a economia da desinformação.

A realidade tem mostrado que o mau uso das inovações e parafernálias tecnológicas não fomentam o bom combate, nem propiciam a paridade de armas necessárias para o embate de ideias idealizado por Stuart Mill para o free marketplace of ideas

Dessa forma, o contradiscurso tem se mostrado insuficiente para derrotar a desinformação, as fake news e os discursos de ódio, porque ele não é propagado da mesma forma e velocidade que o mau discurso, nem atinge a mesma parcela do público.

Gaziela Harff debruçou-se sobre esses problemas da era digital em sua dissertação de Mestrado, defendida perante a prestigiosa UFRGS com o tema: Discurso de ódio no direito comparado: um enfoque jurídico nos Estados Unidos, Alemanha e Brasil.

O trabalho foi aprovado com nota máxima e recomendação de publicação, em agosto de 2021, em banca composta pelos Professores Marcelo Schenk Duque, Eugênio Facchini Neto e Fabiano Menke, da qual tive o prazer de participar como avaliadora externa.

Agora, ela brinda o leitor do Migalhas com um texto que nos convida à reflexão sobre o conteúdo e os limites do direito à liberdade de expressão. Tema fundamental em uma quadra da histórica na qual presenciamos uma onda de intolerância, preconceitos, discriminações e ataques às instituições democráticas, proferidos sob o escudo da liberdade de expressão e potencializados pela internet. Confira abaixo.

* * *

Graziela Harff

A liberdade de expressão, certamente, é um dos direitos que mais têm sido debatidos pela comunidade jurídica e sociedade em geral, tendo em vista os recentes fatos envolvendo conflitos entre liberdade de expressão e a dignidade da pessoa humana e direitos como igualdade e honra.

O extremismo e a defesa de políticas totalitárias têm ocupado as manchetes dos jornais, trazendo à tona os limites que devem ser traçados à liberdade de expressão, haja vista a inexistência de direito ilimitado. Nesta equação devem ser considerados elementos diversos, sendo um dos mais importantes o contexto e o tratamento jurídico dispensado a determinadas liberdades e direitos, o que poderá ter como resultado a proscrição ou não de determinados recursos.

Na Alemanha, a negação do holocausto é crime previsto no Código Penal (§ 130), no que se incluem toda manifestação que aprove, negue ou minimize algum ato cometido sob o regime nacional-socialista. Do mesmo modo, é punido criminalmente aquele que aprova, glorifica ou justifica a tirania e o governo arbitrário do nacional-socialismo.

Em 2018, uma cidadã alemã teve seu recurso constitucional (Verfassungsbeschwerde) perante o Tribunal Constitucional Federal (TCF) não admitido para julgamento em um caso que envolvia negação do holocausto.[2]

A reclamante, que já havia sido condenada diversas vezes por incitar ódio e violência contra segmentos da população (Volksverhetzung), ajuizou reclamação constitucional em face da condenação a dois anos de prisão pela negação da perseguição dos judeus pelos nazistas, segundo o § 130 (3) do Código Penal alemão (Strafgesetzbuch). Os fatos consistiam em diversos artigos nos quais a reclamante afirmava que o assassinato de judeus sob o regime nazista e as mortes nas câmaras de gás em Auschwitz-Birkenau não haviam acontecido.

Haveria, segundo ela, uma violação a seu direito fundamental à liberdade de expressão, de pesquisa e de ensino, bem como ao devido processo legal. Ainda, a interpretação de fatos históricos contrários à visão majoritária estariam protegidos igualmente pela liberdade de expressão.

Em sua decisão, o TCF afirma que o objeto da proteção do artigo 5 (1) são opiniões, que são caracterizadas pela tomada de posição e avaliação de determinada pessoa. Além disso, o escopo da proteção inclui fatos, na medida em que são pré-requisitos para a formação de opiniões.

Entretanto, manifestações sobre fatos comprovadamente falsos são excluídos do âmbito de proteção da liberdade de expressão, uma vez que não contribuem para o processo de formação de opinião. O fato de afirmações fáticas serem feitas em conexão com manifestações de opinião não levam a diferente resultado. Outra conclusão a que chegou a Corte é de que a aprovação dos atos cometidos ou a sua negação podem causar distúrbios da ordem pública.

Prossegue o TCF assentando que as negações são baseadas em conclusões de ordem subjetiva, para as quais a reclamante sustenta estar amparada pela liberdade de expressão, não havendo que se falar, no entanto, em violação a seus direitos fundamentais.

Em relação à aprovação dos atos cometidos pelo nacional socialismo, trata-se da aprovação do reino da violência e da tirania. Por sua vez, a negação somente pode ser entendida como a trivialização de tais crimes, o que leva à sua legitimação e aprovação. Tal exaltação ou negação dos atos nazistas carregam em si a ameaça de um discurso hostil e violento, servindo como um código para instigar ações hostis contra certos grupos de pessoas.

A Corte ainda recorda que, em seus artigos, a reclamante dirige requerimentos aos membros do Conselho Central de Judeus na Alemanha (Zentralrat der Juden), solicitando a retificação dos eventos que ocorreram em Auschwitz. Assim, o julgamento conclui que a negação do genocídio cometido contra os judeus é usado como meio para, de modo intencional e deliberado, formar uma opinião pública contra os judeus e seus representantes.

Este caso é demonstrativo da valorização da dignidade da pessoa humana e da não admissão de qualquer afirmação fática, mesmo que revestida de opinião pessoal, que leve à negação dos atos praticados sob o regime nazista. Para evitar o retorno do partido nazista e dos atos cometidos durante seu governo, a inviolabilidade da dignidade da pessoa humana está inscrita no primeiro artigo da Lei Fundamental.

Ainda, o direito constitucional alemão não permite que manifestações a favor de um regime que revelou todo seu desprezo pela pessoa humana e seus direitos fundamentais sejam defendidas. Segundo o parâmetro construído pelo TCF, as expressões protegidas são aquelas que contribuem para o processo de formação da opinião pública. Embora, à primeira vista, possa parecer árdua tarefa classificar quais seriam essas manifestações, o TCF rechaça aquelas que deliberadamente falsas, assim também já comprovadas.

O debate ocorrido na Alemanha, ressalte-se, é comum a muitos países, especialmente com o advento da internet e das redes sociais, que têm o poder de veicular e propagar ideias que se revelam incompatíveis com o regime democrático e constitucional.

Sob o manto da liberdade de expressão, não se pode defender o desprezo e rechaço a outros direitos, ao próprio valor da dignidade da pessoa humana ou manifestações em prol de ideias totalitárias. Mesmo que não mencionada no acórdão, essa discussão atrai o tema da democracia militante.

Desenvolvido por Karl Loewenstein, defende que algumas pessoas se valem da democracia para destruí-la, de modo que o regime democrático deve prever instrumentos para sua defesa. Nessa esteira, na Alemanha é prevista a declaração de inconstitucionalidade pelo TCF dos partidos que atuarem contra a ordem constitucional e seus valores.

No Brasil, é previsto expressamente na Constituição Federal, em seu art. 17, que os partidos políticos devem observância aos direitos fundamentais, do que não se cogita qualquer possibilidade de um partido que tenha ideias nazistas.

As iniciativas no âmbito internacional também têm aumentado. Em mais um movimento para combater o antissemitismo, em 20/1/2022, a Assembleia Geral da ONU aprovou uma resolução que condena a negação do holocausto3, a minimização de seu número de vítimas, as tentativas dirigidas a tentar culpar os judeus pelo genocídio, afirmações que enxergam no holocausto um evento positivo e a tentativa de culpar outros países ou grupos étnicos pelo genocídio operado pela Alemanha nazista.

Esta resolução foi adotada em um momento em que o antissemitismo tem se agravado e se espalhado pelo mundo, sendo necessárias ações para lembrar a importância de rejeitar qualquer ideia que remeta ao nazismo e sua política, o que tem se dado por meio de notícias falsas e graves distorções históricas, que possuem o objetivo de minimizar as atrocidades levadas a cabo, além de criar hostilidade contra suas vítimas.

Destaca-se ainda a Recomendação 97/20 do Comitê de Ministros do Conselho da Europa, que recomenda que os países implementem mecanismos em sua legislação para combater o discurso de ódio, no que se inclui o hate speech. 4

Feitas estas considerações, impende tecer algumas considerações acerca dos Estados Unidos, país com muitas diferenças em seu sistema jurídico em relação à liberdade de expressão.

Em primeiro lugar, deve ser lembrado que o sistema norte-americano é marcado pelo seu excepcionalismo, sendo um país em que referida liberdade assume contornos quase absolutos, o que o torna um modelo a ser contraposto ao alemão. Se é verdade que não se pode chegar ao ponto de afirmar que o direito de expressão é absoluto, também deve ser mencionado que a definição dos seus limites tem sido construída pela Suprema Corte, do que é exemplo a categoria das fighting words (palavras belicosas).

Mesmo assim, tais limitações possuem muito mais o escopo de preservação da paz e ordem públicas do que proteção de direitos fundamentais das vítimas de discursos odiosos. Ilustrativo dessa afirmação é a previsão da liberdade de expressão na Constituição norte-americana, elencada logo na Primeira Emenda do Bill of Rights, prevendo que o legislador não deve legislar no sentido de limitá-la.

Nesse sentido, prevalece o entendimento de que deve haver um livre mercado de ideias (free marketplace of ideas), para que estas circulem livremente, sem intervenções governamentais. Sendo assim, as más ideias devem ser combatidas com mais discurso, ou seja, com o contradiscurso (counterspeech). Um caso que ilustra esse tratamento é o da queima de cruzes.

Em R.A.V. v. City of Saint Paul5, adolescentes haviam incendiado uma cruz em frente à residência de uma família afrodescendente. A cruz em chamas, lembre-se, é um símbolo da Ku Klux Klan que remete ao preconceito e discriminação. Os adolescentes foram processados com base na Bias-motivated crime Ordinance, a qual previa que aquele que colocasse cruzes em chamas com base em raça, cor, credo, religião ou gênero cometeria um ilícito penal.

Contudo, a Suprema Corte entendeu ser a lei inconstitucional e invalidou a condenação, uma vez que a lei discriminava em razão do ponto de vista (viewpoint based) e era baseada em conteúdos específicos (content-based), ou seja, fora violada a necessária neutralidade em relação ao conteúdo do discurso.

Esse caso, que trata do discurso de ódio através especificamente de um ato - a colocação de cruzes, é significativo da abrangência da liberdade de expressão, protegendo discursos odiosos que não seriam admitidos em outras democracias.

No Brasil, essa discussão sobre discurso de ódio encontrou sede no HC 82.4246, caso Ellwanger, em que um editor de livros veiculava afirmações antissemitas, seja através das obras que publicava ou através de seus escritos, pelo que foi condenado pelo crime de racismo (art. 20, lei 7.716/89).

O julgado certamente figura entre os mais importantes sobre direitos humanos julgados pelo STF, ao expressar o repúdio do sistema jurídico-constitucional brasileiro ao antissemitismo, que constitui uma forma de discurso de ódio. Por maioria, então, o STF denegou a ordem.

A negação do holocausto é uma das formas de discurso de ódio que devem ser combatidas por toda a sociedade. Admitir tal forma de manifestação sob a alegação de estar inserida no âmbito da liberdade de expressão traz o risco de sérios danos à democracia, causando, então, uma erosão democrática. É dizer, deve-se atuar na defesa conjunta dos valores democráticos, nos quais se incluem os direitos fundamentais.

_____________

1 "As eleições são críticas para o Brasil", diz vencedora do Nobel da Paz sobre onda crescente de desinformação. Valor Econômico, 15/3/2022.

2 Processo BVerfG 1 BvR 673/18.

3 Disponível em: https://news.un.org/en/story/2022/01/1110202

4 Disponível em: https://go.coe.int/URzjs

5 R. A. V. v. St. Paul, 505 U.S. 377 (1992).

6 STF, HC 82.424/RS, Rel. Min. Maurício Corrêa. Paciente: Siegfried Ellwanger. Coator: Superior Tribunal de Justiça. Data do julgamento: 17/09/2003, DJU 19/03/2004.