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Flamengo e a Sociedade Anônima do Futebol: a cada rodada, uma goleada

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Atualizado às 09:01

Escrevo este artigo ainda sob os efeitos estimulantes da última goleada do Mais Querido do Brasil, o meu Flamengo. A derrota do tradicional e multicampeão paraguaio foi uma vitória justa e convincente do rubro-negro contra tudo o que há de consabidamente ruim nos costumes futebolísticos do cenário sulamericano, foguetório no hotel dos atletas, estádio acanhado, torcida mal-educada, time tecnicamente mediano que busca o embate físico, arbitragem vacilante e outros que tais.

De fato, para esse Flamengo do técnico Renato Portaluppi, cada rodada é uma goleada. Os jogos sob sua direção são marcados por resultados com largo saldo de gols e, felizmente, quase todos positivos. Na rodada anterior, contudo, quando o retrospecto indicava um destino melhor, a goleada foi imposta pelo adversário. Um duro 4 a 0!

Assim também ocorre com a Sociedade Anônima do Futebol (SAF), novo tipo de empresa criado pela lei 14.193 de 6 de agosto de 2021, destinado às companhias que tiverem por atividade principal a prática do futebol, feminino e masculino, em competição profissional. A lei 14.193, de 2021, é resultado do projeto de lei 5.516/19 de autoria do Senador Rodrigo Pacheco e, não por outra razão, é intitulada Lei Rodrigo Pacheco.

Em seu trâmite legislativo pelas casas do Congresso Nacional, o Projeto de Lei mostrou "a força do seu futebol". Na Câmara dos Deputados1, foi aprovado por um acachapante 429 a 7! No Senado Federal2, por sua vez, a defesa sequer foi vazada e a aprovação se deu de forma unânime.

A análise do texto mostra os gols que ensejaram as vitórias do projeto em sua jornada. A Lei Rodrigo Pacheco institui um microssistema adaptado para a empresa do futebol abordando aspectos tão importantes quanto delicados para o sucesso da nova forma de companhia. Cada um desses pontos é fundamental para romper o ciclo vicioso que mantém o futebol brasileiro nas mãos de dirigentes não profissionais, afasta investidores nacionais e internacionais, diminui a transparências das informações financeiras dos clubes e impede que o potencial econômico dessa atividade, no "país do futebol", se transforme em resultado esportivo perene.

Na perspectiva dos clubes tradicionais, a Sociedade Anônima do Futebol pode surgir pela transformação do clube ou pela cisão do departamento de futebol com transferência do patrimônio relacionado à atividade futebol. Depois de criada, a SAF só poderá exercer a) atividades diretamente ligadas ao futebol, previstas na Lei; b) atividades conexas ao futebol, como a organização de eventos esportivos; e c) atividades ligadas ao seu patrimônio, como a gestão de um imóvel que detenha. É uma delimitação que impede que a nova empresa se aventure em atividades estranhas ao futebol, contribui para a profissionalização e especialização de dirigentes, além de facilitar que os futuros investidores compreendam melhor os riscos e as vantagens do investimento.

Vale dizer que a nova companhia terá o direito de participar de campeonatos nas mesmas condições do clube original, ou seja, o Palmeiras S/A ou o Cruzeiro S/A não sofrerá quaisquer prejuízos de ordem desportiva.

A Lei preocupou-se em manter certos direitos para o clube do qual se origina a nova empresa, mesmo que ela venha a ser alvo de grandes investimentos de terceiros. O clube original passa a ser um acionista com direitos especiais que, por exemplo, tem poder de veto em propostas de mudança de denominação, de brasões e símbolos e de sede.

Há também diversas disposições em benefício da governança das SAFs em paralelo aos aprimoramentos que já seriam devidos em razão do fato de se tornarem sociedades anônimas submetidas subsidiariamente a Lei n° 6.404/76 (Lei das Sociedades Anônimas - LSA). São regras que, entre outras medidas, evitam conflitos de interesse que poderia haver na participação de dirigentes em mais de uma SAF, na participação de dirigentes dos clubes originais na nova companhia, na participação de atletas e árbitros na gestão, etc.

Ciente da realidade dos atuais clubes, que convivem com dívidas trabalhistas e cíveis que por vezes inviabilizam a condução dos negócios, a Lei cria uma modalidade especial de concurso de credores por meio do chamado Regime Centralizado de Execuções. A ideia aqui é centralizar as execuções de dívidas judiciais em um mesmo juízo, organizar o pagamento dos credores em termos compatíveis com os fluxos de caixa e evitar penhoras e bloqueios enquanto a SAF estiver comprometida com um plano de soerguimento financeiro. Aqui, efetivamente, não se trata de qualquer perdão de dívida, mas, sim, de organizar o passivo anterior do clube para viabilizar o nascedouro da empresa.

Perceba-se. Até aqui, independentemente de qualquer juízo quanto à tecnicidade jurídica da norma, verifica-se que a Lei cuidou da forma de constituição da empresa, do objeto social, da participação do clube original, da governança da empresa, da proteção de seus ativos, da reorganização de suas dívidas, e de vários outros itens que mereceriam comentários positivos num espaço mais amplo. Uma goleada!

Aliás, considerando todas as disposições da Lei Rodrigo Pacheco e a aplicação subsidiária da LSA, valeria falarmos num momento futuro sobre a revolução que se verificaria no Brasil numa realidade em que times de futebol fossem fruto de sociedades anônimas de capital aberto, sob diversas perspectivas, a saber: do investidor, do produto futebol, da gestão profissional, da fiscalização por órgãos especializados como a CVM, da responsabilidade socioambiental, do uso das mídias sociais, etc.

Entretanto, a SAF (e o meu Flamengo) não tem vivido apenas de goleadas positivas, é necessário falar dos pontos fundamentais da Lei que foram vetados por oportunidade da sanção presidencial. Dessa vez, nós perdemos.

Parece-me evidente que uma alteração tão substancial na realidade de agentes econômicos tradicionais requer, além de legislação especializada, um robusto conjunto de incentivos. Um clube de futebol já poderia constituir uma sociedade anônima, utilizar os instrumentos de recuperação judicial e emitir dívida. Clubes de futebol já foram objeto de programas de repactuação de dívidas. A nova legislação trouxe arcabouço jurídico específico para a realidade das agremiações futebolísticas, mas não prescinde de incentivos financeiros que permitam o aumento de receitas e a diminuição de custos, ao menos por oportunidade de sua estruturação.

Os vetos presidenciais perpassaram vários pontos da Lei, mas, no contexto deste artigo, dois deles merecem destaque. O primeiro deles é o incentivo fiscal para os investidores que adquirissem debêntures emitidas pelas Sociedades Anônimas do Futebol, as chamadas debêntures-fut. A fim de incentivar os investidores privados a financiar as SAFs e diminuir os custos de captação de recursos por essas empresas, a Lei previa redução de impostos sobre os rendimentos que esses investidores obtivessem.

Os vetos também suprimiram o Regime de Tributação Específica do Futebol (TEF), que facilitava a arrecadação, unificava tributos e reduzia alíquotas aplicáveis às SAFs, trazendo importante desoneração fiscal para esse mercado. Neste ponto, ainda que eu considere louvável a preocupação com responsabilidade fiscal, o argumento não se sustenta, como já observou Rodrigo Monteiro de Castro: "34% de zero é igual a zero"3.

Assim como ocorreu com o rubro-negro carioca, o retrospecto das SAFs nas casas do Congresso Nacional sugeria um resultado melhor por oportunidade da sanção do texto pela presidência da república. De toda forma, torço pela recuperação dos pontos perdidos quando da análise dos vetos pelo parlamento.

Os analistas do direito, e amantes do esporte, lembrarão que o Congresso Nacional derrubou este ano outros vetos da presidência fundamentados na impossibilidade de renúncia fiscal.  Foram 12 vetos derrubados4 entre os 14 realizados na lei 14.112/2020, que alterava a Lei de Recuperação Judicial e Falências, e 4 vetos derrubados5 na lei 14.130/2021, que instituiu o FIAGRO (Fundo de Investimento do Agronegócio). Podemos esperar uma nova goleada a favor da Sociedade Anônima do Futebol? A torcida agradece.

*Henrique Machado é advogado e professor convidado da FGV-Rio, OAB/DF, IDP e KOPE em disciplinas relativas ao mercado de capitais. Pós-graduado em Direito Econômico da Regulação Financeira, pela UnB, foi secretário do Conselho Monetário Nacional (CMN), secretário-executivo adjunto do Banco Central do Brasil (BCB), secretário-executivo do Comitê de Regulação e Fiscalização dos Mercados Financeiro, de Capitais, de Seguros, de Previdência e Capitalização (Coremec) e Diretor da Comissão de Valores Mobiliários (CVM). É sócio do escritório Warde Advogados.

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1 Disponível aqui.

2 Disponível aqui.

3 Acessível aqui.

4 Acessível aqui.

 

5 Acessível aqui.