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Alterações na Lei de Improbidade Administrativa pela lei14.320/2021: Reconhecimento da transversalidade do princípio do ne bis in idem e a mitigação da independência da esfera penal

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Atualizado às 09:01

A inadmissibilidade da persecução penal múltipla ou ne bis in idem é princípio inerente ao direito penal, segundo o qual ninguém pode ser processado duas vezes pela mesma imputação. O ne bis in idem compreende a vedação à dupla punição de um indivíduo por uma mesma conduta (aspecto material), bem como a proibição do repetido processamento penal por fato idêntico (aspecto processual)1, sendo estas as dimensões reconhecidas pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Na doutrina e na jurisprudência mais recente tem se observado um movimento no sentido de reconhecer a aplicação do ne bis in idem no sancionamento cumulado de pena e sanção administrativa, conceituada como dimensão transversal do princípio2, haja vista a notória aproximação entre o direito penal e o direito administrativo sancionador.

A proximidade entre as esferas punitivas gera a sobreposição de sanções nos diferentes âmbitos. É o que se verifica de maneira expressiva na relação entre o direito penal e a esfera da improbidade administrativa. São comuns os casos em que condutas tipificadas como atos ímprobos também são tipificadas como crimes contra a Administração Pública. Nessas hipóteses, embora existam diferenças quanto ao comando normativo e às sanções aplicáveis, não raro se observa o duplo processamento nas esferas penal e de improbidade administrativa em razão do mesmo fato, praticado pelo mesmo indivíduo, por fundamentos jurídicos semelhantes - tutela do patrimônio público, da probidade e da moralidade administrativa.

Nesse sentido, os atos ímprobos dispostos nos art. 9.º, 10 e 11 da LIA, referentes aos atos que causam enriquecimento ilícito, lesão ao erário ou violação aos princípios da Administração Pública, também podem configurar crimes em licitações e contratos administrativos, os quais compreendem contratação direta ilegal, fraude em licitação, frustração do caráter competitivo da licitação, entre outros (art. 337-E e seguintes do CP, introduzidos pela lei 14.230/21).

O decreto-lei 201/1967, que trata dos crimes de responsabilidade de Prefeitos Municipais, pune condutas que também são tipificadas como atos ímprobos na Lei de Improbidade Administrativa, tendo em vista a identidade entre condutas de utilização, desvio e apropriação de rendas públicas (art. 1.º, I, II, e III, DL 201/67) e a consequente lesão ao erário, enriquecimento ilícito e violação a princípios da Administração Pública.

A correspondência entre condutas tipificadas como atos ímprobos e condutas tipificadas como crimes contra a Administração Pública não é novidade na prática judiciária. Espera-se, quase que automaticamente, o ajuizamento de ação civil pública para imputação de ato ímprobo, seguido de oferecimento de denúncia pelo órgão ministerial em ação penal própria, visando à condenação por tipos penais relacionados às mesmas condutas, imputadas ao mesmo sujeito.

As sanções impostas pela LIA são, por vezes, tão graves ou mais graves do que as sanções impostas pelo direito penal, considerando, sobretudo, as sanções de suspensão de direitos políticos e perda da função pública. Essas sanções representam graves punições àqueles que dependem da carreira política ou do serviço público para a subsistência. É possível reconhecer sobreposição de reações estatais, de modo que "tudo o que está contido na Lei de Improbidade Administrativa também está previsto no Direito Penal como reação".3

A jurisprudência majoritária não reconhece a transversalidade do ne bis in idem, prevalecendo o posicionamento no sentido da defesa do princípio da independência das esferas, o qual sustenta a possibilidade de dupla punição em sede penal e pela LIA do mesmo agente por fato idêntico, pela aplicação das respectivas sanções, sem que isso represente violação ao ne bis in idem4.

De outro lado, observa-se movimento jurisprudencial em ascensão no sentido do reconhecimento da transversalidade do princípio, ilustrado pelo precedente datado de 15/12/2020, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, em que na Reclamação n.º 41.557/SP a Segunda Turma do STF, por maioria, proferiu importante decisão reconhecendo a possibilidade de aplicação do ne bis in idem entre os âmbitos penal e da Lei de Improbidade Administrativa5.

O julgado consignou a ação de improbidade administrativa como pertencente ao direito administrativo sancionador e, consequentemente, como uma extensão do sistema criminal e do poder punitivo estatal, reconhecendo a aproximação das duas esferas sancionatórias. Além disso, o STF considerou a extensão das garantias individuais tipicamente penais à esfera do direito administrativo sancionador para fundamentar a transposição da garantia do ne bis in idem para a esfera da improbidade administrativa, ao entendimento de que sua aplicação não se limita ao interior do subsistema, mas se estende à relação com o subsistema do direito penal.

A partir da harmonização do ne bis in idem com a mitigação do princípio da independência das esferas, o STF entendeu que a compreensão acerca do contexto fático-probatório estabelecida em uma decisão de mérito definitiva na esfera penal que fixa entendimento de inexistência do fato ou de negativa de autoria não pode provocar novo processo no âmbito do direito administrativo sancionador. Ambas as esferas seriam círculos concêntricos de ilicitude que não podem ensejar dupla persecução e punição, incidindo neste ponto o bis in idem.

Ao lado desse movimento jurisprudencial, a nova LIA (lei 14.320/2021) trouxe avanços no sentido da mitigação do princípio da independência das esferas e na expansão do ne bis in idem, introduzindo dispositivos que obstam ou amenizam casos que podem levar a múltiplas punições pelos mesmos fatos, assim como casos em que podem coexistir decisões conflitantes ou incoerentes entre os diferentes âmbitos e a respeito dos mesmos fatos.

A nova LIA inseriu dispositivos que estabelecem a comunicabilidade de decisões entre os diferentes âmbitos punitivos, sinalizando a aplicação mitigada da independência das esferas a partir da determinação de que devem ser considerados nas ações de improbidade: (i) os efeitos de sentenças cíveis e penais que concluam pela inexistência da conduta ou negativa da autoria (art. 21 § 3.º); (ii) que a absolvição criminal em ação referente aos mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada, impede o trâmite da ação por improbidade administrativa (art. 21 § 4.º); (iii) a compensação entre sanções aplicadas em outros processos (art. 21, § 5.º); e (iv) que sejam deduzidos também valores pagos, a título de reparação do dano, nas instâncias criminal, cível e administrativa (art. 12, § 6.º). Esses dispositivos objetivam prevenir decisões contraditórias ao mesmo tempo que evitam que o sujeito seja submetido a múltiplos processamentos e sanções pelos mesmos fatos no âmbito da LIA quando o caso já estiver resolvido em outras esferas.

A nova Lei estabeleceu, ainda, a observância ao ne bis in idem na relação entre os âmbitos específicos da LIA e da Lei Anticorrupção (Lei n.º 12.846/13). Nos termos do caput do art. 12 da antiga LIA, sujeitos e empresas acusados pela prática de atos ímprobos poderiam ser processados e sofrer sanções também nas esferas administrativa e penal pelas mesmas condutas. Pela nova redação, manteve-se a previsão acerca da multiplicidade sancionatória, em observância ao princípio da independência das esferas, mas se estabeleceu exceções a este princípio, mitigando sua aplicação. O § 2.º do art. 3.º instituiu a vedação à aplicação cumulativa em face da empresa das sanções previstas na LIA e na Lei Anticorrupção. Isso significa que uma empresa sancionada pela Lei Anticorrupção - que impõe responsabilização objetiva, civil e administrativa da empresa que pratica atos lesivos à Administração Pública - não poderá mais sofrer sancionamento, pelo mesmo fato, pela LIA.

Ainda quanto à aplicação cumulativa das sanções da LIA e da Lei Anticorrupção, a nova redação prevê expressamente o dever de observância ao "princípio constitucional do non bis in idem" (art. 12, § 7.º). As modificações são de elevada importância, pois reconhecem ineditamente a aplicação do ne bis in idem enquanto previsão expressa na legislação. A nova Lei consagrou a aplicação do ne bis in idem no âmbito do direito administrativo sancionador autonomamente, não mais considerado como princípio inerente ao direito penal e aplicado por extensão à LIA. Não somente isso, a nova LIA reconhece a incidência do ne bis in idem na relação entre esferas sancionadoras distintas, podendo-se falar no reconhecimento do caráter transversal do princípio.

No mesmo dispositivo (art. 12, § 7.º), a nova Lei ainda consignou a origem constitucional do ne bis in idem, podendo se discutir a natureza do princípio enquanto garantia fundamental implícita da Constituição Federal a partir da cláusula de abertura material dos direitos e garantias fundamentais, consagrada no art. 5.º, § 2.º, da CF/88. Algumas discussões mais complexas podem emergir com essa previsão, sobretudo, quanto à possibilidade de se falar na aplicação da garantia do ne bis in idem a pessoas jurídicas, a qual, contudo, não é aplicável às pessoas físicas que de maneira semelhante se submetem a múltiplas esferas sancionadoras em razão da prática das mesmas condutas.

Por fim, a nova LIA trouxe em suas disposições gerais alteração que confere embasamento constitucional à aplicação do ne bis in idem a partir do reconhecimento de que se aplica ao sistema da improbidade os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador (art. 1º, § 4º). Este dispositivo representa importante avanço garantista à esfera da improbidade administrativa ao admitir a sua natureza sancionatória e a sua proximidade com o direito penal. Concluindo-se que se os princípios e garantias do direito administrativo sancionador - este reconhecido como subsistema do direito penal, são aplicáveis à LIA - e se ao direito administrativo sancionador se estendem as garantias constitucionais e penais mínimas, estas garantias também se aplicarão à LIA, dentre as quais devem ser reconhecidos os princípios de legalidade, proporcionalidade, ampla defesa, contraditório e ne bis in idem6.

O reconhecimento do ne bis in idem, apesar de restrito à hipótese específica da vedação à aplicação cumulativa em face da empresa das sanções previstas na LIA e na Lei Anticorrupção, amplia a discussão sobre a transversalidade do princípio também quanto à múltipla punição nos distintos âmbitos do processo penal e da improbidade administrativa de pessoas físicas. A partir do reconhecimento do ne bis in idem, o qual constitui garantia fundamental, é possível discutir a extensão de sua aplicação a outros casos possíveis no âmbito da LIA, partindo de interpretação sistemática da legislação e de interpretação conforme a Constituição Federal.

As modificações da nova LIA representam consideráveis avanços na consagração do ne bis in idem e na interface entre o direito penal e o direito administrativo sancionador e expandiram a possibilidade de discussão dos próximos passos na direção do reconhecimento e concretização da vedação da multiplicidade sancionatória na relação entre as esferas punitivas no ordenamento jurídico brasileiro.

Inegavelmente, diante do cenário das crescentes sobreposições entre direito penal e direito administrativo sancionador, e das recentes modificações LIA, o reconhecimento do ne bis in idem transversal passa a ocupar papel central na discussão quanto à responsabilização criminal e por atos ímprobos. A partir das alterações da nova LIA, a independência das esferas deve ser interpretada pelos tribunais de maneira compatibilizada com o princípio do ne bis in idem, o que já tem se observado enquanto um movimento incipiente na jurisprudência do STF. Não se pode ignorar a incidência do ne bis in idem entre as esferas penal e administrativa, sob pena de serem exaradas decisões contraditórias.

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CRUZ, Rogério Schietti Machado. A proibição de dupla persecução penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.

2 SABOYA, Keity. Ne bis in idem: História, Teoria e Perspectivas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 7-9.

3 GUARAGNI, Fábio André. A lei de improbidade administrativa no contexto do controle da administração pública: semelhanças e distinções entre o direito administrativo e o direito penal. In: DINIZ, Cláudio Smirne; ROCHA, Mauro Sérgio; CASTRO, Renato de Lima (Org.). Aspectos controvertidos da lei de improbidade administrativa: uma análise crítica a partir dos julgados dos Tribunais Superiores. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 17.

4 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (2ª Turma). AgRg no AREsp nº 606352/SP. Relatoria: Min. Assusete Magalhães, 10 de fevereiro de 2016. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/. Acesso em: 07 nov. 2022.

5 BRASIL. Supremo Tribunal Federal (2ª Turma). Rcl 41.557. Relatoria: Min. Gilmar Mendes, 14 de dezembro de 2020. Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/djEletronico/DJE_20200617_151.pdf. Acesso em: 07 nov. 2022.

6 COSTA, Helena Regina Lobo da. Proteção penal ambiental. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 206.