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German Report

Decisões do STJ e STF alemão.

Karina Nunes Fritz
Finalizando a série de análises das principais alterações emergenciais promovidas no direito contratual alemão pela Lei para Amenização dos Efeitos da Pandemia de COVID-19 no Direito Civil, Falimentar e Processual Penal (Gesetz zur Abmilderung der Folgen der COVID-19-Pandemie im Zivil-, Insolvenz- und Strafverfahrensrecht), aborda-se hoje a moratória concedida aos mutuários nos contratos de mútuo. Como exposto nas duas últimas colunas, a chamada Corona-Gesetz, aprovada em 27.3.2020, instituiu uma moratória aos contratos de consumo essenciais de longa duração e suspendeu temporariamente o pagamento dos alugueis de locações residenciais e comerciais, proibindo o despejo ou denúncia da locação por falta de pagamento dos alugueis vencíveis no período de abril a junho de 2020, se o devedor não tiver condições de honrar seus compromissos em razão das medidas governamentais de combate da pandemia de covid-19. Além dessas medidas, outra importante mudança temporária no campo obrigacional foi a moratória concedida nos contratos de mútuo a consumidores, prevista no Art. 5 § 3 da lei do coronavírus. Cabe aqui recordar que, nos termos do § 14 do Bürgerliches Gesetzbuch (BGB), consumidor é apenas a pessoa natural que celebra negócio para fins (exclusivo ou preponderantemente) privados, isto é, que não utiliza o produto ou serviço para o exercício de sua atividade profissional ou comercial1. A lei fala em Verbraucherdarlehensverträge, a indicar que apenas poderá ser postergado o pagamento do mútuo concedido a consumidor para fins particulares, restando excluído do benefício legal os contratos de mútuos celebrados para fins profissionais, bem como os celebrados por empresas para fins comerciais. Segundo o Art. 5 § 3, inc. 1 da lei alemã, nos contratos de mútuo a consumo, celebrados antes de 15.3.2020 (termo inicial das restrições governamentais de combate à pandemia de covid-19), ficam postergadas por três meses as pretensões do mutuante à devolução e o pagamento do principal, juros e amortizações, vencíveis entre 1o. de abril a 30 de junho de 2020, quando o cumprimento tornar-se irrazoável para o mutuário devido à redução de sua renda em decorrência das medidas extraordinárias de combate à pandemia de covid-19. Considera-se irrazoável o cumprimento da prestação, nos termos do 2o. período do Art. 5 § 3, inc. 1 da lei, principalmente quando ele pôr em risco a subsistência do devedor ou daqueles que dele dependam. A lei emergencial trabalha com o conceito jurídico da irrazoabilidade, bastante utilizado no direito alemão, que pode ser entendido como insuportabilidade de cumprimento da obrigação, colorido pela valoração adicional de que tal situação extrapola os limites do razoável e da consideração exigidos pelo mandamento da boa-fé objetiva. Do exposto, conclui-se que a lei prorroga até setembro de 2020 o vencimento das prestações que seriam exigidas de abril a junho, de modo que a falta de pagamento pelo mutuário não configurará mora. A lei não diz como essas três prestações (referentes aos meses de abril, maio e junho) deverão ser pagas, deixando, em princípio, à livre negociação das partes. Se elas, todavia, não chegam a acordo, o prazo do contrato prorroga-se, em princípio, por três meses (Art. 5 § 3, inc. 5, período 1o.). Esse prazo poderá, contudo, ser estendido pelo governo, via decreto, por até doze meses, nos termos do Art. 5 § 4, inc. 1, alínea 3, se a situação social (aqui incluindo o exercício de atividade comercial e profissional) ainda não tiver se normalizado no país. A moratória legal não é obrigatória, podendo o consumidor afastá-la se optar por continuar pagando as prestações normalmente ou por meio de acordo com o mutuante. Com efeito, nem todos são afetados pela crise econômica do coronavírus. Dessa forma, pode ocorrer que o consumidor não sofra inicialmente os impactos negativos da crise, porque, por exemplo, continua a receber seu salário regularmente, hipótese na qual ele deve continuar a pagar suas dívidas. Mas se, entretanto, sua situação financeira se alterar em razão da crise econômica, ele pode lançar mão da moratória legal e suspender temporariamente o pagamento daquelas parcelas (abril a junho) ainda não pagas. Em respeito à autonomia privada dos contratantes, o Art. 5 § 3, inc. 2 da lei permite às partes renegociar o contrato e fazer uma repactuação da dívida ou disciplinar diferentemente a forma como se dará o pagamento das prestações mensais, juros e amortizações. Segundo o Art. 5 § 3, inc. 3, é proibido ao mutuante resolver o contrato em decorrência da mora, do considerável agravamento da situação patrimonial do consumidor ou da depreciação da garantia até o fim do prazo da moratória. As partes não podem dispor diferentemente dessa regra, colocando em desvantagem ao consumidor. O mutuante deve entrar em contato com o consumidor para renegociar o contrato e propor medidas para a quitação do débito. É o que prescreve o Art. 5 § 3, inc. 4 da Corona-Gesetz. Embora a lei vise proteger em primeira linha apenas o consumidor, o Art. 5 § 3, inc. 8 autoriza o governo a ampliar a concessão de moratória por decreto a pequenas e médias empresas. Como se trata de lei emergencial temporária, o prazo da moratória iniciou em 1.4.2020, data da entrada em vigor das novas regras sobre direito contratual2, e finda, em princípio, em 30.9.2020, nos termos do já mencionado art. 5 § 4, inc. 1, alínea 3. Um dos dispositivos mais criticados da regulação dos contratos de empréstimo de consumo é art. 5 § 3, inc. 6, que afasta a moratória quando - considerando todas as circunstâncias do caso individual, inclusive as alterações nas condições de vida das partes, provocadas pela pandemia de covid-19 - ela se mostrar efetivamente irrazoável para o mutuante. Isso, porque o legislador emergencial não fez a mesma ressalva em relação aos contratos de locação, cuja exigibilidade dos alugueis ficou suspensa sem excepcionar expressamente os casos em que o locador não poderá suportar a dilação do pagamento, deixando ao Judiciário a decisão no caso concreto. Além disso, no mútuo bancário haverá na outra ponta uma instituição financeira, que poderá, em tese, valer-se do dispositivo, embora algumas vozes afirmem, com razão, que somente com grande dificuldade as instituições financeiras conseguirão provar que a moratória lhes seria absolutamente insustentável. De qualquer forma, o legislador extraordinário instituiu a possibilidade de moratória nessa área importante dos contratos de mútuo, permitindo ao devedor prejudicado pela crise econômica provocada pela pandemia de covid-19 adiar o cumprimento dessas obrigações no período mais crítico de isolamento social e paralização das atividades. Esse sacrifício exigido dos credores retira seu fundamento de legitimidade do princípio da solidariedade social e do Estado Social, que por meio da lei de emergência procura tutelar a parte mais fraca na relação contratual: a pessoa física que não pode, total ou parcialmente, exercer sua atividade profissional. Sem dúvida, o mesmo pode-se dizer em relação às pequenas e médias empresas, que também amargam grandes prejuízos com a inesperada crise econômica provocada diretamente pelo coronavírus. Não por outra razão, a lei reserva a competência para o governo estender via decreto a moratória aos contratos de mútuo celebrados por empresas de pequeno e médio porte, caso as análises confirmem a antevista dificuldade financeira por elas enfrentadas. A situação no Brasil No Brasil, o PL 1.179/2020 - aprovado dia 3.4.2020 pelo Senado Federal e elaborado sob inspiração de leis estrangeiras, dentre as quais a alemã - não faz menção aos contratos de mútuo, nem mesmo em sua versão original. Recorde-se que o Projeto foi aprovado amputado da suspensão do pagamento dos alugueis até 30.10.2020 e que, no campo contratual, a única alteração prevista é a suspensão do direito de arrependimento, consagrado no art. 59 do Código de Defesa do Consumidor, para produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos, adquiridos para entrega domiciliar (delivery), como consta de seu art. 8o. Algumas emendas apresentadas ao Projeto de Lei visaram proteger os consumidores de nos contratos de mútuo, como as Emendas 22 e 23, do Senador Plínio Valério, que objetivavam suspender por 120 dias o vencimento de parcelas de: (a) empréstimos consignados feitos por maiores de 60 anos, quando o desembolso superar 20% dos vencimentos do devedor e (b) financiamentos habitacionais, se o mutuário tiver sofrido decréscimo patrimonial. Da mesma forma, a Emenda 29, que pretendia permitir a redução da prestação do empréstimo consignado em razão de redução salarial e a Emenda 33, que visava instituir moratória e parcelamento em financiamentos habitacionais. Todas essas emendas foram rejeitadas ao argumento de que envolviam temas de alta complexidade e que, portanto, o foro mais adequado para sua discussão e regulação seria por meio de outro projeto de lei3. Diante disso, tramita no Senado Federal o PL 1.200/2020, de autoria do Senador Rodrigo Cunha, que institui uma moratória em contratos essenciais, bancários, securitários (inclusive seguros de saúde) e educacionais em favor dos consumidores afetados economicamente pela pandemia de covid-19. O Projeto é uma iniciativa da Professora Cláudia Lima Marques (UFRGS), Káren Rick Danillevicz Bertoncello e Clarissa Costa de Lima, que elaboraram o anteprojeto sob inspiração da legislação alemã4, ora comentada. Em apertada síntese, o PL 1.200/2020 institui em seu art. 2o uma moratória até 30.6.2020 das obrigações pecuniárias de consumidores (pessoas físicas apenas!) com vencimento a partir de 1.4.2020, relativas aos contratos acima mencionados, celebrados antes de 20.3.2020. Com isso, alteram-se as datas de vencimentos das obrigações, vedando-se consequentemente a incidência de juros moratórios, honorários advocatícios e cláusulas penais, bem como a utilização de medidas de cobranças de débitos, inclusive inscrição em cadastros de inadimplentes (art. 2o § 1o). O montante dos débitos, vencidos durante o período da moratória, deverão ser pagos em doze parcelas mensais à partir de 30.6.2020, sem incidência de juros, mas com correção monetária, nos termos do § 2o do art. 2o. O art. 2o § 3o do Projeto prevê, contudo, a possibilidade do juiz estender a moratória até 30.9.2020 em caso de doença, morte na família ou outro caso grave, devendo o consumidor pagar o montante dos débitos, vencidos durante o período da moratória, em doze parcelas mensais à partir de outubro de 2020, sem incidência de juros, mas com correção monetária. No que tange aos contratos de mútuo, aqui analisados, nota-se que o PL 1.200/2020 confere uma proteção mais ampla que a lei alemã do coronavírus na medida em que abrange os contratos bancários, financeiros e de crédito ao consumidor pessoa física, nos termos de seu art. 6o. O art. 6o § 1o do PL 1.200/2020 veda por completo, durante o período da moratória, os débitos em conta corrente ou descontos em folhas de salários ou proventos, mesmo que tenham sido contratados na modalidade de crédito consignado. Não custa lembrar que o crédito consignado, modalidade de empréstimo no qual as parcelas são descontadas diretamente na folha de pagamento ou deduzidas do benefício do INSS, teve papel importante para a expansão do crédito para consumo no Brasil e, consequentemente, para o endividamento excessivo de parte da população5. Por essa razão, aguarda aprovação na Câmara o PL 3.515/2015 que, dentre outros pontos, cria instrumentos e normas para prevenir o superendividamento da pessoa física6. Retornando ao PL 1.200/2020, seu art. 6o § 2o prevê que os contratos de financiamento, inclusive os imobiliários, poderão ser imediatamente rescindidos até 30.6.2020, a pedido do consumidor, sem incidência de cláusulas penais, mediante o pagamento do principal e dos juros devidos até a data da rescisão. A rigor, o PL 1.200/2020 assemelha-se bastante à lei emergencial aprovada pelo Parlamento alemão na medida em que regula tanto os contratos de consumo essenciais (água e esgoto, energia elétrica, gás, telefonia, internet), quanto os contratos de mútuo. Mas, adaptado à realidade brasileira, ele amplia a tutela a outras relações contratuais, não abarcadas pela Corona-Gesetz, a fim de proteger os consumidores pessoas físicas que forem efetivamente afetados pela crise econômica decorrente da crise pandêmica. A questão agora é saber se o PL 1.200/2020 conseguirá ser aprovado no Senado e na Câmara dos Deputados. __________ 1 Decisivo para a qualificação jurídica de consumidor é o fim (Zweck) do negócio no momento de sua celebração, considerando o conteúdo e as circunstâncias do contrato. Em caso de contrato marcado por dupla finalidade, o enquadramento do contratante como consumidor vai depender da finalidade preponderante: se preponderar o caráter pessoal e privado do negócio, o contratante será considerado consumidor e gozará das vantagens concedidas pela lei para tal situação jurídica. Dentre outros, confira-se DÖRNER, Heinrich. In: Reiner Schulze (coord.), Bürgerliches Gesetzbuch Handkommentar. 8 ed. Baden-Baden: Nomos, 2014, §§ 13 e 14, Rn. 1-2, p. 41. 2 As diversas alterações legislativas, previstas na lei geral do covid-19, entram em vigor em datas diferenciadas, nos termos de seu art. 6. 3 Projeto de lei 1.179/2020, p. 21. 4 PL 1.200/2020 , Justificação, p. 9. Confira-se o artigo: LIMA MARQUES, Claudia; BERTONCELLO, Káren R. D.; COSTA DE LIMA, Clarissa. Exceção dilatória para os consumidores frente à força maior da pandemia de covid-19: pela urgente aprovação do PL 3.515/2015 de atualização do CDC e por uma moratória aos consumidores. Revista de Direito do Consumidor 129 (2020), p. 14ss. 5 Empréstimo consignado: características, acesso e uso. Documento elaborado pelo Banco Central do Brasil, p. 118. Disponível aqui. Acesso: 11/4/2020. 6 Para uma visão atual sobre o Projeto, confira-se: LIMA MARQUES, Claudia; BERTONCELLO, Káren R. D.; COSTA DE LIMA, Clarissa. Op. cit., p. 9 ss.
Dando seguimento à análise da chamada Lei para Amenização dos Efeitos da Pandemia de COVID-19 no Direito Civil, Falimentar e Processual Penal (Gesetz zur Abmilderung der Folgen der COVID-19-Pandemie im Zivil-, Insolvenz- und Strafverfahrensrecht), na coluna de hoje analisa-se mais uma importante medida, de relevante cunho social, introduzida pela lei emergencial alemã: as alterações nos contratos de longa duração. Como dito em outra oportunidade, a lei da covid-19, aprovada em 27.3.2020, faz parte de um pacote de medidas elaborado pelo governo alemão, que abrange alterações pontuais e temporárias nos campos do direito civil, falimentar, societário e processual penal. Na semana passada, analisaram-se as novas regras vigentes para os contratos de locação residencial e comercial. Em suma, elas suspendem o direito do locador de promover ação de despejo ou de denunciar o contrato por falta de pagamento dos alugueis vencidos durante no período de abril a junho de 2020, desde que a inadimplência do devedor tenha sido causada pelas medidas proibitivas de circulação ou de restrição à atividade econômica, impostas para o combate da proliferação da covid-19 (clique aqui). Além dessa medida, de evidente cunho social, outra sensível alteração no direito civil, mais especificamente no direito contratual, foi a introdução do direito temporário do devedor de recusar o cumprimento da prestação de contratos de longa duração. O art. 5 § 1 (1) da lei fala expressamente em Leistungsverweigerungsrecht, i.e, em direito de recusar [o cumprimento] a prestação, de caráter temporário e excepcional. Trata-se, em suma, de uma moratória e o mencionado § 1 do art. 5 da lei usa a expressão Moratorium, atípica na língua alemã, que encontra em Stundung seu correspondente. Essa moratória não se aplica a qualquer contrato, mas apenas aos de longa duração e, dentre esses, apenas àquelas relações contratuais essenciais à manutenção da existência das pessoas ou à adequada continuidade das empresas de pequeno porte (ex: energia, gás, água, telefone e internet, etc.). Pressuposto fundamental, portanto, para a concessão da moratória é a essencialidade da prestação para as pessoas físicas e os pequenos empresários. Além disso, o devedor deve demonstrar, num juízo de razoabilidade, que a impossibilidade temporária de cumprimento da obrigação decorreu diretamente das medidas governamentais de combate à pandemia de covid-19. Não se trata de um dever absoluto de prova de toda a cadeia causal, mas de demonstrar a verossimilhança das alegações. Assim, presume-se a causalidade quando o devedor mostra ter dificuldades ou estar impedido de exercer sua atividade profissional ou que houve queda significativa em sua renda ou receita, de modo que o adimplemento colocaria efetivamente em risco sua sobrevivência econômico-financeira. Da mesma forma, a comprovação de que a falta de pessoal ou de materiais, decorrente da proibição de circulação, o impede de realizar a prestação. Obviamente, problemas outros, não decorrentes da crise pandêmica, mas a essa eventualmente até anteriores, não autorizam o devedor a pleitear a moratória. A moratória só se aplica a contratos celebrados antes de 8.3.2020, termo inicial em que os agentes de saúde pública na Alemanha começaram a determinar o confinamento obrigatório da população e o fechamento de diversos estabelecimentos comerciais no país. Note-se que, como noticiado em outro canal, o recolhimento da população não tem na Alemanha caráter meramente exortativo, mas obrigatório, estando sua transgressão sujeita a pena de multa ou prisão1. Como se trata de lei emergencial temporária, o prazo da moratória inicia-se em 1.4.2020, data da entrada em vigor das novas regras sobre contratos de longa duração2, e finda em 30.6.2020, nos termos do já mencionado art. 5 § 1 (1) da apelidada Corona-Gesetz. Ou seja, o devedor tem um prazo de três meses para respirar diante da dificuldade financeira provocada pela pandemia do novo coronavírus. A lei permite ao governo, porém, prorrogar por decreto a moratória até 30.9.2020 se a vida social, a atividade econômica de várias empresas ou a atividade profissional de muitas pessoas continuar a sofrer consideráveis restrições através da pandemia de covid-19, nos termos do art. 5 § 4 (1) 2 da mencionada lei. O art. 5 § 1 (3) da Corona-Gesetz prevê, contudo, que a moratória não será permitida quando pôr em risco - efetivamente - a sobrevivência do credor, só restando ao devedor, nesse caso, optar pelo desfazimento do contrato. Em respeito à autonomia privada, o art. 5 § 1 (5) da lei permite que as partes contratantes negociem uma solução diversa paga o cumprimento desses contratos, desde que isso não implique em desvantagens para o devedor. Isso significa dizer que a moratória legal de três meses tem caráter subsidiário. Dessa forma, em síntese, a moratória legal incide sob os seguintes pressupostos: (a) em contratos de longa duração essenciais para consumidores e pequenas empresas, (b) celebrados antes de 8.3.2020, (c) desde que as medidas de combate à covid-19 dificultem o cumprimento da prestação, (d) colocando em risco a subsistência do devedor e (e) o credor tenha condições financeiras de suportar a moratória, e, por fim, (f) desde que as partes não tenham acordado solução diversa. Disso se conclui que não se trata da institucionalização de um "direito ao calote", mas tão somente de garantir ao devedor prejudicado o direito de adiar o cumprimento de importantes prestações em face da crise econômica provocada pela pandemia de covid-19. E isso apenas para aqueles contratos mais fundamentais para a sobrevivência econômica dos consumidores e das pequenas empresas, assim definidas em lei. Essa medida se justifica pela evidente dificuldade financeira que as pessoas físicas e jurídicas estão passando em decorrência das medidas governamentais adotadas para a contenção e o combate da propagação da pandemia de covid-19. Essas medidas deram causa imediata à paralização ou restrição do exercício das atividades profissionais por milhares de pessoas e das atividades econômicas das empresas, afetando em cheio as empresas de pequeno porte, que não possuem gordura financeira suficiente para suportar sequer o período de três meses de confinamento da população e restrição da atividade comercial. A lei emergencial tem, portanto, nítido caráter social e solidário, exigindo o sacrifício de ambos os contratantes com o fim exclusivo de postergar - não de exonerar - o cumprimento das obrigações. A situação no Brasil No Brasil, o Senado Federal aprovou na sexta-feira passada, dia 3.4.2020, o PL 1.179/2020, elaborado por uma comissão de juristas sob a coordenação do i. Min. Antônio Carlos Ferreira (STJ) e do Prof. Dr. Otávio Luiz Rodrigues Junior (USP), atendendo a iniciativa do e. Min. Dias Toffoli (STF). O Projeto de Lei dispõe sobre o regime jurídico emergencial e transitório das relações jurídicas de direito privado no período da pandemia do coronavírus. O Projeto será agora analisado na Câmara dos Deputados e, se aprovado, fará alterações legislativas pontuais, mas importantes, no âmbito do direito civil, consumidor, societário e concorrencial, algo similar - pelo menos, em sua estrutura - ao que foi feito pela lei alemã do coronavírus. No campo contratual, que aqui interessa, o Projeto foi aprovado amputado de importante alteração inicialmente prevista para os contratos de locação: a suspensão do pagamento dos alugueis até 30.10.2020, data em que - presume-se - estariam afastadas as restrições à liberdade de locomoção e ao exercício da atividade econômica, impostas pelo combate à pandemia. Fora os contratos locatícios, o PL 1.179/2020 regulou os contratos de consumo para decretar a suspensão do direito de devolução - consagrado no art. 59 do Código de Defesa do Consumidor - de produtos perecíveis ou de consumo imediato e de medicamentos, adquiridos para entrega domiciliar (delivery), como consta de seu art. 8o. Algumas emendas apresentadas ao Projeto de Lei visaram proteger os consumidores de contratos essenciais de longa duração. Assim, por exemplo, a Emenda 31, da Senadora Zenaide Maia, propôs a inclusão de dispositivos proibindo a suspensão - até 30.10.2020 - do fornecimento de água, energia elétrica, gás e serviços de telefonia e internet. A proposta foi, contudo, rejeitada pelo Senado ao argumento de que os contratos de serviços essenciais inserem-se no campo do direito administrativo, escapando ao escopo da proposição, que se limitaria a matérias específicas de direito privado3. Os arts. 6, inc. X e 22 do Código de Defesa do Consumidor, entretanto, tratam da prestação de serviços públicos em geral, atraindo essas relações contratuais para o âmbito de incidência da lei consumerista, de caráter preponderantemente privado. Talvez por isso a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça não vacile em aplicar o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de serviços essenciais. Pela mesma razão, Alemanha (art. 5 § 1 (1) da lei do coronavírus) e Espanha (art. 29 do Real Decreto-ley 11/2020) trataram de regular esses contratos essenciais de longa duração em suas leis que disciplinam, em caráter temporário e emergencial, certas relações jurídicas de direito privado. O art. 5 § 1 (1) da lei alemã tem em vista regular justamente tais contratos, os quais são essenciais para a preservação da existência digna das pessoas e para o funcionamento básico das empresas. A Exposição de Motivos (Begründung) da lei é expressa ao dizer que a moratória de três meses visa evitar que consumidores e pequenas empresas, os mais duramente afetados pela crise do coronavírus, sejam privados da prestação de serviços essenciais como energia, gás, telecomunicações em geral e água4, sendo certo que se trata de conceito jurídico indeterminado apto a abranger, no caso concreto, outros situações contratuais. Dessa forma, é de lamentar que o Senado tenha perdido a oportunidade de inserir disposições específicas sobre o tema no PL 1.179/2020, principalmente diante do consenso mundial de que a crise pandêmica provocou a crise econômica que já se inicia, impedindo muitos consumidores, bem como micros e pequenas empresas, de continuar a honrar seus compromissos durante esse período virulento. Essa é uma realidade inegável, que afeta o mundo inteiro. Em briefing à imprensa, a diretora do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kristalina Georgieva, afirmou semana passada que a pandemia de covid-19 criou uma crise financeira "como nenhuma outra" e que o mundo já entrou em recessão5. Raghuram Rajan, ex-economista-chefe do FMI e ex-presidente do Banco Central da India, comentando as ações coordenadas de bancos centrais no exterior de cortar as taxas de juros, disse ser necessária uma interferência estatal em favor das pessoas nesse momento, porque elas não têm dinheiro guardado e nem podem sair para trabalhar6. A Exposição de Motivos do Real Decreto-ley 11, promulgado na Espanha em 31.3.2020, afirma expressamente que a crise sanitária está tendo um impacto direto na economia e na sociedade, na cadeia produtiva e no dia-a-dia dos cidadãos, bem como nos mercados financeiros. Além do impacto sobre a economia global, a Exposición de Motivos reconhece um fato aparentemente incontestável: que as medidas governamentais de contenção da pandemia implicam a redução da atividade econômica e social, de forma temporária, para o tecido produtivo e social, restringindo a mobilidade e paralisando as atividades de numerosos setores7. Diante disso, não surpreenderá se a Câmara dos Deputados ao menos reinserir no PL 1.179/2020, ainda que com alterações, a necessária regulação dos contratos de locação, permitindo a suspensão do pagamento dos alugueis se o locador tiver condições financeiras de suportar a moratória, a exemplo do que vem sendo feito na Europa. __________ 1 Confira-se a postagem no Instagram (@karinanfritz15) "Bußgeldliste NRW", acerca das medidas sujeitas a multa e prisão. 2 As diversas alterações legislativas, previstas na lei geral do covid-19, entram em vigor em datas diferenciadas, nos termos de seu art. 6. 3 Confira-se o parecer final apresentado pela Senadora Simone Tebet, p. 21. 4 No original: "Damit wird für Verbraucher und Kleinstunternehmen gewährleistet, dass sie insbesondere von Leistungen der Grundversorgung (Strom, Gas, Telekomunikation, soweit zivilrechtlich geregelt auch Wasser) nicht abgeschnitten werden, weil sie ihren Zahlungspflichten nicht nachkommen können". 5 Reportagem no jornal Valor Econômico, de 4.4.2020. 6 Entrevista a Robinson Borges, Valor Econômico, 3.4.2020. 7 Real Decreto-ley 11, de 31.3.2020, publicado no diário oficial espanhol em 1.4.2020, Sec. I, p. 27885.
Como noticiado na semana passada, em primeira mão, aqui no Migalhas, o Parlamento alemão aprovou no prazo recorde de um dia, em 25/3/2020, um conjunto de medidas propostas pelo governo da chanceler Angela Merkel para amenização dos efeitos do coronavírus SARS-CoV-2 no país. De início, chama atenção já o título do pacote, que não tem a pretensão de aplacar ou controlar os efeitos da pandemia, mas tão só de amenizar e isso revela uma profunda consciência do momento extraordinário que o mundo está vivendo. E a Alemanha, que já esteve no fundo do poço da história e experimentou crises econômicas sem precedentes, mostrou que sabe bem do que está falando. O pacote contém várias medidas executivas e legislativas que, no geral, alteram a legislação vigente, em caráter excepcional e temporário, por conta da pandemia do coronavírus. Não se tratam, portanto, de medidas gerais para qualquer epidemia, mas tão só para essa em especial. Resumidamente, dentre as principais medidas políticas aprovadas destacam-se as seguintes: Ajuda financeira a hospitais, clínicas e profissionais envolvidos no combate à pandemia do covid-19 Concessão de "indenização" aos pais que precisam ficar em casa para cuidar dos filhos em razão do fechamento das escolas e creches, todas praticamente públicas Liberação de cerca de 51 bilhões de euros como ajuda imediata a pequenas empresas e profissionais liberais atingidos pelas restrições ao exercício da atividade econômica Criação de fundo de estabilização econômica para ajudar na recuperação da liquidez de grandes empresas A essas medidas somam-se várias leis temporárias nos campos do direito civil, falimentar, societário e processual penal. A lei - denominada Lei para Amenização dos Efeitos da Pandemia do COVID-19 no Direito Civil, Falimentar e Processual Penal (Gesetz zur Abmilderung der Folgen der COVID-19-Pandemie im Zivil-, Insolvenz- und Strafverfahrensrecht) - foi publicada no Diário Oficial (Bundesgesetzblatt) em 27/3/2020. No que diz respeito às alterações no direito civil, destacam-se: (a) moratória em contratos de longa duração, de caráter essencial, para consumidores e pequenas empresas em geral, que, na Alemanha, não são consideradas consumidores, embora sejam adequadamente tutelas; (b) moratória em contratos de mútuo celebrados pelas pessoas anteriormente indicadas e (c) suspensão do direito de requerer o despejo e denunciar a locação por falta do pagamento dos alugueis. Dentre essas medidas, hoje abordar-se-á a quem tem gerado mais polêmica desde a aprovação da lei, qual seja, as alterações no direito de locação. Alterações no direito de locação Com a nova lei, o legislador interveio para se antecipar às milhares de ações de despejo e denúncia por falta de pagamento dos alugueis no período da chamada Coronakrise e tentar reequilibrar o mercado locatício, redistribuindo os riscos inerentes aos contratos de locação. Na justificativa do projeto de lei enviado ao Parlamento, o governo explica que para conter o avanço da pandemia provocada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) foi necessário ordenar, em março de 2020, o recolhimento das pessoas em suas residências e determinar o fechamento de inúmeros estabelecimentos, como escolas e creches públicas, restaurantes, bares, cinemas, teatros, escritórios e demais estabelecimentos comerciais e profissionais a fim de evitar a propagação da doença por meio do contato entre as pessoas. Essas medidas, porém, deram causa à perda considerável de renda por parte de muitas pessoas, que retiram seu sustento - e o de suas famílias - dessas atividades. Para os inquilinos de imóveis residenciais e comerciais, a perda ou redução considerável da renda coloca-os em situação de extrema vulnerabilidade, pois a legislação vigente permite que o locador promova a ação de despejo após dois meses de atraso, total ou parcial, do aluguel, denunciando a locação, nos termos do § 543, inc. 1 do BGB. Por isso, é de se esperar que, em decorrência da crise epidêmica, haja um atraso em massa no pagamento dos alugueis e encargos locatícios em função da perda ou redução da renda pelas pessoas físicas e jurídicas. E, diz o Projeto, apenas uma parte das pessoas afetadas poderá receber as ajudas sociais do Estado como seguro-desemprego e ajuda moradia, de acordo com os requisitos exigidos e a urgência que a situação requer. O mesmo vale para as empresas, que dependerão de ajuda financeira estatal para sobreviver à crise. Para tentar contornar a situação, a lei proíbe o locador de imóveis residenciais e comerciais de promover o despejo do locatário por eventual falta de pagamento dos alugueis vencidos entre 1.4.2010 a 30.6.2020, período estimado, em princípio, para durar as restrições nas atividades econômicas e a proibição de circulação das pessoas. Os principais pontos da lei temporária de locação são: a) Restrição do direito de denunciar a locação Durante o mencionado período, o aluguel é devido, mas o locador não pode exigir o pagamento e nem denunciar o contrato por esse motivo. Pressuposto inafastável é que a inadimplência decorra das dificuldades financeiras enfrentadas pelo locatário por conta das medidas excepcionais de combate à pandemia do coronavírus. Isso significa que os locatários que se virem forçados a deixar de pagar o aluguel, por não possuírem meios suficientes para fazê-lo sem pôr em risco sua subsistência, não sofrerão consequências jurídicas imediatas. Atente-se que apenas fica suspenso o direito de denunciar o contrato por falta de pagamento das parcelas devidas entre abril e junho de 2020. Dessa forma, o locador pode promover a denúncia por outros motivos previstos na lei geral, como o uso do imóvel de forma contrária ao acordado ou a necessidade própria efetivamente demonstrada. b) Caráter supletivo da regra Em respeito à autonomia privada, essa adaptação contratual prevista na lei tem caráter supletivo, podendo as partes, de comum acordo, negociar e acordar solução diversa, como, por exemplo, a redução do valor do aluguel, com a continuidade regular de seu pagamento. Entretanto, o art. 5 § 4 (2) da lei ressalva que o acordo não pode prejudicar o inquilino. Essas regras se aplicam tanto para os contratos de locação (residencial e comercial), quanto para os contratos de arrendamento, nos termos do art. 5 § 4 (3) da lei em comento. c) Período de inadimplência Em princípio, o locador só não pode despejar o inquilino em mora por falta do pagamento dos alugueis vencidos no período de abril a junho de 2020 (período de crise). Entretanto, se esse período não for suficiente para controlar a propagação adequada da pandemia e houver necessidade de que as pessoas permaneçam confinadas e os estabelecimentos fechados, o art. 5 § 4 (1) 2 da lei permite que o governo prorrogue esse prazo, por decreto, até 30/9/2020. E a justificativa é evidente: ninguém consegue dizer, nesse momento, com segurança, até quando as medidas restritivas da circulação e do comércio serão necessárias para evitar a proliferação desenfreada do novo coronavírus. d) Período de suspensão do despejo O locatário que não pagar na data aprazada o aluguel, incorrerá em mora e ficará obrigado a pagar todos os encargos moratórios. Mas ele não precisará quitar tudo de uma só vez a partir de 1/7/2020, pois isso, à toda evidência, sobrecarregaria enormemente os inquilinos, que durante esses noventa dias antecedentes tiveram suas fontes de renda comprometidas. Por isso, o art. 5 § 2 (4) da lei concede o prazo de 02 (dois) anos para que os locatários inadimplentes - em relação ao período indicado, i.e., abril a junho de 2020 - quitem suas dívidas junto aos locadores, seja de uma só vez ou de forma parcelada. Com isso, os inquilinos têm até 30.6.2022 para saldar os débitos surgidos no período de restrição da circulação e do comércio para conter o avanço da pandemia do covid-19. Isso significa, na prática, que o direito de promover o despejo e a denúncia da locação por falta desses pagamentos só poderá ser exercido pelo locador a partir de julho de 2022. e) Relação de causalidade Diante da impossibilidade de quitar o aluguel, cabe ao locatário - nos termos do art. 5 § 2 (1) da lei - demonstrar a verossimilhança de suas alegações, mostrando a relação de causa e efeito entre a pandemia do covid-19 e a ausência da prestação. A lei fala expressamente em fazer crível essa conexão (Zusammenhang glaubhaft zu machen), o que é algo mais brando do que fazer a prova do nexo causal. Repise-se que essa regra especial só vale para os pagamentos em aberto no período de crise de três meses indicado. Dessa forma, se o locatário já estiver em mora ou faltar com o aluguel após a suspensão das medidas restritivas da liberdade econômica e de ir e vir, o locador poderá manusear a ação de despejo normalmente. f) Beneficiados Em princípio, todos os inquilinos poderão ser beneficiados pela lei, pois a norma se refere genericamente a locatários. Na justificativa do Projeto de Lei, o governo fala em pessoas físicas e empresas, sem especificar quais empresas (pequenas, médias ou grandes) estariam contempladas com a possibilidade de, diante de grave dificuldade econômica, suspender temporariamente o pagamento dos alugueis. Diante da generalização legal, conclui-se que qualquer locatário poderá ser contemplado desde que demonstre a impossibilidade de pagar os alugueis em razão das circunstâncias de combate à pandemia. Primeiras críticas à lei As primeiras críticas à lei do coronavírus já começaram a surgir. Parte delas foi desencadeada quando grandes empresas - como Adidas, Puma e a sueca H&M, que faziam lucros enormes até então - anunciaram a suspensão do pagamento dos alugueis por estarem sem entradas em decorrência do fechamento de suas lojas físicas. In continenti, a Ministra da Justiça, Christine Lambert, representando o governo, classificou de imoral e inaceitável as declarações dos conglomerados, frisando que a lei visa ajudar apenas as empresas que realmente não tenham condições de pagar o aluguel e não aquelas que só estão preocupadas com a redução dos lucros. Isso ainda mais se justifica diante do crescimento exponencial das vendas onlines e, principalmente, porque a lei do coronavírus não fornece base legal para o comportamento abusivo dessas empresas, antecipou a Ministra da Justiça. Todos precisam fazer sacrifícios, principalmente aqueles que possuem gordura suficiente para enfrentar a crise, disse1. Diante da chuvarada de críticas à postura egoísta e antisolidária, a Adidas voltou atrás e afirmou que não irá suspender o pagamento aos locadores pessoas físicas, mas apenas os alugueis devidos a imóveis pertencentes a grandes fundos imobiliários e seguradoras. O episódio, contudo, mostrou uma fragilidade da lei de emergência: a falta de critérios mais rígidos para a suspensão do pagamento dos alugueis pelas empresas. Sem isso, corre-se o risco que grandes empresas tentem abusar do permissivo legal por razões meramente oportunistas. Outro ponto criticado é que a lei jogaria o problema da crise nos ombros dos locadores. Na visão do governo, porém, não há transferência de ônus aos locadores, vez que os locatários terão que pagar os alugueis atrasados com os encargos moratórios. Trata-se apenas de impedir temporariamente que milhares de locadores sejam despejados num momento em que eles têm suas fontes de rendas comprometidas pelas medidas de combate ao coronavírus. O que se pretende, em última análise, é impedir que a crise do coronavírus provoque uma crise de moradia, que atinja mutatis mutandis as empresas, dificultando ainda mais a recuperação econômica do país. Para o governo, a pandemia do coronavírus colocou à sociedade alemã o grande desafio de ser solidária, pois, no fundo, trata-se de concretizar o mandamento da solidariedade, dividindo entre as partes os riscos da crise epidêmica. Parece evidente que o mesmo pode-se dizer para a sociedade brasileira. A questão é: somos de facto uma sociedade solidária? __________ 1 Confira-se a matéria: Adidas will zumindest privaten Vermietern die Miete zahlen, publicada no jornal Die Welt, em 29/3/2020 Acesso: 29/3/2020.
terça-feira, 24 de março de 2020

Coronavírus bate à porta do Judiciário alemão

O mundo está mergulhado em uma pandemia sem precedentes. Atualmente, não se fala em outra coisa a não ser no novo coronavírus (Covid-19). É compreensível, tendo em vista que desde o fim da 2a Guerra Mundial a população não convivia com tantas medidas restritivas da liberdade, inclusive econômica. Nem mesmo após o fatídico 11 de setembro de 2001, quando o mundo assistiu atônito aos ataques terroristas nos EUA. O pior: é só o começo, dizem as apocalípticas previsões. Junto com o vírus, avulta no horizonte uma grave recessão econômica mundial, cruel para países como o Brasil, que ainda estava se recuperando da crise econômica de 2014, agravada pelas turbulências políticas dos últimos anos. Na Alemanha, o coronavírus também domina o debate público. E com a chamada Corona-Krise, já vigoram oficialmente inúmeras restrições, dentre as quais a de circulação. Em regra, só se pode sair na rua sozinho ou, no máximo, com mais uma pessoa. Ou seja, é proibido reunirem-se em público mais de duas pessoas, exceto familiares. Ao entrar em contato com outras pessoas na rua e em espaços públicos, deve-se manter a distância mínima de 1,5m e, em todos os casos, observar as medidas de higiene. Ainda está permitido sair de casa para trabalhar (se for impossível realizar a atividade via home office), fazer compras, ir ao médico ou à farmácia, ir à casa de alguém sob seus cuidados (ex: pais idosos, que dependam de cuidados diários), participar de compromissos inadiáveis, fazer esportes e se movimentar ao ar livre. Terminantemente proibido são reuniões festivas de pessoas em casa e espaços públicos ou privados. E a polícia e agentes públicos têm o poder de vigiar e sancionar, em caso de desobediência das regras. As penas variam de multa a prisão. Restaurantes estão fechados, exceto para fornecimentos delivery. A mesma regra para qualquer tipo de comércio, exceto os de necessidades estritamente básicas como mercados, farmácias, correios, bancos, postos de gasolina, etc. Essas medidas duram, em tese, até o início de abril. Coronavírus e o Judiciário O coronavírus está em todo lugar e já chegou aos tribunais, que tentam se preparar para lidar com a pandemia. Os primeiros processos já começam a pipocar. Dois advogados de Munique entraram dia 18/3/2020 com um pedido liminar no Tribunal Constitucional, em Karlsruhe, a fim de interromper o andamento de dois processos criminais contra seus clientes. Alguns atos processuais deveriam ocorrer nos próximos dias. Adam Ahmed, um dos causídicos, diz que a medida visa evitar a propagação do coronavírus. "Trata-se de uma questão de risco de contaminação e transmissão para todos os envolvidos no processo", disse ele, que criticou a falta de uma orientação geral, vez que, por enquanto, cada tribunal tem decidido como enfrentar a crise. Recorde-se que na Alemanha não há um órgão legiferante como o Conselho Nacional de Justica. Ministério da Justiça quer alterar o CPP alemão Por conta disso, o Ministério da Justiça está estudando a hipótese de criar uma regra única que permita aos tribunais suspender os processos em andamento por um período mais longo que o atualmente permitido. Segundo o atual Código de Processo Penal alemão - Strafprozessordnung (StPO) - julgamentos ou audiências só podem ser suspensos, em regra, por no máximo quatro semanas. Segundo o projeto de lei, esse período deve ser estendido para, no máximo, três meses e dez dias. Com isso, evita-se que vários prazos tenham que começar a contar desde o início, disse o porta-voz do Ministério da Justiça. Certo, porém, que caberá a cada tribunal decidir sobre a realização ou não de qualquer ato processual. As alterações deverão ser inseridas na Lei de Introdução ao Código de Processo Penal (Einführungsgesetzt zur Strafprozessordnung) A Ordem dos Advogados (Deutsche Anwaltsverein) alerta, contudo, contra "frenéticas alterações" na ordem processual penal e, por isso, sugere que fique claro que essas regras excepcionais ficarão restritas à situação atual. De modo geral, apenas julgamentos e audiências absolutamente necessários têm sido realizados na maioria das varas e tribunais alemães. Exemplos são casos envolvendo prisão, prescrição iminente ou outros prazos que devam ser necessariamente obedecidos, bem como em casos de processos pendentes, em estágio avançado, com risco de ser reiniciados. Na área cível não é diferente: apenas audiências urgentes estão sendo realizadas, principalmente questões relacionadas a família e guarda, nas quais há a necessidade de garantir proteção contra violência ou tutelar o bem-estar da criança. Por essas razões, as audiências dos processos de Adam Ahmed devem ocorrer nos próximos dias. Até, porque o Tribunal Constitucional negou, em 19/3/2002, o pedido liminar impetrado. Advogado denuncia juiz por tentativa de lesão corporal Por conta da discussão em torno da realização ou não de julgamentos e audiências, o advogado Thomas Pfister denunciou um magistrado da Comarca de München por tentativa de lesão corporal por ele não ter adiado a realização de uma audiência em processo criminal por tentativa de homicídio. Segundo o denunciante, o juiz teria "criado conscientemente" uma situação de risco e, ao denegar o pedido de adiamento da audiência, assumiu o risco de expor os presentes na sala de audiência a elevado risco de contaminação. De acordo com a denúncia, haviam na sala mais de cinquenta pessoas e isso configuraria um evento com elevadíssimo risco de contágio, a justificar a remarcação da audiência. A denúncia foi rejeitada ao argumento de que a Justiça precisa continuar funcionando, mesmo em tempos de propagação da doença, pois o Judiciário é parte fundamental do sistema. Além disso, inexistiam indícios de que havia na sala uma pessoa infectada ou que tenha tido contato anteriormente com infectados. Apesar do insucesso do causídico, a orientação do Ministério da Justiça é que haja atualmente o mínimo possível de audiências. Como dito no início, isso é só o começo. Infelizmente, o pior ainda está por vir.
Em tempos de quebra das bolsas por causa do impacto do corona vírus na economia, vale à pena recordar caso paradigmático, julgado em 2011, no qual o Bundesgerichtshof fixou as linhas gerais para a responsabilidade de bancos por falhas informacionais em investimentos de capital, firmando o entendimento de que mesmo investidores com experiência no mercado financeiro precisam ser adequadamente esclarecidos em relação a produtos financeiros altamente complexos. O caso A autora da ação indenizatória era uma empresa de médio porte que havia celebrado dois contratos CMS Spread Ladder Swap com outro banco, em 2002, com prazo de vigência de dez anos. Em 2005, o banco réu aconselhou a autora, com base em estudos e analises apresentadas em PowerPoint, a reduzir os altos juros que a onerava nos citados contratos swap. Para tanto, sugeriu a celebração de um novo contrato de swap, durante reunião com o administrador e o procurador da empresa, que era economista de formação. A empresa, então, celebrou contrato com o réu, em fevereiro de 2005, segundo o qual as partes se obrigavam a pagar juros reciprocamente, dentro de um determinado período, com taxas variadas, fixadas no contrato. Durante a reunião, onde as vantagens do novo contrato swap foram apresentadas pelo réu, foi informado à autora que seu risco de perda era "teoricamente ilimitado", mas omitiu-se a informação de que o contrato possuía desde o início um valor de mercado negativo em torno de 4% do valor de referência. Fato é que o negócio não se desenvolveu como prognosticado pelo banco e a empresa investidora amargou altos prejuízos já em 2005. Em 2006, a autora impugnou o contrato e arguiu sua nulidade por dolo, desfazendo o negócio em 2007 com um débito em torno de 566.850,00 euros. O processo A autora moveu, então, em 2008, ação indenizatória contra o banco requerendo o pagamento de 541.074,00? mais juros, bem como todos os prejuízos amargados em decorrência do contrato de swap, a serem apurados judicialmente. Ela alegou a nulidade do contrato por ofensa aos bons costumes (§ 138 BGB) e ao mandamento de transparência do § 307, inc. 1, frase 2 do BGB. Além disso, ela fora maliciosamente enganada pelo banco, o que configura o dolo do § 123 BGB, além de ter sido aconselhada indevidamente, vez que o réu não a esclareceu suficientemente acerca dos riscos do swap e, por fim, ainda sugeriu um negócio que não correspondia à sua disponibilidade de assunção de riscos e nem ao fim visado com o investimento. A ação foi julgada improcedente em primeira e segunda instância. A decisão do OLG Frankfurt a.M. Segundo o Oberlangesgericht Frankfurt am Main, o contrato de swap celebrado entre as partes não ofende os bons costumes, pois a autonomia privada permite a celebração de negócios arriscados. Além disso, um negocio arriscado não viola os bons costumes pelo simples fato do contratante só conseguir auferir ganho do negócio sob circunstâncias favoráveis. Segundo o Tribunal de Justica de Frankfurt a.M., o negócio também não era intransparente, nos termos do § 307 I 2 BGB, pois a fórmula de cálculo dos pagamentos a serem feitos pela empresa ao banco estava claramente formulada e tinha sido negociada individualmente entre as partes. Ou seja: não se tratava de fórmula padrão em contrato de adesão. O OLG ponderou ainda ser improvável que o banco pudesse explicar de modo mais compreensível o modelo complicado de negócio acordado entre as partes. Isso não teria maiores consequências, segundo a Corte, porque a empresa tinha conhecimento e experiência em investimentos de capital, não sendo carente de proteção como um consumidor. Isso afastava a responsabilidade do banco por falha na informação, que, no caso, o Tribunal entendeu ter sido adequadamente prestada. Ademais, na reunião a autora estava representada por seu procurador, que era economista, podendo-se, portanto, esperar que ele tenha compreendido a estrutura do contrato de swap e as fórmulas matemáticas utilizadas. Isso libera o banco réu de investigar e apurar a disposição da autora de assumir altos riscos. O Tribunal entendeu que a consultoria prestada fora adequada ao objeto, pois, embora o CMS Spread Ladder Swap não se destine estruturalmente a assegurar contratos de crédito, todo investimento de capital, que pode gerar ganhos na hipótese de um desenvolvimento satisfatório, serve, em geral, para reduzir os encargos dos juros suportados pelo contratante. Por fim, disse o OLG Frankfurt a.M. que o banco não precisava ter informado à empresa investidora de que o contrato possuía um valor negativo de mercado, no momento da conclusão da operação, porque esse valor representa uma compensação na hipótese de encerramento antecipado do contrato, configurando uma compensação ao banco e, portanto, um valor puramente teórico. A decisão do BGH O Bundesgerichtshof, contudo, julgou procedente o recurso de Revision interposto pela autora. Trata-se do processo BGH XI ZR 33/10, julgado em 22/3/2011. De início, o BGH entendeu que, ao final da apresentação do PowerPoint, quando a autora ficou convencida da utilidade de celebrar o contrato swap com o réu, as partes celebraram um contrato de consultoria por meio do qual o banco obrigou-se a prestar consultoria adequada à autora. O conteúdo e a extensão dos deveres de recomendação e conselho medem-se segundo as circunstâncias do caso individual. Para isso, o banco deve levar em conta o conhecimento e experiência do investidor, sua disposição de correr riscos, o fim perseguido com o investimento e os riscos gerais do mercado, como a conjuntura e o desenvolvimento do mercado de capital. No caso em análise, o BGH considerou que o banco não se desincumbiu do ônus de prestar uma consultoria adequada ao cliente investidor e ao objeto do investimento. a) Dever de investigar o perfil e os objetivos do investidor Com efeito, o objeto recomendado - contrato CMS Spread Ladder Swap - era um negócio tão arriscado que se poderia chamar de uma loteria ou aposta especulativa (spekulative Wette). Contudo, não há indícios que indiquem que a autora buscasse esse tipo de investimento, que, de tão complicado, só poderia ser compreendido por quem tivesse conhecimento de matemática financeira. O banco tem o dever de investigar - antes de realizar suas recomendações e/ou sugestões ao cliente - o nível de conhecimento e experiência do investidor, sua disposição de assumir riscos e o fim perseguido com o investimento, disse a Corte de Karlsruhe. Trata-se de um dever de investigar e de se informar acerca do cliente, denominado no vernáculo alemão de Erkundigungspflicht. Esse dever vem previsto expressamente na lei alemã de valores mobiliários (§ 31, inc. 2 WpHG) e o banco só fica dele dispensado quando já conheça o perfil do investidor, seja porque já o assessora há algum tempo, seja em decorrência de suas práticas anteriores. b) Dever de recomendar produto financeiro adequado Segundo frisou a Corte infraconstitucional, ainda quando o banco tenha alertado para um risco de perda "teoricamente ilimitado", ele não pode presumir - tendo em vista a alta complexidade estrutural do produto financeiro - que o cliente que celebra esse contrato esteja disposto a assumir riscos tão altos. Ao contrário: é dever do consultor só recomendar produtos financeiros que atendam aos fins visados pelo investidor. Por isso, o banco réu deveria ter se certificado de que a empresa autora tinha realmente consciência de que o risco ilimitado de perda não era apenas teórico, mas uma possibilidade real e ruinosa. c) Experiência e conhecimento do investidor Contrariamente à opinião do OLG Frankfurt a.M., o BGH afirmou que era irrelevante no caso o fato do representante da empresa ter formação em economia. A jurisprudência pacífica da Corte afirma que a qualificação profissional do investidor, por si só, é insuficiente para presumir que ele tenha conhecimento e experiência em operações de investimento de capital, salvo se existem concretos indícios para isso. Mas esses indícios não foram demonstrados nas instâncias probatórias, disse o BGH. As atividades de procurador de uma empresa de médio porte, produtora de produtos de limpeza, não permite concluir que aquele tenha conhecimento dos riscos específicos do contrato de swap, como também nada diz acerca de sua disposição de assumir riscos. Até porque, os conhecimentos técnicos do investidor deixa intocável o dever do consultor de investigar o fim do investimento e de recomendar um produto àquele adequado. No caso sob judice, o comportamento do investidor não autorizava o banco a concluir pela disposição de assumir riscos, disse o Tribunal, pois os contratos de swap, celebrados em 2002 com outra instituição financeira, eram estruturalmente mais simples e não envolviam riscos tão elevados quanto o celebrado com o banco réu. d) Extensão do dever de esclarecimento Segundo os juízes de Karlsruhe, diante de um produto altamente complexo, o banco é obrigado a garantir que o investidor tenha o mesmo nível de conhecimento que ele próprio, pois só assim o investidor pode tomar a decisão esclarecida - e responsável - de aceitar ou não participar da loteria especulativa. Para isso, ele deve desnudar todos os elementos da fórmula de cálculo dos percentuais variáveis de juros e seus efeitos concretos sobre os possíveis desenvolvimento do spread. e) Dever de defesa dos interesses do cliente Em decorrência do contrato de consultoria, o banco assume ainda o dever de só fazer recomendações no interesse exclusivo do cliente, salientou o BGH. Isso significa que ele deve evitar - e expor ao cliente - os conflitos de interesses que ponham em risco e/ou prejudiquem os interesses do investidor e o fim último da consultoria. No caso concreto, a Corte entendeu que havia um grave conflito de interesse entre o réu e a autora, pois, da forma como estava estruturado o contrato swap, o lucro do banco implicava necessariamente a perda do investidor. E, disse o BGH, enquanto consultor, o banco está obrigado a defender o interesse da empresa investidora e deve atuar visando maximar os lucros dela, não os seus próprios. Dessa forma, o valor negativo de mercado, estruturado desde o início pelo banco, era expressão do grave conflito de interesses existente entre as partes, sendo apto a pôr em risco os interesses da empresa investidora. e) Causalidade Por fim, o BGH aplicou a teoria da presunção do comportamento racional esclarecido para admitir que a empresa investidora, se tivesse sido adequadamente informada e esclarecida da estruturação (para ela desvantajosa) do negócio e do risco certo de perdas altíssimas, jamais teria concluído o contrato naqueles termos. Segundo a Corte, a presunção de que o lesado teria adotado um comportamento racional, se tivesse sido adequadamente esclarecido dos riscos reais do negócio, vale, em princípio, em todas as situações nas quais resta demonstrada a violação dos deveres de informação, esclarecimento e conselho, principalmente quando há um claro conflito de interesses entre o banco e o cliente investidor, quando, então, resta evidente que a falha informacional foi fator determinante para a decisão de investimento (dano) do cliente lesado. Segundo a Corte de Karlsruhe, o fato do diretor da empresa ter concordado em fechar o negócio mesmo sem compreender claramente todas as nuances da operação, antes de configurar culpa concorrente (§ 254 I BGB), exprime a relação de confiança existente entre as partes, a qual deve ser protegida. Com isso, o BGH julgou procedente a Revision interposta pela empresa, condenando o banco ao pagamento do valor pleiteado à título de indenização por falhas na informação em investimentos de capital. A situação no Brasil No Brasil, o Código de Defesa do Consumidor consagra o dever de informação como um dos deveres cardinais dos partícipes do mercado de consumo e impõe a responsabilidade objetiva para toda a rede de fornecedores de produtos/serviços, com a inversão do ônus da prova como meio facilitador da defesa das pretensões dos consumidores. Os deveres informacionais também podem surgir no bojo de relações paritárias com fundamento na cláusula geral do art. 422 do Código Civil, que consagra a função criadora de deveres laterais de conduta da boa-fé objetiva. Apesar disso, a jurisprudência do STJ tem sido dura com os investidores ao presumir que o investidor - mesmo o investidor-consumidor padrão - conhece os riscos envolvidos em aplicações financeiras1. No REsp. 1.003.893/RJ, julgado em 2010, consta expressamente da ementa que aqueles que se encorajam a investir em fundos arrojados estão cientes do risco do negócio2. Mais surpreendente ainda é a premissa estampada no REsp. 799.241/RJ, de 2013, segundo a qual, em princípio, descabe indenização por danos materiais e morais em aplicações de alto risco3. Esse entendimento contraria a lógica inerente à boa-fé objetiva e esvazia os deveres de informação, esclarecimento e conselho das instituições financeiras, fazendo com que a eficácia prática da Codificação ou do CDC fique totalmente comprometida nessa seara. Com isso, o STJ impõe ao investidor o pesado ônus da auto-informação em uma seara onde nem mesmo o fornecimento de informação ajuda, pois o investidor, em regra, não tem conhecimento técnico suficiente para compreender a estrutura altamente complexa dos produtos/serviços financeiros, onerando, dessa forma, quem precisa de proteção. Embora ambos os ordenamentos jurídicos possuam instrumentos semelhantes e adequados à proteção do investidor diante de falhas de informação, esclarecimento e conselho em aplicações financeiras, a tutela da confiança do investidor tem maior efetividade na Alemanha do que no Brasil. Lá, seja com base em um fictício contrato de consultoria financeira (responsabilidade contratual) ou no contato negocial (responsabilidade pré-contratual), os consultores financeiros - principalmente os bancos - são obrigados a observar uma intensa carga de deveres de consideração. Esses deveres visam não apenas manter a conduta das partes dentro dos padrões ético-jurídicos exigidos pela boa-fé objetiva, mas principalmente garantir uma tomada de decisão (decisão de investir) consciente e auto-responsável, tutelando a autonomia privada material do investidor. Essa tutela alcança, em igual medida, qualquer investidor, seja ele consumidor ou não, desde que presente um desnível estrutural informacional. E isso é feito sem "equiparar" como consumidor aqueles investidores que efetivamente não o são, mantendo-se hígido o conceito de consumidor, bem como sem quaisquer recursos a normas, princípios e valores da Lei Fundamental, como dignidade humana, bem ao sabor do discurso brasileiro contemporâneo. A proteção da confiança do investidor foi - e permanece - construída à partir do Código Civil Alemão (BGB), no seio da dogmática obrigacional, com base nos deveres de consideração, decorrentes do princípio da boa-fé objetiva do § 242 do BGB, embora hoje presente em diversas leis regulatórias do mercado de capitais. __________ 1 Para um aprofundamento do tema, permita-se remeter a NUNES FRITZ, Karina. A responsabilidade dos bancos por falhas na informação em investimentos de capital: uma análise comparada com o direito alemão. RDCC 8/2016, p. 167-200. 2 STJ, REsp. 1.003.893/RJ, T3, Rel. Min. Massami Uyeda, DJe 8/9/2010. 3 STJ, REsp. 799.241/RJ, T4, Rel. Min. Raul Araújo, DJe 26/2/2013.
O Tribunal Administrativo de Münster - Oberverwaltungsgericht (OVG) - proferiu interessante julgado reforçando o direito fundamental de reunião dos cidadãos e a proteção de dados pessoais sensíveis ao julgar ilegal a realização e divulgação em mídias sociais de fotos de pessoas em passeatas públicas. O caso Os autores da ação tiveram suas imagens capturadas em fotos tiradas pela Polícia durante uma passeata, as quais foram publicadas na página oficial da corporação no Facebook e no Twitter. A passeata fora organizada por um dos autores a fim de fazer frente a outra demonstração que ocorreria na cidade de Essen-Steele, no Estado de Nordrhein-Westfalen, a qual tinha cunho aparentemente conservador em relação à identidade de gênero, pois o lema daquela era: "Steele é colorida - Contra racismo! Contra a violência!". Ambas as passeatas foram acompanhadas pela Polícia. Dois policiais fardados fizeram fotos da passeata com câmera digital e postaram no Facebook da corporação de Essen. Nas fotos vê-se em primeiro plano alguns policiais e viaturas da Polícia, mas, ao fundo, os autores aparecem nitidamente no meio da multidão. Eles alegaram que a realização não autorizada das fotos e sua posterior divulgação nas redes sociais, com suas imagens nitidamente capturadas, feriu o direito à autodeterminação informacional (art. 2 I c/c art. 1 I da Lei Fundamental), bem como o direito de reunião, consagrado no art. 8 I da Lei Fundamental. O ato de fotografar demonstrações sem qualquer motivo ou autorização provoca no cidadão a sensação de estar sendo observado pelo Estado, diz a Inicial e isso independe do fotógrafo estar no meio ou às margens da passeata. Além disso, os fotografados não sabem o que será feito com esses dados, principalmente com que fim eles serão utilizados e se - e quando - serão apagados. O Estado alegou na Contestação que as fotos foram tiradas legitimamente durante trabalho policial, que encontra fundamento na permissão geral de busca de informações pela Polícia. Segundo o réu, não houve ofensa ao direito jusfundamental de reunião dos autores, porque a realização das fotos em nada atrapalhou o desenrolar da passeata. Ademais, quem participa de manifestações públicas atualmente precisa contar que pode ser filmado e/ou fotografado. Além disso, a realização e divulgação de fotos faz parte do trabalho da Polícia, não havendo ilegalidade no ato, até porque esse trabalho tem por fim a informação pública e o fortalecimento da "sensação de segurança da população" e da confiança no trabalho da corporação. Ainda há de se notar que os autores não aparecem em primeiro plano nas fotos e que a divulgação das imagens foi razoável e proporcional, pois as redes sociais utilizadas alcançam grande parcela da população interessada em saber o que está acontecendo na cidade. A decisão do Tribunal Administrativo A ação foi julgada procedente em primeira instância e confirmada pelo Tribunal Regional Administrativo de Münster no processo OVG Az. 15 A 4753/18, julgado em 17/9/2019. Segundo o OVG Münster, as reuniões e demonstrações públicas, de status jusfundamental, são expressão da comunicação e do desenvolvimento coletivo e representam uma forma de manifestação e de formação de opinião, indispensável à democracia. O art. 8 I da Lei Fundamental tutela todo esse processo de expressão do cidadão. O direito fundamental de livre reunião pode sofrer restrições por meio de medidas fáticas que tenham efeitos intimidatório e/ou inibitório e que são, por isso, capazes de influenciar a livre formação da vontade e a liberdade de decidir participar (ou não) na manifestação1. Quem precisa contar que sua participação em uma passeata será registrada por agentes estatais e que daí podem surgir riscos à sua pessoa, provavelmente deixará de exercer esse direito fundamental. Isso prejudica não apenas o indivíduo, mas também a própria coletividade, pois a manifestação de opinião coletiva, através dos cidadãos, é um pressuposto condicionante para uma sociedade livre e democrática. A realização de fotos pela Polícia constitui uma violação ao direito fundamental de reunião do art. 8, inc. 1 da Grundgesetz, pois fotos e filmagens são, em princípio, propícias a causar um efeito intimidativo, ameaçador ou manipulador do comportamento dos participantes da passeata. Isso se aplica ainda quando as imagens tenham sido tiradas para ser utilizadas no trabalho policial e a pessoa não apareça em primeiro plano, tendo em vista que as novas tecnologias permitem facilmente individualizá-la e identificá-la, inclusive por meio de reconhecimento facial. Dessa forma, estão em jogo dados sensíveis dos participantes de manifestações, a partir dos quais se pode ainda deduzir acerca da ideologia e posição política dos envolvidos. Dito em outras palavras: é necessária uma base legal para a realização de fotos de manifestantes. A lei alemã que disciplina a realização de reuniões e passeatas (Versammlungsgesetz) só permite a realização de gravações de áudio e/ou imagem quando haja indícios fáticos a amparar a suspeita de um considerável risco para a segurança e ordem públicas (§ 12a I 1 VersG). O Código de Processo Penal e a Lei de Segurança Pública também estabelecem hipóteses nas quais é legítima a coleta de informações de cunho pessoal de manifestantes, como deixa claro o § 12a II VersG. Mas, segundo o Tribunal, nenhuma das hipóteses aplicava-se ao caso em análise. O § 12a II 1 da VersG prescreve ainda que o material coletado deve ser imediatamente destruído após o fim da manifestação ou dos acontecimentos que legitimaram sua coleta, salvo se necessário para a persecução penal dos participantes ou para afastar, no caso concreto, risco de perigo. Segundo o OVG Münster, a justificativa alegada para a realização e divulgação das fotos (informação geral da Polícia) não se deixa subsumir no conceito de defesa da ordem e segurança pública, nem no de persecução penal. Se o objetivo era coletar informações gerais sobre a passeata, a Polícia poderia tê-lo feito sem a realização de fotos dos manifestantes, disse a Corte Administrativa. Dentro desse contexto, ela só poderia ter fotografado seus próprios agentes e o aparato policial (viaturas, armas, etc.). Devido à significação fundamental do tema, o recurso de Revision interposto pelo Estado foi admitido e o caso enviado ao Tribunal Superior Administrativo (Bundesverwaltungsgericht). A situação no Brasil No Brasil, o direito à livre reunião está consagrado no art. 5 XVI da CF, segundo o qual "todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente". Mas, salvo melhor juízo, parece que não há lei regulando as situações nas quais a Polícia ou outros agentes públicos podem fazer fotos dos manifestantes. Note-se que a discussão não diz respeito à realização de fotos por particulares (inclusive a imprensa), mas apenas pelo Poder Público, questionando, em última análise, o poder do Estado de vigiar e coletar informações sobre os cidadãos. Por aqui, há controvérsia doutrinária até se uma manifestação precisa ser previamente comunicada ao Poder Público, bastando o anúncio nas redes sociais, bem como se os organizadores (ou o Estado) podem definir o local ou trajeto da passeata, como deixou claro os conflitos entre o Movimento Passe Livre (MPL) e o Governo de São Paulo, em 2016. De qualquer forma, a decisão do Tribunal de Münster, ainda quando passível de reforma, aponta para o importante problema - teórico e prático - da proteção dos dados pessoais e do direito jusfundamental de manifestação dos cidadãos face ao interesse do Poder Público de vigiar e coletar informações sobre os cidadãos. Um exemplo interessantíssimo de colisão de posições jusfundamentais e de eficácia vertical dos direitos fundamentais perante o Estado, a quem cabe primordialmente respeitar, garantir e concretizar esses direitos. __________ 1 Confira-se, dentre outros julgados: BVerfG 2 BvQ 39/15, julgado em 7/11/2015.
Com o reconhecimento das uniões homoafetiva é cada vez mais frequentes uma criança ter de facto duas mães ou dois pais. Basta um olhar atento nas creches e escolas para se constatar essa realidade social. Na Alemanha não é diferente. No país, desde 2001 é possível registrar em cartório relações homoafetiva como união de fato, algo semelhante à união estável entre nós, e desde 2017 o Tribunal Constitucional Alemão, Bundesverfassungsgericht, em histórica decisão, ampliou o casamento para todos: Ehe für alle1. A decisão foi, tal como aqui, uma quebra de paradigma, pois rompeu com o sistema matrimonial heteronormativo consagrado no Código Civil (BGB). Mas, apesar dos casais homossexuais poderem casar ou estabelecer união estável, eles não vêm gozando do mesmo tratamento jurídico que os casais heterossexuais. Pelo menos, não segundo a jurisprudência do Bundesgerichtshof, a Corte infraconstitucional equivalente ao nosso Superior Tribunal de Justiça. Em 2018, a Corte proferiu polêmica decisão negando uma equiparação plena das relações hetero e homoafetivas, segundo o direito vigente. O caso No caso, duas mulheres da Saxônia, que viviam em união homoafetiva registrada, decidiram ter um filho por meio de inseminação artificial heteróloga, com a ajuda do sêmen de um doador. Após o nascimento, elas tentaram registrar a criança em cartório com o nome de ambas como genitora. Aqui vale o registro de que a Alemanha não tem um órgão legiferante como o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que dita regras em forma de "provimentos". Dessa forma, ao contrário do Brasil, onde o CNJ suprimiu das certidões de nascimento - por meio do Provimento 63/2017 - a referência ao pai e mãe biológicos, constando apenas o neutro termo "filiação", na Alemanha ainda é necessário indicar com precisão a mãe e, eventualmente, o pai da criança. O problema é que o cartório se recusou a incluir o nome da companheira da genitora como mãe da criança. Como mãe foi registrada apenas a mulher que deu à luz a criança. Por essa razão, as duas moveram ação judicial pleiteando a retificação do registro de nascimento a fim de constar o nome de ambas. A ação foi julgada procedente em primeira instância pelo Amtsgericht Chemnitz, que ordenou o cartório inserir a companheira como mãe na certidão de nascimento. O Tribunal de Justiça (Oberlandesgericht) de Dresden, contudo, revogou a decisão e o caso foi parar na Corte em Karlsruhe. A decisão do Bundesgerichtshof O BGH negou provimento ao recurso (Revision) interposto pela autora. Trata-se do processo BGH Az. XII ZB 231/18, julgado em 10/10/2018. Segundo a Corte de Karlsruhe, o registro de nascimento da criança não estava errado, porque a esposa da mãe biológica não poderia ser considerada genitora jurídica da criança. Tal como o Código Beviláqua, o BGB de 1900 refletia o modelo tradicional de família, no qual coincidiam a parentalidade genética, jurídica e social. Essa realidade começou a mudar em 1997, quando o legislador alemão, empurrado pelas mudanças sociais e pela ciência médica, alterou o chamado direito das crianças no Livro 4 do BGB, atualizando diversas normas, dentre as quais o direito de filiação. Segundo o § 1.591 BGB, introduzido com a reforma, mãe é quem dá à luz a criança. Com essa norma, o legislador alemão rompeu o princípio milenar de que a filiação (materna) decorre sempre da origem genética, pois imputou a posição jurídica de mãe à mulher que efetivamente parir a criança, ainda que essa dela não proceda geneticamente, como ocorre nos casos de barriga de aluguel ou doação de óvulo. A justificativa para a norma é que a mulher desenvolve um grande vínculo emocional com o ser em formação e o Estado não deve contribuir para o rompimento desse laço psicossocial2. Além disso, essa regra permite uma imputação clara e segura da maternidade, como reconhece o Projeto de Lei de reforma do direito de filiação, servindo ainda à tutela do bem-estar do recém-nascido3. Já o § 1.592 BGB define como pai o homem que: (1) for casado com a mãe da criança no momento do nascimento; (2) reconheceu a paternidade ou (3) cuja paternidade foi reconhecida em juízo. Aqui o legislador não pressupõe que a paternidade decorre necessariamente da origem genética, mas trabalha com a presunção de paternidade. Para o que aqui interessa, importante observar que os referidos dispositivos consagram a chamada Eltern-Kind-Zuordnung, i.e., a imputação da criança aos pais e indicam quem pode ocupar a posição jurídica de pais no ordenamento jurídico. E a norma, disse o BGH, pressupõe expressamente dois genitores de gênero distinto. Os dispositivos não podem, segundo o BGH, ser aplicados diretamente à união de duas mulheres, pois isso contraria a vontade do legislador, que, embora estendendo o matrimônio a casais homossexuais, deixou intencionalmente de reformar o direito de filiação no BGB e de regular as questões de filiação em relacionamentos homoafetivos. Também não caberia uma interpretação analógica, porque essa requer similitude das situações fáticas, ausente no caso, pois se tratam de duas mulheres e só uma pode ser mãe biológica. A paternidade por força do vínculo matrimonial retira sua razão e fundamento do fato de que a imputação jurídica da paternidade retrata, em regra, a verdadeira origem da criança. Essa presunção (relativa) de paternidade, subjacente ao § 1.592 BGB, não se aplica à mulher casada - ou em união registrada - com a mãe da criança, pois ela não pode ser um dos genitores biológicos da criança, nascida, na verdade, de inseminação heteróloga do óvulo da mãe com o sêmen do terceiro (doador). Ao contrário, disse o BGH: pode-se excluir, desde o início, que a criança nascida da mãe provenha de sua cônjuge, pois há sempre um pai biológico envolvido no processo de concepção. O parentesco genético-biológico ainda é um critério essencial de imputação da parentalidade, pois representa um importantíssimo vínculo entre os pais e filhos para a maioria das famílias. Isso é admitido, inclusive, pelo Projeto de Lei que pretende reformar o direito de filiação na Alemanha4. Assim, até que ocorra uma reforma no direito de filiação do Código, só resta à companheira da mãe a possibilidade de se tornar genitora jurídica por meio da adoção, concluiu a Corte. O Tribunal refutou ainda a alegação das autoras de que a situação jurídica analisada ofenderia os direitos fundamentais dos envolvidos e a Convenção Europeia de Direitos Humanos. As repercussões do caso A decisão foi recebida negativamente pela comunidade GLBTI+, pois marcada pelo ranço do conservadorismo e atraso em relação a outras ordens jurídicas. Agora, um novo processo tem posto mais lenha na fogueira da discussão acerca da necessidade de reforma do direito de filiação do BGB. Trata-se de ação movida por duas mulheres da cidade de Hildesheim, perto de Frankfurt am Main. A criança nasceu em fevereiro último, fruto também de fertilização com sêmen de um doador. As duas já informaram que vão percorrer todas as instâncias para afastar essa situação degradante de uma ter que assumir o status de mãe por via da adoção. Alegam que, de fato, ambas são mães, pois tomaram em conjunto a decisão de ter filho, consentiram e vivenciaram o processo de inseminação artificial e ouviram as primeiras batidas do coraçãozinho do bebê via ultrassom. Juridicamente, aduzem que as "famílias arco-íris" (Regenbogenfamilien) são discriminadas pela jurisprudência do BGH, até porque no momento do registro da criança, nascida de relacionamentos heterossexuais, não se verifica se o esposo da mãe é realmente o pai biológico da criança, sendo discriminatória a verificação em caso de casais homoafetivos. É provável, portanto, que esse caso vá parar no Tribunal Constitucional e seja julgado pelo mesmo Senado que, de modo avantgarde, quebrou o sistema binário de gênero e reconheceu a existência de um terceiro gênero, situado entre o masculino e o feminino: o intergênero, hoje reconhecido pela em lei5. O Parlamento alemão (Bundestag) há tempos está envolto com a discussão acerca da reforma do direito de filiação. Há pareceres e estudos sobre o tema, bem como um projeto de lei apresentado pela Ministra da Justiça, Katarina Barley, do Partido Socialdemocrata (SPD). Mas falta consenso politico. O Projeto visa, dentre outras coisas, fortalecer as relações homoafetivas e, por isso, prevê que no futuro a esposa/companheira da mãe da criança também se tornará automaticamente mãe, com todos os direitos e obrigações. O Partido Verde (Grünen) já se manifestou pela aprovação da dupla maternidade e/ou paternidade de casais homoafetivos. Mas ainda não há prazo para a discussão da matéria. Na pauta está ainda a reforma do direito de adoção, de modo que o Parlamento só deve votar em bloco as novas regras a fim de evitar normas axiologicamente conflitantes. Segundo estudos, devem existir cerca de 15 mil crianças e adolescentes, abaixo de 18 anos, vivendo em famílias do mesmo sexo. A situação no Brasil Por aqui, o caso ocorrido na Alemanha não encontra problemas, pois o Judiciário - e os próprios cartórios de registro civil - vem permitindo que casais homossexuais registrem a criança com duas mães ou dois pais. Como não há lei específica regulando o assunto, o CNJ apressou-se em suprir parcialmente a lacuna legal com os Provimentos 52/2016 e 63/2017, que disciplina o registro de crianças nascidas por técnicas de reprodução assistida. O art. 16 § 2o. do Provimento 63/2017 - equivalente ao art. 1o, § 2o. do Provimento 52/2016 - reza que no caso de filhos de casais homoafetivos, o assento de nascimento deverá ser adequado para que constem os nomes dos ascendentes, sem referencia à distinção quanto à ascendência paterna ou materna. O registro pode ser feito diretamente no cartório, sem necessidade de processo judicial, desde que apresentando a documentação exigida no art. 17 do Provimento 63/2017. Na prática, uma das discussões que se coloca é se essa facilidade só se aplicaria aos casos de inseminação artificial realizados em clínicas ou se valeria ainda quando a criança fosse fruto de inseminação caseira, prática bastante difundida em razão dos altos custos com os tratamentos de reprodução assistida. Antes do Provimento 63/2017, casais homoafetivos conseguiam, sem maiores dificuldades, registrar a criança nascida de uma delas por meio de inseminação caseira ou pelo método tradicional6. Mas na Europa, o processo não é tão simples assim. Ano passado, o site da BBC Brasil noticiou o caso de vários casais homoafetivos que não conseguiram registrar seus filhos com o nome de ambos. O último desfecho foi a história das mães brasileiras que, em 2019, não conseguiam registrar na França o filho gerado através de reprodução assistida feita na Espanha7. Elas queriam constar como mães no registro, mas apenas aquela que deu à luz teve a legitimidade reconhecida no cartório francês, cabendo à outra apenas a alternativa de adotar a criança para tornar-se oficialmente mãe, tal como vem ocorrendo até agora no direito alemão. Todo esforço de previsão é arriscado, terminando por desaguar em exercício de futurologia. Mas, se o mencionado Projeto de Lei alemão realmente refletir a realidade social, parecem boas a chance do Tribunal Constitucional permitir o registro de duas mães (ou dois pais) no registro das crianças, sem a necessidade de adoção. Vamos aguardar para ver. __________ 1 Após a decisão do BVerfG, o Parlamento alemão aprovou lei extendendo o direito ao matrimônio a pessoas do mesmo gênero, em 20/7/2017, em vigor no país desde 1/10/2017. 2 KEMPER, Reiner. Bürgerliches Gesetzbuch Handkommentar. Reiner Schulze (coord.). 8. ed. Baden-Baden: Nomos, 2014. § 1591, p. 1905. 3 Diskussionsteilentwurf des Bundesministeriums der Justiz und für Verbraucherschutz - Entwurf eines Gesetzes zur Reform des Abstammungsrechts, p. 2. 4 Diskussionsteilentwurf des Bundesministeriums der Justiz und für Verbraucherschutz - Entwurf eines Gesetzes zur Reform des Abstammungsrechts, p. 2. 5 Cf. Gesetz zur Änderung der in das Geburtsregister einzutragenden Angaben, de 18.12.2018. A respeito do tema, confira-se: NUNES FRITZ, Karina. Tribunal Constitucional Alemão admite a existência de um terceiro gênero. Migalhas, 2/1/2018. 6 Casal homoafetivo registra criança com duas mães diretamente no cartório, no Pará. Reportagem de 27/7/2017, publicada no site G1 do Globo. Acesso: 26/2/2020. 7 Mães brasileiras não conseguem registrar filho na França em nome das duas e expõem impasse no Itamaraty. Acesso: 18/8/2019.
terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Decisões históricas: o caso da fiança - Parte 2

Dando sequência à análise do caso da fiança, julgado pelo 1o Senado do Tribunal Constitucional Alemão em 19/10/1993 e publicado no repertório BVerfGE 89, 214, hoje analisa-se o processo 1 BvR 1044/89 relacionado à validade de fiança prestada pelo cônjuge do tomador do crédito. Como já dito aqui, a questão central discutida nesses casos era saber até que ponto os tribunais civis devem realizar um controle do conteúdo dos contratos de fiança, celebrados com instituições financeiras, quando familiares do tomador do crédito, desprovidos de patrimônio, assumem como fiadores a garantia de dívida muito elevada. Como explicado na coluna anterior sobre o tema, com frequência os bancos exigiam que familiares próximos do tomador de um crédito, como esposas e filhos, figurassem como fiadores nos contratos de empréstimos. O objetivo não era tanto ampliar a massa patrimonial responsável pelo débito, mas evitar a transferência patrimonial e exercer pressão sobre o devedor a pagar a dívida, sob pena do chamamento dos familiares. 2. O caso da esposa No processo BVerfG 1 BvR 1044/89, a esposa figurou como fiadora de empréstimo do marido no valor de 30 mil marcos alemães, embora fosse uma dona de casa desempregada e sem patrimônio. Com a inadimplência do devedor principal, o banco cobrou dela o pagamento da divida, o que era exorbitante para sua realidade familiar, pois ela jamais se livraria do pagamento da fiança, considerando sua realidade financeira. A instituição financeira ganhou em todas as instâncias. E o argumento principal era que uma pessoa maior sabe, mesmo sem maiores esclarecimentos, que a fiança é um negócio arriscado e, portanto, o banco poderia partir do princípio de que quem assume a garantia de um débito conhece a extensão de seu ato e sabe avaliar seus riscos com responsabilidade. 3. A decisão do BVerfG Com a queixa constitucional movida, o Tribunal deu ganho de causa ao banco, mas assentou as linhas gerais que permitiriam a nulidade da fiança assumida por cônjuge ou companheiro. Com efeito, enquanto no caso da filha do armador (processo BvR 567/89), o Tribunal Constitucional reconheceu a existência de uma dívida exorbitante, que comprometeria o mínimo existencial da fiadora por toda a vida, o caso da esposa seria diferente, pois possuía circunstâncias fáticas distintas. Aqui, segundo o BVerfG, não houve a assunção de uma fiança de extensão difícil de ser avaliada e nem restou comprovado que a fiadora fora pressionada a assinar o documento ou que o funcionário do banco teria minimizado os riscos e a extensão da garantia assumida. Embora o banco tenha condicionado a concessão do crédito à assunção da garantia, não há indícios de que tenha inobservados seus deveres informacionais ou banalizado os riscos da responsabilidade. Como a fiança dizia respeito a crédito de consumo, de valor não extraordinariamente alto, para a cobertura de crédito tomado pelo marido da fiadora, se poderia partir do princípio de que ela própria tinha interesse direto na concessão do crédito, pois se beneficiou do dinheiro. Dessa forma, o BVerfG rejeitou os argumentos da mulher, autora da queixa constitucional, mantendo as decisões anteriores. 4. A importância da decisão A partir dessa decisão histórica do BVerfG, os tribunais inferiores passaram a modificar sua jurisprudência em relação aos contratos de fiança celebrados por instituições financeiras e os familiares do devedor. O próprio Bundesgerichtshof (BGH) alterou sua jurisprudência, passando a admitir a nulidade de fianças exorbitantes celebradas por descendentes, cônjuge, companheiros e noivos, ou seja, pessoas que estão vinculadas emocionalmente ao devedor principal. Um dos fundamentos seria o § 138 BGB, que, logo no caput proclama: "Um negócio jurídico contrário aos bons costumes é nulo". A frase 2 do dispositivo proclama a nulidade dos negócios usuários dizendo que também é nulo o negócio jurídico através do qual alguém, explorando a situação de necessidade, a inexperiência, a falta de discernimento ou uma significativa falta de vontade de outrem, obtém para si ou para terceiros vantagens patrimoniais que estão em clara desproporção com a prestação. Em suma, a norma visa combater o abuso do poder econômico. Para a aplicação do dispositivo, decisivo é o conteúdo do negócio jurídico celebrado e, em razão disso, o § 138 BGB tem aplicação não apenas aos contratos, mas a todos os tipos de negócio jurídico exorbitantemente desestruturados1. A nulidade da fiança de familiares decorre com uma conjuntura de fatores. Dentre eles, o primeiro e principal é que no caso concreto haja uma grave desproporção entre a extensão da fiança e a capacidade financeira do fiador, ou seja, que o fiador fique excessivamente endividado. Nesses casos, salvo prova em contrário, presume-se que a responsabilidade pela dívida foi assumida sem uma avaliação racional da situação e dos riscos financeiros, sendo o resultado da inexperiência e/ou da vinculação afetiva do fiador ao devedor. Em segundo lugar, é necessário que essa grave desproporção seja perceptível para o banco e que ele tenha se aproveitado da inexperiência do fiador. Esse requisito, entretanto, pode ser - e é com frequência - relativizado na prática na medida em que a instituição financeira, considerando o fim último do contrato de fiança, tem o ônus de verificar previamente a situação patrimonial do fiador. Em terceiro lugar, o fiador não pode obter uma vantagem direta do crédito afiançado. Se ele se beneficia do crédito, mesmo uma garantia excessivamente onerosa pode ser considerada válida pela ausência da contrariedade aos bons costumes. É o caso do filho, fiador de dívida contraída pela empresa familiar, da qual ele é diretor ou do fiador que é coproprietário do objeto financiado ou cuja empresa participa do projeto financiado com o crédito concedido pelo banco. Algumas decisões apontam a nulidade da fiança, mesmo sem grave desequilíbrio financeiro, quando o banco influencia de forma inadmissível a liberdade de decisão do fiador, por exemplo, ao banalizar os riscos assumidos ou omitir os graves riscos do fiador ou exigir a fiança do cônjuge após ter liberado parte do empréstimo. As linhas gerais da fiança de familiares são aplicadas, em princípio, também a fianças assumidas por empregado diante de dívidas do empregador, mas não a fianças assumidas por sócios por dívidas da sociedade2. No Brasil, os bons costumes (gute Sitten) não são aplicados como limite à autonomia privada como na Alemanha, onde o § 138 BGB tem vasta aplicação. Lá, a autonomia privada não é restringida e limitada apenas pelo quadro normativo, mas também por princípios da moral jurídica e social, enraizados na sociedade ou imanentes aos princípios e valores do ordenamento. Trata-se, em apertada síntese, de exigências comportamentais extrajurídicas, que resultam de regras de convivência comum da sociedade ou dos valores e princípios fundamentais da ordem jurídica. Dentre os inúmeros casos subsumidos no § 138 BGB como negócios contrários aos bons costumes e sancionados com nulidade, cita-se - além da fiança exorbitante de familiares - os negócios usuários, que nunca foi tratado com o devido cuidado entre nós. __________ 1 DÖRNER, Heinrich. Bürgerliches Gesetzbuch Handkommentar. In: Reiner Schulzer (coord.). 8. ed. Baden-Baden: Nomos, 2014 , p. 136. 2 Nesse sentido: BGH NJW 2003, p. 59.
A Corte infraconstitucional alemã, Bundesgerichtshof, decidiu que os planos de saúde são obrigados a cobrir tratamento de inseminação artificial mesmo em mulheres maduras. A decisão foi publicada no dia 2/1/2020. Trata-se do processo BGH IV ZR 323/18, julgado em 4/12/2019. O caso O autor da ação sofria de criptozooespermia, enfermidade caracterizada pela baixa concentração de espermatozoides, razão pela qual estava impossibilitado de gerar uma criança por meios naturais. Ele acionou em juízo o seguro de saúde para pedir ressarcimento de cerca de 17.500 ? (euros) referentes aos custos de quatro ciclos de fertilização in vitro, realizados com injeção intracitoplasmática de espermatozoides e transferência embrionária. A empresa recusou a cobertura do procedimento alegando que o caso do autor não teria preenchido os pressupostos configuradores do tratamento médico, exigidos pelo § 1, inc. 2, alínea 1 das condições contratuais gerais. Um deles estava relacionado com a idade da esposa do autor, na época com 44 anos e, por isso, situada em faixa etária com alto risco de aborto. O processo O autor obteve sucesso em primeira e segunda instância. O Tribunal de Justiça (Oberlandesgericht) de Bremen considerou que as quatros tentativas de fertilização poderiam ser entendidas como um tratamento médico necessário, nos termos do § 1, inc. 2 do contrato. Além disso, a prova pericial realizada atestara que existia, no mínimo, 15% de chance da transferência embrionária conduzir à gravidez desejada e que a esposa do autor era uma mulher sadia reprodutivamente. Segundo o OLG Bremen, importante era que o tratamento poderia conduzir, com certa probabilidade, à concepção, sendo irrelevante como a gravidez se desenvolveria, ou seja, se havia grande ou pequena probabilidade da criança nascer com vida ou se a taxa de aborto era ou não alta na faixa etária na qual se enquadrava a esposa do autor. Trata-se do processo OLG Bremen, 3U 7/17, pulicado em 26/11/2017. A decisão do BGH A Corte julgou improcedente o recurso de Revision interposto pela empresa de seguro de saúde. Segundo o BGH, é evidente que a infertilidade orgânica do paciente se caracterizava como moléstia, nos termos do contrato e que as medidas adotadas (inseminação artificial) visavam suplantar ou minorar esse problema, configurando, portanto, um procedimento médico necessário, com previsão de cobertura pelo seguro de saúde. De acordo com a prova médica acostada aos autos, havia uma probabilidade de êxito no tratamento de pelo menos 15%, apesar da idade da mulher. Ou seja: era possível que o tratamento conduzisse, com "certa probabilidade", a uma gestação tardia, pois a esposa do autor não apresentava condições pessoais que pudessem reduzir adicionalmente a chance de gravidez. De acordo com a jurisprudência da Corte, só não seria realista uma perspectiva de êxito quando a probabilidade da transferência embrionária conduzir à gravidez fosse tão baixa que a chance de concepção sequer alcançasse o patamar de 15%. Para a Corte de Karlsruhe, ao contrário do sustentado pelo plano, decisivo era que o tratamento conduzisse à gravidez, independentemente de como essa se desenvolveria, ou seja, independente da criança vir ou não a nascer. Por isso, o BGH afirmou que a necessidade do tratamento médico (inseminação artificial) se mede pela probabilidade da concepção e não pela chance de êxito da gravidez. Por essa razão, irrelevante no caso a alta taxa de aborto na faixa etária da esposa do autor, até porque o objeto do tratamento da infertilidade era a gravidez em si e não o risco de aborto, disse o Tribunal de Karlsruhe. A uma, porque o objetivo da inseminação artificial é apenas a indução da gravidez e não a prevenção ou eliminação do aborto, já que não visa, em primeira linha, garantir o pelo desenvolvimento da gravidez ou afastar circunstâncias que ponham em risco o parto, sobre as quais o tratamento não tem necessariamente influência. A duas, porque o risco de aborto faz parte do risco de vida geral suportado pelos pais, independentemente da criança ter sido gerada naturalmente ou com ajuda médica, disse a Corte. Diferente seria a hipótese em que, por conta de problemas de saúde próprios dos genitores, seria pouco provável que a criança nascesse com vida. Mas isso não foi ventilado no caso concreto1. Por isso, concluiu o BGH confirmando a pretensão do autor ao ressarcimento dos custos e afirmando que o direito à autodeterminação (Selbstbestimmungsrecht) do casal, de status jusfundamental, compreende a decisão de concretizar o desejo de ter um filho em idade avançada, assumindo evidentemente os riscos relacionados à idade que esse empreendimento envolve. E esse desejo não se submete a um controle judicial quanto à sua necessidade. A importância da decisão A decisão da Corte infraconstitucional é importante, porque fortalece o direito à reprodução tardia das mulheres, apesar do alto risco de aborto. O alto risco de aborto, registrado em estatísticas, não é, por si só, suficiente para que os seguros de saúde recusem a cobertura dos custos da inseminação artificial, sublinhou a Corte. Decisivo é a chance da mulher engravidar e não a de vir a dar à luz. Com isso, mesmo mulheres mais velhas passam a ter seus direitos reprodutivos concretizados pelo Judiciário alemão, devendo ser os custos do tratamento de inseminação artificial custeados pelos seguros de saúde privados. A situação no Brasil Aqui no Brasil, os planos de saúde, em regra, não cobrem os tratamentos de inseminação artificial. E o STJ não considera abusiva a cláusula contratual que exclui a cobertura de inseminação artificial2. Na Alemanha, ao contrário, a regra é os planos arcarem com esses custos, pois até mesmo o seguro de saúde obrigatório - subvencionado pelo Estado e chamado seguro legal de saúde ou Gesetzliche Krankenversicherung - cobre três tentativas de inseminação artificial. Cada Estado, contudo, é livre para financiar outras tentativas. Assim, no estado de Niedersachen (Baixa Saxônia) foram autorizadas em 2019 mais de três mil casos de tratamentos de inseminação artificial, ao custo de 2,89 milhões de euros, além das tentativas frustradas cobertas pelos seguros de saúde, pois faz parte do programa do governo local o fomento da natalidade3. E olha que na Alemanha domina a teoria da eficácia indireta dos direitos fundamentais no direito privado, tão criticada por aqui... __________ 1 No mesmo sentido: OLG Celle, processo 8 U 209/13, julgado em 24/4/2014. 2 Confira-se, dentre outros, o recente julgado: REsp. 1.761.246/RO, Rel. Min. Nancy Andrighi, T3, j. 2/4/2019, DJe 4/4/2019. 3 BGH zur künstlichen Befruchtung: Kostenübernahme auch bei später Mutterschaft. In: Legal Tribune Online, 3/1/2020. Acesso: 3/1/2020.
terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Decisões históricas: o caso da fiança - Parte 1

BVerfG libera familiares de honrar dívida de valor exorbitante Um dos casos mais emblemáticos acerca da eficácia dos direitos fundamentais no direito privado é o chamado caso da fiança ou Bürgerschaftsentscheidung, julgado pelo 1o Senado do Tribunal Constitucional Alemão em 19/10/1993. Trata-se, a rigor, de dois processos: 1 BvR 567/89 e 1 BvR 1044/89, publicados no repertório BVerfGE 89, 214. A questão central da queixa constitucional era saber até que ponto os tribunais civis podem ser obrigados pela Lei Fundamental (Grundgesetz) a submeter os contratos de fiança, celebrados com instituições financeiras, a um controle de seu conteúdo, quando familiares do tomador do crédito, embora desprovidos de patrimônio, assumiam como fiadores a garantia exorbitante de uma dívida. Para entender o caso Na Alemanha da década de 70, era comum que os bancos exigissem que familiares próximos do tomador de um crédito, como esposas e filhos, figurassem como fiadores dos contratos de empréstimos. Isso geralmente ocorria em empréstimos concedidos a donos de empresas de pequeno e médio porte. O objetivo não era apenas ampliar a massa patrimonial responsável pelo débito, pois muitos contratos de fiança eram celebrados sem verificação da situação patrimonial do fiador. O objetivo principal era, na verdade, evitar transferência patrimonial e exercer pressão sobre o tomador do crédito para honrar a dívida, sob pena do chamamento dos familiares fiadores. A prática era tão intensa que os tribunais civis se ocuparam por quase dez anos com casos de superendividamento de familiares, que não tinham desde o início condições nenhuma de garantir o débito. As instâncias inferiores não hesitavam, em sua maioria, em fazer um controle judicial do conteúdo desses contratos de fiança. Uma das linhas de argumentação desenvolvida apoiava-se na cláusula geral dos bons costumes, do § 138 I BGB: seriam nulos, por contrariedade aos bons costumes, os contratos de fiança celebrados com fiadores inexperientes, ligados ao devedor por laços familiares e que, em caso de inadimplência, teriam que suportar uma dívida exorbitante, capaz de aniquilar a própria existência. A outra linha argumentativa amparava-se na cláusula geral da boa-fé objetiva, prevista no § 242 BGB: faltava nesses contratos informação e esclarecimento suficiente acerca da gravidade do risco assumido pelo fiador, de modo que o banco violava, no mínimo culposamente, os deveres pré-contratuais de informação e esclarecimento, incorrendo em responsabilidade pré-contratual por falhas informativas. O Bundesgerichtshof, porém, rejeitava os argumentos favoráveis ao controle judicial do conteúdo dos contratos de fiança. A principal justificativa era que uma pessoa maior sabe, mesmo sem maiores esclarecimentos, que a fiança é um negócio arriscado. Portanto, o banco poderia partir do princípio de que quem assume a garantia de um débito conhece a extensão de sua ação e sabe avaliar seus riscos com responsabilidade. Esse posicionamento sofria duras críticas da doutrina1 e era desconsiderado em muitos casos nas instâncias inferiores, que não seguiam a tese da Corte infraconstitucional. Por conta disso, o 11o. Senado do BGH começou a mudar sua jurisprudência na década de 90 para realizar o controle das cláusulas abusivas dos contratos de fiança, celebrados por familiares, desde que comprovado um exorbitante desequilíbrio estrutural no contrato2. Na maioria dos casos, contudo, a Corte infraconstitucional decidia pela validade do negócio e pela responsabilidade do fiador. Isso fez com que muitos fiadores recorressem ao Tribunal Constitucional alegando ofensa à garantia fundamental da autonomia privada material. O caso da fiança da filha do armador O processo BVerfG 1 BvR 567/89 teve origem em primeira instância no Landgericht Stade e foi apreciado pelo Tribunal de Justiça (Oberlandesgericht) Hamburg e, na sequência, pelo BGH, em decisão de 16/3/1989, proferida no processo BGH IX ZR 171/88. Nesse caso, o pai da autora da queixa constitucional, um construtor, dobrou junto ao banco seu limite de crédito, de 50 mil para 100 mil marcos alemães, colocando a filha, à época com 21 anos, como fiadora. No contrato de fiança, assinado em 29/11/1982, dentre as inúmeras cláusulas pré-fixadas, constava a assunção de garantia por todas as dívidas existentes e futuras, bem como a renúncia ao benefício da ordem e à exceção de invalidade e prescrição, possível no direito alemão. O aumento do crédito foi concedido apesar da fiadora não ter patrimônio suficiente para honrar a dívida. Ela não tinha formação definida e ganhava apenas 1.150 marcos por mês em uma fábrica de peixes. Em outubro de 1984, o pai da fiadora mudou de ramo e virou armador, razão pela qual pegou um financiamento no banco de 1,3 milhões de marcos para a comprar um navio. Como o empréstimo não foi pago, o banco cobrou 2,4 milhões de marcos da fiadora pelas dívidas do pai. A filha, então, entrou com ação pedindo a nulidade da fiança. O banco contra-atacou com reconvenção cobrando o pagamento da dívida mais juros. O banco obteve sucesso em primeira instância. Mas o Tribunal de Justiça de Hamburg reformou a decisão ao argumento de que o banco violara o dever pré-contratual de esclarecimento, incorrendo em responsabilidade pré-contratual por falha informacional. Na visão do OLG Hamburg, em regra, o credor não precisa esclarecer o fiador acerca dos riscos gerais da fiança. Entretanto, ele responde quando, com seu comportamento, induz a erro o fiador, por exemplo, banalizando a extensão dos riscos e da responsabilidade assumida e, dessa forma, influencia decisivamente a decisão negocial do fiador. Esse foi o caso dos autos, afirmou o Tribunal de Hamburg, pois o funcionário do banco conhecia a dimensão do risco que a jovem fiadora estava assumindo e, nada obstante, banalizou o negócio afirmando precisar de sua assinatura apenas por uma questão formal. Em grau de recurso, o BGH suspendeu a decisão do Tribunal de Hamburg e julgou improcedente o recurso interposto pela fiadora. Ela, então, moveu queixa constitucional alegando, em síntese, que o BGH havia violado seus direitos fundamentais consagrados nos arts. 1, inc. 1 e 2, inc. 1 da Grundgesetz (GG), bem como o princípio do Estado-Social. Do princípio da dignidade humana, previsto no art. 1 I GG, resulta o dever do Estado de proteger o indivíduo contra necessidades materiais, pois quando o ser humano é obrigado a viver abaixo de condições mínimas de vida, violada resta sua dignidade. Do art. 2 I GG resulta o dever do Estado de intervir para impedir que empresas dominantes do mercado adotem um comportamento antissocial e abusem de sua liberdade contratual, anulando na prática - e de forma indigna - a liberdade contratual do outro contratante. Nesse caso, a dívida era tão alta que a fiadora, nesse meio tempo mãe solteira e vivendo de ajuda social do Estado, não tinha condições sequer de pagar os juros mensais do débito. A decisão do BVerfG Trata-se do processo BVerfG 1 BvR 567/89. De início, o Tribunal Constitucional observou que o caso sob análise tinha particularidades que os distinguia dos casos normais de garantia de crédito, pois desde o início era perceptível para o banco que a fiadora não tinha condições em vida de pagar a dívida, salvo se algum evento extraordinário alterasse sua situação patrimonial. Ela se obrigou pelo risco da empresa do pai em uma extensão que em muito superava sua situação financeira, disse o Tribunal. Portanto, ela assumiu um risco extraordinariamente alto sem ter qualquer interesse financeiro no crédito assegurado. Por isso, ela alegou em juízo que o banco violou os deveres pré-contratuais de consideração (vorvertragliche Rücksichtspflichten) e se aproveitou de sua inexperiência comercial em prol de seus próprios interesses. Nada obstante, observou a Corte constitucional, o BGH não viu razão para realizar um controle do conteúdo contratual. Com isso, deixou de verificar se - e em que medida - os contratantes realmente decidiram livremente acerca da conclusão e do conteúdo do contrato, o que mostra que o BGH desconsiderou a autonomia privada, garantida nos direitos fundamentais, afirmou o Tribunal Constitucional. A Suprema Corte assinalou que, de acordo com sua mansa e pacífica jurisprudência, a formação das relações jurídicas pelos indivíduos, segundo suas vontades, constitui um componente da liberdade geral de ação (allgemeine Handlungsfreiheit). O art. 2, inc. 1 da Lei Fundamental garante a autonomia privada como a "autodeterminação do indivíduo na vida jurídica", disse o BVerfG. A autonomia privada, contudo, é necessariamente limitada e precisa de uma moldagem jurídica. O legislador infraconstitucional precisa moldar a ordem jurídica privada de forma a garantir à autodeterminação do individuo um espaço de atuação adequado na vida jurídica, sob pena dessa garantia jusfundamental (autonomia privada) ser esvaziada. E ao moldar a autonomia privada, o legislador ordinário está vinculado às diretrizes objetivas emanadas dos direitos fundamentais. Mas na organização da ordem jurídica privada o legislador enfrenta um problema de concordância prática, diz o BVerfG, pois no comércio jurídico participam titulares de direitos fundamentais de mesmo nível hierárquico, que possuem interesses diversos e perseguem frequentemente objetivos contrapostos. Como todos os partícipes do comércio jurídico gozam da proteção do art. 2 I GG e podem se socorrer da garantia jusfundamental da autonomia privada, não pode valer apenas o direito dos mais fortes. Essas posições jusfundamentais em colisão precisam ser analisadas em sua inter-relação e ser limitadas de forma que possuam o máximo de efetividade para todos. Segundo a Corte Constitucional, no direito contratual, normalmente a compensação adequada dos interesses contrapostos resultada vontade das partes. Mas se uma parte tem um peso tão considerável, que praticamente pode determinar unilateralmente o conteúdo do contrato, não se pode mais falar em autodeterminação, mas em heterodeterminação, pois o conteúdo do contrato é determinado pelo outro contratante. O Tribunal ressalta, contudo, que a ordem jurídica não precisa adotar medidas para todas as situações nas quais o poder de negociação de uma das partes é em maior ou menor medida restringido pela outra. Por razões de segurança jurídica, não pode um contrato ser questionado ou corrigido por qualquer perturbação no equilíbrio negocial. No entanto, diz a Corte, quando há uma inferioridade estrutural de uma parte face à outra e os efeitos do negócio são extraordinariamente gravosos para a parte mais fraca, a ordem jurídica privada precisa reagir e disponibilizar meios de correção. Isso decorre da garantia jusfundamental da autonomia privada (art. 2 I GG) e do princípio do Estado Social (art. 20 I, art. 28 I GG). E, para o Bundesverfassungsgericht, o direito contratual alemão disponibiliza esses instrumentos corretivos, pois, apesar do legislador histórico do BGB/1900 ter partido de um modelo formal de igualdade das partes, o Tribunal Imperial (Reichsgericht), desde cedo, distanciou-se dessa ótica e adotou uma "ética material de responsabilidade social", como sublinhou Franz Wieacker em seu famoso escrito: Industriegesellschaft und Privatrechtsordnung (1974), ou seja, "Sociedade industrial e ordem jurídico-privada". Atualmente, disse o BVerfG, "há amplo consenso de que a liberdade contratual só serve como um meio adequado de compensação de interesses quando existe uma relação de forças equilibradas das partes e que equilibrar a paridade contratual destruída é uma das principais tarefas do direito civil vigente". Nesse contexto, continua a Corte, "as cláusulas gerais do Código Civil têm significado central. O texto do § 138, inc. 2 BGB exprime isso de forma especialmente clara. Lá são designadas típicas circunstâncias que conduzem necessariamente a uma inferioridade negocial de uma das partes contratuais, dentre as quais sua inexperiência. Se a parte prevalente tira proveito dessa fraqueza para impor seus interesses de forma evidente, isso conduz à nulidade do contrato. O § 138, inc. 1 BGB vincula, de modo geral, o efeito da nulidade à violação dos bons costumes". E continua a Corte Constitucional: "Efeitos jurídicos diferentes resultam do § 242 BGB. A ciência jurídica do direito civil é, no resultado, unânime no sentido de que o principio da boa-fé objetiva representa um limite imanente ao poder de formação contratual e fundamenta a autorização para um controle judicial do conteúdo do contrato". Ainda que exista discussão acerca dos pressupostos e da intensidade desse controle conteudístico, diz o Tribunal, para a avaliação constitucional do caso é suficiente saber que o direito vigente coloca instrumentos à disposição do juiz para reagir adequadamente ao desequilíbrio estrutural dos contratos. Por isso, concluiu o BVerfG, os tribunais civis têm o dever de atentar, na interpretação e aplicação das mencionadas cláusulas gerais, para que os contratos não sirvam como meio de heterodeterminação. Se os contratantes negociaram um regramento contratual juridicamente equilibrado, desnecessário o controle do conteúdo contratual. Mas se esse conteúdo for excessivo para uma das partes e manifestamente desproporcional, enquanto equilíbrio de interesses, os tribunais não podem se contentar com a conclusão de que "contrato é contrato", afirmou o BVerfG criticando a justificativa do BGH. Eles precisam, ao contrário, verificar se o regramento contratual é o resultado de forças estruturalmente desiguais durante as negociações e, eventualmente, intervir, corrigindo o pactuado, através das cláusulas gerais do direito civil. Como isso será feito e a qual resultado se chegará, é uma questão do direito ordinário, ao qual a Constituição deixa amplo campo de atuação. Contudo, ocorre a violação da garantia jusfundamental da autonomia privada quando o problema da disparidade contratual é ignorado pelos tribunais ou esses tentam corrigi-lo com meios inadequados. A decisão atacada do Bundesgerichtshof, concluiu o Tribunal Constitucional, violava essa garantia jusfundamental, pois a fiança celebrada fora vista e valorada como um contrato normal, com interesses correspondentes e riscos perceptíveis e avaliáveis. Todos os argumentos trazidos pela autora da queixa constitucional, com os quais ela queria comprovar sua fraqueza na fase das negociações, foram afastados pelo BGH ao argumento de que ela era maior de idade e deveria ter se certificados dos riscos por conta própria, disse o BVerfG. Mas isso é insuficiente. O risco da responsabilidade assumida com a fiança, sem que a fiadora tivesse qualquer interesse pessoal no negócio, foi extremamente alto e extraordinariamente difícil de se avaliar, até para pessoas mais experientes, pois não estava indicado no contrato sequer a base de cálculo dos custos e juros do crédito, nem delimitado pelo quê a fiadora realmente responderia. É irrealístico imaginar que uma jovem de vinte e um anos, sem qualquer qualificação profissional, identificasse esses riscos antes da contratação. No caso de uma clara e aguda inferioridade do contratante, é imprescindível ver como o contrato se formou e como as partes, principalmente as estruturalmente superiores, se comportaram. E, no entanto, o BGH afastou qualquer dever de esclarecimento e alerta da instituição financeira, disse o BVerfG. Até mesmo a pressão exercida pelo funcionário do banco para que a fiadora assinasse o contrato e a banalização dos riscos foram desconsideradas pelo BGH, afirmou a Corte Constitucional. Tudo isso não se coaduna com a tutela da autonomia privada, garantida pela Lei Fundamental, de modo a não se sustentar a decisão do BGH, concluiu o Tribunal Constitucional. Por isso, a Corte proclamou que a decisão do Bundesgerichtshof de 16.03.1989 (BGH IX ZR 171/88) violava a autora da queixa constitucional em seu direito fundamental do art. 2, inc. 1 da Lei Fundamental, reenviando o processo ao BGH para novo julgamento. A relevância da decisão O caso da fiança é considerado na Alemanha o leading case da eficácia horizontal dos direitos fundamentais no direito contratual, pois nela o Tribunal Constitucional afastou a validade de um contrato de fiança por ofensa à garantia constitucional da autonomia privada. Essa decisão teve profunda repercussão na Europa e, na sequência, no Brasil, onde a discussão em torno da eficácia horizontal - direta ou indireta - dos direitos fundamentais teve início após a Constituição de 1988. No Brasil, a doutrina fornece frequentemente como exemplo de eficácia horizontal (direta) dos direitos fundamentais no direito contratual o bizarro caso do arremesso de anões, diversão que animava os frequentadores de alguns estabelecimentos franceses em pleno século 20. Aqui, a violação à dignidade da pessoa humana é tão evidente que se dispensa maiores argumentações para justificar a nulidade dos contratos celebrados entre os estabelecimentos comerciais e os anões arremessados. Bem mais complexos, no entanto, são os casos de fianças de familiares, nos quais as garantias são firmadas formalmente de modo incólume, mas materialmente maculadas pela disfunção da autonomia privada. Nesses casos mais complexos é que se percebe a solidez argumentativa da teoria da eficácia horizontal indireta dos direitos fundamentais, que penetram no ordenamento jusprivado por meio da hermenêutica dos princípios, cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados. Aqui o Judiciário precisa interpretar, ou melhor, concretizar as cláusulas gerais dos bons costumes e - principalmente - da boa-fé objetiva com seus deveres pré-contratuais de conduta de forma a materializar a autonomia privada, garantida constitucionalmente. Disso decorre o dever do juiz de efetivar o controle do conteúdo dos contratos marcados por um grave desequilíbrio estrutural entre as partes, como em casos semelhantes ao aqui analisado. Um excelente precedente a ser estudado aqui no Brasil, com a profundidade que o tema requer. __________ 1 Dentre outros: TIEDTKE. ZIP 1990, p. 413; GRÜN. NJW 1991, p. 925 e REINICKE/TIEDTKE. ZIP 1989, p. 613. 2 Confira-se a decisão BGH NJW 1991, p. 923.
Juiz pode suprir excepcionalmente o consentimento dos genitores O Judiciário pode suprir o consentimento de um dos genitores quando ele se recusa em concordar com a alteração do nome do filho, disse o Tribunal de Justiça de Frankfurt am Main, em decisão de 2/1/20201. O caso Os pais da criança eram casados, mas em 2010 o casamento chegou ao fim. A menina ficou morando com a mãe e perdeu totalmente o contato com o pai a partir de 2014. A mãe casou-se novamente e assumiu o nome de família do segundo marido, com quem teve outra filha. Ela requereu, então, em juízo, em 2018, a substituição do sobrenome da primeira filha a fim de que ela também usasse o patronímico do segundo marido, enteado da garota. Aqui deve-se ressaltar uma peculiaridade do direito alemão em relação à formação dos nomes: é muito comum que as pessoas possuam apenas um sobrenome e não vários, como no Brasil ou Portugal e qualquer dos cônjuges pode abandonar seu sobrenome de solteiro para adotar o do outro, embora o mais comum seja a mulher passar a usar o patronímico do marido. Dessa forma, mãe e filha não tinham um sobrenome comum, pois a mãe retirou o sobrenome do primeiro marido para adotar o do segundo e a filha permaneceu com o sobrenome do pai biológico. Assim, é fácil perceber os transtornos na hora de comprovar a filiação da menina. Mas, além disso, pesava no caso concreto, o fato da menina se sentir desconfortável e segregada, como se não fosse parte da família recomposta, pois carregava um patronímico diferente dos demais. O problema é que o pai da garota se recusou a concordar com a troca do sobrenome. Ele alegou estar sofrendo de depressão e não ter condições psicológicas de tomar tão importante decisão naquele momento e que, além disso, o nome de família era o último vínculo que restava com a filha. O processo judicial A lide girava em torno de saber se o consentimento do pai para a alteração do patronímico da menina poderia ser suprido pelo juiz. Não havia, portanto, pedido de reconhecimento de paternidade socioafetiva, que, embora possível, não é reconhecida de forma tão generosa como por aqui, muito menos a multiparentalidade. O pedido foi indeferido em primeira instância, apesar do parecer psicossocial favorável à troca do patronímico. Em decisão de 31/5/2019, o juiz denegou o pedido alegando que a substituição do sobrenome só é admissível em casos excepcionais e que, no caso concreto, não restara demonstrado que a mudança seria imprescindível ao bem-estar da criança. O simples desejo da menor era insuficiente a justificar a medida e meros incômodos por conta da diferença de nomes familiares não atendia o requisito legal da necessidade da alteração, afirmou o magistrado. Mas, em grau de recurso, o Tribunal de Justiça da Comarca de Frankfurt a.M. reformou a decisão. A decisão do OLG Frankfurt Segundo o OLG Frankfurt, decisivo para a alteração do nome é o bem-estar da criança (Wohle des Kindes), nos termos do § 1.618, frase 4 do Código Civil alemão e, para tanto, o Judiciário pode suprir a falta de consentimento do pai. Segundo o § 1.618 BGB, o genitor, com guarda exclusiva ou compartilhada, e seu novo cônjuge podem dar seu patronímico à criança (menor e solteira) que com eles vivam na mesma residência, através de declaração perante o oficial de registro civil das pessoas naturais. A regra vista possibilitar uma maior integração da criança enteada na nova família2. O pedido de alteração do sobrenome pode ser feito logo após o início da constituição do novo núcleo familiar, desde que obedecidos os demais pressupostos exigidos em lei. A mudança pode ser feita por meio da substituição de um sobrenome por outro ou por meio de acréscimo, quando a pessoa excepcionalmente passa a ter um sobrenome composto, como, por exemplo, Fritz-Meier, onde o primeiro patronímico corresponde ao do pai biológico e o segundo ao do cônjuge da mãe. Mas para a alteração não basta a simples vontade do casal. A lei elenca vários pressupostos, os quais vêm sendo interpretados cautelosamente pela jurisprudência devido ao caráter jusfundamental do nome (direito da personalidade) e em consideração ao direito de guarda do outro genitor, caso ele o possua. De acordo com o § 1.618 BGB, para a alteração do patronímico é necessário que a criança seja menor e solteira; que resida na nova família e que a medida corresponda ao melhor interesse da criança. Se ela tiver cinco anos completos, é imprescindível que seja ouvida e sua concordância será tomada perante o registrador juntamente com as declarações individuais do ascendente biológico e seu novo parceiro. Se a criança está sob guarda compartilhada, é necessário o consentimento do outro ascendente, desde que a criança possua seu sobrenome. A intenção da lei é evidentemente proteger o vínculo de filiação e, em última instância, o direito de guarda do genitor que não mora com o filho. Importante salientar que essa redesignação - chamada Einbenennung - só tem como efeito jurídico a alteração do nome, não criando vínculo de parentalidade, nem dever de prestar alimentos. A norma prevê ainda a possibilidade do juiz da vara de família suprir o consentimento do genitor. A jurisprudência do Bundesgerichtshof (BGH) tem sido muito cautelosa e só lançado mão da permissão legal em casos excepcionais nos quais resta evidente a necessidade da alteração do sobrenome. Isso ocorre, por exemplo, quando existam situações concretas que coloquem em perigo o bem-estar da criança e a alteração do nome seja imprescindível para evitar-lhe danos. É imprescindível que a medida atenda ao melhor interesse da criança. Segundo o BGH, nesses casos é necessária uma ampla e adequada ponderação dos interesses em jogo, ou seja, da criança e dos pais, os quais possuem, em princípio, igual status, diz o BGH3. Dessa forma, E o interesse em integrar a criança na família recomposta deve ser considerado tanto quanto o interesse na continuidade do uso do sobrenome, cujo significado ultrapassa a compreensão da própria criança e não pode ser avaliado apenas sob a perspectiva de sua atual situação familiar4, que - diga-se de passagem - pode se alterar no futuro. Além disso, os juízes da Corte de Karlsruhe entendem que, em regra, a manutenção do sobrenome do genitor é um sinal externo da preservação da relação filial, a qual é importante para o bem-estar do filho, principalmente quando o contato entre ambos está enfraquecido ou ameaçado, pois a mudança de nome pode aparentar externamente o rompimento definitivo dos laços familiares5. A decisão divergente do OLG Frankfurt O Tribunal de Frankfurt, contudo, abriu divergência da Corte superior por considerar sua visão "exagerada" e carente de amparo na letra da lei, que fala apenas no bem-estar do menor. Citando doutrina e decisões divergentes de outras cortes inferiores, o Oberlandesgericht afirmou estar convencido de ser desnecessária a comprovação de uma ameaça ao bem-estar da criança para que o juiz possa suprir a vontade do ascendente e autorizar a mudança de sobrenome. É suficiente que essa medida se mostre necessária, pois o legislador distinguiu bem entre necessidade e risco de lesão, disse o OLG Frankfurt. No caso concreto, o Tribunal entendeu que a medida é necessária ao bem-estar da criança, como concluiu o laudo psicossocial acostado aos autos, pois a criança estava extremamente sobrecarregada emocionalmente com a diferença de nomes familiares, especialmente em relação à meia-irmã mais nova. Não se tratava, portanto, de simples desconforto. Como o sobrenome de uma criança é um importante componente de sua personalidade, deve o juiz levar em consideração ainda a vontade do menor, embora o desejo de uma criança de onze anos não seja o fator decisivo para o magistrado suprir a concordância do ascendente biológico em alterar o nome familiar, disse o Tribunal. A Corte ressaltou, porém, que a mudança de patronímico em nada afeta o direito de convivência do pai com a filha, o qual é importante para o desenvolvimento dela, cabendo a ele a decisão de estabelecer o vínculo afetivo quando se sentir preparado. E é dever da mãe apoiar e estimular esse contato, disse o OLG Frankfurt. A situação no Brasil No Brasil, o Código Civil não regula a matéria, como o Bürgerliches Gesetzbuch (BGB). Mas a lei 11.924, de 17.04.2009, conhecida como "Lei Clodovil", de autoria do falecido Deputado Clodovil Hernandes, trata do assunto. Ela introduziu o § 8o ao art. 57 da Lei de Registros Públicos (lei 6.015/1973) com a seguinte redação: "O enteado ou a enteada, havendo motivo ponderável e na forma dos §§ 2o e 7o deste artigo, poderá requerer ao juiz competente que, no registro de nascimento, seja averbado o nome de família de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância destes, sem prejuízo de seus apelidos de família". O fim da norma é o mesmo: garantir uma maior integração da criança na família recomposta e amenizar constrangimentos. Ela difere da norma alemã, contudo, por duas razões básicas: primeira, só prevê a hipótese de acréscimo do sobrenome do padrasto/madrasta, sem a exclusão do patronímico do genitor; segundo, não requer, por isso, o consentimento do ascendente biológico. De qualquer forma, apesar da previsão legal, parece, salvo melhor juízo, que a regra não tem aplicação prática desapegada do reconhecimento do vínculo socioafetivo, funcionando como uma espécie de estágio anterior à admissão da parentalidade. O Conselho Nacional de Justiça, fazendo as vezes de legislador, também regulou a mudança de nome, mas apenas em caso de reconhecimento da parentalidade, que não era, como dito, objeto de discussão no caso alemão. O Provimento nº 63, de 14/11/2017, do CNJ estabelece regras para o registro extrajudicial da paternidade ou maternidade socioafetiva de pessoa de qualquer idade a ser realizado perante o oficial de registro civil das pessoas naturais. Apenas as crianças maiores de 12 anos deveriam expressar seu consentimento, ao passo que os abaixo dessa idade poderiam ter seu sobrenome alterado independente de sua vontade. O Provimento exigia o consentimento pessoal do pai e mãe biológicos, vedando o registro de mais de dois pais e de duas mães no campo "filiação" no registro de nascimento. Essa normativa foi modificada pelo Provimento nº 83, de 14/8/2019, que introduziu mudanças materiais e procedimentais no reconhecimento extrajudicial da parentalidade socioafetiva. Segundo o Provimento nº 83/2019, somente crianças acima de 12 anos poderão ser registradas por pai/mãe socioafetivo pela via extrajudicial, restando aos menores dessa idade apenas a via judicial. Em todo o procedimento é necessária a intervenção do Ministério Público, o que não ocorria anteriormente. Atendidos os requisitos necessários, inclusive a prova do vínculo afetivo, o registrador, em vez de deferir o pedido, encaminhará o expediente ao Ministério Público para parecer e, se favorável, fará o registro da filiação socioafetiva, com a respectiva alteração do nome. Na hipótese de parecer desfavorável, o registrador arquivará o expediente e comunicará ao requerente, só sendo encaminhado ao juiz em caso de dúvida. O Provimento também exige consentimento dos genitores biológicos, mas não prevê, como o § 1618 do BGB, a possibilidade do juiz suprir esse consentimento, de forma que cabe ao Judiciário decidir casuisticamente a questão. Considerando a corrente amplamente aceita, capitaneada pelo STF no Recurso Extraordinário 898.060, julgado em 21.09.2016, segundo a qual podem coexistir as paternidades socioafetiva e biológica, entre as quais inclusive inexiste hierarquia, não é de surpreender que a vontade contrária do genitor tenha menor - ou nenhum - peso diante da situação fática da parentalidade, até porque a multiparentalidade é admitida mesmo contra a vontade do pai biológico. A justiça gaúcha já decidiu que o pai biológico não pode impedir o acréscimo do sobrenome do padrasto ao da enteada, até porque não há prejuízo na relação biológica anterior, e seu patronímico foi preservado. Trata-se do AI 70058578360, julgado em 10/4/2014 pela 8a. Câmara Cível do TJ/RS, sob relatoria do Des. Rui Portanova. Mas fica a dúvida se seria possível a substituição do sobrenome do ascendente sem o seu consentimento e sem o concomitante reconhecimento da parentalidade socioafetiva, como no caso alemão. __________ 1 Agradeço às amigas Ana Carolina Brochado e Ana Luiza Nevares, grandes expoentes do Direito de Família e Sucessões, pelas pertinentes considerações feitas. 2 Cf. a Exposição de Motivos BT-Drucks. 13/4899, p. 92. Na doutrina, dentre outros: KEMPER, Reiner. In: Bürgerliches Gesetzbuch Handkommentar. Reiner Schulze (coord.). 8 ed. Baden-Baden: Nomos, 2014, § 1618, Rn. 1, p. 1955. 3 BGH XII ZB 153/03, julgado em 10.03.2005, p. 6. 4 Nesse sentido: BGH BGH XII ZB 153/03, julgado em 10.03.2005 e OLG Frankfurt a. M. 1 UF 140/19, p. 3. 5 BGH XII ZB 153/03, julgado em 10.03.2005, p. 7.
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Por conta disso, o Tribunal de Justiça Europeu (TJE), no final de 2019, decidiu que o internauta precisa ser alertado de que seus dados serão coletados por meio de cookies e que ele concorda ativamente, marcando o quadradinho autorizativo do uso dos cookies, para que a coleta e processamento dos dados seja feita validamente. Dito em outras palavras: o site não pode fornecer o consentimento já marcado, de forma que o usuário, para desautorizar o uso dos cookies, precise desmarcar a autorização pré-agendada. Era o que acontecia no site da Planet49, um site de jogos online na Alemanha. Para o internauta participar do jogo, ele tinha que informar o nome e endereço completo, incluindo o CEP. Mas não só. Abaixo desses campos, em destaque, haviam duas caixas de informações. A primeira, autorizava que os "patrocinadores e parceiros de cooperação" da Planet49 enviassem, por meio físico ou digital, ofertas de seus produtos e serviços. Para isso, o internauta tinha que marcar o quadradinho com um "check", manifestando sua concordância. A segunda, contudo, já vinha pré-validada e autorizava o organizador do jogo a instalar cookies, depois da inscrição no jogo, a fim de realizar uma avaliação dos hábitos de navegação do usuário para possibilitar uma publicidade orientada a seus interesses. Para evitar o uso dos cookies, o usuário precisava desmarcar a autorização. A participação no jogo só era possível se, pelo menos, a primeira autorização fosse consentida, isto é, se o internauta autorizasse o envio de publicidade pelos patrocinadores e parceiros da Planet49. Por conta disso, a Associação Nacional de Defesa dos Consumidores moveu ação contra a Planet49 GmbH alegando que a concordância para coleta, armazenamento e processamento de dados estava sendo feita de forma irregular, pois não cumpria os requisitos exigidos pelo § 307, inc. 1 e 2 do BGB, § 12 da Lei de Telecomunicações Eletrônicas e § 7, inc. 2 da Lei Antitruste. O processo na Alemanha Em primeira instância, o juízo da Comarca de Frankfurt am Main julgou parcialmente procedente o pedido. O Tribunal de Justiça (Oberlandesgericht Frankfurt a.M.) julgou improcedente o pedido por entender que era suficiente a possibilidade do usuário desmarcar a autorização para uso dos cookies, até porque o site dava informações clara e suficientes a respeito de sua utilização. O caso subiu para a corte infraconstitucional - Bundesgerichtshof (BGH) - por meio do recurso de Revision. Como o Tribunal achou que o desfecho do processo dependia da interpretação do art. 5, n. 3 e art. 2, alínea f, da diretiva 2002/58, bem como do art. 2, alínea h, da Diretiva 95/46 e do art. 6, n. 1, alínea a, do regulamento 2016/670, submeteu um questionamento ao TJE. Em síntese, o BGH queria saber se: (1) a coleta, armazenamento e processamento de informações recolhidas pelos cookies seria validamente autorizada pelo usuário quando sua concordância viesse pré-validada no site, devendo o mesmo desmarcá-la para negar o consentimento; (2) se o prestador de serviços deveria informar a duração do funcionamento dos cookies e que terceiros a eles teriam acesso. A decisão do TJE Trata-se do processo TJE C-673/17, julgado em 1º/10/19. Inicialmente, o Tribunal considerou que a coleta de nome e endereço completo por meio de cookies já traduz um tratamento de dados pessoais. De acordo com o art. 5, n. 3 da diretiva 2002/58, o armazenamento de informações ou a possibilidade de acesso a informações já armazenadas no equipamento terminal de um usuário só é permitido se esse tiver dado seu consentimento prévio, com base em informações claras e completas, principalmente sobre os objetivos do processamento. Uma interpretação literal da expressão "dar consentimento" implica, segundo o TJE, necessariamente em uma ação do usuário apta a exprimir seu consentimento. Isso decorre da interpretação sistemática do art. 17 da diretiva 2002/58 c/c art. 2, alínea h, da Diretiva 95/46, que define consentimento como "qualquer manifestação de vontade, livre, específica e informada, pela qual a pessoa em causa aceita que dados pessoais que lhe dizem respeito sejam objeto de tratamento"1. Nesse sentido, a Corte foi expressa em afirmar que "a exigência de uma 'manifestação` de vontade da pessoa em causa aponta claramente para um comportamento ativo, e não passivo. Ora, um consentimento dado através de uma opção pré-validada não implica um comportamento ativo por parte do utilizador de um sítio Internet."2. Essa interpretação é corroborada pelo art. 7, alínea a, da diretiva 95/46, que exige que o consentimento do internauta seja dado de "forma inequívoca" e, para o TJE, apenas um comportamento ativo, de assinalar conscientemente a autorização de coleta e processamento de dados, pode ser visto como feito de modo inequívoco. Do contrário, seria impossível verificar objetivamente, na prática, se um usuário deu seu consentimento para o tratamento de seus dados pessoais, exceto se ele desmarcou a opção pré-validada, quando então comprovadamente o recusou. Impossível, ainda, determinar se esse consentimento foi dado de modo informado, pois o usuário pode não ter lido a informação que acompanha a opção pré-validada ou sequer ter percebido essa opção, antes de prosseguir sua atividade no site. Dessa forma, concluiu a Corte, o fato do usuário ativar o botão de participação no jogo organizado pela Planet49 é insuficiente para afirmar que ele deu validamente seu consentimento para a colocação de cookies. É necessário, ao contrário, "uma manifestação de vontade 'livre, específica, informada e explícita` do titular dos dados, sob a forma de uma declaração ou de um 'ato positivo inequívoco`, que constitui a sua aceitação do tratamento dos dados pessoais que lhe dizem respeito."3. O TJE salientou, ainda, que todas as informações coletadas e armazenadas requerem concordância inequívoca do usuário, mesmo as que não digam respeito a dados pessoais, nos termos do art. 5, n. 3 da diretiva 2002/58, pois o fim da norma é proteger os usuários de qualquer intromissão em sua esfera privada, independentemente dessa intromissão dizer respeito - ou não - a dados pessoais. Para a Corte, todas as informações armazenadas no equipamento terminal dos usuários de internet - independente de se tratar ou não de dados pessoais - constituem parte integrante da esfera privada do usuário e devem ser protegidas. Em resposta ao segundo questionamento feito pelo BGH, o TJE afirmou que é necessário que o site, organizador do jogo, informe ao usuário a duração do funcionamento dos cookies, bem como a possibilidade ou não de terceiros terem acesso a esses cookies para que cumpra o dever de fornecer previamente informações claras e completas, imposta pelo art. 5, n. 3 da diretiva 2002/58. Aliás, o art. do art. 10 da diretiva 95/46 enumera algumas informações que o responsável pelo tratamento dos dados deve prestar ao titular dos dados coletados, como a identidade do responsável pelo tratamento, as finalidades do tratamento a que os dados se destinam, os destinatários ou categorias de destinatários dos dados, etc. Essa enumeração não é, contudo, exaustiva, mas meramente exemplificativa, disse o TJE, acrescentando que, embora a duração do tratamento dos dados não conste do rol de informações, é evidente que ela tem que ser comunicada. Do contrário, estar-se-ia autorizando um funcionamento longo ou mesmo ilimitado dos cookies, o que, por sua vez, implicaria na coleta de numerosas informações sobre os hábitos de navegação dos usuários. Dessa forma, o Tribunal concluiu afirmando que o prestador de serviços é obrigado a informar ao usuário, dentre outras coisas, que irá utilizar os cookies, prazo de duração ou, não sendo possível, os critérios para se definir esse prazo, bem como quais terceiros terão acesso aos dados coletados. A relevância da decisão A decisão da Corte Europeia tem grande importância, pois põe freio à coleta indiscriminada de dados dos usuários ne internet. Esses autorizam muitas vezes a coleta de dados para acessar o conteúdo de uma página, ler uma notícia, adquirir um produto ou participar de jogos online. Nesse sentido, ela vai munir os Estados-Membros e as agências reguladoras de base jurídica para exigir dos prestadores de serviços a observância - e punir a inobservância - das normas de proteção de dados. A Corte, contudo, não enfrentou a questão importantíssima de saber até que ponto pode-se falar em consentimento livre e informado se o usuário precisa concordar com a coleta de dados, feita por meio de cookies, para acessar o conteúdo de uma página. De qualquer forma, o problema da tutela contra a coleta indiscriminada de dados precisa entrar na pauta do Judiciário brasileiro, pois esse controle ainda é incipiente por aqui. ___________ 1 Nesse sentido, a decisão TJE C-673/17, p. 12. 2 TJE C-673/17, p. 12. 3 TJE C-673/17, p. 13.
terça-feira, 14 de janeiro de 2020

TJE proíbe a venda de e-books usados

A venda de livros usados continua um mercado estável, apesar da era digital - pelo menos na Europa, onde se lê em média mais que no Brasil. Mas é também possível a venda second hand de livros eletrônicos? Segundo o Tribunal de Justiça Europeu, não. Salvo autorização do titular dos direitos autorais. Foi o que decidiu recentemente a Corte, em julgado de 19/12/19, referente ao processo C-263/18. O caso Na origem, o processo foi movido pela associação dos editores holandeses (Nederlands Uitgeversverbond - NUV) e Groep Algemene Uitgevers (GAU) contra a holding Tom Kabinet, uma sociedade editora de livros impressos e digitais, que gerencia um mercado virtual de livros eletrônicos "usados". A NUV e GAU entraram com ação na Comarca de Amsterdam, com pedido de tutela provisória, contra o serviço oferecido pela Tom Kabinet, alegando violação à lei de direito autoral, pois essa geria um "clube de leitura" (Tom Leesclub) que oferecia a seus membros, mediante pagamento, e-books de segunda mão, os quais eram adquiridos pela Tom Kabinet ou doados, a título gratuito, pelos membros do clube. Para realizar a doação, os membros forneciam o link para download do livro e declaravam não conservar uma cópia da obra. A Tom Kabinet, então, baixava o livro e colocava seu selo digital, atestando tratar-se de exemplar adquirido legalmente. Quem cedesse gratuitamente um e-book, ganhava um desconto de 0,99 euro na mensalidade. No início, os e-books podiam ser adquiridos pelo preço de 1,75 euros, mas o associado precisava pagar uma taxa mensal de 3,99 euros pela associação. Depois, a política do clube mudou: acabou com a taxa de associação, mas o preço por livro subiu para 2 euros. Na ação, as autoras pediam que a Tom Kabinet fosse proibida de colocar à disposição do público ou de reproduzir os livros eletrônicos, pois isso violava os direitos autorais dos editores, cedidos a elas via licença. O tribunal de primeira instância de Haia (Rechtbank Den Haag) decidiu suspender o processo e submeter questionamento ao TJE para esclarecer se a venda em segunda mão de e-books configuraria "ato de distribuição", nos termos do art. 4, nº 1 da Diretiva 2001/29 ou se estaria abrangido no conceito de "comunicação ao público", do art. 3, nº 1. da mesma diretiva. Isso era relevante, por sua vez, para saber se esse fornecimento estaria sujeito à chamada "regra do esgotamento" do direito de distribuição, prevista no art. 4, nº 2 da diretiva. Segundo o art. 4, nº 1, os autores possuem o direito exclusivo de autorizar ou proibir qualquer forma de distribuição ao público do original de suas obras ou das respectivas cópias, esgotando-se esse direito, nos termos do art. 4, nº 2, no momento da primeira venda ou de qualquer forma de primeira transferência de propriedade na União Europeia, feita pelo titular do direito ou com seu consentimento. Isso não ocorre, contudo, quando se trata de uma comunicação ao público. A decisão do Tribunal de Justiça Europeu Em uma decisão altamente técnica, o TJE deu razão aos editores de livros eletrônicos, que precisam dar autorização para a venda de e-books usados. De início, para solucionar o caso, a Corte sublinhou ser necessário recorrer a diversos métodos hermenêuticos (histórico, lógico-sistemático e teleológico), pois uma interpretação literal dos dispositivos da Diretiva 2001/29 não permitia, de plano, solucionar a questão. Com efeito, a simples leitura dos dispositivos em jogo não permitia concluir se a transferência (download) de um livro eletrônico, para utilização permanente, constitui uma "comunicação ao público", mais precisamente uma colocação à disposição do público de uma obra de modo a torná-la acessível a qualquer pessoa no local e momento por ela escolhido ou se, ao contrário, configuraria um "ato de distribuição", sujeito, então, à regra do esgotamento. Esses são conceitos diferentes no âmbito do direito autoral da União Europeia. Era necessário ler os art. 3, nº 1 e 4, nº 1 da Diretiva 2001/29 conjuntamente, isto é, em interpretação sistemática com as normas do Tratado sobre Direito de Autor (TDA), da Organização Mundial de Propriedade Intelectual. Segundo o art. 6, nº 1 do TDA, o direito de distribuição é definido como o direito exclusivo dos autores de autorizar a colocação, à disposição do público, do original e de cópias das suas obras, por meio de venda ou outra forma de transferência de propriedade. Para o Tribunal, resulta dos próprios termos dos arts 6 e 7 do TDA que as expressões "cópias" e "original e cópias" se referem exclusivamente a cópias materiais, isto é, objetos materiais postos em circulação, pelo que o art. 6, nº 1 não abrange a distribuição de obras imateriais, como livros eletrônicos. Em razão disso, a transmissão interativa "a pedido", ou seja, o download a pedido do usuário constitui, na visão do Tribunal, uma nova forma de exploração da propriedade intelectual que deve ser abrangida pelo direito do autor de controlar a comunicação ao público, vez que o direito de distribuição não abrangeria tal transmissão, vez que só abarca a distribuição de cópias materiais. Esse entendimento é corroborado, segundo a Corte Europeia, pela exposição de motivos, que serviu de base para a elaboração da Diretiva 2001/29. E aqui, o TJE lançou mão da pela interpretação histórica para fundamentar a decisão. Lá resta claro que a intenção do legislador comunitário era fazer com que qualquer comunicação ao público de uma obra, diferente da distribuição de cópias materiais da mesma, fosse abrangida pelo conceito de "comunicação ao público" e não pelo conceito de "distribuição ao público". Isso se harmoniza com o objetivo ou finalidade da Diretiva 2001/29 (interpretação teleológica), que é estimular o desenvolvimento da sociedade da informação e atualizar a regulamentação dos direitos autorais, adaptando-o às novas formas de exploração de obras. Com efeito, resulta dos considerandos 4, 9 e 10 da referida Diretiva que ela tem por objetivo principal instaurar um elevado nível de proteção dos autores, permitindo-lhes receber uma remuneração adequada pela utilização das suas obras, nomeadamente quando são comunicadas ao público. A fim de alcançar este objetivo, diz o TJE, o conceito de "comunicação ao público" deve ser entendido em sentido lato, nos termos do considerando 23 da Diretiva 2001/29, abrangendo todas as comunicações a público não presente no local de onde provêm as comunicações e, assim, qualquer transmissão ou retransmissão de uma obra ao público, por fio ou sem fio, incluindo a radiodifusão. Do considerando 25 da Diretiva 2001/29, por sua vez, resulta que as transmissões interativas a pedido (download) se caracterizam pelo fato de qualquer pessoa poder ter acesso a partir do local - e momento - por ela escolhido. Por isso, o Tribunal Europeu afirmou que "essa equiparação das cópias materiais e imateriais de obras protegidas para efeitos das disposições pertinentes da Diretiva 2001/29 não foi, em contrapartida, desejada pelo legislador da União quando adotou esta diretiva. Com efeito, como recordado no n.° 42 do presente acórdão, resulta dos trabalhos preparatórios da mesma que se pretendeu estabelecer uma distinção clara entre a distribuição eletrónica e a distribuição material de conteúdos protegidos."1. E isso, por uma simples razão: o fornecimento de um livro impresso e de um livro digital não se equiparam do ponto de vista econômico e funcional. Enquanto um livro impresso se deteriora com o uso e sua revenda, em segunda mão, equivale a um produto efetivamente usado, o livro digital não sofre qualquer alteração com o uso e, quando revendido, trata-se de uma cópia perfeita da obra nova. Nesse sentido, precisa a colocação da Corte ao afirmar que "não se pode considerar que o fornecimento de um livro num suporte material e o fornecimento de um livro eletrónico sejam equivalentes do ponto de vista económico e funcional. Com efeito, como salientou o advogado-geral no n.° 89 das suas conclusões, as cópias digitais desmaterializadas, contrariamente aos livros num suporte material, não se deterioram com a utilização, de modo que as cópias em segunda mão são substitutos perfeitos das cópias novas."2. Além disso, acrescentou o Tribunal, as trocas dessas cópias não requerem esforço nem custos adicionais, de modo que a existência de um mercado paralelo de segunda mão é suscetível de afetar o interesse dos titulares (de receber uma remuneração adequada por suas obras) de forma muito mais significativa do que um mercado em segunda mão de objetos materiais. Dessa forma, o TJE considerou que, uma vez que a Tom Kabinet coloca as obras à disposição de qualquer pessoa que se inscreva no site do clube de leitura, podendo essa pessoa ter acesso a elas a partir do local e no momento escolhido, o fornecimento desse serviço deve ser considerado como a "comunicação de uma obra" (art. 3.°, n° 1, da Diretiva 2001/29), sendo irrelevante que o associado faça ou não o download do livro. Diante disso, o Tribunal de Justiça Europeu concluiu que o fornecimento ao público por transferência (download), para utilização permanente, de um e-book está abrangido pelo conceito de "comunicação ao público", mais especificamente pelo conceito de "colocação à disposição do público" (das obras dos autores) por forma a torná-las acessíveis a qualquer pessoa a partir do local e no momento por ela escolhido, nos termos do art. 3.°, n° 1, da Diretiva 2001/29. As repercussões sociais Embora juridicamente bem fundamentada a decisão da Corte Europeia, houve reação por parte dos leitores em toda a Europa e fica claro que eles acreditam - ou esperam - que novos modelos de negócios surjam para facilitar o acesso aos e-books usados, até porque o valor de um e-book quase se equipara ao preço de um livro impresso. O jeito é aguardar para ver como o mercado irá se desenvolver nessa área. ____________ 1 Processo C-263/18, p. 13.   2 Processo C-263/18, p. 14.  
A coluna German Report inicia o novo ano - e a nova década de 2020 - comentando uma das mais importantes decisões da Cour Européenne des Droits de L'Homme, proferidas em 2019. Ela foi comentada na época no canal do Instagram (@karinanfritz15), mas, pela relevância e atualidade, merece ser abordada nessa coluna. Trata-se do caso Pastörs v. Germany, Application n. 55225/14, julgado pela 5a Sessão da Corte, em 3/10/2019. No caso, a Corte de Strasbourg decidiu que negar o holocausto não está abrangido pela liberdade de expressão. Dessa forma, o Tribunal rejeitou queixa movida por Udo Pastörs, ex-chefe do partido ultranacionalista de direita NPD (Partido Nacional Democrata), suposto difusor de ideias neonazistas. Em 28 de janeiro de 2010, o político fez em um pronunciamento no Parlamento Estadual (Landstag) de Mecklenburg-Vorpommern no qual criticou o evento realizado na Casa em memória do holocausto, comemorado anualmente dia 27 de janeiro. Ele e os demais membros do partido não compareceram ao evento como forma de protesto. O "chamado holocausto", disse ele, estaria sendo utilizado para fins políticos e comerciais, inclusive pelos partidos burgueses. Segundo Pastörs, desde o final da 2a Guerra Mundial, os alemães vêm sendo expostos a uma série interminável de críticas e mentiras propagandísticas, cultivadas de maneira desonesta, principalmente por representantes dos chamados partidos democráticos. Para o político, o evento ocorrido na Casa Legislativa nada mais era do que "projeções de Auschwitz", tendo o termo sido empregado como sinônimo de "mentira de Auschwitz", outra expressão frequentemente utilizada por ele. Pastörs afirmou que o evento em memória às vítimas do holocausto seria um "teatro de consternação" de uma "cultura de culpa". Em 2012, o Tribunal da Comarca de Schwerin condenou Pastörs a oito meses de prisão e a multa de 6 mil euros por calúnia e difamação da memória dos milhares de falecidos na tragédia. A sentença foi confirmada pelo Tribunal Estadual de Rostock, que afirmou que Pastörs teria negado o holocausto em sua fala. Ele recorreu ao Tribunal Constitucional em Karlsruhe, o Bundesverfassungsgericht, alegando imunidade parlamentar e violação à liberdade de expressão. Mas a Corte julgou improcedente a queixa constitucional, em 2014, sob o argumento de que a negação do holocausto não estaria abrangida pelo conteúdo do direito fundamental à liberdade de expressão (Meinungsfreiheit). Ao contrário, da forma como feita, a fala de Pastörs caracterizava uma "negação qualificada do holocausto" (qualifizierte Auschwitzleugnung), enquadrável no § 187 do Código Penal, tendo por vítimas os milhares de judeus perseguidos e mortos durante a tirania nazista. O massacre sistemático em massa dos judeus, cometido nos campos de concentração durante a 2a Guerra Mundial, é um fato histórico comprovado, afirmou a Corte Constitucional, de forma que a liberdade de expressão parlamentar não lhe dá o direito de negar a historia e falar absurdos, denegrindo a memória das pessoas mortas em Auschwitz. Diante da condenação, o político recorreu ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos alegando que as cortes alemãs selecionaram indevidamente um pequeno trecho de seu discurso e o interpretaram mal, e que, por isso, a decisão violava sua liberdade de expressão, prevista no art. 10 da Convenção Europeia de Direitos Humanos. Mas a Corte de Strassburg entendeu que a condenação de Pastörs, na Alemanha, por suas declarações sobre o holocausto não viola seu direito à liberdade de expressão, protegido pelo citado dispositivo. Ao contrário: afronta valores da própria Convenção, pois sua fala só pode ser objetivamente entendida como uma "negação do massacre racista sistêmico dos judeus", ocorrido durante o regime nazista na Alemanha. Sua condenação criminal foi uma interferência proporcional ao "objetivo legítimo perseguido" e, portanto, "necessária em uma sociedade democrática". A Corte acentuou que, em princípio, as manifestações parlamentares são dignas de proteção e necessárias em uma sociedade democrática, razão pela qual os Estados só têm uma margem muito limitada para regular o conteúdo do discurso parlamentar. Carecem, contudo, de proteção aquelas manifestações que - como a de Pastörs - contrariam os valores democráticos da Convenção. A decisão da Corte de Strassburg, na esteira do entendimento do Tribunal Constitucional Alemão, representa uma importante delimitação do conteúdo do direito fundamental à liberdade de expressão, que não pode servir de escudo para afastar condenações, penais ou civis, de qualquer pessoa que dele abuse a fim de atentar contra os valores fundamentais da ordem constitucional, como democracia, liberdade, igualdade e dignidade humana. Excelente precedente a ser seguido no resto do mundo, inclusive por aqui.
terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Animais no local de trabalho

Animais não são coisas - já enuncia há várias décadas o § 90a BGB, inserido em 1990 na codificação alemã em decorrência da lei para o melhoramento da posição jurídica dos animais no Direito Civil. A norma não é letra morta, embora os animais sejam regidos pelo direito dos bens. A sociedade alemã tem uma postura positiva de respeito e proteção dos animais, embora seus defensores reclamem um nível de proteção mais elevado. Na Alemanha, é comum ver principalmente cães em cafés, restaurantes, transportes públicos e até em locais de trabalho. Há, evidentemente, normas que proíbem a presença de animais em determinados locais como hospitais, cozinhas e laboratórios. A razão é evidente: considerações de ordem sanitária, higiênica e de segurança afastam a presença de animais de estimação nesses locais. Mas não há normas gerais na legislação regulando a presença de animais em locais de trabalho ou uma regra expressa que preveja a possibilidade (ou não) do empregado levar o amigo de estimação ao trabalho. Nada obstante, não é incomum encontrar um peludo de quatro patas em escritórios e repartições públicas. Pessoalmente, tive a divertida experiência de conhecer um pequeno "estagiário" no Tribunal Constitucional alemão, em 2016, durante estágio de pesquisa na Corte, realizado no doutoramento. Tratava-se de um cachorrinho maltês, "filho" de um funcionário do Tribunal, que andava tranquilamente pelos corredores próximos à sala do pai e o acompanhava com frequência à cafeteria, onde era por todos mimado. Mas nem sempre reina paz no ambiente de trabalho quando algum colega traz seu peludo de casa. Em um caso oriundo do Tribunal de Munique, os sócios de um escritório começaram a se desentenderem por causa do cão que a sócia levava todos os dias para o trabalho, apesar dos protestos do sócio. Ele, então, moveu ação cautelar com pedido liminar alegando não ter concordado com a presença do animal no escritório. Ele já teria tido experiências ruins anteriores e não gostava de cachorros, principalmente do cheiro. Segundo o autor, o cachorro gostava de usar sua cadeira, latia com frequência e acabava atrapalhando o clima do escritório. O Amtsgericht (AG) München negou o pedido por razões processuais: não havia urgência na medida, pois não restou demonstrado nos autos que o animal era agressivo ou que os colegas de trabalho precisavam temer ataques do cachorro. Mas o Tribunal do Trabalho de Düsseldorf (Landesarbeitsgericht - LAG) encarou a questão de fundo em caso semelhante, decidindo que cabe ao empregador autorizar (ou não) a presença de animais no local de trabalho. Fundamento para tanto é seu poder de direção e instrução, previsto no § 106 da Gewerbeordung, que regulamenta as atividades profissionais. Segundo o dispositivo, cabe ao empregador regular, em detalhes, a atividade laboral, determinando o local, horário e o conteúdo da atividade, bem como o funcionamento da empresa em geral. Essa competência inclui, obviamente, o poder de fixar regras sobre a presença de animais de estimação no local de trabalho. Cabe a ele decidir se - e sob quais pressupostos - um funcionário pode levar um cachorro, um gato ou peixes no aquário para o trabalho. Ele pode condicionar, por exemplo, à raça, tamanho, ao bom comportamento (boas maneiras) do animal, à realização das necessidades fisiológicas em área externa ou ao uso de focinheira ou coleiras. Da mesma forma, pode ao empregador revogar a autorização consentida sempre que o animal perturbe o local de trabalho. Isso acontece quando ele desperta medo ou receio nos colegas e/ou clientes, quando o animal é barulhento ou exala odor desagradável ou ainda quando os cuidados com o animal roubem tempo de trabalho do dono. E esse poder lhe permite vedar casos individuais, ainda quando outros colegas tenham autorização para tanto. Mas o poder de direção não pode configurar um tratamento desigual inadmissível, sendo necessário um motivo justo para o tratamento diferenciado, disse o LAG Düsseldorf. Em regra, é necessário que o animal em questão - diferentemente dos demais - perturbe o funcionamento do local de trabalho para que o tratamento discriminatório se justifique. Trata-se do processo LAG Düsseldorf, Az. 9 As 1207/13, julgado em 24/3/2014. Segundo o Tribunal, é irrelevante, contudo, se o cão é de fato perigoso. É suficiente que o empregador subjetivamente tenha receios em relação ao animal. No caso concreto tratava-se de uma agência de publicidade, onde normalmente há intensa comunicação e muito movimento no local. Por isso, os demais funcionários tinham receios em relação ao cachorro de um dos funcionários. Nesse caso, surge para o empregador deveres especiais de cuidado (besondere Fürsorgepflichte) para com os empregados, sendo justificável a proibição da presença do cão na agência. Por isso, a ação do empregado, a fim de continuar levando o cachorro para o escritório, foi julgada improcedente. Mas os estudos mostram que a presença de um animal de estimação tem efeito positivo não apenas sobre o dono do animal, como ainda sobre o clima de trabalho na empresa, elevando o contentamento e a motivação dos funcionários1. Por isso, várias empresas já permitem que seus funcionários levem animais ao trabalho. No Brasil, já há empresas e espaços pet friedly. Mas, evidentemente, a última palavra cabe ao empregador, responsável por preservar a segurança e a harmonia no trabalho. Thor Larenz, mascote do German Report, seria vetado devido às travessuras. __________ 1 Confira-se a pesquisa realizada por Randolph T. Baker, da Virginia Commonwealth University, em 2012. Bürohund gefällig? Die Gesetzlage zu Tieren am Arbeitsplatz. Acesso: 23/11/2019.
terça-feira, 26 de novembro de 2019

Briga de vizinhos

Há pouco tempo o site do Globo noticiou que uma moradora, mãe de dois gêmeos pequenos, recebeu uma advertência do condomínio em decorrência da infração de "choros e gritos de criança antes das 7h da manha". Segundo ela contou aos jornais, os filhos estavam doentes, com pneumonia, otite, bronquite e tosse, o que já deixa qualquer criança irritada e chorosa naturalmente, principalmente os pequenos. Os vizinhos do prédio, contudo, se irritaram com a situação e fizeram reclamações no condomínio, que acabou notificando a moradora pela "infração". Conviver em sociedade não é fácil. E briga entre vizinhos é um problema no mundo inteiro. Já foi noticiado aqui o caso do proprietário na Alemanha que direcionou, por provocação, as câmeras de segurança para o imóvel do vizinho, razão pela qual fora condenado a retirar os apetrechos. Uma hora, um reclama das árvores que, embora posicionadas dentro do limite permitido, espalham folhas e pólens pelo terreno alheio. Outra hora alguém se queixa do barulho da televisão, do treino musical, das crianças e até do barulho dos sinos das vacas. Os casos vão parar impreterivelmente no Judiciário. E aqui a palavra de ordem tem sido tolerância e razoabilidade. O caso das crianças Na cidade de Trier, o dono de uma taberna de vinho reclamou do barulho das crianças no parquinho localizado próximo a seu estabelecimento comercial. O parquinho destinava-se a crianças de até 12 anos e funcionava de 8h às 13h e de 14h às 20h. Segundo ele, desde a construção do parquinho, seus clientes estavam reclamando do barulho e a clientela estava diminuindo. Ele mandou medir o ruído e constatou que estava acima do permitido pela legislação. Por isso, pleiteou judicialmente a instalação do parque em outro local. O Tribunal Administrativo de Trier julgou a ação improcedente. Trata-se do processo Verwaltungsgericht (VG) Trier 5 K 1542/14.TR, julgado em 28.1.2015. Segundo a Lei de Proteção contra Imissões (Bundesimmissionsschutzgesetz - BImSchG), que regula as imissões danosas ao ambiente, o barulho das crianças provenientes de parques infantis, creches ou escolas não são, em regra, considerados, efeitos danosos ao ambiente (§ 22, inc. 1a BImSchG). Por isso, os valores limites para imissões não se aplicam à zoada produzida pelas crianças, sendo inútil a medição feita pelo autor da ação. Para o Tribunal, a norma do § 22, inc. 1a da BImSchG deixa claro que sob a sociedade recai um mandamento especial de tolerância em relação à zoada produzida pelas crianças. "O barulho de crianças brincando são expressão do desenvolvimento e crescimento infantil e, por isso, em princípio, razoável", disse o Tribunal. Segundo a Corte, a jurisprudência alemã é uníssona no sentido de que as crianças podem fazer barulho, às vezes mais alto que outras fontes de ruídos. Paradigmática nesse sentido é uma decisão do Tribunal Superior Administrativo de 1991 (BVerwG 4 C 5/88, julgado em 12.12.1991). O VG Trier observou que as condições do parquinho (localização, vizinhança, tamanho, equipamentos, etc.) eram adequadas, possuindo brinquedos tecnicamente apropriados para o público do local. Dessa forma, sob o autor da ação recaia um "absoluto mandamento de tolerância" (absolutes Toleranzgebot). O Tribunal salientou, por fim, que estabelecimentos comerciais não gozam de proteção "especial" perante os moradores, de forma que não havia qualquer razão para retirar o parquinho do local. Dessa forma, seria muito improvável uma mãe ser ameaçada de multa, na Alemanha, em casos semelhantes ao ocorrido no Brasil. A bem da verdade, a situação, como noticiada, é, no mínimo, bizarra. O caso dos pólens Em caso julgado em 20/9/2109, o Bundesgerichtshof (BGH) se deparou com a queixa de um vizinho contra a sujeira e imissão natural das bétulas, oriundas do terreno fronteiriço. A bétula é um arbusto típico da região temperada do hemisfério norte, utilizado pelos povos antigos contra mau-hálito e para emagrecimento. O proprietário do imóvel queria que seu vizinho derrubasse três saudáveis arvores de bétula, plantadas a uma distância de mais de dois metros da cerca limítrofe, ou lhe pagasse todo ano, de junho a novembro, 230 euros por mês para custear a limpeza de seu imóvel em razão da sujeira produzida pelas plantas. O juízo da Comarca de Karlsruhe julgou improcedente a ação, mas o Tribunal de Maulbronn deu ganho de causa ao proprietário, condenando o réu a derrubar as árvores. Segundo a sentença, haveria um conflito entre as regras do Código Civil alemão (BGB) e as normas municipais, o qual seria resolvido aplicando a norma do § 1004, inc. 1 do BGB, que concede ao proprietário uma pretensão de abstenção em casos de perturbação da propriedade (esbulho ou turbação), a ser exercida perante o perturbador da posse. Um grau de revisão, o Bundesgerichtshof afastou a incidência da norma ao caso. Trata-se do processo BGH V ZR 218/18, julgado em 20/9/2019. Disse não se tratar de perturbação da posse, mas sim da questão preexistente de saber se o proprietário de um imóvel pode ser responsável por imissões naturais emanadas de seu imóvel, ainda quando ele observe as normas municipais. Se não for responsável, não há qualquer conflito entre o direito municipal e o BGB. Segundo jurisprudência pacífica do BGH, a qualificação como perturbador não decorre apenas da posse ou da propriedade do imóvel, de onde provém a perturbação sobre o terreno vizinho. Exceto nos casos de uma ação direta do proprietário, é necessário verificar se existem motivos materiais que justifiquem imputar-lhe a responsabilidade pelo evento. Isso ocorre quando da forma como o imóvel é utilizado resulta um "dever de segurança" (Sicherungspflicht), ou seja, um dever de evitar inconvenientes ao imóvel fronteiriço. Não se trata aqui de um dever de natureza jurídica obrigacional, é bom que se diga, mas de dever resultante da relação jurídica de vizinhança. Decisivo é que uma análise valorativa do caso concreto permita concluir que o possuidor e/ou proprietário tenha razoavelmente causado o estado perturbador e seja, dessa forma, responsável pela situação. Esse princípio se aplica ainda quando se tratem de incômodos decorrentes de acontecimentos naturais. Mas isso depende da análise de uma conjuntura de fatores, como o uso dado ao imóvel e a possibilidade de controle e/ou prevenção da perturbação. Um imóvel não é considerado adequadamente utilizado quando as plantações são feitas em inobservância das regras de distância impostas pelo direito municipal, disse o BGH. Contudo, é controvertido na doutrina se surge para o vizinho uma pretensão de abstenção (Abwehranspruch), com base no § 1004 I BGB, contra imissões emanadas de plantações, quando as regras e limites impostos pela municipalidade foram observados, como no caso em comento. Há uma corrente que sustenta que a simples observância das normas municipais seria insuficiente para excluir a pretensão do vizinho de exigir do outro uma abstenção quando ele sofre, de fato, interferências em seu imóvel1. A Corte de Karlsruhe aderiu, entretanto, à corrente contrária, que, nesses casos, entende restar desconfigurada a interferência na propriedade alheia ou, reconhecendo-a, a considera insignificante. Segundo a Corte, o conteúdo e extensão da pretensão do § 1004 I BGB são definidos considerando o direito geral de vizinhança, o qual é caracterizado pelo equilíbrio dos interesses opostos dos vizinhos e encontra-se positivado não apenas no Código Civil, mas também em leis municipais. No caso, a lei municipal que fixa os limites e as distâncias das plantações em imóveis fronteiriços é expressão da consideração recíproca e da atenção às particularidades locais, afirmou o BGH. Se, apesar da distância exigida para a plantação de bétulas estar sendo observada, surgem imissões naturais para o imóvel vizinho, como pólen, sementes e folhagens, o proprietário do imóvel está usando regularmente sua propriedade, de acordo com os valores adotados pelo legislador, que autoriza plantações nessas circunstâncias. Diferente do caso do proprietário que deixa espalhar galhos e raízes sobre o imóvel lindeiro, fazendo surgir a pretensão do vizinho de exigir o corte, nos termos do § 1004 I BGB ou até mesmo indenização pelas despesas a mais gastas com a limpeza do terreno (§ 906 II BGB). Nesse sentido, a decisão BGH V ZR 99/03, julgada em 28.11.2003. Seria irrazoável qualificar como perturbador o proprietário em razão de perturbações decorrentes de fenômenos naturais, como a imissão emanada de plantações autorizadas. Logo, não surge para o vizinho a pretensão de abstenção do § 1004 I BGB e nem uma pretensão ressarcitória, com base no § 906 II BGB. Dito em outras palavras: o vizinho é obrigado a tolerar as interferências decorrentes de acontecimentos naturais, exceto aquelas extraordinariamente insuportáveis. Trata-se de um dever de consideração recíproca (Pflicht zur gegenseitigen Rücksichtnahme), oriunda da relação jurídica de vizinhança. O caso do sino das vacas Há anos a briga de vizinhos por causa do barulho do sino de vacas ocupa os tribunais da Bavária. A última disputa chegou ao Tribunal de Justiça de Munique em abril desse ano após reclamações de um casal da pequena cidade de Holzkirchen, insatisfeitos com o ruído e o odor proveniente do terreno vizinho, pertencente a uma pequena agricultora. Na origem, cada um moveu uma ação própria contra a vizinha. No processo movido pelo marido, as partes chegaram a um acordo: as vacas não deveriam ficar na parte norte, mas apenas na parte sul do terreno. O acordo fora cumprido pela agricultora, mas, nada obstante, o barulho ainda permanecia alto, com inconvenientes desagradáveis, como cheiro de esterco e moscas. O autor chegou a exibir o som dos animais na audiência de conciliação, mas o juiz não mudou de opinião, fazendo valer o acordo assinado. O autor interpôs, então, apelação ao OLG München, processada sob o registro Az. 15 U 138/18, julgada em 10.4.2019, mas o resultado não foi diferente. O apelante perdeu parcialmente, porque só fora reconhecido o direito de exigir o confinamento dos animais na parte sul da fazenda. Para o Tribunal, os vizinhos precisam tolerar as imissões naturais vindas da fazenda. O pedido de recurso ao BGH foi negado, mas eles já recorreram da decisão, de forma que talvez o caso suba à Corte em Karlsruhe. Recentemente, a esposa do vizinho moveu outra ação, que ainda aguarda audiência de conciliação. Moral da história: convivência exige tolerância e consideração pelos interesses alheios. __________ 1 Dentre outros: ROTH. Staudinger Kommentar zum BGB. Berlin: De Gruyter, 2016, § 906, Rn. 170.
Desde 1/6/2015 está em vigor na Alemanha a nova lei do direito de locação (Mietrechtsnovellierungsgesetz), de 21/4/2015, que introduziu, dentre outras mudanças, um freio aos valores dos alugueis nas grandes cidades, onde o mercado imobiliário tem se tornado cada vez mais tenso. Em cidades como Berlim, Munique, Hamburgo ou Frankfurt a.M, o valor dos alugueis sobe a cada dia, afastando da cidade cada vez mais famílias da classe média com crianças, incapazes de suportar esses valores. Por isso, uma das promessas de campanha dos partidos foi regular o mercado imobiliário. E isso foi feito através da nova lei, que desde sua entrada em vigor tem causado acesa polêmica, principalmente por causa do limite estabelecido ao valor dos alugueis. O novo direito de locação A lei introduziu o § 556d, inc. 1 do BGB, segundo o qual os alugueis, em áreas com um mercado imobiliário "tenso" (angespannter Wohnungsmarkt), só podem superar até 10% o valor médio local, em contratos de locação residencial celebrados após a entrada em vigor da lei. A lei, portanto, não impõe um tabelamento geral dos alugueis em todo o país. Apenas as cidades - ou áreas específicas delas - com mercado imobiliário tenso podem se socorrer da medida por um prazo máximo de cinco anos. O mercado é qualificado como "tenso" quando o abastecimento da população com imóveis para locação encontra-se especialmente em risco. Nessas condições, os estados estão autorizados pelo § 556d, inc. 2 do BGB a determinar por decreto quais cidades ou regiões são qualificadas como tal, vigorando, a partir de então, o limite máximo de aluguel a ser cobrado. Essa regra não tem eficácia retroativa, vale dizer, os alugueis em curso que já se encontrem acima do valor máximo não serão reduzidos, mas não podem ser elevados em caso de renovação (§ 556e BGB). Berlim foi a primeira cidade a ser classificada como uma área de tensão imobiliária, pois os valores dos alugueis na cidade estão cada vez mais estratosféricos. As ações questionando a inconstitucionalidade da lei In continenti, os proprietários de imóveis e associações se apressaram em alegar a inconstitucionalidade da lei por violação do mandamento da determinação (Bestimmtheitsgebot) do art. 80, inc. 1, alínea 2 da Lei Fundamental, da divisão de competência federal e do mandamento da igualdade, consagrado no art. 3, inc. 1 da Carta Magna. Esse exige um tratamento igualitário dos proprietários em todo o país, mas, com a nova lei, os proprietários passam a estar submetidos a diferentes limites de aluguel, fixados de acordo com o valor médio de cada local. E, argumentam, o fim perseguido pelo legislador não justificaria o tratamento desigual. A primeira queixa constitucional não tardou a aparecer, mas foi julgada improcedente pelo BVerfG, em 24/6/2015, no processo 1 BvR 1360/15, por não ter o autor percorrido a esfera civil antes de chegar ao Tribunal Constitucional e, dessa forma, esgotado todas as possibilidades processuais à disposição para fazer valer seu direito. O Tribunal da Comarca de Berlim chegou a se manifestar, em 2017, pela inconstitucionalidade do § 556d do BGB, mas submeteu a questão ao Bundesverfassungsgericht, já que no sistema constitucional alemão apenas a Corte Constitucional pode declarar a inconstitucionalidade de uma lei, a fim de evitar a balbúrdia resultante de decisões conflitantes das instâncias inferiores em tema tão sensível como o da (in)constitucionalidade de normas legais. Agora, em 8.7.2019, o Tribunal Constitucional finalmente teve a oportunidade de decidir a questão, proclamando a conformidade do novo § 556d do BGB à Lei Fundamental. A decisão do BVerfG A recentíssima decisão diz respeito aos processos BVerfG 1 BvL 1/18, 1 BvR 1595/18 e 1 BvL 4/18, julgados em 18.7.2019. Para a 3a. Câmara do 1o. Senado da Corte, o freio ao valor dos alugueis não viola a garantia constitucional da propriedade, a liberdade contratual e nem o princípio geral da igualdade. A restrição à propriedade é justificada De início, o BVerfG admitiu que a regulação dos valores dos alugueis atingem o direito de propriedade, tutelado constitucionalmente, dos proprietários de imóveis destinados a locação, mas essa violação é justificada, tratando de uma admissível restrição ao conteúdo da propriedade. A uma, porque é proporcional. É de interesse público evitar a preterição e a evasão de grupos populacionais menos abastados das áreas das cidades mais procuradas e a regulamentação do valor dos alugueis é medida apropriada a alcançar esse objetivo, pois evita preços estratosféricos em mercados disputados e pode, ao menos, criar condições para o acesso desse mercado a locatários menos favorecidos. A duas, porque a intervenção é necessária para alcançar os objetivos pré-estabelecidos. Aqui a Corte reconheceu que outras medidas poderiam ter sido adotadas pelo legislador para minimizar ou eliminar a situação de necessidade imobiliária nessas regiões, como, por exemplo, fomentar a construção de novas moradias ou ampliar a concessão de ajuda de aluguel, que na Alemanha não é dada a abastados funcionários públicos, mas à classe mais necessitada da população. Mas além dessas medidas custarem caro ao erário, não estaria claro elas produziriam um efeito igual a curto prazo como a limitação dos alugueis. A três, porque a regulação do valor dos alugueis é uma medida razoável tanto para locadores, como para locatários. Para o BVerfG, o legislador sopesou bem os interesses em conflito dos proprietários e da coletividade. O conteúdo da garantia da propriedade não é imutável É importante ter em mente, assinalou o Tribunal, que a garantia da propriedade não implica que o conteúdo da posição jurídica proprietária permaneça intocável para todo o sempre. Com efeito, o legislador infraconstitucional pode modificar ou aperfeiçoar uma regra já criada, ainda quando piorem e se agravem as possibilidades de aproveitamento da posição proprietária existente. Não cabe aqui falar em proteção da confiança, disse o BVerfG: na área do direito locatário, de relevância social e política incontestável, o locador tem que contar com frequentes alterações legislativas, não podendo confiar legitimamente na imutabilidade de uma situação jurídica favorável. A confiança de poder obter com o imóvel a renda mais alta possível não é tutelada pela garantia da propriedade, disse a Corte de Karlsruhe. Por outro lado, os proprietários têm a segurança de que a limitação do valor dos alugueis só ocorrerá se os pressupostos fixados na lei forem preenchidos. Essa avaliação cabe aos governos locais, mas, caso se faça uma avaliação errada da região, os locatários podem questionar a decisão administrativa em juízo. Além disso, o valor máximo do aluguel é calculado de acordo com o valor médio de mercado na região e a limitação só pode durar no máximo cinco anos. Dessa forma, a restrição imposta não representa uma perda permanente para os locadores ou uma ameaça à substância da coisa locada ou ainda a perda de uma possibilidade razoável de uso. A restrição à propriedade não viola a liberdade contratual O Tribunal afastou ainda o argumento de que a restrição à posição proprietária violaria a liberdade contratual, protegida constitucionalmente pelo art. 2, inc. 1 da GG (Grundgesetz). Isso, porque a intervenção, pelo acima exposto, manteve-se dentro dos limites da ordem constitucional, estando em harmonia com o princípio da proporcionalidade. A restrição à propriedade não viola o princípio constitucional da igualdade Da mesma forma, a Corte Constitucional afastou o argumento de que a medida geraria um tratamento desigual entre os locatários, na medida em que alguns estariam sujeitos a limites máximos de aluguel e outros não. Para a Corte isso não se justifica, porque há uma diferença considerável entre os mercados imobiliários regionais e isso obviamente justifica o tratamento desigual das situações. Já o valor médio de mercado é - também sob a ótica constitucional - um critério diferenciador adequado para apontar as diferenças entre os mercados imobiliários regionais, sendo irrazoável imaginar uma limitação uniforme para todo o país, que ainda desconsideraria a capacidade financeira dos locatários. A relevância da decisão A decisão do Tribunal Constitucional tem, à toda evidência, grande relevância jurídica e social, pois legitima a intervenção do Estado-Legislador, em prol da sociedade, no direito de propriedade de proprietários de imóveis destinados à locação, equilibrando o mercado a fim de evitar que os grandes centros se transformem em reinos habitados por privilegiados. Sob o aspecto jurídico, o Tribunal deixou claro a possibilidade do legislador infraconstitucional, com proporcionalidade, intervir restritivamente na situação jurídica proprietária, desde que a substância ou núcleo duro do direito permaneça preservado. Um ótimo exemplo a ser seguido em outros cantos.
Nos dias 8 e 9 de novembro último, ocorreu em Karlsruhe, cidade sede dos Tribunais superiores da Alemanha - Bundesgerichtshof (BGH) e Bundesverfassungsgericht (BVerfG) - o Congresso Anual da Deutsch-Lusitanische Juristenvereinigung (DLJV) ou Associação Luso-Alemã de Juristas. A associação fora criada pelo professor emérito da Universidade de Heidelberg, Erick Jayme, a fim de fomentar o intercâmbio jurídico entre os países de língua germânica e portuguesa. Atualmente, é presidida pelo prof. Dr. Stefan Grundmann, catedrático da Humboldt Universidade de Berlim, e tenho a honra de ocupar o cargo de Secretária-Geral da associação. O tema do congresso desse ano foi "Digitalisierung und Verfahren", ou seja, Digitalização e Procedimento. O objetivo era abordar, em última análise, alguns aspectos dos impactos da internet e do desenvolvimento tecnológico no Direito. Dentre os participantes, professores, advogados e magistrados da Alemanha, Portugal, Brasil e da África portuguesa. O prof. Ingo Sarlet, da PUC/RS, abriu o Congresso falando sobre o estado atual do Direito ao esquecimento na jurisprudência brasileira, expondo ao público presente, com precisão, os leading cases Aida Cure e Chacina da Candelária. Em seguida, o prof. Reinhard Singer, titular da Humbold Universidade, abordou os entraves na Alemanha para o processamento do direito dos consumidores na era da digitalização, expondo em detalhes as frequentes operações de cessões das pretensões pelos consumidores a empresas especializadas na cobrança de créditos. A ministra do BGH, Dra. Johanna Schmidt-Rätsch, que também é professora na Humboldt Universidade, abordou a problemática dos impactos da digitalização no direito obrigacional e processual. Segundo ela, a despeito de todo o desenvolvimento, as decisões automatizadas não são uma realidade na Alemanha, pois as máquinas não conseguem substituir o homem na realização de juízos de valores. Esse é o mesmo sentir da ministra do BVerfG, Dra. Sibylle Kessal-Wulf, que, após o evento, fez uma belíssima visita guiada no Tribunal Constitucional aos participantes do congresso. Para ela, os juízes são insubstituíveis. Além disso, enquanto funcionários públicos custeados pelo contribuinte, são eles quem devem efetivamente julgar os casos que chegam para análise. A Prof. Lisiane Wingert Ordy, da UFRGS, fez uma análise sobre processo e digitalização no Brasil, abordando os resultados positivos e negativos após uma década de processo eletrônico. O prof. Eduardo Vera-Cruz, da Universidade de Lisboa, trouxe um contrapondo sobre o tema digitalização e procedimento à partir do direito angolano, que é fortemente influenciado pelo direito lusitano em razão da colonização. Falar de digitalização do direito em um país onde os estudantes não tem acesso à internet é um contrassenso, mas ao mesmo tempo uma necessidade, diante do processo - em curso - de desenvolvimento do Direito africano. António Barreto Menezes Cordeiro, professor da Universidade de Lisboa, discorreu, de forma crítica e amparado em sólida doutrina, acerca das controvérsias em torno da natureza jurídica do direito à identidade informacional, mostrando que, sob a ótica da dogmática jurídica, não se pode, de plano, sustentar a natureza de direito fundamental, ao contrário do que apressadamente fazem alguns. Muito ainda há que se discutir a respeito. Laura Schertel Mendes, professora do Instituto de Direito Público (IDP Brasília), falou sobre decisões automatizadas e os direitos dos jurisdicionados sob uma análise comparativa entre o direito de proteção de dados brasileiro e europeu. A prof. Dulce Lopes, da Universidade de Coimbra, expos sobre a circulação dos documentos autênticos na União Europeia, abordando os problemas de sua autenticidade e veracidade. Finalizando, houve um painel sobre os impactos da era digital no direito sucessório. O dr. Carl Friedrich Nordmeier, juiz em Frankfurt a.M. e profundo conhecedor do direito brasileiro, falou sobre as recentes alterações em nosso direito das sucessões, abordando os reflexos da decisão do STF que equiparou a união estável ao casamento. A dra. Lena Kunz, Professora em Heidelberg, falou sobre herança digital na jurisprudência alemã, comentando o leading case do assunto, o Caso Facebook (clique aqui), já comentado nessa coluna e decidido em 2018 pelo BGH. Ela é uma das maiores experts do assunto na Alemanha e comenta o tema no famoso comentário ao código civil alemão: Staudinger Kommentar zum BGB, publicado pela prestigiosa editora De Gruyter. Tive a honra de encerrar o congresso, em mesa com a prof. Lena Kunz e a min. Johanna Schmidt-Räntsch, falando do tema da herança digital no Brasil. Ilude-se quem pensa que os contratos de uso das grandes plataformas digitais de comunicação, como o Facebook, são gratuitos. Essa suposta gratuidade significa apenas que não há contraprestação em dinheiro. Os contratos de uso de plataformas digitais se caracterizam pela existência do sinalágma prestação versus contraprestação. De um lado, a empresa "cede" o uso da plataforma digital ao usuário e esse, de outro, cede gratuitamente o uso de todos os seus dados pessoais, os quais são lidos, analisados e processados pelos mais modernos programas e transformados em rico material comercializável.Os dados pessoais viraram a moeda de troca ou o ouro do século 21. Não se tratam de informações avulsas sobre um indivíduo, mas sim do perfil com as ideias e as preferências de bilhões de usuários da rede, os quais são comercializador para empresas que oferecem os mais variados tipos de produtos e serviços.É ledo engano pensar que a exigência de criação de username e password visa proteger a privacidade do usuário. Isso visa, ao contrário, garantir a segurança da rede como um todo. Nada tem a ver, portanto, com uma preocupação de proteger a intimidade e privacidade dos usuários. Menos ainda objetiva impedir os herdeiros de acessar a conta do titular falecido. Tanto isso é verdade que os contratos de uso de plataformas são celebrados na internet sem qualquer consideração à pessoa do usuário, inclusive sem sequer a verificação acerca da (real) identidade do usuário. Os inúmeros perfis falsos o comprovam. Não se sustenta, portanto, a ideia difundida pelos grandes conglomerados digitais de que o usuário tem uma expectativa maior de sigilo e privacidade no mundo digital que no analógico, pois enquanto no mundo digital suas correspondências seriam protegidas por senhas, no mundo físico ele sabe que cartas e diários serão transmitidos com a morte aos herdeiros. A rigor, isso não passa de uma falácia, porque há milênios a humanidade conhece o fenômeno da sucessão hereditária, cuja função, aliás, não se limita à transmissão patrimonial, mas visa também garantir clareza e segurança jurídica. Os conglomerados digitais não têm legitimidade para, afastando o princípio da sucessão universal, criar um cemitério digital, a cuja portão apenas eles têm a chave que - diga-se de passagem - dá acesso a um tesouro inestimável. Assim, os contratos de uso de plataformas digitais são transmitidos automaticamente aos herdeiros do usuário falecido, que assumem sua posição jurídica e adquirem, dessa forma, o direito de ter acesso à contas dos perfis do de cujus. Do contrário, todo o conteúdo lá armazenado - inclusive o conteúdo pessoal (existencial), como fotos, mensagens e vídeos íntimos - ficariam sob o poder do Facebook ou de qualquer outro gigante digital. E o ordenamento jurídico brasileiro (a rigor, ocidental) não fornece qualquer subsídio que indique ter o Facebook maior legitimidade que os herdeiros para se apropriar do conteúdo existencial de seus usuários ou de decidir o destino dele.
terça-feira, 5 de novembro de 2019

Testamento como última chicana

Ao contrário do Brasil, onde poucas pessoas se preocupam em fazer em vida disposições para depois da morte, na Alemanha há uma cultura em se fazer testamento. O problema lá tem sido algumas exigências e condições que os autores da herança têm imposto aos herdeiros e legatários. Não raro, procura-se vincular a herança ou legado a condições consideradas inadmissíveis pela ordem jurídica. Não raro, em alguns testamentos o autor da herança condiciona seu recebimento à visita periódica do herdeiro ou a um número mínimo de visitas por ano ou àquele filho que dele cuidar na velhice. Também surgem promessas de deixar um pedaço maior do bolo hereditário se a filha se separar ou se o filho deixar a vida errante e se casar. As situações fornecem material de vida suficiente para a produções de grandes comédias hollywoodianas. A coisa tem ganhado tamanha proporção que o Fórum de Direito Sucessório de Munique divulgou há pouco que a maioria dos testamentos no país contém condições a serem preenchidas pelos herdeiros e legatários. Eles alertam, contudo, que isso não pode significar um mecanismo de pressão e, principalmente: não se pode pretender "comprar" afeto, atenção ou cuidado dos herdeiros. Isso vale principalmente quando há a explosiva combinação de "coação" e altas cifras. A jurisprudência tem beneficiado os herdeiros sempre que as condições impostas pelo de cujus restringem consideravelmente sua liberdade de decisão, colocando-os quase em uma situação de coação. Nesses casos, não raro as condições impostas são declaradas nulas por contrariedade aos bons costumes, preservando-se o direito fundamental à herança dos herdeiros, previsto no art. 14 da Lei Fundamental (Grundgesetz). Condicionar o recebimento da herança à conclusão dos estudos ou ao alcance de determinada idade (maioridade) são cláusulas consideradas válidas pelos tribunais. Há pouco, entretanto, o Tribunal de Justiça de Frankfurt am Main considerou nula a condição imposta por um avô aos netos, segundo a qual esses só fariam jus à herança se o visitassem, no mínimo, seis vezes por ano. Trata-se do processo OLG Frankfurt a.M Az. 20 W 98/18, julgado em 5/2/2019. No caso, o avô dispôs em testamento que sua esposa e o filho do primeiro casamento deveriam ficar com 25% cada um da herança. O restante ficaria para os dois netos menores, descendes de outro filho do falecido, que nada receberia. Pressuposto, contudo, para o recebimento da herança era a visita regular do avô, que morava em outra cidade. Essa condição era conhecida da família e, por isso, os pais pressionavam os meninos a visitar o avô, mas eles se recusavam a ir na frequência exigida. Após a morte do avô, a viúva e o filho do primeiro casamento requereram que a parte destinada aos menores lhes fosse atribuída, pois os meninos não visitaram o falecido com a frequência exigida. Os meninos, então, impugnaram a cláusula testamentária. Para a Corte, o avô ultrapassou os limites da liberdade de testar, exercendo uma coação sobre os netos, contrária aos bons costumes. Isso, porque a exigência invadia a liberdade de decisão (Entscheidungsfreiheit) e de condução de vida (Lebensführung) dos jovens, tolhendo a decisão livre e espontânea dos netos de decidir se e quando visitar o avô. O OLG Frankfurt a.M. ressaltou, contudo, que a contrariedade aos bons costumes de uma condição precisa ser analisada com cuidado e razoabilidade, pois a liberdade de testar do autor da herança está garantida na Lei Fundamental. Cada um tem o poder de determinar a sucessão de seus bens, como garantido pela liberdade de testar. Dessa forma, a invalidade deve ser exceção. Disse o Tribunal: "Em princípio, é de se garantir a liberdade de testar de um autor da herança, protegida na Lei Fundamental. Precisa-se, então, ser possível conformar a ordem de sucessão conforme suas próprias representações. A contrariedade aos bons costumes só pode ser admitida em casos excepcionais especialmente grassos. As barreiras do caso excepcional sempre é ultrapassada quando a condição imposta pelo autor da herança, considerando-se as circunstâncias altamente pessoais ou econômicas, submete a pressão a liberdade de decisão do receptor condicional da doação e, através da expectativa das vantagens patrimoniais, deve-se dirigir comportamentos, os quais pressupõem, geralmente, um livre convencimento interno da pessoa"1. Mas é inadmissível que o autor da herança pretenda "comprar" com a herança um determinado comportamento dos herdeiros. Tamanha invasão na condução da vida de outrem não é tolerada pela ordem jurídica e nem abrangida no âmbito normativo da liberdade de testar do de cujus, disse o Tribunal. A nulidade da condição, conduto, não implica a nulidade da condição de herdeiro, de forma que os netos, no caso em comento, receberam o quinhão que lhes foi destinado em testamento. __________ 1 Grundsätzlich sei zwar die im Grundgesetz geschu¨tzte Testierfreiheit eines Erblassers zu gewährleisten. Es mu¨sse möglich sein, die Erbfolge nach seinen eigenen Vorstellungen zu gestalten. Die Sittenwidrigkeit einer Bedingung könne nur in besonders schwerwiegenden Ausnahmefällen angenommen werden. Die Grenze zu einem solchen Ausnahmefall sei dann u¨berschritten, "wenn die von dem Erblasser erhobene Bedingung unter Beru¨cksichtigung der höchstpersönlichen oder wirtschaftlichen Umstände die Entschließungsfreiheit der bedingten Zuwendungsempfänger unzumutbar unter Druck setzt und durch das Inaussichtstellen von Vermögensvorteilen Verhaltensweisen bewirkt werden sollen, die regelmäßig eine freie innere Überzeugung des Handelnden voraussetzen".
A coluna de hoje comenta o paradigmático caso Lüth, a decisão pioneira do Tribunal Constitucional Alemão que deu origem à discussão da eficácia dos direitos fundamentais no direito privado, tema da recente palestra do prof. dr. Reinhard Singer, catedrático da Universidade Humboldt de Berlim (Alemanha), proferida no dia 11/10/19, na Escola da Magistratura do Rio de Janeiro (EMERJ), em evento organizado juntamente com a Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC). Trata-se do processo 1 BvR 500/51, julgado do 1o Senado da Corte 15/1/58 e publicado no repertório BVerfGE 7, 198. O caso O diretor de imprensa da cidade de Hamburg, Erich Lüth, convocou um boicote, em 20/9/50, ao filme "Amada imortal" (Unsterbliche Geliebte) do cineasta Veit Harlan, que seria exibido em festival de cinema da cidade. A razão do boicote foi o fato de Harlan ter sido o grande cineasta durante o governo nazista e ter produzido, a pedido de Joseph Goebbels, o filme Jud Süß, que teve inspiração na figura de Joseph Süß Oppenheimer, um alto funcionário da fazenda no governo de Karl Alexander von Württemberg (1684-1737). O filme tinha claro caráter discriminatório e antissemita. Veja a foto do polêmico filme antissemita encomendado por Joseph Goebbels, o cruel Ministro de Propaganda do Terceiro Reich: Os personagens da história Veit Harlan começou sua carreira depois de 1933, quando Adolf Hitler já tinha subido ao poder, e em pouquíssimo tempo se tornou um cineasta de prestígio, devido em parte ao intenso contato com a cúpula nazista, especialmente com Goebbels. Com o fim da 2a. Guerra Mundial e o colapso do regime nazista, os aliados iniciaram um processo de caça às bruxas, denominado "processo de desnazificação" (Entnazifizierungsverfahren), ocasião na qual Harlan fora acusado duas vezes. O Tribunal de Guerra, na época, reconheceu a "clara tendência antissemita" do filme Jud Süß, bem como sua aptidão de - na conjuntura de então - influenciar tendenciosamente a opinião pública, em uma tentativa de justificar e/ou tolerar a perseguição aos judeus. Considerando que Harlan participou como diretor e roteirista do filme, ele compreendeu bem o fim e os efeitos visados pelo filme, tendo, consequentemente, preenchido - objetiva e subjetivamente - o suporte fático do crime contra a humanidade, disse o Tribunal de Guerra. Mas foi julgado inocente das acusações em razão da excludente de culpabilidade do § 52 do Código Penal alemão, alegada por Harlan em sua defesa: estado de coação. Isso, porque, quando o filme foi rodado, em novembro de 1939, a Alemanha já se encontrava em estado de guerra com a Polônia e Goebbels dizia que cada alemão era um "soldado do Führer", devendo cumprir seu dever, sob pena de se submeter às mais severas punições, inclusive pena de morte. Dessa forma, não havia de facto possibilidade de escolha para Harlan. O Tribunal de Guerra não encontrou fatos concretos que demonstrassem que Harlan sofrera coação, mas também não conseguiu verificar sua inexistência. Assim, concluiu pela existência da excludente a partir das circunstâncias nas quais o acusado estava envolvido. Isso levaria Lüth a afirmar posteriormente que a absolvição de Harlan teria sido apenas formal, com o significado de uma condenação moral. Lüth, por sua vez, era uma personalidade engajada na reconstrução da relação entre alemães e judeus, tendo iniciado, inclusive, uma ação "Paz com Israel", que contou com o apoio de grande parcela da sociedade e da igreja cristã. A par desse histórico de vida, Lüth, ao saber que o filme de Harlan seria exibido durante o festival de cinema, em um pronunciamento, exortou os cinemas e teatros a não exibir o filme e o público a não assistí-lo. Deve-se dizer que Lüth não foi o único a se manifestar contra a exibição do filme e apresentação de Veit Harlan como um dos maiores expoentes da cinematografia alemã, feita pelas empresas produtora e distribuidora do filme: quarenta e oito professores da Universidade de Göttingen, onde Rudolf von Jhering lecionou, assinaram um manifesto e o deputado Dr. Schmid-Tübingen pronunciou-se duramente no Parlamento em Berlim (Bundestag) contra a exibição do filme, condenando moralmente o cineasta. O processo Diante do boicote de Lüth, o cineasta, a produtora do filme Domnick-Film-Produktion GmbH e a distribuidora Herzog-Film GmbH entraram com medida liminar perante o juízo da comarca de Hamburg a fim de proibir Lüth, dentre outras coisas, de exortar os cinemas e teatros a não exibir e o público a não assistir o filme. O juízo de primeira instância condenou Lüth a abster-se da exortação ao boicote, pois entendeu que isso seria um ato ilícito contrário aos bons costumes, tipificado no art. 826 BGB. Ele visava, em última análise, impedir o retorno de Harlan como uma figura representativa do cinema alemão. Mas isso não se justificaria, porque Harlan fora absolvido nos processos criminais movidos contra ele. Por conta da absolvição, a organização de cinema alemã retirou todas as restrições impostas anteriormente à liberdade de exercício profissional de Harlan. Dessa forma, concluiu o juízo, qualquer restrição ao exercício desse direito fundamental, proveniente de quem quer que seja, seria contrária aos bons costumes. Em outras palavras: a conduta de Lüth contrariava a concepção democrática do direito e dos bons costumes do povo alemão. Lüth apelou da decisão de primeira instância, prolatada em 22/11/51 (Landgericht Hamburg Az. 15 O 87/51), mas o Tribunal de Justiça (Oberlandesgericht) de Hamburg negou provimento à apelação. Acatando os argumentos da sentença, o OLG Hamburg acrescentou que a conduta de Lüth violava o núcleo da personalidade artística de Harlan, "a última área inviolável da liberdade humana", ferindo inegavelmente a dignidade humana do cineasta, o que configuraria - em qualquer circunstância - ofensa aos bons costumes. Lüth, então, moveu queixa constitucional ao Bundesverfassungsgericht. A decisão do Tribunal Constitucional O BVerfG sublinhou inicialmente que a sentença de primeiro grau, por consistir ato do poder público (Poder Judiciário), pode ferir o direito fundamental do autor da queixa constitucional sempre que esse direito fundamental deva ser observado na sentença. Sempre que os tribunais inferiores adentram no campo jusfundamental, restringindo de forma inadmissível, por meio de interpretação, a pretensão de eficácia de um direito fundamental, é competência da Corte Constitucional assegurar a eficácia do valor específico do direito fundamental. Para a Corte, Lüth tinha o direito de manifestar publicamente sua opinião sobre o filme e o cineasta, bem como convocar a população a boicotar o filme. O direito fundamental à livre manifestação de opinião é uma expressão direta da personalidade humana no meio social e, por isso, um dos direitos humanos mais essenciais. Não por outra razão, o art. 11 da declaração francesa dos direitos do homem e do cidadão, de 1789, o considera "um des droits les plus précieux de l'homme". Ele é, além disso, um direito constitutivo de uma ordem estatal livre e democrática, pois permite o permanente confronto de ideias e a luta por opiniões, que é um elemento vivo da liberdade e da democracia, sublinhou a Suprema Corte. Ele é, em suma, a base da liberdade ou, como diz Cardozo, "the matrix, the indispensable condition of nearly every other form of freedom". A manifestação do pensamento é livre. Quando, contudo, ela intervém e restringe um bem jurídico de outra pessoa, que goza de maior proteção face à liberdade de expressão, essa intervenção passa a ser inadmissível. Aqui é necessária uma ponderação dos direitos fundamentais em colisão. O direito à livre manifestação do pensamento precisa retroceder diante de interesse de hierarquia e proteção mais elevada. Entretanto, só no caso concreto se pode identificar qual o interesse preponderante. A proteção de um bem jurídico privado pode - e deve, sublinhou o BVerfG - retroceder quando se trata de uma disputa de ideias acerca de questões essenciais que tocam a esfera pública. Para decidir se a convocação ao boicote contraria os bons costumes, é necessário analisar os motivos, o fim e os meios da manifestação, bem como se Lüth não ultrapassou a medida, necessária e adequada, da intervenção nos interesses de Harlan e das empresas cinematográficas. No caso, Lüth não perseguia fins próprios e egoísticos, mas um interesse fundamental do povo alemão. Com efeito, sublinhou o Tribunal Constitucional que os motivos que impulsionaram Lüth não eram contrários aos bons costumes, já que ele não perseguia interesses puramente egoísticos de natureza econômica, pois não era concorrente nem de Harlan, nem das empresas cinematográficas, o que foi inclusive reconhecido em primeira instância. O objetivo da manifestação dele foi impedir o retorno de Harlan como um representante do cinema alemão. Ele fora motivado pelo receio de que a volta de Harlan ao cinema pudesse significar - principalmente no exterior - uma influência nazista sobre o cinema alemão, despertando a impressão de que nada havia mudado na cena cultural alemã em relação ao período do nacional-socialismo, época na qual Harlan foi um dos grandes expoentes. Esse receio atinge uma questão fundamental para o povo alemão, disse de forma muito consciente o BVerfG, pois nada prejudicou mais a imagem dos alemães do que a cruel perseguição aos judeus durante o nazismo. Existe, portanto, um interesse fundamental de que o mundo tenha certeza de que o povo alemão se afastou dessa ideologia e de que não a condena por motivos oportunistas, mas por uma mudança interna em suas convicções. Esse receio do autor da queixa constitucional resultava da situação da época, pois até na Suíça a exibição do filme "Unsterbeliche Geliebte" gerou protestos e foi proibida, não por seu conteúdo e sim pela participação de Harlan. Em outras cidades alemãs também houve protestos pelos mesmos motivos. Para o Tribunal Constitucional foi errônea a decisão do OLG Hamburg de, por um lado, reconhecer como legítima a manifestação de Lüth contra o retorno de Harlan como representante máximo do cinema alemão e, de outro, censurá-lo por ter convocado o público a adotar uma determinada postura (boicote) que impossibilitasse essa consagração. Essa distinção desconsidera que a manifestação de Lüth contra os riscos do retorno de Harlan contém, em si, um juízo de valor negativo de recusa contra sua figura e contra o filme. Em outras palavras: a exortação ao público para não assistir ao filme resulta, por si só, da emissão do juízo de valor contra o retorno de Harlan à cena cinematográfica. Disse a Corte Constitucional: "Deve-se rechaçar a ideia de que apenas a externalização da opinião é protegida jusfundamentalmente, não o efeito nela contido e por ela perseguido de atuar sobre os outros. O sentido da manifestação da opinião é precisamente deixar emanar um efeito espiritual sobre o meio em que se está inserido, produzindo efeitos na formação da opinião e convencimento da coletividade (Häntzschel, HdbDStR II, p. 655). Por isso, julgamentos de valores - que sempre visam produzir o efeito intelectual de pretender convencer os demais - são protegidos pelo direito fundamental do art. 5, inc. 1, frase 1 GG; a tutela do direito fundamental refere-se, em primeira linha, à própria opinião do emissor, manifestada no juízo de valor, através da qual ele pretende atuar sobre os outros. Uma separação entre a manifestação (tutelada) e o efeito (não tutelado) da manifestação seria absurda.".1 O Tribunal também considerou adequado o meio de manifestação (fala em público) utilizado por Lüth, pois as empresas cinematográficas dirigiram-se ao público para festejar o retorno de Harlan à cena cultural alemã. Quem assim atua perante o público, disse a Corte Constitucional, precisa também tolerar críticas feitas em público contra o filme ou seus envolvidos. As críticas de Lüth foram razoáveis, amparada em fatos de todos conhecidos e não tinham o poder de aniquilar a existência humana e cultural do cineasta, ao contrário do mencionado pelo OLG Hamburg. Essa ideia supervalorizava a intensidade das críticas de Lüth, entendeu o BVerfG, sendo incapaz de restringir o livre desenvolvimento humano e cultural de Harlan. Dessa forma, o Tribunal Constitucional julgou procedente a queixa constitucional de Erich Lüth por entender que a decisão do OLG Hamburg violava seu direito fundamental de liberdade de expressão, consagrado no art. 5, inc. 1 da Lei Fundamental. Diz a clássica ementa do julgado: "1. Os direitos fundamentais são, em primeira linha, direitos de defesa do cidadão contra o Estado; na determinação dos direitos fundamentais da Lei Fundamental corporifica-se uma ordem axiológica objetiva, que vale para todas as áreas do direito como uma decisão fundamental constitucional. 2. No direito civil, o conteúdo jurídico dos direitos fundamentais se desenvolvem indiretamente através das normas jusprivadas. Ele toma principalmente determinações de caráter obrigatório e é realizável para o juiz principalmente por meio das cláusulas gerais. 3. O juiz cível pode violar os direitos fundamentais através da sentença (§ 90 BVerfGG) quando ele desconhece a influência dos direitos fundamentais sobre o direito civil. O Tribunal Constitucional examina nas decisões cíveis apenas a questão da violação dos direitos fundamentais, não em geral um erro jurídico. 4. Também normas civis podem ser consideradas "leis gerais" no sentido do art. 5, inc. 2 da Lei Fundamental e, dessa forma, restringir o direito fundamental à livre manifestação do pensamento. 5. As "leis gerais" precisam ser interpretadas à luz do significado especial do direito fundamental à livre manifestação da opinião para um Estado livre e democrático. 6. O direito fundamental do art. 5 da GG tutela não apenas a exteriorização da opinião em si, mas também o efeito espiritual através da manifestação do pensamento. 7. A manifestação da opinião, que contém uma exortação ao boicote, não viola necessariamente os bons costumes, no sentido do § 826 BGB; ela pode ser justificada, na ponderação de todas as circunstâncias do caso, através da liberdade de manifestação de opinião.".2 A relevância da decisão O caso Lüth teve uma importância ímpar para o direito ocidental do pós-guerra, pois a partir dele inicia-se na Alemanha a discussão acerca da eficácia dos direitos fundamentais no direito privado. Esse debate irradiou-se para os países europeus, influenciados pela doutrina germânica, principalmente por Portugal, Espanha e Itália, embalado pelo movimento neoconstitucionalista, que aportou no Brasil. No terreno civilista, o tema ganhou forma na teoria do direito civil-constitucional. A teoria é calcada basicamente nos ensinamentos do civilista italiano Pietro Perlingieri e propõe uma releitura todo o direito civil à luz da tábua axiológica da Constituição - feita, inclusive, pelo julgador diante do caso concreto, com o que se distingue totalmente do método hermenêutico da interpretação conforme a Constituição, aplicado na Alemanha e na Europa. ____________ 1 No original: "Die Auffassung, daß nur das Äußern einer Meinung grundrechtlich geschu¨tzt sei, nicht die darin liegende oder damit bezweckte Wirkung auf andere, ist abzulehnen. Der Sinn einer Meinungsäußerung ist es gerade, "geistige Wirkung auf die Umwelt" ausgehen zu lassen, "meinungsbildend und u¨berzeugend auf die Gesamtheit zu wirken" (Häntzschel, HdbDStR II, S. 655). Deshalb sind Werturteile, die immer eine geistige Wirkung erzielen, nämlich andere u¨berzeugen wollen, vom Grundrecht des Art. 5 Abs. 1 Satz 1 GG geschu¨tzt; ja der Schutz des Grundrechts bezieht sich in erster Linie auf die im Werturteil zum Ausdruck kommende eigene Stellungnahme des Redenden, durch die er auf andere wirken will. Eine Trennung zwischen (geschu¨tzter) Äußerung und (nicht geschu¨tzter) Wirkung der Äußerung wäre sinnwidrig." 2 No original: 1. Die Grundrechte sind in erster Linie Abwehrrechte des Bu¨rgers gegen den Staat; in den Grundrechtsbestimmungen des Grundgesetzes verkörpert sich aber auch eine objektive Wertordnung, die als verfassungsrechtliche Grundentscheidung fu¨r alle Bereiche des Rechts gilt. 2. Im bu¨rgerlichen Recht entfaltet sich der Rechtsgehalt der Grundrechte mittelbar durch die privatrechtlichen Vorschriften. Er ergreift vor allem Bestimmungen zwingenden Charakters und ist fu¨r den Richter besonders realisierbar durch die Generalklauseln. 3. Der Zivilrichter kann durch sein Urteil Grundrechte verletzen (§ 90 BVerfGG), wenn er die Einwirkung der Grundrechte auf das bu¨rgerliche Recht verkennt. Das Bundesverfassungsgericht pru¨ft zivilgerichtliche Urteile nur auf solche Verletzungen von Grundrechten, nicht allgemein auf Rechtsfehler nach. 4. Auch zivilrechtliche Vorschriften können "allgemeine Gesetze" im Sinne des Art. 5 Abs. 2 GG sein und so das Grundrecht auf Freiheit der Meinungsäußerung beschränken. 5. Die "allgemeinen Gesetze" mu¨ssen im Lichte der besonderen Bedeutung des Grundrechts der freien Meinungsäußerung fu¨r den freiheitlichen demokratischen Staat ausgelegt werden. 6. Das Grundrecht des Art. 5 GG schu¨tzt nicht nur das Äußern einer Meinung als solches, sondern auch das geistige Wirken durch die Meinungsäußerung. 7. Eine Meinungsäußerung, die eine Aufforderung zum Boykott enthält, verstößt nicht notwendig gegen die guten Sitten im Sinne des § 826 BGB; sie kann bei Abwägung aller Umstände des Falles durch die Freiheit der Meinungsäußerung verfassungsrechtlich gerechtfertigt sein."
O caso A filha de um casal vivia em união estável desde 2002 com um rapaz. Em 2011, ela e o companheiro resolveram adquirir um imóvel residencial. Os pais dela doaram, então, cerca de 100 mil euros para ajudar no financiamento do imóvel do jovem casal. Mas no final de 2013 os dois se separaram. Os pais da mulher entraram, in continenti, com uma ação contra o ex-companheiro pedindo de volta a metade do valor doado alegando que teria sido um empréstimo. O réu, contudo, demonstrara ter sido doação gratuita. O processo O casal obteve êxito no juízo de primeira instância de Potsdam. O Tribunal de Justiça de Brandenburg, em recurso de apelação, confirmou a sentença, em decisão de 26/10/2016. Acatando a tese do réu, de que houve, de fato, doação gratuita, entendeu, contudo, que restou caracterizada a quebra da base do negócio com a separação do casal. Com o fim da união estável, houve, segundo o Oberlandsgericht Brandenburg, uma considerável alteração das circunstâncias das quais partiram os doadores, pois na base da doação estava a ideia de que o relacionamento do casal duraria a vida inteira. Com a separação em tão pouco tempo depois da doação, quebrou-se a base do negócio, de forma que não seria razoável permitir que os autores (doadores) permanecessem amarrados à doação feita. Entretanto, como a filha morou no imóvel comum, o fim perseguido com a doação acabou sendo parcialmente concretizado, disse o OLG Brandeburg. Para apurar o valor a ser restituído pelo réu, o Tribunal, então, partiu do princípio de que "o alcance do fim da doação teria que estar de acordo com a duração esperada da comunhão de vida" e, a par desse cálculo, condenou o ex-companheiro a devolver 91,6% de sua parte (metade do valor recebido) na doação, o que correspondia a cerca de 47 mil euros. A decisão do Bundesgerichtshof A revisão (Revision) interposta pelo réu foi admitida e o caso subiu ao Bundesgerichtshof. Trata-se do processo BGH X ZR 107/16, julgado em 18.6.2019. O 10o Senado da Corte, especializado em direito de doação, confirmou parcialmente a decisão do Tribunal a quo. Segundo o BGH, como em qualquer contrato, também nos contratos de doação podem existir representações de uma das partes ou expectativas de ambas acerca da permanência - ou da futura ocorrência - de determinadas circunstâncias, as quais, embora não integrando o conteúdo do contrato, serviram de base para a formação da vontade negocial. A profunda alteração dessas circunstâncias, que formam a base da vontade negocial, pode exigir uma adaptação ou desfazimento do contrato, nos termos do § 313 do BGB, que reza: "§ 313. Perturbação na base do negócio (1) Se as circunstâncias, que formaram a base do contrato, alterarem-se consideravelmente após a conclusão do contrato e as partes, prevendo essas alterações, não tivessem concluído o contrato ou o tivessem concluído com outro conteúdo, pode-se exigir a adaptação do contrato enquanto, considerando todas as circunstâncias do caso individual, especialmente a repartição contratual ou legal de riscos, não for razoável a manutenção do contrato de uma parte. (2) Uma alteração das circunstâncias ocorre ainda quando representações essenciais, que formaram a base do contrato, revelam-se falsas. (3) Se uma adaptação do contrato não for possível ou irrazoável para uma das partes, a parte prejudicada pode desfazer o contrato. No lugar do direito de rescisão, surge nas relações obrigacionais duradouras o direito de resilição"1. Assim, disse a Corte que: "Como em qualquer contrato, também no contrato de doação as representações de uma ou de ambas as partes contratantes podem ter por base a existência ou a ocorrência futura de determinadas circunstâncias, as quais não fazem parte do contrato, mas sobre as quais a vontade negocial foi construída. A alteração substancial dessas circunstâncias pode exigir, por isso, em razão da quebra da base do negócio, uma adaptação ou até mesmo o direito, de uma ou das duas partes, de desfazer do contrato (§ 313, inc. 1 BGB)"2. Impõe-se, então, saber o que pode ser considerado, no caso concreto, como base do negócio nos contratos de doação. Aqui, o BGH salientou que não se pode perder de vista que a doação não é um contrato comutativo, no qual há troca de prestação (Leistung) e contraprestação (Gegenleistung). Trata-se, ao contrário, de um contrato caracterizado pela promessa de doação unilateral e gratuita - salvo os casos de doação condicional, modal ou com cláusula de reversão - através da qual o doador se desfaz de objeto em favor do donatário, que pode dele dispor livremente. O donatário não se obriga a nenhuma prestação. Ele só "deve" ao doador um agradecimento pela doação, vez que o doador pode pedir de volta o bem doado quando o donatário falta, em considerável medida, com devida a gratidão, comportando-se de forma grosseiramente ingrata perante o doador (§ 530, inc. 1 do BGB). Nos casos de doação de imóvel ou de valor para sua aquisição, feita ao próprio filho e seu parceiro, o doador tem normalmente a expectativa de que o imóvel será utilizado conjuntamente pelos donatários/beneficiados, no mínimo, por um tempo razoável. Isso, contudo, não permite concluir - como fez a Corte de Brandenburg - que a base jurídica da doação sedimenta-se na expectativa de que uso comum do imóvel só findará com a morte de um dos parceiros. Ao contrário, diz o BGH: os doadores precisam contar com um eventual fracasso do relacionamento amoroso, de modo que o uso e disposição do bem doado faz parte do risco assumido com a generosa doação, o que legitima o donatário a retê-lo em sua esfera jurídica. Na verdade, ponderou a Corte, a afirmação do OLG Brandenburg - de que a doação fora feita na expectativa de que o relacionamento do casal fosse duradouro e que o imóvel a ser adquirido seria a base "espacial" para uma longa vida em comum - resulta possivelmente da "valoração jurídica" do contexto fático, trazido pelas partes. Para a Corte de Karlsruhe, a base jurídica do negócio não foi rompida, porque o relacionamento não durou a vida toda, mas sim, porque o casal se separou pouco tempo - em menos de dois anos - depois da doação. Dessa forma, mostrou-se equivocada a expectativa dos doadores de que o casal não iria por fim à vida em comum em tão pouco tempo, expectativa que foi elemento constitutivo da base do negócio de doação do dinheiro, conhecida e não questionada pelo companheiro beneficiário. Nesse caso, é plausível aceitar-se que a doação não teria ocorrido se os doadores tivessem percebido o fim próximo da vida em comum do casal. Dito em outras palavras: os pais jamais teriam doado a quantia se tivessem percebido que a união iria durar pouco. Não é, portanto, razoável deixar os doadores vinculado à doação. Mais razoável é exigir que o donatário devolva o recebido, exceto se houverem circunstâncias excepcionais a justificar a retenção. Como é irrazoável supor que o doador teria doado um valor menor se tivesse previsto a (curta) duração da união estável, não faz sentido calcular o valor a ser devolvido (pretensão de restituição dos doadores) de acordo com uma determinada quota, como fez o Tribunal a quo. Aqui vale a regra do tudo ou nada: ou se devolve tudo ou nada. Dessa forma, o ex-companheiro teve que devolver metade do valor recebido dos pais da ex-companheira, a titulo de doação, com base na teoria da quebra da base do negócio jurídico, atualmente positivada no § 313 do BGB. A inovação da decisão Essa decisão do Bundesgerichtshof é importante sobretudo por dois motivos. Primeiro, aplica a teoria da alteração posterior das circunstâncias a negócio jurídico unilateral (doação), solucionando um caso, a princípio, sem solução no direito brasileiro - pelo menos, sem solução amparada na dogmática atual dos contratos de doação. A menos, claro, que se recorra à varinha de condão da dignidade humana, da função social ou de outro valor ou princípio constitucional. Segundo, porque nos faz refletir sobre um tema pouco explorado no direito brasileiro, que esquizofrenicamente só parece permitir uma adaptação do contrato por quebra da base do negócio jurídico nos contratos de consumo, a teor do art. 6, inc. V do CDC. Nas relações entre particulares, ao contrário, incidiria apenas o art. 478 CC2002, mais rígido até que a teoria imprevisão francesa, pois só se refere a contratos de execução continuada ou diferida, deixando de lado o restante dos negócios jurídicos, e exige, cumulativamente à excessiva onerosidade do devedor, "extrema vantagem" ao credor em virtude dos acontecimentos "extraordinários e imprevisíveis". Para superar essa muralha na intervenção judicial dos contratos, em respeito à consideração pelos interesses legítimos da contraparte, ínsita à ideia de boa-fé objetiva, mostra-se premente recorrer-se ao art. 422 CC2002 e se proceder a uma releitura do art. 478 CC2002 à luz da boa-fé objetiva. Isso se dá, como mostra a história do direito alemão, por meio de processos hermenêuticos que permitam o aperfeiçoamento judicial do direito, como a redução teleológica, desde que feito considerando o sentido e o fim da norma, bem como os valores fundamentais do ordenamento3. A teoria atual da base do negócio A teoria da base do negócio teve em Bernard Windscheid seu primeiro grande teórico, com a teoria da pressuposição (Voraussetzungslehre), mas foi aperfeiçoada posteriormente por autores como Paul Oertmann, Karl Larenz e, mais recentemente, Wolfgang Fikentscher. A teoria da ausência ou quebra da base do negócio (Fehlen oder Wegfall der Geschäftsgrundlage) diz que um contrato obrigacional só deve permanecer vinculante enquanto as condições existentes no momento de sua conclusão permanecerem inalteradas. Como o § 313 BGB deixa claro, o legislador alemão consagrou a teoria mista da base do negócio, positivando tanto a base objetiva (inc. 1), como a base subjetiva (inc. 2), que a doutrina brasileira tem grande dificuldade de distinguir dos motivos - subjetivos e juridicamente irrelevantes - do negócio. A base subjetiva do negócio são as representações de uma ou de ambas as partes que existiam no momento da conclusão do contrato, que eram conhecidas e não foram rejeitadas pela contraparte, e cuja existência ou futura ocorrência serviram de base para a formação da vontade negocial. A base objetiva do negócio são as circunstâncias e/ou relações existentes no momento da formação do contrato, cuja existência e permanência são objetivamente necessárias para que o contrato faça sentido para ambas as partes. Aqui enquadram-se os casos de perturbação na economia do contrato, como desequilíbrio entre a equivalência das prestações (desequilíbrio contratual) e de frustração do fim do contrato (Zweckstörung). Em respeito à autoresponsabilidade das partes, à lealdade contratual e ao interesse na segurança de planejamento, é bom que se diga que o instituto precisa ser usado com parcimônia. Em outras palavras: trata-se de norma excepcional, a requerer interpretação restritiva, pois restringe os princípios da autonomia privada (Privatautonomie) e da lealdade contratual (Vertragstreue)4. A consequência jurídica da quebra da base do negócio é a necessidade de adaptação ou de rescisão do contrato. Trata-se, enfim, de tema que merece urgente aprofundamento teórico na doutrina nacional. __________ 1 Tradução livre: "§ Störung der Geschäftsgrundlage. (1) Haben sich Umstände, die zur Grundlage des Vertrags geworden sind, nach Vertragsschluss schwerwiegend verändert und hätten die Parteien den Vertrag nicht oder mit anderem Inhalt geschlossen, wenn sie diese Veränderung vorausgesehen hätten, so kann Anpassung des Vertrags verlangt werden, soweit einem Teil unter Berücksichtigung aller Umstände des Einzelfalls, insbesondere der vertraglichen oder gesetzlichen Risikoverteilung, das Festhalten am unveränderten Vertrag nicht zugemutet werden kann. (2) Einer Veränderung der Umstände steht es gleich, wenn wesentliche Vorstellungen, die zur Grundlage des Vertrags geworden sind, sich als falsch herausstellen. (3) Ist eine Anpassung des Vertrags nicht möglich oder einem Teil nicht zumutbar, so kann der benachteiligte Teil vom Vertrag zurücktreten. An die Stelle des Rücktrittsrechts tritt für Dauerschuldverhältnisse das Recht zur Kündigung". 2 No original: "Wie bei jedem Vertrag können auch dem Schenkungsvertrag Vorstellungen eines oder beider Vertragspartner vom Bestand oder künftigen Eintritt bestimmter Umstände zugrunde liegen, die nicht Vertragsinhalt sind, auf denen der Geschäftswille jedoch gleichwohl aufbaut. Deren schwerwiegende Veränderung kann daher wegen Wegfalls der Geschäftsgrundlage eine Anpassung des Vertrages oder gar das Recht eines oder beider Vertragspartner erfordern, sich vom Vertrag zu lösen (§ 313 Abs. 1 BGB)". 3 LARENZ, Karl. Allgemeiner Teil des Bürgerlichen Rechts. München: Beck, 2004, p. 93-96. 4 GRÜNEBERG, Christian. Bamberger/Roth-BGB. Bd. 1. München: Beck, 2003, p. 1276.
É proibida a venda de remédios em máquinas automáticas, foi o que decidiu o Tribunal de Justiça de Karlsruhe (Oberlandsgericht - OLG) em processo envolvendo a distribuidora de medicamentos holandesa Docmorris. O caso Segundo notícias veiculadas na imprensa alemã, não há mais nenhuma farmácia dentro de um raio de 20km a noroeste da cidade de Heilbronn, próxima a Karlsruhe. Quem precisava comprar um simples remédio para dor de cabeça tinha que andar mais de  6 km até a próxima farmácia. Isso mudou quando a rede de farmácia holandesa Docmorris, que vende remédios à distância, instalou uma "farmácia automática" na região. A empresa atua na Europa com um modelo de negócio em que o consumidor se dirige a uma área, supervisionada por câmeras, para comprar seu medicamento diretamente em máquinas automáticas. É algo parecido com as áreas de caixas automáticos, onde o cliente pode sacar dinheiro com (suposta) rapidez e segurança. Se a medicação exigir receita médica, o paciente tem a possibilidade de falar por vídeo com um atendente na Holanda, que "recebe" a receita e libera o pedido. O plano da Docmorris era instalar cerca de oito mil terminais na Alemanha. Mas apenas dois dias após a inauguração do primeiro terminal automático, o governo suspendeu o projeto, em parte por pressão da Associação das Farmácias de Baden-Württemberg. O processo A Associação entrou com medida liminar para suspender o funcionamento das farmácias automáticas alegando violação ao § 73, inc. 1, alíena 1 da Arzneimittelgesetz, a lei Federal que regula a distribuição de medicamentos na Alemanha, que prevê a competência exclusiva das farmácias para a venda de medicamentos com receitas. Em sua defesa, a Docmorris defendeu a legalidade da prática de enviar e distribuir medicamentos aos consumidores, atividade para a qual ela inclusive possui licença. O juízo da comarca de Mosbach deferiu a liminar, entendendo ter havido violação à Arzneimittelgesetz. Em grau de recurso, o processo foi parar no Tribunal de Justiça de Karlsruhe, cidade sede dos tribunais superiores Bundesgerichtshof (BGH) e do Bundesverfassungsgericht (BVerfG), o Tribunal Constitucional. Trata-se do processo OLG Karlsruhe Az. 6 U 36/18, julgado em 29/5/2019. O OLG Karlsruhe confirmou, então, a decisão de primeira instância reconhecendo não apenas a violação à lei de medicamentos, como também à lei de defesa da concorrência. Venda em terminal não é venda à distância Para a Corte, a atividade realizada pela Docmorris estava fora do âmbito concedido pela licença, que é a venda à distância de medicamentos, por correspondência ou catálogo. Essa pressupõe a encomenda do consumidor final antes da separação, embalagem e envio do medicamento. Não era o que ocorria nos terminais automáticos. Lá, os medicamentos eram armazenados em um local sem qualquer pedido prévio concreto do consumidor e vendidos conforme a procura. Além disso, a Docmorris teria descumprido os deveres de verificação das receitas e de documentação, exigidos pela lei de medicamentos. O controle por vídeo das receitas e sua anotação apenas depois que a ela chegava na Holanda não atende as exigências da lei alemã de distribuição de medicamentos, disse a Corte estadual. A repercussão do caso O caso foi festejado como um importante precedente pela Associação das Farmácias, que há tempos critica a perda antiética de espaço e os danos à saúde devido à falta de fiscalização adequada no comércio de envio de medicamentos. Compra de medicamentos não é o mesmo que comprar uma coca-cola numa maquina automática, dizem os críticos. Segundo a Comissão de Direito Médico da Ordem dos Advogados da Alemanha, ocorrem por ano cerca de 500.000 atendimentos de emergência nos hospitais em razão de efeitos colaterais por erro na medicação, que poderiam ser evitados. Por essa razão, eles tendem a deixar a tarefa na mão de pessoas naturais qualificadas, que têm licença para trabalhar na área, ao invés de delegar a empresas, que são obrigadas a pensar sempre na maximização de seus lucros. O tema não é pacífico na classe politica. Enquanto o Ministério da Justiça sinalizou ser favorável à proibição de máquinas automáticas de remédios, prefeitos de vilarejos, onde não há farmácia, defendem a implantação de um projeto piloto da Docmorris. O tema deve chegar ao Bundesgerichtshof, pois já foi interposto pedido de revisão à Corte. E, quem sabe, ao Tribunal Constitucional. Só nos resta aguardar o desfecho dessa lide que envolve a colisão de direitos fundamentais: de um lado, o direito à livre iniciativa e, de outro, o direito à saúde da coletividade.
A Corte Europeia de Luxemburgo julgou improcedente, no último dia 24/9/2019, ação por suposta concorrência desleal movida pela sociedade italiana Piaggio & C. SpA, fabricante das mundialmente famosas motos Vespa, face à empresa chinesa Zhejiang Zhongneng Industry Group Co. Ltd. O caso Vespa A Piaggio acusava a empresa chinesa de plagiar suas vespas com o modelo "Scooter Zhejiang", cujo desenho e modelo fora registrado no Instituto de Propriedade Intelectual da União Europeia (EUIPO) em 2010, com base no Regulamento CE 6/2002. Veja o modelo chinês: Em 2014, a Piaggio apresentou no EUIPO pedido de declaração de nulidade do registro, sustentando não haver novidade ou singularidade no desenho chinês em relação à Vespa LX, situação enquadrável nos arts. 5 e 6 do Regulamento 6/2002. Ao contrário: as linhas e características da famosa motocicleta italiana estariam sendo copiadas, sendo o desenho/modelo contestado substancialmente idêntico ao original. A motocicleta Vespa é um ícone do design italiano desde 1945, gozando de proteção em vários países da Europa, como Itália e França, onde goza de proteção como obra intelectual, além de possuir registro no próprio EUIPO. Veja a legendária Vespa: A Paggio também alegou, no que respeita à causa de nulidade do registro, nos termos do art. 25 n. 1, alínea e) do regulamento 6/2002, que o desenho da Vespa era protegido pela lei italiana como "marca de fato" tridimensional não registrada, utilizada na Itália desde 2005. Segundo a empresa, a marca adquiriu pelo uso um forte caráter distintivo, na medida em que as características distintivas da forma tridimensional de scooter permaneceram substancialmente inalteradas desde a criação e primeira comercialização logo após a 2a Guerra, entre 1945 e 1946. O processo no Instituto de Propriedade Intelectual da União Europeia Em 2015, a Divisão de Anulação acolheu o pedido de declaração de nulidade do desenho/modelo contestado ao fundamento de que este não possui caráter singular, nos termos do art. 25, n. 1, alínea b) c/c art. 6 do Regulamento 6/2002. Mas a 3a Câmara de Recurso do EUIPO deu provimento ao recurso da empresa chinesa e anulou a decisão da Divisão de Anulação, negando provimento ao pedido de impugnação do registro, decisão confirmada em 2018 na sequência de recurso administrativo. Contra essa decisão do EUIPO, a empresa italiana moveu ação junto ao Tribunal Geral da União Europeia, cuja decisão foi agora indeferida. A decisão do Tribunal de Luxemburgo Segundo a decisão, para que um desenho e/ou modelo goze de proteção é necessário demonstrar que ele possui caráter novo e singular. Nos termos do art. 5 do Regulamento 6/2002, um desenho ou modelo será considerado novo se nenhum desenho ou modelo idêntico tiver sido divulgado ao público. Idênticos são, ao contrário, os desenhos e/ou modelos se suas características diferirem apenas em pormenores insignificantes um do outro. O caráter singular, por seu turno, configura-se quando a impressão global provocada no usuário informado da marca diferir da impressão global suscitada por qualquer desenho ou modelo divulgado ao público anteriormente, i.e., antes da data de depósito do pedido de registro (art. 6, n. 1, alínea b) do Regulamento 6/2002). Essa impressão global, acentua o Tribunal, se baseia, dentre outras, na existência de diferenças objetivas entre os desenhos ou modelos, de forma que é necessário se levar em conta diferenças suficientemente acentuadas para se criarem impressões globais diferentes. A Piaggio, contudo, argumentou a Corte, não teria se voltado contra a inexistência de novidade da motorola Zhejiang e tinha escolhido apenas o modelo Vespa LX como padrão violado. Mas, enquanto o modelo chinês tem linhas mais angulosas, a Vespa é dominada por formas mais arredondadas. "O aspecto global específico e a forma particular, datada de um 'caráter arredondado, feminino e vintage', do desenho ou modelo anterior também não podem encontrar-se no desenho ou modelo contestado, caracterizado por linhas direitas e ângulos, de modo que as impressões que resultam da obra, correspondente ao desenho ou modelo anterior, e do desenho ou modelo contestado são diferentes", disse a Corte Europeia. O estilo, o contorno e a aparência diferenciam ambas as motocicletas, revelando as muitas diferenças que distinguem as duas e isso faz com que, embora possam ter modelos semelhantes, não gera uma impressão geral de déjà vu no usuário desse tipo de motociclos. Em suma: a scooter da Zhejiang e a Vespa LX produzem impressões globais diferentes, possuindo a primeira um caráter singular em relação à segunda. E essas diferenças não passarão despercebidas a um o consumidor informado, usuário desses produtos, disse o Tribunal. A Corte de Luxemburgo afirmou ainda que o público relevante, suscetível de adquirir as motorolas, tem um nível de atenção elevado e perceberá as diferenças entre as duas. Em outras palavras: não há risco de confusão entre os produtos e as marcas. A assertividade da decisão só será definida posteriormente, pois a Piaggio-Vespa interpôs recurso ao Tribunal de Justiça Europeu, que se pronunciará sobre o imbróglio. Aspectos interessantes da decisão Interessante, nesse caso, além de toda a discussão acerca do direito de propriedade intelectual e concorrência desleal, exposta acima, é a concepção de consumidor subjacente à decisão. Não se parte de um conceito fixo e padronizado de consumidor, isto é, meramente formal, mas de um conceito material, variável e específico (pertencente ao público relevante) daquele produto em questão. Com efeito, disse o Tribunal que se "há de tomar em consideração o consumidor médio, que é o consumidor que é suposto estar normalmente informado e razoavelmente atento e avisado, pertencente ao público relevante interessado pelos produtos abrangidos pela marca anterior", no caso o motociclo Vespa. É importante ter em consideração, diz a Corte, o fato de que o nível de atenção do consumidor médio pode variar em função da categoria dos produtos. No caso, como as scooter são bens duradouros e relativamente caros, presume-se que o consumidor médio, pertencente ao público alvo das marcas, terá um nível de atenção mais elevado. Dessa forma, é levando em conta o consumidor médio que tomará a decisão de compra que se deve analisar se o desenho e/ou modelo contestado se utiliza (ou não) de marca anterior e, consequentemente, se existe (ou não) o risco de confusão no espirito do público relevante. No Brasil, parece haver, salvo melhor juízo, um conceito formal de consumidor, sendo todos tomados indistintamente por vulneráveis. Até que ponto essa ideia ainda se coaduna com os avanços no(s) conceito(s) de consumidor na Europa, é algo que se pode - e deve - questionar e aprofundar.
O conglomerado digital de Mark Zuckerberg não tem tido vida fácil na Alemanha. Não bastasse o Bundesgerichtshof ter prolatado ano passado a paradigmática decisão sobre herança digital, ordenando o Facebook a liberar aos pais o acesso à pagina da adolescente falecida no metrô de Berlim, há pouco o conglomerado enfrentou dificuldades com o cumprimento da decisão. Relembrando a lide: os pais de uma adolescente, falecida em circunstâncias misteriosas no metrô em Berlim, tentaram acessar o perfil da menina no Facebook para encontrar pistas que levassem ao esclarecimento de sua morte. Embora possuíssem todos os dados de acesso, o Facebook bloqueou a conta, vedando o acesso da família, tão logo soube da morte da garota por um contato anônimo. Os pais processaram a plataforma digital e ganharam em ultima instância quando o BGH, esclarecendo a questão, reconheceu como regra a transmissibilidade aos herdeiros da chamada herança digital, exceto se o falecido, em vida, dispôs em sentido contrário, em testamento ou qualquer meio inequívoco. O julgado virou o leading case do tema na Europa e teve repercussões imediatas, afastando a tese minoritária de que apenas o "conteúdo patrimonial" da conta seria transmissível com a morte, enquanto o "conteúdo existencial" não. O julgado já foi comentado nessa coluna (clique aqui) e teve grande repercussão. Há alguns meses atrás, a novela teve mais um capítulo. Os pais da menina pleitearam uma multa de 10 mil euros por descumprimento da sentença que ordenava a liberação do perfil da garota, porque o Facebook não colocou de forma adequada o conteúdo digital à disposição dos pais, herdeiros da falecida. Segundo o advogado da família, Christian Pfaff, o Facebook não estava cumprindo a determinação judicial de conceder acesso pleno e irrestrito à conta da usuária, pois os pais ainda não conseguiam acessar a conta. Eles receberam, ao invés disso, um USB-Stick com um documento em PDF com 14 mil páginas de fotos, mensagens, conversas e postagens feitas pela garota em vida. Para o Facebook, a decisão fora cumprida, pois todas as informações da conta da adolescente foram repassadas à família. Segundo a plataforma, seria tecnicamente impossível liberar a conta em "modo passivo", permitindo o acesso da pessoa ao conteúdo, mas impedindo a comunicação e no "modo ativo" o próprio perfil já se encarregava de enviar automaticamente mensagens e lembranças aos contatos. Ao que parece, depois das astreintes o acesso ao perfil foi liberado para os pais da garota de Berlim. Mas o caso permanece exceção. O Facebook até mudou, em 2019, as regras aplicáveis em caso de falecimento do usuário, mas ainda é necessária a indicação de contato herdeiro para acessar a conta, cláusula declarada abusiva e nula pelo Bundesgerichtshof. Isso, porque, sem indicação do contato herdeiro em vida, todo o conteúdo - saliente-se patrimonial e existencial - fica completamente em poder do Facebook e não dos herdeiros. Ninguém - exceto o próprio Facebook - tem acesso às mensagens privadas do de cujus. Segundo informações do Facebook na Europa, se não houver a indicação do contato herdeiro, os pais de menores falecidos podem solicitar diretamente sua inclusão como contato herdeiro a fim de decidir o destino da conta, inclusive apagá-la do mundo digital. Ou seja, aparentemente a conta das pessoas maiores de idade permanecerão, em princípio, bloqueada aos herdeiros, se um deles não for indicado em vida como contato herdeiro. No site do Facebook no Brasil, contudo, essas informações não estão disponíveis. No site consta apenas a genérica indicação de que o "contato herdeiro é a pessoa que você escolhe para cuidar de sua conta se ela for transformada em memorial. Se você adicionar um contato herdeiro à sua conta, essa pessoa poderá cuidar da sua conta quando ela for transformada em memorial". Detalhe: apenas maiores de 18 anos podem selecionar um contato herdeiro. Não há informações sobre o que acontecerá com a conta dos menores de 18 anos. Diz ainda que o contato herdeiro poderá: Escrever uma publicação fixada no seu perfil (por exemplo, para compartilhar uma mensagem final em seu nome ou fornecer informações sobre o funeral). Ver publicações, mesmo que você tenha configurado sua privacidade como "Somente Eu". Decidir quem pode ver e publicar homenagens, se a conta transformada em memorial tiver uma área para isso. Excluir publicações de homenagens. Alterar quem pode ver as publicações em que você está marcado. Remover suas marcações publicadas por outra pessoa. Responder a novas solicitações de amizade (por exemplo, amigos de longa data ou membros da família que ainda não estavam no Facebook). Atualizar a foto do perfil e a foto da capa. Solicitar a remoção da conta. Caso tenha ativado a análise da linha do tempo, o contato herdeiro poderá desativar a exigência de análise de publicações e de marcações antes que elas apareçam na seção de homenagens. Baixar uma cópia do que você compartilhou no Facebook. O Facebook faz a ressalva de que "outros recursos poderão ser adicionados para os contatos herdeiros no futuro". Mas, de forma taxativa, a plataforma digital avisa que o contato herdeiro não poderá: (i) entrar em sua conta; (ii) ler suas mensagens e (iii) remover amigos ou fazer novas solicitações de amizade. Ou seja, talvez seja necessário um pronunciamento do Superior Tribunal de Justiça ou a aprovação dos projetos de lei em trâmite no Congresso, garantindo a acessibilidade dos herdeiros ao conteúdo digital do falecido, para que o Facebook respeite a regra da transmissão universal entre nós.
Segundo o Tribunal de Koblenz, cidade situada na região da Renânia, no noroeste da Alemanha, instalar uma câmera direcionada à casa do vizinho atenta contra os direitos de personalidade, ainda quando a câmera seja de brinquedo, pois surge para o vizinho a pressão de estar sendo permanentemente vigiado. O caso O proprietário instalou duas câmeras em seu imóvel: uma fictícia, no pé de avelã (aveleira) localizado bem rente à linha divisória com o terreno lindeiro e a outra, de verdade, no alto da janela. As duas estavam direcionadas ao imóvel do vizinho. O vizinho reclamou, pediu para ele redirecionar as câmeras para o seu próprio terreno, mas nada adiantou. A briga de vizinhos, então, foi parar no Judiciário. O processo O vizinho entrou com uma ação solicitando que os dois aparelhos fossem retirados ou reposicionados de forma a não filmar seu imóvel e nem a área pública comum a ambos, pois não queria que ele e sua família fossem filmados por lente alheia. O proprietário dos equipamentos alegou que o sistema visava inibir a ação de eventuais criminosos, que tentassem invadir sua residência, de forma que as câmeras haviam sido instaladas exclusivamente por questões de segurança. O juízo de primeira instância, da Comarca de Betzdorf, deu ganho de causa ao vizinho, mesmo considerando que a câmera mais próxima, instalada na aveleira, era de brinquedo e incapaz de captar qualquer imagem. A decisão do LG Koblenz O Tribunal de Relação de Koblenz - o Landgericht (LG) - confirmou a sentença de primeiro grau, prolatada em abril último. Trata-se do processo LG Koblenz AZ 13 S 17/19, julgado em 5/9/2019. Segundo o Tribunal, a jurisprudência alemã é uníssona no sentido de que a permanente vigilância através de câmeras fere os direitos de personalidade das pessoas atingidas, mais especificamente seu direito à autodeterminação informacional. Esse direito à autodeterminação informacional engloba o poder do indivíduo de, em princípio, decidir sozinho quando e em quais limites situações de sua vida privada podem ser expostas. Em casos de instalação de câmeras em imóveis particulares, o responsável precisa ter cuidado para que o aparelho não capte imagens nem da área particular do imóvel alheio, nem de áreas públicas limítrofes, utilizadas por ambos. Ao violar esse dever de cuidado e invadir a esfera privada alheia, o ofensor viola os §§ 1004 e 832 I do BGB, fazendo surgir para o lesado uma pretensão de afastar a conduta lesiva, aqui traduzida na pretensão de retirar os equipamentos dos locais onde possam captar imagens e sons do imóvel lindeiro. Exceções são admitidas apenas em casos específicos quando, da ponderação dos direitos de personalidade em colisão, resultar um interesse superior do usuário dos equipamentos, que seja digno de tutela. Isso seria o caso, por exemplo, disse o Tribunal, quando a própria segurança da pessoa esteja concreta e consideravelmente ameaçada, o que, no entanto, não restou demonstrado no caso em análise. O simples objetivo de afastar e/ou captar invasores não seria suficiente, na visão dos juízes de Koblenz, para legitimar a instalação de câmeras voltadas para o imóvel alheio. Isso vale ainda quando se trate de câmeras fictícias, que não funcionem, pois as mesmas desencadeiam nos vizinhos a "pressão de estar sendo diuturnamente vigiados" e isso, por sua vez, também viola os direitos de personalidade, disse o LG. O vizinho nunca vai estar seguro de que a câmera fictícia não foi posteriormente trocada por uma verdadeira, que capte indevidamente imagens de sua vida privada. No caso concreto, o Landgericht considerou que a câmera instalada na aveleira sequer produziria um efeito inibitório nos criminosos, porque não estava totalmente a vista. E, considerando o tenso relacionamento existente há anos entre os vizinhos, os juízes entenderam que a instalação das câmeras tinha mais um cunho provocativo do que uma efetiva preocupação com a segurança. Por isso, o LG Koblenz condenou o proprietário a retirar as câmeras do ponto em que se encontravam. No Brasil, a situação não é diferente, pelo menos quando o equipamento capta imagens e sons do imóvel alheio. Discutível é se seria vedado por filmar áreas comuns. E o fundamento é o mesmo: invasão de privacidade. Interessante, contudo, é notar que enquanto um vizinho brasileiro cumularia a ação de obrigação de fazer (objetivando a retirada da aparelhagem) com pedido de dano moral, o colega alemão limitou-se a pleitear apenas a abstenção. Será que estamos abusando do instituto do dano moral?
Em caso paradigmático julgado em 2015, a Corte infraconstitucional alemã - Bundesgerichtshof (BGH) - reafirmou os pressupostos para a concessão do dano processual e acentuou a necessidade de se examinar a culpa concorrente do requerido, afetado por medida de urgência posteriormente julgada improcedente. Para entender o caso Trata-se do chamado "caso Piadina" (BGH I ZR 250/12, j. 30.07.2015), no qual a Central de Defesa do Consumidor de Südtirol obteve medida liminar ordenando a retirada de circulação dos pães Piadina. Segundo a Central, os pães eram fabricados pela empresa Panificio Italiano Veritas GmbH, sediada em Munique (Alemanha), mas na embalagem do produto constava a indicação de que se tratava de uma especialidade italiana, induzindo o consumidor ao erro de achar que os mesmos eram fabricados na Itália. A liminar foi deferida pelo juízo da Comarca de Frankfurt a.M. e a empresa retirou o produto de circulação. No entanto, em seguida, a empresa comprovou que os pães eram produzidos por outra empresa na Itália, controlada e fiscalizada pela Panificio Italiano Veritas GmbH, mas embalados e etiquetados na Alemanha. A Central de Defesa do Consumidor moveu, então, ação indenizatória requerendo o ressarcimento dos custos decorrentes da propositura da medida de urgência, razão pela qual a empresa contra-atacou com reconvenção pedindo indenização do prejuízo de cerca de 80 mil euros pela retirada dos produtos do mercado durante o período de eficácia da liminar. O processo A autora perdeu em todas as instâncias ao argumento de que a tutela de urgência foi desde o início injustificada, dando ensejo ao surgimento da pretensão ressarcitória da ré, nos termos do § 945 do ZPO (Zivilprocessordnung), o código de processo civil alemão, que regula o dano processual decorrente da execução de tutela de urgência. Segundo o dispositivo, essa modalidade de responsabilidade processual ocorre basicamente em três situações, formuladas na típica abstração generalizante alemã: (i) quando a medida cautelar mostrar-se desde o início objetivamente injustificada; (ii) quando o requerente deixar de mover a ação principal ou de promover a citação do requerido e (iii) quando executar tardiamente a medida de urgência1. A decisão do BGH A Central, então, interpôs a Revision perante o BGH, que confirmou o dever de indenizar os prejuízos sofridos pela fabricante de pães ao argumento de que (i) a tutela de urgência fora desde o início objetivamente injustificada e (ii) não tem lugar a exclusão ou redução da pretensão ressarcitória em decorrência de culpa concorrente (§ 252 BGB) do lesado. Segundo a Corte, nas instâncias inferiores ficou demonstrado que os pães eram realmente produzidos na Itália, inclusive com receita da região e que a embalagem não induzia o consumidor a erro, pois também é produtor aquele deixa outras empresas controladas e supervisionadas fazer o produto. Não por outra razão a lei alemã exige que todo alimento, para ser comercializado, precisa ter na embalagem a indicação do nome e endereço do fabricante, embalador ou vendedor. O Tribunal assinalou que a indução a erro do consumidor em relação à origem do produto é, em regra, relevante, principalmente sob o ponto de vista concorrencial, pois essa indicação diz respeito a característica essencial do produto que influencia diretamente a decisão de compra do consumidor, na medida em que ele a associa com a qualidade e o preço do produto. No caso concreto, conduto, o BGH entendeu que a Central não demonstrou a influência dessa informação na decisão do consumidor. Ao contrário: a Corte entendeu que o consumidor mediano e sensato que lê a indicação na embalagem de que os pães são produzidos na Alemanha, fica, em regra, decepcionado, de forma que a informação constante na embalagem não fortalece, mas reduz a decisão de adquirir o produto. A configuração do dano processual No que aqui mais interessa, o Tribunal explicou que a parte beneficiada com a efetivação de tutela de urgência injustificada (ungerechtfertigte einstweilige Verfügung) é obrigada a ressarcir os danos que a efetivação da medida causou à contraparte. Essa pretensão ressarcitória abrange, em princípio, os danos diretos e indiretos que se encontram em causalidade causal e adequada com a execução da medida. São os chamados danos da execução ou Vollziehungsschäden. Esse dano requer a efetividade da medida liminar, não bastando sua concessão. Trata-se de uma responsabilidade objetiva, independente de culpa do beneficiário da medida. Mas a doutrina discute se se trata de uma responsabilidade pelo risco ou se seria uma responsabilidade aquiliana por ato ilícito latu sensu, que também prescinde da culpa. Há, entretanto, consenso de que a norma do § 945 do ZPO baseia-se na ideia de que aquele que executa uma medida ainda não definitiva o faz por sua própria conta e risco. Interessante é a afirmação do BGH de que não surge o dano processual do § 945 do ZPO quando a parte afetada pela medida liminar estiver obrigada por força de lei a não realizar a conduta vetada na medida. Mais interessante ainda foi a análise que a Corte fez sobre a presença (ou não) da culpa do requerido, afetado com a efetivação da tutela de urgência. Segundo o Tribunal, o fato exclusivo da vítima e a culpa concorrente podem atuar como fator de exclusão ou redução da pretensão ressarcitória quando (i) a conduta culposa do requerido deu causa ao pedido e concessão da medida cautelar e/ou (ii) o requerido, após a concessão da liminar, inobservou o ônus de afastar ou minimizar o próprio dano. Segundo o BGH, "uma culpa concorrente do requerente (§ 254 BGB) deve ser considera no âmbito da pretensão ressarcitória do § 945 ZPO.... Uma redução ou exclusão da pretensão ressarcitória do dano tem lugar quando o comportamento culposo do requerido deu motivo ao requerente para o requerimento e concessão da tutela de urgência... ou quando o requerido, depois da notificação da medida de urgência, violou seu ônus de afastar ou minimizar o dano..."2. E aqui cabe mencionar, como precisamente pontua a doutrina alemã, que afronta a mais elementar ideia da boa-fé objetiva desconsiderar a culpa concorrente na produção do evento lesivo, pois constitui comportamento contraditório do lesado contribuir negligentemente para o evento produtor do dano e, a posteriori, pretender sua reparação integral. Por isso, o lesado não pode ter a pretensão de ser ressarcido integralmente do dano quando os fatores que contribuíram decisivamente para a produção do evento lesivo emanaram de sua esfera de responsabilidade e de risco, que ele poderia ter controlado e evitado se tivesse agido com a prudência e diligência esperadas dos partícipes do comércio jurídico. No caso em tela, a Corte de Karlsruhe, no entanto, afastou qualquer culpa do fabricante de pães e confirmou a improcedência da ação movida pela Central e a procedência da reconvenção movida pela empresa, que teve reconhecida sua pretensão ressarcitória em decorrência da efetivação da tutela de urgência. O estado da arte no Brasil No Brasil, o dano processual em decorrência da efetivação de medida de urgência injustificada vem disciplinado no art. 302 do CPC/2015 (antigo art. 811 CPC/1973). Segundo a norma, independentemente da reparação por dano processual, responde a parte pelo prejuízo que a efetivação da tutela de urgência causar à parte adversa quando: (i) a sentença lhe for desfavorável; (ii) não houver a citação em 5 dias do réu em tutela em caráter antecedente, obtida liminarmente; (iii) cessar a eficácia da medida ou (iv) o juiz acolher a alegação de decadência ou prescrição da pretensão do autor. O STJ vem entendendo, em uma série de precedentes, que basta o dano e a configuração de qualquer das hipóteses do art. 302 do CPC/2015 para que o dever de indenizar se imponha. A responsabilidade é objetiva e, segundo o Tribunal, não é necessário que o requerido, afetado pelo cumprimento da tutela, requeira expressamente a condenação, nem mesmo que o juiz sobre ela se manifeste na sentença, podendo o prejudicado requerê-la na fase de cumprimento da sentença. Problemático parece ser, contudo, o fato da Corte não examinar no caso concreto a existência (ou não) de todos os pressupostos indispensáveis à caracterização da responsabilidade objetiva, limitando-se a dizer que a obrigação de indenizar é decorrência ex lege da sentença de improcedência ou de extinção do feito com ou sem resolução de mérito. Ao dizer que basta o dano, ao lado das hipóteses do art. 302 do CPC/2015, o STJ dá a impressão de que a responsabilidade decorrente da execução de tutela de urgência é uma responsabilidade objetiva na modalidade de risco integral, que impõe o dever de indenizar simplesmente porque há dano. Entretanto, não custa lembrar que, como o próprio STJ reconhece3, essa é a modalidade mais extremada de responsabilidade objetiva, pois dispensa não apenas a culpa, mas também o nexo causal e as excludentes, se fazendo presente ainda quando haja culpa exclusiva da vítima, fato de terceiro ou caso fortuito e força maior. Por isso, só é prevista em situações excepcionais, como em casos de danos ambientais e nucleares. O próprio STJ afirmou recentemente no julgamento do REsp. 1.770.124/SP, de relatoria do e. Min. Marco Aurélio Bellizze, analisado pela 3a. Turma em 21/5/2019, que o CPC/2015, seguindo a mesma linha do CPC/1973, adotou a teoria do risco-proveito, pois é risco do requerente da tutela de urgência executar uma medida sabidamente não definitiva. Ora, se a responsabilidade do art. 302 do CPC/2015 é uma hipótese de responsabilidade fundada no risco, então a consequência lógica é que essa responsabilidade deva se submeter ao regime geral da responsabilidade objetiva, que pressupõe a demonstração do ato lesivo, imputabilidade (a título de risco), dano e nexo causal entre ação lesiva e dano. E mais: cabe análise das excludentes de responsabilidade, principalmente do fato exclusivo da vítima, mas também da culpa concorrente, no momento da quantificação do dano. Isso se justifica, porque a responsabilidade objetiva prescinde da análise da culpabilidade do agente lesivo, mas a culpa do lesado precisa ser analisada como fator excludente ou redutor do dever de indenizar, como acertadamente fazem os alemães. A ideia - bastante difundida por aqui - de que a responsabilidade do art. 302 do CPC/2015 teria natureza processual e não de direito material parece merecer aprofundada reflexão, pois muitos são os autores que afirmam tratar-se no caso de uma responsabilidade aquiliana latu sensu, na modalidade objetiva4. A análise da contribuição do lesado para o evento lesivo talvez evitasse situações injustas nas quais a parte afetada pela medida dá causa, através de comportamento antijurídico, a que o requerente pleiteie a medida. Caso brasileiro Um bom exemplo fornece o REsp. 1.770.124/SP, onde uma segurada entrou com ação de fazer contra o plano de saúde com pedido de tutela antecipada para a realização de cirurgia bariátrica, injustamente negada pelo plano. Depois do cumprimento da tutela provisória pelo plano, foi designada audiência de conciliação, oportunidade em que a autora (mal assistida por defensor público!) desistiu da ação diante da suposta perda do objeto, fazendo com que o juiz julgasse extinto o processo sem resolução do mérito. O plano, então, após o trânsito em julgado da ação, requereu o cumprimento da sentença buscando o pagamento do valor de quase R$ 34 mil reais gastos com a realização da cirurgia. Em grau de recurso, o STJ reformou as decisões das instâncias inferiores, reconhecendo o direito do plano de ser ressarcido com base no dano sofrido com o cumprimento da cautelar. Jogou a "culpa" na Defensoria Pública, sugerindo que a paciente movesse ação de responsabilidade civil contra o Estado, condenando-a, dessa forma, a percorrer mais uma via crucis judicial para obter o reconhecimento de seu direito. Mas, no frigir dos ovos, a paciente acabou pagando pela cirurgia. Se tivesse analisado os requisitos da responsabilidade objetiva geral, teria concluído que fora a conduta antijurídica do requerido, de descumprimento contratual, o fato exclusivo que motivara o pedido de tutela de urgência, razão pela qual não poderia se beneficiar do instituto previsto no art. 302 do CPC/2015. A rigor, em situações como essas tem-se o que a doutrina alemã denomina de "abuso de direito institucional", que se configura quando a aplicação de uma norma ou instituto jurídico conduz, no caso concreto, a um resultado inconciliável com o mandamento da boa-fé objetiva, fazendo-se necessária a correção desse resultado, como expliquei em outra ocasião5. O princípio da boa-fé objetiva restringe não apenas direitos subjetivos, mas também institutos e normas jurídicas. Nesse caso, tem-se que as consequências jurídicas resultantes de um instituto ou de uma norma jurídica, em determinadas circunstâncias, precisam recuar quando elas conduzem a um resultado simplesmente insuportável face à boa-fé6. Aqui vale a máxima da boa-fé objetiva: equity must come with clean hands (a justiça precisa vir de mãos limpas). __________ 1 Nesse sentido: HARTMANN, Peter. In: Zivilprozessordnung. Adolf Baumach, Wolfgang Lauterbach, Jan Albers e Peter Hartmann. 60 ed. München: Beck, 2002, § 945, Rn. 5, 6 e 7, p. 2419-2420. O § 945 diz: "Se a ordem de um arresto ou de uma medida de urgência se revelar desde o início como injustificada ou se a medida decretada for revogada por força dos § 926, inc. 2 ou § 942, inc. 3, a parte que efetivou a medida é obrigada a indenizar o dano surgido para a contraparte em decorrência da execução da medida ordenada ou de garantia que ela tenha prestado para afastar a execução ou para efetivar a revogação da medida.". No original: "Erweist sich die Anordnung eines Arrestes oder einer einstwilligen Verfügung als von Anfang an ungerechtfertift oder wird die angeordnete Massregel auf Grund des § 926 Abs. 2 oder des § 942 Abs. 3 aufgehoben, so ist die Partei, welche die Anordnung erwirkt hat, verpflichtet, dem Gegner den Schaden zu ersetzen, der ihm aus der Vollziehung der angeordneten Massregel oder dadurch entsteht, dass er Sicherheit leistet, um die Vollziehung abzuwenden oder die Aufhebung der Massregel zu erwirken". 2 Tradução livre: "Ein mitwirkendes Verschulden des Antragsgegners (§ 254 BGB) ist im Rahmen des Schadensersatzanspruchs aus § 945 ZPO zu berücksichtigen... Eine Minderung oder ein Ausschluss des Schadensersatzanspruchs kommt in Betracht, wenn ein schuldhaftes Verhalten des Antragsgegners dem Antragsteller Anlass zur Beantragung und Zustellung der einstweiligen Verfügung gegeben hat... oder wenn der Antragsgegner nach Zustellung der einstweiligen Verfügung gegen seine Obliegenheit zur Abwendung oder Minderung des Schadens verstoßen hat..." 3 STJ, REsp. 1.373.788/SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 3a. Turma, j. 6/5/2014, DJe 20.05.2015, no qual se afirmou que: "A teoria do risco integral constitui uma modalidade extremada da teoria do risco em que o nexo causal é fortalecido de modo a não ser rompido pelo implemento das causas que normalmente o abalariam (v.g. culpa da vítima; fato de terceiro, força maior). Essa modalidade é excepcional, sendo fundamento para hipóteses legais em que o risco ensejado pela atividade econômica também é extremado, como ocorre com o dano nuclear (art. 21, XXIII, "c", da CF e lei 6.453/1977). O mesmo ocorre com o dano ambiental (art. 225, caput e § 3º, da CF e art. 14, § 1º, da Lei 6.938/1981), em face da crescente preocupação com o meio ambiente. Nesse mesmo sentido, extrai-se da doutrina que, na responsabilidade civil pelo dano ambiental, não são aceitas as excludentes de fato de terceiro, de culpa da vítima, de caso fortuito ou de força maior". Na doutrina, confira-se, dentre outros: CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2010, p. 144 s, 154 s. 4 Dentre outros: VOLLKOMMER, Max. In: Zöllner Zivilprozessordnung. Reinhold Geimer, Reinhard Greger, Peter Gummer, Kurt Herget, Peter Philippi, Kurt Stöber e Max Vollkommer. 22. ed. Köln: Otto Schmidt, 2001, § 945 Rn. 13, p. 2335 e HARTMANN, Peter. In: Zivilprozessordnung. Adolf Baumbach, Wolfgang Lauterbach, Jan Albers e Peter Hartmann. 60. ed. München: Beck, 2002, § 945 Rn. 1, p. 2419. 5 Sobre o tema confira-se: NUNES FRITZ, Karina. Boa-fé objetiva na fase pré-contratual - a responsabilidade pré-contratual por ruptura das negociações. Curitiba: Juruá, 2008, p. 164-166. 6 NUNES FRITZ, Karina. Op. cit., p. 164 s.
O Bundesgerichtshof proferiu recentemente importante decisão acerca da responsabilidade médica em casos de doação de órgãos. A mais alta Corte infraconstitucional da Alemanha apreciou dois processos que envolviam pedido de indenização por danos materiais e morais de doadores de rim que alegaram não terem sido adequadamente esclarecidos sobre os riscos de dano à sua própria saúde, decorrente da retirada do órgão. A legislação alemã sobre doação de órgãos A Alemanha possui, desde 1997, uma lei especial que regulamenta a doação, retirada e transplantação de órgãos e tecidos - a chamada Transplantationsgesetz (TPG) ou Lei do Transplante. Promulgada em 5/11/1997, a lei sofreu sua última alteração recentemente, em 22/3/2019. A Transplantationsgesetz regula em detalhes o processo de doação de órgãos e tecidos por pessoas vivas e falecidas, estabelecendo um rígido procedimento para a obtenção do consentimento livre e informado do doador, no qual são impostos uma série de deveres aos médicos e instituições envolvidas no procedimento e instituídas sanções penais para determinadas condutas. Segundo o § 8, inc. 1 TPG, a retirada de rim, parte do fígado ou outro órgão não regenerável só pode ser feita para fins de transplantação em pessoas próximas ao doador, como familiares até segundo grau, cônjuge ou companheiro, noivos ou outra pessoa com clara vinculação pessoal. O § 8, inc. 2 TPG impõe uma série de rígidos deveres aos médicos, dentre os quais o dever de informar detalhadamente, de forma clara e compreensível, o doador sobre o tipo de intervenção a ser realizada, sua finalidade e as consequências, atuais e futuras, ainda que indiretas, da planejada retirada do órgão para a saúde do próprio doador. O médico tem que esclarecer o doador ainda sobre os riscos e consequências do transplante para o receptor, as chances de êxito esperadas, bem como sobre quaisquer circunstâncias que reconhecidamente possam ter importância para o mesmo. Ou seja: tratam-se de rígidos e complexos deveres de informação e, mais que isso, esclarecimento. Todas as conversas e consultas realizadas entre o médico e o doador e/ou receptor devem ser detalhadamente documentadas e acompanhadas por um médico neutro, que não participará do processo de retirada ou implantação do órgão ou tecido, nos termos do § 5, inc. 2 TPG. Este, ao final, precisa assinar toda a documentação. Fim da norma evitar que apenas médicos interessados no transplante participem do processo, evitando-se conflitos de interesse, já que o médico interessado na realização da doação poderia forçar o consentimento do doador. O primeiro caso: doação de rim da filha para o pai No primeiro processo, proveniente da Comarca de Essen, a autora doou, em 2009, um rim ao pai, que sofria de grave deficiência renal, mas este veio a falecer em 2014 em decorrência da transplantação. Alegando estar sofrendo da síndrome de fadiga crônica (chronisches Fatigue-Syndrom) e insuficiência renal desde o transplante, a autora processou os médicos e a clínica universitária, onde o procedimento fora realizado. Ela pediu indenização por danos materiais e morais, bem como o reconhecimento do dever de indenizar danos futuros que possam ainda lhe acometer em decorrência do transplante. A autora alegou não ter sido suficientemente informada acerca dos riscos à sua própria saúde em decorrência da retirada do rim, nem acerca do alto risco de fracasso do transplante no pai em decorrência da doença base dele. Isso configuraria, em sua visão, clara violação aos deveres de informação e esclarecimento previstos no § 8, inc. 2, alíneas 3 e 5 da Lei de Transplante. Desse modo, o consentimento emitido apresentava-se apenas formalmente em consonância com o § 8, inc. 2 da Lei de Transplante, mas materialmente desinformado. Além disso, houve a inobservância do procedimento imposto na Lei de Transplante, que exige, dentre outras coisas, a participação e assinatura de médico neutro no procedimento pré-cirúrgico. A ação foi julgada improcedente em primeira instância, em sentença de 2.11.2015, tendo sido confirmada pelo Tribunal de Justiça de Hamm, em acórdão de 7.9.2016. Trata-se do processo OLG Hamm I-3 U 6/16, transformado no processo BGH IV ZR 495/16. Segundo o OLG Hamm, embora tenha havido falha procedimental, pois não houve a presença de médico neutro (o médico indicado tinha ligação com a clínica universitária) durante as consultas pré-cirúrgicas e não tenha sido feito um esclarecimento adequado acerca dos riscos para a doadora e receptor, isso não conduz automaticamente à ineficácia do consentimento da doadora. Houve, no caso, para o Tribunal a quo um "consentimento hipotético" (hypothetische Einwilligung) da doadora, pois ela não demonstrou de forma plausível que teria desistido da doação se tivesse sido adequadamente informada. O segundo caso: marido fez doação de rim à esposa No segundo processo analisado, proveniente do mesmo juízo (BGH VI ZR 318/17), o marido fez a doação de rim à esposa, que sofria de insuficiência renal e fazia semanalmente hemodiálise. A alegação foi praticamente igual à do caso anterior, ou seja, de ter havido esclarecimento insuficiente acerca dos riscos do transplante e que, desde a retirada do órgão, o autor passara a sofrer da fadiga crônica, que o impedia de levar uma vida normal. Ele perdeu em primeira e segunda instância pelos mesmos fundamentos: embora tenha havido falha no procedimento pré-cirúrgico, poder-se-ia presumir o consentimento hipotético, vez que ele teria provavelmente realizado a doação do órgão mesmo tendo o médico cumprido seu dever de informar. A decisão do BGH O 6o. Senado Civil do Bundesgerichtshof, competente para as questões de direito médico, deu, contudo, provimento a ambos os recursos (Revision) interpostos pelos doadores e ordenou a devolução dos autos ao Tribunal de origem para a fixação do valor da indenização. Segundo a Corte, o pleito dos doadores não prospera pela simples falha procedimental constatada na fase pré-cirúrgica, ou seja, em decorrência da falta de médico neutro durante as consultas e das assinaturas dos participantes obrigatórios nos protocolos das consultas (§ 8, inc. 1 c/c § 5, inc. 2 TPG). Embora visem evitar conflitos de interesse entre médico e doador, protegendo esse último contra um consentimento precipitado e garantido a autonomia de sua decisão, essas regras têm caráter eminentemente formal e procedimental, e acompanham, por assim dizer, o dever do médico na preparação do consentimento informado, isto é, na "autodeterminação esclarecida" (informationelle Selbstbestimmung) do doador. Mas sua inobservância não gera, per se, a invalidade e antijuridicidade (contrariedade ao direito) do consentimento do doador para a retirada do órgão. Ela pode, entretanto, ser um forte indício de que o paciente não foi devidamente informado e esclarecido pelo médico, o que deve ser avaliado no momento da valoração das provas. A pretensão dos doadores retira, a rigor, sua legitimidade da falha informativa, disse o BGH. Apesar de doador e receptor terem assinado um documento onde declaravam ter sidos suficientemente esclarecidos e não terem mais dúvidas sobre todo o procedimento, o documento era apenas um check list sobre determinados esclarecimentos e exames realizados. Faltava quaisquer referências aos riscos concretos e a circunstâncias especiais dos envolvidos, acerca dos quais os médicos envolvidos teriam efetivamente esclarecido os doadores. Dessa forma, o BGH conclui que do conteúdo do documento não emanava o esclarecimento necessário àquele caso concreto, apresentando-se apenas formalmente em consonância com os requisitos exigidos pelo § 8, inc. 2 da Lei de Transplante. Segundo comprovado na instância probatória, a doadora já se encontrava no período pré-operatório com os próprios valores da função renal no limite, não tendo sido corretamente esclarecida acerca dos possíveis e sérios efeitos futuros da retirada do órgão para sua saúde. Da mesma forma, não fora adequadamente esclarecida acerca do alto risco de fracasso do transplante em seu pai, em decorrência da doença preexistente. Dessa forma, conclui o BGH, seu consentimento ao procedimento restou maculado pela invalidade e a intervenção em seu corpo, antijurídica. O argumento dos réus, sufragado nas instâncias inferiores, de que teria havido em ambos os casos um "consentimento hipotético" dos doadores, não encontra aplicação aos casos de transplante de órgãos, disse o BGH. É bem verdade que doutrina e jurisprudência alemãs admitem a figura do consentimento hipotético na seara do direito médico, de forma que, podendo-se presumir que o paciente teria dado seu consentimento de qualquer forma, ainda quando alertado e esclarecido dos riscos envolvidos, afastada resta a responsabilidade do médico. Mas a Corte entendeu que a figura não encontra guarida nos casos de transplante, para os quais o legislador teve a preocupação de criar um regime legal especial, de onde não se consegue deduzir a figura do consentimento hipotético. Assim, não se pode simplesmente querer transportar a figura, desenvolvida no direito da responsabilidade médica, para os casos regidos na Lei de Transplante, acentuou o BGH. Segundo o Tribunal, a alegação de consentimento hipotético não se deixa justificar na ideia do chamado "legítimo comportamento alternativo" - ou "comportamento alternativo conforme ao direito" (rechtsmäßiges Alternativverhalten) - do direito dos danos, porque a admissão do consentimento hipotético contraria claramente o fim de proteção que se busca alcançar com o elevado nível de esclarecimento exigido nas doações em vida de órgãos, nos termos do § 8, inc. 2, frases 1 e 2 da Transplantationsgesetz. As rígidas diretrizes de informação e esclarecimento do doador, formuladas conscientemente pelo legislador e sancionadas penalmente no § 19, inc. 1, n. 1 da TPG, têm o claro objetivo de proteger o doador de órgão, evitando que ele cause grave dano a si mesmo. Elas objetivam, em outras palavras, a "proteção do doador contra si próprio" (Schutz des Spenders vor sich selbst), como formulou precisamente a Corte de Karlsruhe. E isso tem importância principalmente nas hipóteses de doação de órgãos não regeneráveis. Como essa só é admitida em casos de pessoas especialmente próximas (§ 8, inc. 1, frase 2 da TPG), o doador se encontra em uma situação de conflito qualificada, pois, na maioria das vezes, sente-se moralmente obrigado a fazer a doação em razão da proximidade com o receptor. Por isso, qualquer informação sobre os riscos do procedimento pode adquirir extrema relevância para o doador. Outra não é a razão pela qual a livre vontade do doador deve ser verificada previamente por uma comissão, nos termos do § 8, inc. 3 TPG. Se fosse possível afastar a responsabilidade com a simples alegação de que o doador teria doado mesmo tendo sido esclarecido dos graves riscos, como base na teoria do legítimo comportamento alternativo ou causalidade hipotética, toda retirada antijurídica de órgãos acabaria sem sanção e os rígidos requisitos exigidos para o esclarecimento do doador restariam esvaziados, o que ainda abalaria a confiança necessária dos potenciais doadores na medicina de transplante. Dessa forma, a observância dos procedimentos e requisitos de esclarecimento, detalhados na Lei de Transplante, são pressupostos irrenunciáveis quando se quer fomentar, de forma permanente, a disposição das pessoas de doar órgãos em benefício da vida de outrem. A importância da decisão A decisão do BGB fortalece consideravelmente os direitos dos doadores vivos de órgãos ao agravar o dever de indenizar ao médico que não esclarece adequadamente o doador sobre os riscos e consequências da retirada do órgão para sua saúde e para a saúde do receptor, em especial sobre a chance de êxito do procedimento, considerando a doença do paciente. Ela também chama atenção para o dever do médico de documentar detalhadamente as consultas, bem como à participação de médico neutro no procedimento, embora, no caso concreto, isso possa ser relativizado. Ao afastar o critério do comportamento alternativo legítimo (causalidade hipotética), amplamente utilizado em casos de responsabilidade civil contratual e extracontratual, o BGH reforçou a responsabilidade médica em casos de transplantes de órgãos não regeneráveis feitos por pessoas vivas, as quais se encontram em uma situação de conflito qualificada, pois geralmente se sentem obrigadas a fazer a doação, devido aos laços de afetos com o receptor. O Brasil tem desde 1997 uma Lei de Transplante (lei 9.434/1997). O Capítulo 3 da lei regula as hipóteses de doação de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano vivo, estabelecendo no art. 9º que a doação só pode ser feita para fins terapêuticos ou para transplante em cônjuge (e companheiro, agora) ou parentes consanguíneos até quarto grau. A doação para qualquer outra pessoa depende de autorização judicial. Nossa lei, contudo, não detalha o procedimento pré-cirúrgico e os importantíssimos deveres de informação, esclarecimento e documentação do médico e do hospital, como faz a lei alemã. Nada obstante, eventuais lacunas relacionadas aos deveres médicos podem - e devem - ser preenchidas com base no princípio da boa-fé objetiva, que vem positivada no art. 422 do Código Civil exatamente em sua função criadora de deveres ético-jurídicos de conduta, os quais devem ser observados antes, durante e depois do procedimento. Para tanto, crucial se apresenta um lançar de olhos na experiência estrangeira, que tem sido fonte de bons exemplos da aplicação da cláusula geral da boa-fé objetiva e de seus deveres de consideração (Rücksichtspflichten), nova terminologia pela qual a doutrina alemã contemporânea vem denominando os deveres laterais da boa-fé.
Inicia-se hoje, na coluna German Report, a série "Decisões Históricas", cujo objetivo é apresentar ao público brasileiro alguns julgados alemães que fizeram história, seja por dar início ou por consagrar institutos e teorias que tiveram impacto no direito dos demais países pertencentes à família romano-germânica. E a coluna inicia com um dos mais importantes julgados do Reichsgericht (RG), o Tribunal Imperial alemão, que funcionou de 1879 a 1945 como a Corte suprema infraconstitucional do Império alemão e foi o embrião do atual Bundesgerichtshof (BGH). Essa decisão foi o pontapé inicial para o desenvolvimento de um processo que culminaria com a modernização do Direito das Obrigações, positivada na reforma do BGB em 2001. O caso Trata-se do chamado caso dos tapetes de linóleo, conhecido mundialmente por ser o primeiro julgado impactante sobre a culpa in contrahendo, isto é, culpa durante a formação dos contratos, instituto mais conhecido entre nós como responsabilidade pré-contratual1. O caso ocorreu em 1911. Uma mulher entrou, com uma criança, em uma loja a fim de olhar rolos de tapetes de linóleo. Durante a exposição do produto pelo vendedor, a mãe e a criança foram gravemente feridas em razão da queda de rolos de tapetes de linóleo, negligentemente arrumados na prateleira pelo atendente. A lide, a rigor, poderia ter sido solucionada com recurso à responsabilidade extracontratual, vez que o § 823 I BGB considera a lesão culposa ao corpo, vida, liberdade, propriedade e "outros direitos" como ato ilícito (unerlaubte Handlung), impondo o dever de indenizar. Mas o problema era que o dono do estabelecimento comercial, em 1911, poderia eximir-se da responsabilidade se demonstrasse ter agido com diligência ao escolher e instruir o funcionário (culpa in elegendo), causador do ato ilícito, pois o § 831 BGB - tal como o antigo art. 1.523 do CC1916 - prevê o afastamento da responsabilidade nesses casos2. Mas o Tribunal Imperial considerava injusta e insatisfatória essa solução para os casos de lesão a clientes (consumidores, na linguagem atual) em estabelecimentos comerciais, considerando o intenso trânsito de pessoas e, consequentemente, a elevada exposição a riscos de dano existentes nesses locais de circulação em massa. Por isso, ao invés de fundamentar a pretensão ressarcitória no ato ilícito, o Tribunal Imperial preferiu recorrer à figura da culpa in contrahendo, formulada alguns anos antes, em 1861, em suas linhas iniciais, por Rudolf von Jhering. Para o RG, houve culpa durante a formação do contrato, pois a simples entrada de um potencial contratante - ou de um visitante, sem clara intenção de compra! - em um estabelecimento comercial faz surgir uma relação jurídica preparatória do contrato ("ein den Kauf vorbereitendes Rechtsverhältnis") entre a loja e o cliente. Essa relação preparatória, se bem analisado seu suporte fático, guarda muitas semelhanças com a relação contratual, da qual é preparatória. Dela brotariam, segundo o RG, "obrigações jusnegociais" (rechtsgeschäftliche Verbindlichkeiten), dentre as quais o dever de proteger a integridade físico-corporal e o patrimônio do potencial cliente. Esse dever exige que o estabelecimento comercial adote uma série de condutas positivas para evitar o dano, o que mostra que se trata de dever jurídico mais intenso que o simples dever geral de não lesar, que é geralmente cumprido com uma conduta meramente omissiva. Dessa forma, o Reichsgericht aplicou o regime jurídico contratual ao caso, dando aos lesados as vantagens decorrentes da impossibilidade de exclusão da responsabilidade in eligendo por atos do preposto (§ 278 BGB), da presunção de culpa e do prazo prescricional elevado, à época 30 anos, conforme o antigo § 195 BGB/1900. A decisão foi prolatada pelo 6o Senado do Reichsgericht em 7 de dezembro de 1911 e publicada, ainda em alemão gótico, no repertório RG 78/1912, p. 239-241. A importância da decisão Não é difícil perceber a relevância desse julgado para o que hoje entendemos como direito do consumidor, pois foi a partir daí que começou a se desenvolver na Alemanha a ideia de que os fornecedores têm o dever de garantir segurança aos (potenciais) clientes - sejam eles consumidores ou não! - em seus estabelecimentos comerciais. Não foi, portanto, a partir do discurso do ex-presidente norte-americano, John Fitzgerald Kennedy, como comumente se imagina, que ganhou corpo na Alemanha os deveres de proteção ao consumidor3. No Brasil, os deveres pré-contratuais em geral e, em especial, o dever de proteção só se estabeleceram como regra a partir da promulgação da Lei de Proteção e Defesa do Consumidor, em 1990, que logo no art. 6o, inc. 1, elenca como deveres básicos dos consumidores a proteção da vida, saúde e segurança. Dessa forma, casos como os do tapete de linóleo ou as frequentes quedas em supermercado são subsumidos no art. 14 do CDC, que trata dos defeitos na prestação dos serviços, estabelecendo a responsabilidade objetiva dos fornecedores. Antes do CDC, porém, a jurisprudência era vacilante: enquanto alguns julgados reconheciam o dever de ressarcir com base na cláusula geral do ato ilícito (art. 159 CC1916), outros negavam o ressarcimento por considerar um "acidente" ou "azar" ou um risco inerente à vida em sociedade a ser suportado pelo lesado, o que frequentemente vinha escondido por trás da alegação de falta de prova do nexo causal4. De qualquer forma, a decisão do Tribunal Imperial sobre os tapetes de linóleo é, com acerto, considerada uma das mais célebres e importantes decisões do judiciário alemão5. O vanguardismo da decisão A decisão pode mesmo ser considerada vanguardista, considerando ter sido prolatada apenas uma década após a entrada em vigor do BGB. Primeiro, porque antecipa em mais de cinquenta anos a discussão sobre a proteção de consumidores e by standers no mercado de consumo, dando o pontapé inicial para o debate em torno da proteção de terceiros no âmbito de situações negociais, pré-contratuais e, na sequência, contratuais. Não por outra razão fala-se hoje em dia, entre nós, com ares de vanguarda, acerca dos contratos com eficácia de proteção perante terceiros. Segundo, porque rompe com o dogma pandectista da irrelevância das negociações, pois mostra que já nessa fase surge uma relação jurídica especial da qual brotam deveres de conduta entre as partes, dentre os quais o dever de proteção (Schutzpflicht), conhecido no Brasil como dever de segurança, positivado em diversos artigos da Lei do Consumidor6. Terceiro, porque, com essa decisão, a figura da responsabilidade pré-contratual se estabelece definitivamente no cenário jurídico alemão, vindo, na sequência, a penetrar no meio jurídico latino - inicialmente na Itália e, depois, em Portugal, Espanha e Grécia, atravessando o Atlântico e ancorando em terras brasileiras em 1936. A culpa in contrahendo não foi, contudo, aqui recepcionada como uma responsabilidade pela violação de deveres de proteção - ou melhor: pela violação de qualquer dever lateral durante a fase de preparação do contrato. Ela aportou no Brasil na restrita modalidade de responsabilidade pela violação do dever de lealdade, traduzido no rompimento abusivo das negociações, após despertar ou fortalecer no outro a certeza de que o contrato planejado seria concluído. Quarto, porque, consagrando a figura, o RG se afasta definitivamente da doutrina pandectista, majoritária à época, que via o contrato - ainda que fictício - como a fonte única de deveres, inclusive dos deveres pré-contratuais de conduta. Quinto, porque, admitindo na fase de preparação do contrato a existência de uma "relação jurídica especial", jurisprudência e doutrina alemã dão um passo histórico na reformulação do conceito romano de obrigação e de relação obrigacional - passo que, aliás, ainda não foi bem compreendido pela doutrina brasileira. Com isso, diz-se que a relação obrigacional não surge com o contrato, mas já antes, com o contato negocial, embora esse vínculo tenha natureza sui generis e não produza obrigações em sentido técnico, mas apenas deveres laterais de conduta. É a chamada relação obrigacional sem dever de prestação ou, de forma mais provocativa, relação obrigacional sem obrigação7. O papel de Ruy Rosado de Aguiar no reconhecimento da culpa in contrahendo A culpa in contrahendo não teria tido reconhecimento no Brasil sem o saudoso Min. Ruy Rosado de Aguiar Junior, que há pouco nos deixou, deixando um vazio intelectual na magistratura, difícil de ser preenchido. Ele foi o grande responsável por resgatar a responsabilidade in contrahendo das profundezas, onde fora soterrada por uma doutrina e jurisprudência legalista-positivista, ainda fiel aos postulados do pandectismo, embora esses já estivessem abandonados em seu próprio país de origem. De fato, após sua estreia triunfal em dois célebres julgados8 do Tribunal de Justiça de São Paulo, datados de 1936 e 1959, a responsabilidade in contrahendo foi banida de cena ao argumento de ser uma doutrina incoerente. A uma, porque romper as negociações a qualquer tempo e independente do motivo apresentado era visto como uma faculdade ilimitada, permitida pelo ordenamento em razão do princípio da liberdade contratual, corolário do sagrado dogma da autonomia da vontade, pilar estruturante do direito privado liberal do século 19. A duas, porque quem rompe as negociações não abusa, mas usa o direito de não contratar, não podendo, consequentemente, ser penalizado através da imposição do dever de ressarcir os danos causados à contraparte. Daí - cabe o aparte - ser inadequada a fundamentação da responsabilidade pré-contratual na figura do abuso do direito. Na raiz desses (e de outros) argumentos contrários ao reconhecimento da responsabilidade pelo rompimento abusivo das tratativas está na ausência - ou na falsa compreensão - da boa-fé objetiva e dos deveres ético-jurídicos de conduta, os quais impõem a ambas as partes o dever de agir com lealdade e consideração pelos interesses legítimos da outra antes, durante e depois do contrato. Ruy Rosado de Aguiar Júnior teve o mérito de resgatar o instituto, ainda no Tribunal de Justiça do Rio Grande do sul. Célebre são os casos dos tomates e do posto de gasolina, ambos de sua relatoria. No caso dos tomates, a empresa de conservas alimentícias CICA distribuiu durante anos sementes de tomates aos agricultores da região de Canguçu, no Rio Grande do Sil, para plantio e posterior aquisição da safra para a produção de molho de tomate. Em um ano, simplesmente deixou de adquirir a safra dos agricultores, que não conseguiram revender a mercadoria, amargando vultuosos prejuízos. O TJRS, sob o voto condutor do saudoso Ministro, reconheceu a responsabilidade pré-contratual da empresa por quebra da confiança ao deixar de celebrar, sem motivo justificável, a compra da safra de tomates dos agricultores, embora tenha - como de costume - distribuído as sementes. Trata-se do processo TJRS, Apelação Cível 591.028.2915, 5ª. Câmara Cível, Rel. Des. Ruy Rosado de Aguiar Junior, julgado em 6/6/1991, no qual fundamenta-se pela primeira vez a responsabilidade pré-contratual no princípio da boa-fé objetiva, à época ainda não positivado na Codificação9. No caso do posto de gasolina, o TJRS negou a responsabilidade pré-contratual do potencial comprador que desistiu da aquisição de um posto de gasolina após descobrir que o vendedor não era, ao contrário do que dizia, o único sócio da empresa10. Trata-se do processo: TJRS, Apelação Cível 591.017.058, 5ª. Câmara Cível, Rel. Des. Ruy Rosado de Aguiar Junior, julgado em 25/4/1991. A partir desses dois julgados paradigmáticos, a jurisprudência brasileira passou a reconhecer a responsabilidade pré-contratual por rompimento injustificado das negociações, com fundamento na cláusula geral da boa-fé objetiva, positivada em sua função criadora de deveres no art. 422 do CC2002. Dessa forma, livrou do esquecimento um riquíssimo instituto, ainda pouco compreendido entre nós11. Jhering deve estar feliz! __________ 1 GIARO. Tomasz. Culpa in contrahendo: eine Geschichte der Wiederentdeckung. In: Ulrich Falk e Heinz Mohnhaupt (org.). Das Bürgerliche Gesetzbuch und seine Richter - Zur Reaktion der Rechtsprechung auf die Kodifikation des deutschend Privatrechts (1896-1914). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 2000, p. 135 e SCHMIDT, Jan Peter. Sentencias famosas: Alemania. Sobre el caso de los "rollos de linóleo", Revista de Derecho Privado, Bogotá, n. 24, p. 329-334, jan.-jun. 2013. No mesmo sentido: NUNES FRITZ, Karina. A culpa in contrahendo no direito alemão: um contributo para reflexões em torno da responsabilidade pré-contratual. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 15, ano 5, 2018, p. 173 ss. 2 O art. 1.523 do CC1916 rezava: "Excetuadas as do art. 1.521, V [partícipes do produto de crime], só serão responsáveis as pessoas enumeradas nesse e no art. 1.522, provando-se que elas concorreram para o dano por culpa, ou negligência de sua parte". Esse dispositivo foi substituído pelo art. 933 do CC2002, dispensando-se a culpa. 3 Recorde-se que o movimento consumerista se inicia na década de 1960, com o pronunciamento de John Fitzgerald Kennedy, enumerando direitos básicos dos consumidores. 4 Confira-se, a título ilustrativo: TJSP; Apelação Com Revisão n. 9191314-38.2007.8.26.0000 (numeração antiga 540.044-4/3-00), Rel. Des. Elcio Trujillo, 7ª Câmara de Direito Privado, j. 08.04.2009. Queda em supermercado de consumidora que, após escorregar em casca de fruta, teve seu pleito ressarcitório negado com base na ausência de nexo causal e de negligência do supermercado, que, segundo testemunha, mantinha o local limpo. Do acórdão, percebe-se que o Tribunal considerou o fato mais como um infortúnio da vítima, do que como infração ao dever de segurança do estabelecimento. No voto consta expressamente que: "... Considerando que a ré é um mercado, por onde circulam várias pessoas durante o dia, cada qual com seus costumes e educação, inviável a pretensão de impor à ré a responsabilidade pela existência de casca de fruta no chão. O fato ocorrido com a autora, embora lastimável, não é decorrente de culpa, do tipo omissivo ou comissivo, de qualquer dos funcionários da ré. Não se trata de falta de higiene, pois a fruta pode ter caído da gôndola ou simplesmente ter sido jogada ao chão por outro cliente. E, neste passo, inviável tentar cogitar do número de funcionários necessários para manutenção da limpeza local, pois tal fato sempre poderá ocorrer, por mais higiene que se possa imaginar". 5 GIARO, Tomasz. Op. cit., p. 135 e SCHMIDT, Jan Peter. Op. cit., p. 329 ss. 6 Confira-se, dentre outros, os arts. 6º, inc. I, 8º, 9º, 10 e 12 a 14 do CDC, todos tendo como ideia nuclear a proteção da vida, saúde e segurança do consumidor. 7 Desde 2008 venho falando dessa relação obrigacional, ainda mal compreendida pela doutrina brasileira. Confira-se: NUNES FRITZ, Karina. Boa-fé objetiva na fase pré-contratual - a responsabilidade pré-contratual por ruptura das negociações. Curitiba: Juruá, 2008, p. 47 ss. 8 Tratam-se do caso da casa de modas, primeiro caso documentado no Brasil de culpa in contrahendo, julgado em 1936 e do caso da atriz, datado de 1959. Cf. NUNES FRITZ, Karina. Da boa-fé objetiva na fase pré-contratual..., p. 250 s. 9 Para maiores detalhes do caso, permita-se remeter a NUNES FRITZ, Karina. Da boa-fé objetiva na fase pré-contratual..., p. 253-254. 10 Para maiores detalhes do caso, permita-se remeter a NUNES FRITZ, Karina. Da boa-fé objetiva na fase pré-contratual..., p. 254-255. 11 Não faltam importantes vozes a questionar, ainda hoje, a utilidade da responsabilidade pré-contratual, o que revela a falta de um estudo comparado sério e verticalizado, tendo em vista o amplo reconhecimento do tema no nos ordenamentos jurídicos europeus mais modernos.
A Corte infraconstitucional alemã, Bundesgerichtshof (BGH), negou recentemente o pedido de uma mulher trans de figurar como mãe na certidão de nascimento do filho gerado com a parceira, provocando acesa discussão no meio LGBTI, que reivindica urgente atuação do legislador. 1. Para entender o caso O caso envolvia um transexual que nasceu biologicamente homem, mas alterou oficialmente seu gênero para feminino em 2012. Ela passou a viver em união estável com outra mulher, que deu à luz ao filho do casal em 2015. A criança foi gerada com o sêmen da mulher trans e o óvulo da companheira. Antes do nascimento, o casal registrou em cartório um acordo no qual o transexual reconhecia a "maternidade" da criança e a companheira concordava que aquela figurasse também como mãe nos documentos do filho. O cartório de registro civil, contudo, anotou como mãe no registro de nascimento da criança apenas o nome da mãe biológica, recusando-se a registrar o pai biológico como mãe e a reconhecer validade do acordo registrado em cartório. 2. O processo nas instâncias inferiores O casal solicitou, então, ao juízo de primeira instância que ordenasse ao oficial do registro civil a inclusão de ambas como mães da criança, pedido que foi negado. Com isso, ambas recorreram ao Tribunal de Berlim, onde a decisão de primeira instância foi confirmada, em julgado de 6/9/2016. Para o Tribunal, a autora não poderia ser registrada como mãe, porque, de acordo com o § 1.591 BGB, mãe é apenas quem dá luz à criança. O Direito alemão vigente desconhece a hipótese de "reconhecimento de maternidade", só admitindo o reconhecimento de paternidade, nos termos do § 1.592, inc. 2 BGB, cuja aplicação analógica a Corte de Berlim afastou alegando ausência de lacuna legal. Isso, porque o legislador vinculou a verificação da maternidade ao elemento objetivamente apurável de quem pariu a criança. Não é possível, portanto, disse o Tribunal, se criar uma posição jurídica de maternidade por mera declaração de vontade, só restando a via da adoção para que a criança possa ser registrada como filha de duas mães, opção, contudo, que a autora recusa aceitar. O Tribunal acentuou ainda inexistir lacuna em situações envolvendo transexuais, pois o legislador regulou a questão no § 11 da Lei dos Transexuais (Transsexuallengesetz), de 10/9/1980, alterada recentemente em 20/7/2017. Segundo o (polêmico) § 11 da TGS, a decisão de alteração do gênero não altera a relação jurídica de parentalidade existente entre o transexual e seus ascendentes e/ou descendentes. Dessa forma, ainda quando a pessoa trans possa alterar seu nome nos seus documentos, não poderia alterar o vínculo de filiação, de modo a se anotar, no caso, como mãe o genitor que contribuiu com sêmen para a concepção da criança. Por fim, salientou o Tribunal de Berlim, que a criança tem direito ao conhecimento de sua origem biológica, direito esse de status constitucional e que é garantido através do conhecimento de fatos e não através do registro pessoal dos pais. Inconformadas com a decisão, as partes interpuseram recurso (Revision) ao BGH a fim de permitir o registro das duas como mães da criança na certidão de nascimento. 3. A decisão do BGH Em julgado de 29/11/2017, o 12o. Senado do BGH confirmou a decisão das instâncias inferiores, afirmando que, segundo o direito vigente, a autora não pode ocupar a posição materna nos documentos do filho, pois contribuiu com sêmen para a concepção da criança. Diz a ementa: "Um transexual feminino, com cujo sêmen congelado fora gerada uma criança, nascida depois de decisão definitiva de alteração do gênero, só pode obter, segundo o direito de filiação, a posição de pai e não a posição de mãe (continuação da decisão do Senado de 6 de setembro de 2017 - XII ZB 600/14 - [publicada no periódico] FamRZ 2017, 1855). Um reconhecimento de maternidade por ela realizado é inválido"1. a) Alteração do gênero não impacta na imputação da maternidade/paternidade O Tribunal observou, inicialmente, que segundo o § 1.591 BGB, mãe é apenas a mulher que deu à luz à criança. Essa é a única forma legal de imputação de maternidade, além da adoção. Dessa forma, para o BGH, o legislador conscientemente excluiu outras formas de atribuição de paternidade, como a da mulher que doa célula reprodutora feminina para gestação por barriga de aluguel, que na Alemanha só é reconhecida como mãe se adotar a criança2. Em razão da contribuição genética da autora para a concepção - doação de material genético masculino para a inseminação da companheira - só se deixa, no caso concreto, fundamentar a paternidade da criança. E isso independe do pertencimento de gênero da autora. Segundo o BGH, se por um lado é certo que, nos termos do § 10 I da Transsexuellengesetz, os direitos e deveres condicionados ao gênero devem ser, em princípio, orientados e regulados segundo o novo gênero, por outro é certo que o § 11 da mesma lei diz de forma clara que a mudança de gênero não altera o status jurídico pessoal em relação aos pais e filhos. E isso tem impacto principalmente na imputação da filiação. b) A constitucionalidade da regra legal: melhor interesse da criança Para o BGH, não há inconstitucionalidade nas normas dos § 1.591 BGB e § 11 da TSG, pois a solução legal não colide nem com a Lei Fundamental, nem com a Convenção Europeia de Direitos Humanos. Para o Tribunal, o fato do direito alemão vigente atribuir ao transexual - desconsiderando a circunstância de que ele agora pertence a outro gênero - um status jurídico parental de acordo com seu gênero anterior e com as contribuições específicas de sua efetiva participação no processo reprodutivo não colide com os direitos fundamentais e humanos do transexual. A regra legal dos §§ 1.591 e 1.592 BGB c/c § 11 da TSG não viola a pessoa transexual em seu direito geral de personalidade, consagrado no art. 2, inc. 1 c/c art. 1 da Lei Fundamental. Ainda quando se admita que isso possa interferir no reconhecimento da identidade dos pais transexuais, ao lhes atribuir um status jurídico parental em discordância com sua autopercepção de gênero, o desenvolvimento da personalidade do transexual ainda é tutelada nos limites da ordem constitucional. Os § 1.591 e 1.592 do BGB e § 11 da Transsexuellengesetz são, dessa forma, formal e materialmente constitucionais, afirmaram os juízes da Corte de Karlsruhe. Segundo o BGH, o Tribunal Constitucional (Bundesverfassungsgericht - BverfG) também condiciona a imputação jurídica da parentalidade, em princípio, às circunstâncias biológicas3, privilegiando a origem genética e, dessa forma, supostamente, o melhor interesse do ser gerado. Com isso, assegura-se aos filhos de pessoas que mudam de gênero o direito de ter - ou permanecer - sempre um pai e uma mãe, independentemente de alteração jurídica no gênero de um dos genitores. Esse é o sentido e o fim (Sinn und Zweck) da regra do § 11 da Lei dos Transexuais, que visa garantir os direitos fundamentais e o melhor interesse do ser gerado, disse o BGH. A repercussão do caso na comunidade LGBTI A decisão do BGH foi duramente criticada pelos ativistas trans. Segundo a Associação Federal Trans* (Bundesvereinigung Trans*), a decisão do Tribunal foi extremamente conservadora e ignora a realidade das pessoas trans e das famílias "arco-íris" (Regenbogenfamilie), com suas variadas constelações. Além disso, favorece a discriminação das crianças de pessoas trans, pois um dos genitores continua a ser chamado pelo antigo nome na certidão de nascimento, gerando constrangimentos na escola e em outras situações, o que não corresponde ao bem-estar da criança. Por isso, a comunidade quer que o Parlamento regule a situação das "famílias coloridas" e permita que pais trans possam ser inscritos sem indicação de gênero nos documentos dos filhos e com seus nomes atuais. A relevância do tema O tema é, por certo, altamente polêmico e atual. Há, sem dúvida, um conflito de posições jusfundamentais: de um lado, o direito à intimidade e ao livre desenvolvimento da personalidade do genitor, o que inclui um "apagar" (se é que isso é possível) do passado e recomeço de nova vida e, do outro, o direito fundamental ao conhecimento - e certeza - da origem biológica da criança, que também tem, sob outro aspecto, o interesse que seus documentos reflitam e espelhem sua realidade de vida. No Brasil, o tema parece despertar pouco interesse diante do reconhecimento da multiparentalidade pelo STF e do Provimento 63, de 14/9/2017, do Conselho Nacional de Justiça, que torna desnecessária a menção ao pai ou à mãe nas certidões de nascimento, bastando a indicação da "filiação". Aparentemente, parece que não haveria dificuldades em se permitir que a mulher que deu à luz figure na certidão de nascimento como pai ou o homem que contribuiu com sêmen figure como mãe, ainda que, no atual estágio da ciência médica, homem não possa dar à luz e nem mulher produza (espontaneamente) sêmen. Mas o mesmo problema enfrentado na Alemanha se coloca na discussão sobre se o genitor (pai ou mãe), que muda de gênero, pode compelir o filho a alterar sua certidão de nascimento, que, a rigor, é documento do filho e não dos genitores. Aqui aflora, em essência, a mesma discussão travada no tribunal alemão, pois, em última instância, trata-se de decidir qual dos direitos fundamentais em colisão merece maior tutela: se o direito à intimidade e desenvolvimento da personalidade do genitor trans, a legitimar a mudança do nome na certidão de nascimento do filho ou o direito fundamental do filho à certeza e clareza de sua origem biológica. O tema na Europa é cercado de controvérsias, devido, principalmente, à necessidade de tutela do direito fundamental da criança ao conhecimento e certeza da origem biológica e do melhor interesse do menor. Esse conflito não é fácil de ser solucionado, mas precisa ser resolvido pelo Judiciário, enquanto o legislador (e não órgãos como o CNJ) não regula a questão. A palavra final, no caso alemão, cabe agora ao Tribunal Constitucional, já que as partes interpuseram queixa constitucional para a Suprema Corte de Karlsruhe. Recorde-se que a Corte já proferiu paradigmática decisão reconhecendo definitivamente a existência de um terceiro gênero entre o masculino e feminino, quebrando, dessa forma, o sistema binário de gênero existente no direito alemão. A decisão, comentada aqui no Migalhas (leia aqui), foi decisiva para a elaboração da lei, em vigor desde o início de 2019, que permite aos intergêneros inserir em seus documentos a opção "diverso(a)", sem necessidade de se enquadrar nas categorias masculino ou feminino. Dessa forma, só nos resta agora aguardar a decisão do Tribunal Constitucional. __________ 1 "Eine Mann-zu-Frau-Transsexuelle, mit derem konserviertem Spendersamen ein Kind gezeugt wurde, das nach rechtskräftiger Entscheidung über die Änderung der Geschlechtszugehörigktie geboren worden ist, kann abstammungsrechtlich nur die Vater und nicht die Mutterstellung erlangen (Fortführung des Senatsbeschlusses vom 6. September 2017 - XII ZB 660/14 - FamRZ 2017, 1855). Eine von ihr gleichwohl erklärte Mutterschaftsanerkennung ist unwirksam". BGH XII ZB 459/16 - Kammergericht Berlin AG Schöneberg. 2 O BGH fez referência, no acórdão, ao caso: BGHZ 203, 350 = FamRZ 2015, 240. 3 O BGH fez referência à decisão do BVerfG de 2011 (BVerfGE 128, 109), na qual se proclamou o direito dos filhos de ter sempre um pai e uma mãe, apesar da mudança de gênero por um dos genitores, a qual será objeto de posterior comentário nessa coluna.
Um dos casos mais paradigmáticos decididos recentemente pelo Bundesgerichtshof (BGH) diz respeito à atualíssima discussão em torno da transmissibilidade - ou não - da chamada herança digital. No leading case, julgado em 12 de julho de 2018, a Corte obrigou o Facebook a liberar aos herdeiros o acesso à conta do usuário falecido1. O caso Os pais de uma adolescente de 15 anos, falecida em acidente no metrô de Berlim, em 2012, entraram com uma ação contra o Facebook por terem sidos impedidos de acessar a conta da filha, transformada em memorial depois que um "amigo" desconhecido informou a empresa acerca do óbito. As circunstâncias da morte não estavam esclarecidas, havendo suspeita de suicídio. Por isso, os pais queriam acessar a conta a fim de buscar pistas que permitissem esclarecer o caso e se defender em processo judicial movido pelo condutor do metrô, que pleiteava danos morais pelo abalo emocional sofrido em decorrência do envolvimento no suposto suicídio. Entretanto, como a página da adolescente já havia sido transformada em memorial, os pais não conseguiam acessá-la, embora tivessem conseguido os dados de acesso. Como se sabe, quando uma conta é transformada em memorial, o conteúdo compartilhado em vida pelo falecido com o público permanece visível e as pessoas podem postar mensagens, mas ninguém - detalhe: exceto o Facebook - tem acesso ao conteúdo da conta. Segundo o Facebook, a transformação da página em memorial, com a consequente vedação de acesso a qualquer pessoa, visa tutelar o direito à privacidade do usuário falecido e de seus contatos e interlocutores, que "confiam" que as mensagens trocadas permanecerão em sigilo mesmo após a morte. Isso protege principalmente os usuários adolescentes da plataforma de comunicação, que costumam trocar detalhes íntimos nas redes sociais, que desejam manter longe do conhecimento dos pais. Por isso, o Facebook disse em contestação que, embora se "solidarize com os pais da falecida", precisa garantir que a comunicação entre os usuários da rede social seja protegida mesmo após a morte. O processo O juízo de primeiro grau de Berlim (Landesgericht Berlin) deu ganho de causa aos pais da adolescente e ordenou o Facebook a liberar o acesso à conta da falecida ao argumento de que a herança digital pertence aos herdeiros, que podem acessar todas contas de e-mails, celulares, WhatsApp e redes sociais do falecido. Em grau de recurso, o Kammergericht reviu a decisão sob o fundamento de que o acesso ao conteúdo digital violaria o sigilo das comunicações dos interlocutores da pessoa falecida. Apesar de reconhecer que os direitos e obrigações relacionadas a um contrato, como o do Facebook, são, em princípio, transmissíveis via herança, afirmou que não havia ainda "clareza jurídica" acerca da transmissibilidade ou não dos bens com conteúdo personalíssimo. A decisão do Bundesgerichtshof A família, então, recorreu ao BGH, que julgou procedente a revisão interposta e reconheceu o direito sucessório dos pais de ter acesso à conta da filha falecida e, consequentemente, a todo o conteúdo lá armazenado. Trata-se do processo BGH III ZR 183/17, julgado em 12/7/2018, que já se tornou o leading case do tema na Europa. Em síntese, a Corte infraconstitucional alemã reconheceu a pretensão dos pais, herdeiros únicos da menor, de ter acesso à conta e a todo o conteúdo nela existente. Essa pretensão decorre do contrato de consumo (contrato de uso de plataforma digital) existente entre a adolescente e o Facebook, o qual é transmissível aos herdeiros por força do princípio da sucessão universal, que vigora no mundo digital da mesma forma que no mundo analógico, disse o Tribunal. Segundo esse princípio - consagrado no § 1922 I BGB - todo o patrimônio, vale dizer, todas as relações jurídicas do falecido são transmitidas a seus sucessores, exceto aquelas que se devam extinguir por sua natureza, por força de lei, acordo ou pela vontade do autor da herança. Fora esses casos, os herdeiros se inserem imediatamente na titularidade das relações jurídicas do falecido com a abertura da sucessão, por força do princípio da saisine. Dessa forma, a Corte concluiu que o contrato de consumo celebrado entre a adolescente e o Facebook - cujo objeto era a criação e utilização do perfil - fora transmitido aos pais, que passaram a ocupar a posição jurídica contratual da filha com todos os direitos e obrigações. Em decorrência disso, eles teriam uma pretensão de acesso à conta e ao conteúdo digital armazenado, seja esse conteúdo de cunho patrimonial ou estritamente pessoal. Para afastar a transmissibilidade da conta, o titular deve - em vida, seja em testamento ou qualquer documento que comprove sua intenção inequívoca - vedar expressamente o acesso dos herdeiros, afastando, por ato de autonomia privada, a transmissibilidade do acervo digital. Se não o faz, o acervo digital é automaticamente transferido aos sucessores com a abertura da sucessão. Ou seja, para o BGH, em regra, a herança digital é transmitida aos herdeiros, salvo disposição expressa em contrário. E, rebatendo os argumentos a favor da intransmissibilidade da herança digital, defendido por doutrina minoritária na Alemanha, a Corte de Karlsruhe fez questão de acentuar que o reconhecimento do direito sucessório à herança digital não afronta os direitos de personalidade post mortem do falecido e nem o direito geral de personalidade dos terceiros interlocutores. Da mesma forma, não contraria o sigilo das comunicações e as regras sobre a proteção de dados pessoais. Abusividade da cláusula imposta pelo Facebook De início, o BGH fez questão de salientar que o contrato do Facebook com o usuário pode e deve ser submetido ao controle de abusividade pelo Judiciário, como qualquer outro contrato. E, analisando o conteúdo do contrato - que, não custa relembrar, é de adesão - considerou abusiva e, consequentemente, nula a cláusula imposta pelo Facebook em seus Termos de Uso (condições contratuais gerais) que transforma automaticamente a conta em memorial, bloqueando o acesso de qualquer pessoa, salvo o contato herdeiro indicado. Para o BGH, a abusividade da cláusula justifica-se, a um, porque fora fixada unilateral e posteriormente pelo Facebook, não tendo a usuária dela tomado prévio conhecimento, razão pela qual não integrava o contrato, nos termos do § 305, inc. 2 BGB. E, a dois, porque a cláusula da intransmissibilidade da herança digital promove uma alteração unilateral no dever de prestação principal do contrato, que consiste em viabilizar o acesso e a disposição da conta e do conteúdo armazenado aos usuários - e, com a morte, a seus sucessores. Dessa forma, além de contrariar o princípio da sucessão universal, a proibição de acesso à conta ainda frustra o fim essencial do contrato de utilização da plataforma de comunicação, enquadrando-se, portanto, nas hipóteses descritas no § 307, inc. 2 do BGB, como bem salientou o BGH. O acesso dos herdeiros não viola o sigilo das comunicações e nem a proteção dos dados pessoais No histórico julgado, o Tribunal também descartou o argumento do Facebook de que o acesso dos herdeiros ao conteúdo digital ofenderia o sigilo das comunicações e a proteção dos dados pessoais dos usuários e dos terceiros interlocutores, os quais "confiam legitimamente" no sigilo das mensagens trocadas. Em relação à suposta violação do sigilo das comunicações, o BGH acentuou que o fim da norma que garante o sigilo das comunicações é impedir que terceiros estranhos à comunicação tenham acesso a seu conteúdo, mas observou que os herdeiros, por força do direito sucessório, não podem ser qualificados como tal. Além disso, a norma não tem por fim impedir a transmissibilidade do conteúdo digital aos herdeiros, sucessores legítimos do falecido. Tanto isso é verdade que as cartas mais íntimas e sigilosas do morto, ainda quando guardadas em um baú ou cofre lacrado, são transmitidas automaticamente aos sucessores sem que se alegue ofensa ao sigilo das comunicações. Seria, então, incoerente sustentar a quebra do sigilo nas "cartas digitais", armazenadas no servidor da plataforma digital, mas não nas "cartas de papel", guardadas em baú lacrado, vez que o grau de confidencialidade e existencialidade é, obviamente, o mesmo. Isso mostra que a confidencialidade das comunicações não é violada com a sucessão universal, tratem-se de comunicações analógicas ou digitais. Também insubsistente se apresenta o argumento de que a transmissibilidade da herança digital ofenderia a proteção dos dados pessoais do falecido e de seus interlocutores. A um, porque o Regulamento EU 2016/679, de 27/4/2016, fala expressamente que as regras sobre a proteção dos dados pessoais não se aplicam a pessoas falecidas. A dois, porque, em relação aos dados pessoais dos interlocutores do falecido, o art. 6o, inc. 1, letra b do Regulamento 679/2016 - reproduzido no direito brasileiro no art. 7o, V da lei 13.709/2018 - permite o tratamento dos dados pessoais quando necessário à execução de um contrato. E, nesse caso, o tratamento dos dados pessoais dos interlocutores do usuário falecido seria feito pelo Facebook de forma legítima, em cumprimento de obrigação contratual, traduzida na transmissão e disponibilização para acesso do conteúdo digital aos sucessores do usuário. Diante disso, o Tribunal conclui que atribuir ao interessado a possibilidade de proteger, em vida, suas correspondências e materiais mais íntimos, subtraindo-as dos olhares indesejados de familiares e/ou herdeiros, é o meio mais adequado e eficiente para tutelar a privacidade e intimidade dele e de seus interlocutores, sem quebras sistemáticas no Direito Sucessório. Além disso, esse seria o meio menos restritivo aos direitos fundamentais em colisão: de um lado, o direito fundamental à herança, de outro o direito fundamental à privacidade do usuário e de seus interlocutores. Dessa forma, a aplicação da técnica da proporcionalidade veio corroborar a decisão do BGH no sentido de que a regra é a transmissibilidade do acervo digital, salvo disposição em contrário do falecido. Os limites da confiança nas redes sociais O Tribunal alemão chamou ainda a atenção para uma distinção importantíssima. É verdade que o usuário, que celebra um contrato de utilização de uma plataforma de comunicação, pode legitimamente confiar que a plataforma não vá acessar, divulgar ou permitir que terceiros acessem indevidamente esse conteúdo. Mas ele não pode "legitimamente" esperar - se nada dispôs em vida em sentido contrário - que esse "sigilo" tenha eficácia post mortem perante os herdeiros, que sucedem o falecido em suas relações jurídicas. Na verdade, diz o BGH, quem envia uma mensagem suporta o risco que terceiro tenha acesso a seu conteúdo, seja porque o destinatário mostrou a mensagem a terceiro, seja porque o terceiro tinha acesso à conta do destinatário. Quem envia a outrem uma carta, sabe - ou deveria saber - que não pode controlar quem, ao fim e a cabo, terá conhecimento de seu conteúdo. Ele também tem consciência que a obrigação dos correios se encerra com a colocação da carta na caixa postal do destinatário, não respondendo o serviço postal caso terceiros peguem indevida ou inadvertidamente a carta ou caso o próprio destinatário a mostre a terceiros. Ora, da mesma forma, disse o BGH, quem envia uma mensagem por meio digital sabe - ou deveria saber - que o destinatário pode salvá-la antes de morrer em seu computador ou em um USB-Stick ou imprimi-la e guardá-la numa gaveta. E todos sabem - ou devem saber - que esses bens serão automaticamente transmitidos aos herdeiros com a morte do titular da conta da rede social. Logo, conclui o Tribunal, o risco de que terceiros tenham acesso à mensagem é de todo emissor, tanto na comunicação analógica, como na digital. Distinção entre conteúdo patrimonial e existencial Por fim, o Tribunal afastou a tese, sustentada por minoritária doutrina, de que apenas os conteúdos digitais de caráter patrimonial devem ser transmitidos aos herdeiros, excluindo-se aqueles de caráter extrapatrimonial, ou seja, estritamente pessoal. Primeiro, porque a lei não faz distinção entre herança patrimonial e herança existencial, nem os valores subjacentes às normas do Direito Sucessório autorizam tal distinção. Tanto isso é verdade, afirma o BGH, que documentos existenciais como cartas e diários são transmitidos desde sempre aos herdeiros mesmo quando contenham informações íntimas e confidenciais, envolvendo terceiros e estejam guardados em um baú lacrado. Assim, seria incoerente, na visão da Corte, permitir a transmissão de informações confidenciais contidas em cartas e diários guardados em baú lacrado e vedar a transmissão daquelas armazenadas em nuvens ou nos servidores de plataformas digitais como o Facebook, pois a existencialidade não resulta da forma como tais informações estão corporificadas, mas de seu próprio conteúdo. Segundo, porque essa a proposta de distinção entre conteúdo patrimonial e conteúdo existencial põe graves problemas de ordem prática. Como o conteúdo digital deixado pelo falecido pode ter cunho patrimonial e existencial, seria necessário primeiro fazer uma análise de todo o conteúdo deixado e, em seguida, uma triagem para só então permitir - ou não - sua transmissibilidade aos herdeiros. Além de quebrar o princípio da sucessão universal, coloca-se aqui uma importante questão de legitimidade, na medida em que se precisaria definir quem estaria legitimado - mais que os herdeiros! - para acessar e fazer a triagem de todo o material. Isso sem falar nas infindáveis discussões que abarrotariam o Judiciário questionando o caráter patrimonial ou existencial de um determinado conteúdo. E, tudo isso, já na abertura da sucessão. Não é difícil perceber, portanto, o tempo que os processos de inventário e partilha poderiam levar para serem definitivamente encerrados. E, não custa alertar, essa reflexão se impõe principalmente no Brasil, onde processos dessa natureza arrastam-se durante décadas a fio. Por todas essas razões, a Corte de Karlsruhe concluiu que, se o usuário não afasta em vida o acesso dos herdeiros a todo ou a partes do conteúdo digital, usando sua autonomia privada para proteger sua privacidade e a de seus interlocutores, aplica-se a regra da sucessão universal, com a consequente transmissão de toda a herança (analógica e digital) aos herdeiros. Reflexões para o direito brasileiro Não é difícil perceber quão relevante é essa discussão para o direito brasileiro, pois aqui algumas decisões têm negado aos herdeiros, sob pálidos argumentos, o direito de acessar a conta do familiar falecido. Os consistentes fundamentos utilizados pelo BGH mostram que a decisão, antes de violar o direito à privacidade, fortalece autonomia privada e a autodeterminação dos usuários das redes sociais, chamando a todos (emissores e receptores) a assumir responsabilidades no mundo digital. A decisão deixa claro que o poder de decidir sobre o destino da herança digital cabe a seu titular. Apenas quando o titular nada faz, deixando de indicar quem terá acesso às mensagens, fotos, vídeos ou outro material confidencial, incide a regra geral do direito sucessório, que confere aos herdeiros o acesso ao conteúdo digital. Vários outros aspectos da decisão do Bundesgerichtshof merecem ser destacados e objeto de reflexão. Em primeiro lugar, o reconhecimento de que os contratos dos usuários com as plataformas de internet são relações obrigacionais regidas pelos princípios e regras do Direito Obrigacional e do Direito Sucessório, quando da morte de seu titular. Isso permite não só o reconhecimento de sua transmissibilidade post mortem, mas principalmente que o magistrado faça um controle da legalidade dos termos de uso impostos pelo Facebook (ou por qualquer outra plataforma digital), à luz da boa-fé objetiva e das demais normas cogentes no ordenamento brasileiro. Dessa forma, permite-se a declaração de nulidade pelo juiz das cláusulas do contrato de adesão que impeçam a transmissão da conta aos herdeiros e que esvaziem princípios basilares do Direito Sucessório. Em segundo lugar, é interessante notar que o BGB decidiu a questão à luz dos dispositivos legais existentes, sem lamentar qualquer lacuna ou reclamar a elaboração de lei específica, como comum por aqui em situações atípicas. Com isso, a Corte demonstrou que os novos problemas precisam primeiro ser analisados à luz do instrumental (teórico e legal) existente e as soluções integradas, quando possível, no sistema jurídico vigente, a fim de evitar desnecessárias quebras sistemáticas que dão ao ordenamento a aparência de uma - nem sempre harmônica! - colcha de retalhos. Em terceiro lugar, é fundamental observar que dar aos herdeiros acesso ao conteúdo digital do falecido não implica permitir que as contas sejam utilizadas livremente, nem tampouco que as mensagens ou outros dados sejam divulgados, como ressaltou a decisão do BGH. Os herdeiros não podem abusar de seu direito de acesso, causando dano ao próprio falecido ou a seus interlocutores. Não por outra razão alguns autores alemães sustentam a existência de um "direito à conservação de segredos", que seria um elemento integrante do âmbito de proteção do direito de personalidade post mortem. Esse, quando violado (ou sob ameaça de), pode ser objeto de tutela inibitória ou ressarcitória, como ocorre com qualquer outro direito ou interesse tutelado pela ordem jurídica. Em quarto lugar, não se pode descurar que, sob uma análise econômica, a ideia da intransmissibilidade da herança digital não se mostra a mais eficiente, pois implica tempo e dinheiro, impactando diretamente no custo e duração dos processos de inventários. Sem falar na potencial explosão de litígios na "fase preliminar" de análise da transmissibilidade ou não do conteúdo digital, pois infindáveis discussões surgirão acerca do que deve ou não ser considerado conteúdo existencial, sobre quem tem legitimidade - e capacidade técnica - para fazer a triagem dos dados patrimoniais e existenciais, quais critérios distinguiriam ambas as categorias, sem falar na dificílima questão de como tratar dados existenciais com valor patrimonial. Por fim, não custa relembrar que há séculos o direito confere aos herdeiros - enquanto pessoas presumidamente próximas e integrantes do núcleo familiar - o "poder-dever" de suceder o falecido em suas relações jurídicas. Isso inclui o poder de tomar decisões fundamentais relacionadas ao falecido, inclusive questões relacionadas à tutela de sua personalidade post mortem, o que torna mais difícil explicar porquê eles não teriam legitimidade para decidir sobre conteúdos armazenados nas nuvens. E mais ainda: considerando que poucos usuários dispõem em vida sobre seu acervo digital, a pergunta que se põe é porquê o Facebook teria maior legitimidade que os herdeiros para se apropriar do conteúdo digital de bilhões de usuários em todo o globo, pois é isso o que, em última instância, legitima a tese da intransmissibilidade da herança digital. Dessa forma, sob qualquer ângulo que se analise a questão, parece que a decisão do BGH foi a mais sensata e coerente dogmaticamente, pois privilegia a autonomia privada e a autoresponsabilidade do autor do legado digital, em harmonia com o sistema jurídico. Quem pretende sustentar o contrário tem que necessariamente suportar o ônus argumentativo de desconstruir a sólida argumentação da Corte alemã, desenvolvida - frise-se - com amparo na doutrina majoritária na Alemanha. A decisão, contudo, não pode ser simplesmente ignorada, como não raro ocorre por aqui. __________ 1 Para uma análise mais aprofundada da decisão, confira-se: NUNES FRITZ, Karina e SCHERTEL MENDES, Laura. Case Report: Corte alemã reconhece a transmissibilidade da herança digital. In: Revista de Direito da Responsabilidade, Coimbra, 2019, p. 525-555.