COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas

Migalhas Contratuais

Temas relevantes do Direito Contratual.

Maurício Bunazar, Eroulths Cortiano Junior, José Fernando Simão, Luciana Pedroso Xavier, Marília Pedroso Xavier e Flávio Tartuce
Texto de autoria de Flávio Tartuce O novo coronavírus - tecnicamente chamado de Covid-19 - transformou-se em uma pandemia de repercussões inimagináveis para todos, atingindo em cheio os contratos e demais negócios jurídicos. Desde o surgimento do vírus no Brasil, muito já se produziu a respeito das repercussões contratuais, destacando-se, de imediato, os textos publicados nesta coluna Migalhas Contratuais, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). Por certo é que não só nos momentos de aguda crise, mas também depois que ela passar, enormes são e serão os desafios a superar no enfrentamento das questões contratuais. Junto-me, assim, a outros juristas que já enfrentaram o difícil tema, caso de Carlos Eduardo Elias de Oliveira, Aline Valverde, Anderson Schreiber, Rodrigo da Guia, Eduardo Nunes e Carlos Eduardo Pianovski. Neste meu breve estudo, procurarei demonstrar, em termos gerais, os grandes dilemas que dizem respeito à extinção, revisão ou conservação das avenças. O texto está dividido em cinco partes, de forma bem didática. Na primeira delas, serão expostas as ferramentas que o Direito Privado apresenta para a extinção ou revisão dos contratos. Na segunda, os instrumentos de conservação, de permanência do negociado, de respeito à palavra dada. Na terceira parte, apresentarei uma dúvida do Professor Anderson Schreiber, sobre duas possíveis soluções para a análise dos contratos em tempos de pandemia, dando a minha resposta. Na quarta, tomarei por base o artigo de Eduardo Nunes e Rodrigo da Guia, sobre a distinção de três hipóteses concretas que devem ser analisadas, dependendo da situação em que se situe cada negócio jurídico e os institutos aplicáveis para sua extinção ou revisão. Na quinta, trarei algumas sugestões para solucionar as novas dúvidas do cotidiano dos negócios em geral. Pois bem, iniciando-se pelos instrumentos existentes no sistema para a revisão ou resolução contratual, elenco os seguintes, muitos deles já destacados em textos até aqui publicados, em rol meramente exemplificativo: a) Alegação de caso fortuito - evento totalmente imprevisível - ou força maior - evento previsível, mas inevitável -, nos termos do art. 393 do Código Civil, para justificar o inadimplemento. Por esse comando, o devedor não responde pelos prejuízos resultantes desses eventos se expressamente não se houver por eles responsabilizado, por força do contrato. b) Resolução ou revisão do contrato com base na teoria da imprevisão ou da onerosidade excessiva, o que tem fundamento, nas relações civis, nos arts. 317, 478, 479 e 480 do Código Civil. Nunca é demais lembrar que a codificação privada exige, além da onerosidade excessiva, que o fato novo superveniente que causou o desequilíbrio seja, ao menos, imprevisível, afirmação que vale para a pandemia de Covid-19. Quanto aos contratos de consumo, a revisão ou resolução contratual dispensa a imprevisibilidade, bastando um fato novo que cause a quebra da base objetiva do negócio, da proporcionalidade das prestações (art. 6º, inc. V, da Lei n. 8.078/1990). c) Utilização do instituto da impossibilidade da prestação, mesmo que sem culpa da parte da relação obrigacional, o que gera a sua resolução ou extinção, sem a imputação de perdas e danos, ou seja, sem que surja o dever de responder por eventuais prejuízos causados pela extinção do negócio. A impossibilidade tem por fundamento o art. 234 do Código Civil - no caso de obrigação de dar -, o seu art. 248 - em se tratando de obrigação de fazer - e o art. 250 da codificação privada - presente a obrigação de não fazer. d) Argumento da exceção de contrato não cumprido, retirado do art. 476 do Código Civil, segundo o qual, em um contrato bilateral - com deveres proporcionais para ambos os pactuantes -, uma parte não pode exigir que a outra cumpra com a sua obrigação se não cumprir com a própria. Como efeito resolutivo, se ambas as partes não cumprirem com o que é devido, o negócio será reputado como extinto e resolvido, desde que isso seja alegado em uma demanda judicial, pois trata-se de uma cláusula resolutiva tácita (art. 474 do CC). e) A exceção de contrato não cumprido também cabe no caso de iminência de descumprimento por uma das partes, como se retira do art. 477 do CC/2002, podendo-se exigir o cumprimento antecipado ou garantias prévias, sob pena de resolução. Desse último preceito retira-se a exceção de inseguridade, suspendendo-se o cumprimento do contrato até que as exigência contidas na norma sejam atendidas (Enunciado n. 438 da V Jornada de Direito Civil). Também é possível dele abstrair a tese da quebra antecipada do contrato ou inadimplemento antecipado, quando os fatos demonstrarem, de forma séria e real, que o descumprimento é iminente (Enunciado n. 437 da V Jornada de Direito Civil). f) Alegação da frustração do fim da causa do contrato, como se retira do Enunciado n. 166 da III Jornada de Direito Civil, outra afirmação doutrinária interessante para os dias atuais: "a frustração do fim do contrato, como hipótese que não se confunde com a impossibilidade da prestação ou com a excessiva onerosidade, tem guarida no Direito brasileiro pela aplicação do art. 421 do Código Civil". Apesar de o Código Civil Brasileiro não ter adotado expressamente a teoria da causa do contrato ou do negócio jurídico - como fez, por exemplo, o Código Civil Italiano (arts. 1.325, 1.343 a 1.345) -, tem-se associado a tese da frustração do fim com a função social do contrato, em sua eficácia interna, o que conta com o meu apoio doutrinário. Assim sendo, se, por um motivo estranho às partes, o contrato perder sua razão de ser, será reputado extinto, mais uma vez com a resolução sem perdas e danos. Expostos os principais argumentos para a revisão ou resolução dos contratos, tem-se, por outra via, com vistas à sua manutenção, se não de acordo com o que foi inicialmente pactuado, em sentido muito próximo: a) Boa-fé objetiva, o que tem fundamento nos arts. 113, 187 e 422 do Código Civil, sem prejuízo de outras regras específicas, como a norma relativa ao seguro (art. 765 do CC). Como é notório, a Lei da Liberdade Econômica (Lei n. 13.874/2019) alterou o primeiro comando, inserindo dois novos parágrafos, valorizando sobremaneira o avençado e aumentando a força da autonomia privada. Assim, nos termos do novo § 1º do art. 113 do CC/2002, a interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio; corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativos ao tipo de negócio; corresponder à boa-fé; for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e corresponder àquela que seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração. Ademais, está previsto que as partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei. A valorização da boa-fé também é retirada do art. 3º, incs. V e VIII, da Lei n. 13.874/2019 ("Art. 3º São direitos de toda pessoa, natural ou jurídica, essenciais para o desenvolvimento e o crescimento econômicos do País, observado o disposto no parágrafo único do art. 170 da Constituição Federal: (...) V - gozar de presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica, para os quais as dúvidas de interpretação do direito civil, empresarial, econômico e urbanístico serão resolvidas de forma a preservar a autonomia privada, exceto se houver expressa disposição legal em contrário; (...) VIII - ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública"). b) Força obrigatória das convenções e dos contratos, concretizado na máxima pacta sunt servanda, adotada expressamente por vários preceitos da Lei da Liberdade Econômica, com destaque para o seu art. 2º - ao valorizar a liberdade como princípio inerente à garantia no exercício de atividades econômicas - e para os últimos comandos transcritos. c) Função Social do Contrato, novamente em sua eficácia interna, no sentido de conservar ao máximo os negócios pactuados e a autonomia privada (arts. 421 e 2.035, parágrafo único, do CC). Nesse sentido, destaco o Enunciado n. 22, aprovado na I Jornada de Direito Civil: "a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral que reforça o princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas". Constata-se, portanto, que esse princípio pode ser utilizado, em suas diferentes expressões, tanto para a extinção como para a manutenção do contrato. d) Função Social do Contrato, em sua eficácia externa, no sentido de que a solução contratual não pode trazer lesões a interesses difusos e coletivos, bem como prejuízos a terceiros, caso de consumidores. Dentro dessa ordem, o contrato não pode ofender valores ambientais ou atinentes à concorrência. e) Princípio da Intervenção Mínima do Estado nas relações contratuais, constante do novo parágrafo único do art. 421 do Código Civil, inserido pela citada Lei da Liberdade Econômica: "nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual". Apesar de dúvida levantada por alguns civilistas quanto à existência ou não desse princípio nas relações contratuais - mormente diante de um Código Civil com várias normas de ordem pública e com caráter intervencionista -, é possível reconhecer a sua aplicação restrita aos contratos paritários - com ampla negociação do seu conteúdo -, foco principal da Lei n. 13.874/2019. f) Incidência das regras relativas ao inadimplemento, seja absoluto ou relativo, caso dos arts. 389, 390, 391, 394 e 396 do Código Civil, sem prejuízo das consequências jurídicas dele advindas, constantes das normas seguintes, as relativas aos juros e à cláusula penal. Como consequência dos dispositivos que tratam do inadimplemento contratual, o art. 475 do Código Civil prevê que "a parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos". Sobre a exigência de cumprimento do contrato, constante do último preceito, o Código de Processo Civil consagra mecanismos de tutela específica para as obrigações de dar coisa certa, fazer e não fazer, como a fixação de multa diária ou astreintes (arts. 497, 498 e 536 do CPC/2015). Expostos os argumentos que podem ser utilizados de forma contraposta nas demandas relativas à pandemia, todos eles muito plausíveis, cabe interrogar, como fez Anderson Schreiber em mensagem eletrônica, qual seria a melhor solução para os contratos em tempos de pandemia. Aplicar a generalização para a extinção ou revisão imediata, com a utilização dos primeiros mecanismos listados, liberando-se o devedor de suas obrigações em muitas das situações ou até como regra geral? Ou, por outra via, analisar o impacto específico para cada contrato, sendo possível também utilizar os mecanismos de conservação? A minha resposta, como quer o jurista citado, é pelo segundo caminho, buscando-se um equilíbrio entre as teses conflitantes. A propósito, em artigo muito bem desenvolvido, Eduardo Nunes de Souza e Rodrigo da Guia procuram separar três grupos ou hipóteses de contratos, propondo soluções diversas com vistas à resolução ou revisão (Resolução contratual nos tempos do novo coronavírus. Disponível aqui. Acesso em: 23/3/20). No primeiro grupo estão aqueles contratos em que houve a intervenção do Estado por atos normativos para fazer cessar as atividades, um fato do príncipe, como nos casos de cinemas, restaurantes, teatros e lojas em shopping centers ou fora deles. Para esses negócios, os autores sugerem a incidência da impossibilidade da prestação, com a suspensão de pagamentos ou eventual resolução no futuro, sem imputação de culpa a qualquer uma das partes. No segundo grupo de contratos situam-se os negócios em que não há ato normativo de intervenção, mas está presente a falta de interesse da parte quanto ao seu conteúdo, o que se verifica para as compras de passagens áreas. Nesses, incide a tese da frustração do fim da causa, que, como visto, tem relação com a função social do contrato, resolvendo-se este sem a imputação de culpa a qualquer uma das partes. De todo modo, não se pode admitir, com essa solução, uma proteção exagerada de qualquer uma dos partes para que, por exemplo, os valores sejam devolvidos somente após um longo período de tempo, fora da esperada razoabilidade. Assim, um prazo de doze meses para a devolução dos valores relativos às passagens áreas me parece algo excessivo. Por fim, no terceiro grupo temos os contratos em que houve um agravamento do sacrifício econômico para uma ou ambas as partes, caso de grandes contratos de fornecimento entre empresas, ou empréstimos bancários para o incremento do capital de giro. Aqui, devem ser subsumidos os preceitos relacionados à revisão ou mesmo resolução por onerosidade excessiva, caso dos arts. 317 e 478 do Código Civil. Não se pode esquecer que, diante do princípio da conservação e da correspondente função social do contrato, a extinção do contrato deve ser a última medida a ser tomada. Nesse contexto, cito o Enunciado n. 176 da III Jornada de Direito Civil: "em atenção ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, o art. 478 do Código Civil de 2002 deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial dos contratos e não à resolução contratual". A divisão proposta pelos autores parece-me perfeita. Porém, não se pode perder de vista algumas ressalvas para a manutenção das avenças, para o salvamento dos contratos. Além da premissa de ser a revisão a regra e a resolução contratual a exceção, é sempre recomendável o atendimento aos deveres de informar e de transparência, relacionados à boa-fé objetiva. Assim, penso que as partes devem, sempre que possível e imediatamente, comunicar qual a sua situação econômica e se pretendem ou não cumprir com as suas obrigações futuras. No caso da impossibilidade de cumprimento, é saudável que a parte apresente já um plano de pagamento, com diluição das parcelas no futuro. Nesse contexto, pode ser aplicado algo próximo à moratória legal, prevista no art. 916 do Código de Processo Civil. Conforme esse comando, em havendo execução de quantia certa, no prazo para embargos, reconhecendo o crédito do exequente e comprovando o depósito de trinta por cento do valor em execução, acrescido de custas e de honorários de advogado, o executado poderá requerer que lhe seja permitido pagar o restante em até seis parcelas mensais, acrescidas de correção monetária e de juros de um por cento ao mês. Esse plano de pagamento, previsto na própria lei processual, é interessante e pode ser aplicado extrajudicialmente. Isso não obsta, contudo, que os prazos e percentuais sejam alterados, a depender das circunstâncias fáticas e da própria natureza da pactuação. Também é possível sustentar - uma vez que a pandemia é um fato que gera consequências não imputáveis aos contratantes -, o afastamento da cobrança dos encargos e acessórios da dívida, como juros moratórios e multas contratuais. Aprofundando, entendo ser interessante, por colaboração entre as partes, a instituição de "prazos de graça" ou de "prazos de favor", com a extensão para pagamento ou para cumprimento posterior das obrigações. Tal solução, a propósito, consta do art. 47 da Convenção de Viena sobre Venda Internacional de Mercadorias (CISG), que no Brasil foi internalizada por força do Decreto n. 8.327/2014. Vejamos o seu teor: "(1) O comprador poderá conceder ao vendedor prazo suplementar razoável para o cumprimento de suas obrigações. (2) Salvo se tiver recebido a comunicação do vendedor de que não cumprirá suas obrigações no prazo fixado conforme o parágrafo anterior, o comprador não poderá exercer qualquer ação por descumprimento do contrato, durante o prazo suplementar. Todavia, o comprador não perderá, por este fato, o direito de exigir indenização das perdas e danos decorrentes do atraso no cumprimento do contrato". Trata-se do que se denomina como extensão de prazo (Nachfrist), cuja aplicação, nesses tempos de crise, pode ser ampliada para outros contratos e negócios jurídicos, além da compra e venda internacional de mercadorias. Nesse contexto, é viável a concessão de um prazo adicional ou período de carência de uma parte à outra, período em que não caberá alegar a resolução contratual por inadimplemento, o que tem o intuito de conservar a avença, diante do dever de colaboração retirado da boa-fé. Sem prejuízo dessas soluções consensuais, seria interessante a edição de leis emergentes para a solução dos contratos privados, como normas que estabeleçam moratórias em determinados contratos? Essa é uma dúvida atroz, que já tem dividido os juristas. Cito, como tal proposição, o Projeto de Lei n. 884/2020, originário do Senado Federal, que pretende suspender imediatamente as cobranças de aluguéis em todas as locações, por noventa dias. A proposta também almeja que os valores de aluguéis devidos deverão ser assumidos pelo Governo Federal quando o proprietário do imóvel alugado possuir patrimônio em valor inferior a R$ 2.500.000,00 (dois milhões e quinhentos mil reais) declarado em seu imposto de renda. O grande problema de propostas como essa - além da comum crítica de uma intervenção excessiva do Estado nos contratos - é o de cair na antes citada generalização. Assim, reitero a minha posição de que todos os contratos merecem uma análise pontual, dentro do esperado bom senso, como consequência imediata do princípio da boa-fé objetiva. As partes devem, assim, procurar soluções intermediárias e razoáveis, movidas pela equidade e pela boa razão. Os contratos relacionais ou cativos de longa duração, concretizados no tempo e com grande possibilidade de continuarem a se perpetuar no futuro, merecem prioridade de cumprimento, além daqueles negócios que envolvem conteúdo existencial, além do patrimônio, caso dos contratos de plano de saúde. Chegou o momento de as partes contratuais no Brasil deixarem de se tratar como adversários e passarem a ser comportar como parceiros de verdade. Ao invés do confronto, é preciso agir com solidariedade. De nada adiantará uma disputa judicial por décadas, com contratos desfeitos e relações jurídicas extintas de forma definitiva. Bom senso, boa-fé e solidariedade. Essas ferramentas serão essenciais, no presente e no futuro, muitas vezes mais do que os remédios ou instrumentos jurídicos antes citados, sejam aqueles que geram a extinção ou a conservação dos negócios.
  Texto de autoria de Carlos Eduardo Pianovski Valor da promessa e confiança legítima frente à grave perturbação objetiva do programa contratual Tempos de pandemia, assim como tempos de guerra, geram, a par de seus devastadores efeitos sobre a vida, repercussões que se espraiam sobre a economia, afetando, obviamente, as relações contratuais. Os contratos, como ensina a clássica lição de Roppo1, antes de institutos jurídicos, são operações econômicas. O contrato é o instrumento por excelência da livre iniciativa, e, como tal, se a economia adoece, o contrato pode demandar o tratamento e a medicação proporcionais (e, portanto, necessários e adequados) a auxiliar as defesas ordinárias da liberdade e da criatividade dos agentes a debelar a enfermidade. O Direito Contratual, em tempos de normalidade, define balizas inerentes à liberdade negativa, e garante a normatividade do exercício da autonomia privada, apontando para uma dimensão funcional que, prima facie, deve ser assecuratória e reprodutora da própria liberdade2. A força obrigatória dos contratos é, nesse contexto, a tônica, sendo sua mitigação apenas excepcional. Em tempos de grave crise, porém, o espaço para a exceção se amplia, diante do caráter também excepcional dos eventos que repercutem na economia dos contratos, ora inviabilizando seu adimplemento, ora oferecendo desproporcionais dificuldades para a realização integral de seu programa. A grave perturbação no processo obrigacional (para empregar a consagrada tese de Couto e Silva), impondo-se de fora para dentro à esfera jurídica dos contratantes, pode, legitimamente, implicar a modificação dos efeitos que, ordinariamente, seriam esperados do contrato. O duplo pilar sobre o qual se assenta o princípio da força obrigatória dos contratos - que consiste no valor jurídico da promessa e na confiança legítima - é como uma moeda com suas duas faces, trazendo, em si mesmo, os fundamentos para a mitigação da eficácia do princípio. A promessa, que se faz no exercício da liberdade econômica - inevitavelmente associada à autorresponsabilidade do agente livre - se faz sempre contextualizada, podendo ter seus efeitos suspensos ou, mesmo, afastados, em situações extremas que extrapolem o amplo espaço de riscos normais que é inerente ao contrato na economia capitalista. A autorresponsabilidade derivada do exercício livre da promessa pode ceder em contextos novos e excepcionais, que inviabilizem objetivamente seu cumprimento, ou o dificultem radicalmente. Da mesma forma, a confiança legítima, que oferece à força obrigatória seu fundamento de alteridade, também é contextualizada. Os mesmos fatos que podem retirar da promessa, de per se, a cogência moral e jurídica sob a perspectiva da liberdade individual, também podem repercutir na qualificação da confiança, a impor ao outro contratante não apenas a sujeição à suspensão da exigibilidade de dadas prestações, como o dever de renegociar os contratos, a sua modificação heterônoma pelo Judiciário ou pelo juízo arbitral, ou, ainda, no limite, a sua resolução por onerosidade excessiva. Em tempos de exceção, vêm à tona instrumentos que, apesar de consagrados de longa data pelo Direito Civil, são, também, excepcionais, como o remédio que somente deve ser ministrado enquanto a doença perdurar. A adequação e a dosagem dos medicamentos podem, porém, concretamente, variar de contrato para contrato. Não é possível, pois, ceder à tentação de afirmar que a crise - mesmo com a indisfarçável gravidade como a, hoje, gerada pelo COVID-19 - terá repercussões sobre a eficácia de todos os contratos. Tampouco se pode afirmar que, sobre os contratos que demandam os remédios que mitigam sua força obrigatória, os instrumentos serão os mesmos, ou terão a mesma extensão eficacial. A repercussão da crise do COVID-19, que se antevê como longa, é de difícil mensuração e previsão, e reivindicam inevitável análise casuística. Esta, porém, deve seguir as balizas do ordenamento jurídico, e, nesse sentido, a reflexão sobre os remédios jurídicos pede, como ponto de partida, o cuidado técnico com o seu emprego. A imputabilidade do incumprimento e a descaracterização da mora Uma questão imediata que vem à tona diante do cenário de pandemia é o cumprimento pontual das obrigações em curso. Apesar da repercussão generalizada dos efeitos da COVID-19 sobre a vida das pessoas, não é possível afirmar, genericamente, que a exigibilidade das prestações contratuais está suspensa, com a cessação dos efeitos da mora. Examinar mora é avaliar imputabilidade objetiva. Há obrigações que permanecem exigíveis, diante da ausência de repercussão efetiva de força maior ou fato do príncipe que afaste a possibilidade razoável de cumprimento tempestivo. A impossibilidade de adimplemento é aferível não pelo fato externo em si, mas pela repercussão deste na esfera jurídica do devedor, sempre forte nos baldrames de alocação de riscos definidos pelo contrato. Nessa linha, pode-se concluir que, ao menos neste momento, boa parte das obrigações pecuniárias se enquadra nesse âmbito em que a exigibilidade se mantém, sempre a depender, obviamente, da aferição concreta sobre a esfera jurídica do devedor, com especial atenção, nos contratos empresariais, nas repercussões objetivas ensejadas pela pandemia em sua atividade econômica. Não é difícil, de outro lado, aferir a inimputabilidade do não cumprimento tempestivo de dadas obrigações referentes a atividades econômicas cujo exercício tenha sido suspenso por determinação estatal. Obrigações de fornecimento, ou de entrega de coisa certa, impostas a agentes econômicos que tiverem suas atividades suspensas, seja por proibição de circulação de pessoas, seja por ordem estatal, podem ter, efetivamente, sua impontualidade marcada pela inimputabilidade, afastando os efeitos próprios da mora. O mesmo se diga sobre serviços não essenciais que não possam ser prestados razoavelmente por meio remoto, e que sejam inviabilizados por restrições à movimentação de pessoas. A impossibilidade objetiva retira a imputabilidade, e, portanto, desnatura a mora e seus efeitos. O caráter extraordinário e imprevisível dos efeitos da pandemia e sua repercussão na revisão e na resolução contratual A experiência jurisprudencial brasileira na aplicação dos artigos 317 e 478 do Código Civil tem se dirigido, historicamente, ao correto prestígio à força obrigatória dos contratos, e do caráter excepcional da revisão e da resolução contratual com base na teoria da imprevisão - que pode decorrer da interpretação sistemática dessas regras. Com efeito, mais fácil é a identificação da referência jurisprudencial às normas que regem a matéria por meio de decisões que apontam a inviabilidade da revisão contratual do que naquelas que a autorizam3. O contexto da grave crise que deriva da pandemia, porém, poderá vir a ser campo fértil para pôr à prova a aplicação dessas regras. O ponto de partida para a adequada compreensão da viabilidade da resolução ou da revisão contratual pelo juiz ou pelo árbitro, sob o fundamento da onerosidade excessiva, reside no sentido que se pode atribuir ao conceito de fato superveniente extraordinário e imprevisível. Não basta, para a revisão contratual, que o fato, em si mesmo, exceda consideravelmente os riscos normais do negócio (caráter extraordinário) e não seja passível de razoável antecipação pelos contratantes momento da celebração da avença (imprevisibilidade), mas é necessário que os efeitos concretos do evento na economia do contrato também detenham essas características. A rigor, mais do que o fato em si, importa aferir o caráter extraordinário e imprevisível dos efeitos do fato sobre as esferas econômicas dos contratantes, e, notadamente, sobre o programa contratual. Essas repercussões serão variáveis caso a caso, conforme as características das obrigações em jogo. Assim como as revisões contratuais serão, por certo, mais frequentes do que em tempos de normalidade social e econômica, haverá contratos que, mesmo com elevada repercussão na equação econômico-financeira, não poderão ser revisados, pois os efeitos concretos do evento pandemia integrarão o âmbito dos riscos normais do negócio (não se tratando, pois, de efeito extraordinário sobre a avença, a despeito do fato extraordinário da própria pandemia). Mais uma vez, a aferição somente poderá ser realizada caso a caso, pautando-se na correta e técnica aplicação dos parâmetros normativos. Da cláusula de hardship e do dever de renegociação derivado da boa-fé As medidas terminativas ou de revisão contratual devem ser sempre balizadas pelo princípio da boa-fé contratual. Não por acaso, a confiança legítima, que integra o binômio constitutivo do princípio, é um dos pilares da força obrigatória dos contratos (ao lado do valor jurídico da promessa). Em lúcido artigo publicado neste espaço, Anderson Schreiber, ao ressaltar a necessária preservação da força obrigatória dos contratos, aponta, como corolário da boa-fé, o dever de renegociar. Com efeito, tal dever pode tanto ser previsto contratualmente em cláusula de hardship4, como derivar diretamente da função integrativa da boa-fé. Medidas interventivas devem ser precedidas do cumprimento do dever de renegociar - e o não atendimento desse preceito, em situação de grave crise, pode gerar repercussões a balizar a própria intervenção judicial, podendo, no limite, implicar o não atendimento de pretensões de modificação ou extinção de contratos, por violadoras à boa-fé objetiva. O dever de renegociar, derivado da boa-fé, é consonante com o valor da liberdade contratual - que se fundamenta, em última instância, na própria livre-iniciativa. A aposta constitucional na liberdade dos agentes privados não é eliminada, mesmo em momentos de grave crise. Daí a necessidade de se refletir sobre o sentido e os limites da intervenção estatal nos contratos, tanto no grave contexto presente, quanto no momento pós-crise. Dos limites da intervenção estatal nos contratos: preocupações sobre o pós-crise As reflexões até aqui traçadas se pautam, cabe ressaltar, no ordenamento posto. Novas iniciativas legislativas para a imposição de remédios emergenciais e transitórios não são, porém, de se descartar, a depender da gravidade e da extensão dos efeitos econômicos da crise - especialmente diante de repercussões dotadas de considerável grau de generalidade. A intervenção corretiva, que permita a manutenção de contratos como um respirador artificial a insuflar os pulmões da livre iniciativa, pode ser não apenas aceitável como pode se tornar indispensável para a preservação das relações econômicas, permitindo, em momento posterior, que a liberdade e a inventividade dos agentes privados complete as condições para a cura. Não se pode desconsiderar, ainda, que medidas estatais mitigatórias, que não afetam diretamente contratos, mas protegem e asseguram o prosseguimento de dadas atividades, podem ser elementos relevantes para a aferição da presença ou não de requisitos aptos a ensejar revisão contratual ou suspensão da exigibilidade de obrigações, nos termos anteriormente expostos neste texto. Instrumentos de Direito Civil para mitigar a força obrigatória podem vir a ter, portanto, sua eficácia afastada em dados casos, nos quais a atuação estatal tenha viabilizado razoavelmente a manutenção do regular cumprimento das obrigações. A atuação estatal, em momento de grave crise, não deve vir, pois, como dirigismo universal ou contraposição à liberdade dos particulares, mas, sim, como instrumento à preservação das condições de possibilidade dessa mesma liberdade, e viabilização de sua reprodução. A intervenção estatal com medidas de exceção somente se justifica - com o perdão da obviedade - quando a situação excepcional está presente, e deve ser sempre, reitere-se, proporcional às necessidades dos agentes econômicos, em benefício da higidez da livre iniciativa e do valor do trabalho. Não há que se confundir as medidas de preservação das atividades econômicas por meio da modificação ou suspensão dos efeitos de contratos com intervencionismo estatal ou paternalismo desmedido. Cessada a fase crítica da crise, inevitável deverá ser a reafirmação da força obrigatória dos contratos, como instrumento a gerar a necessária segurança que, em si mesma, é incentivo à atividade econômica. No pós-crise, é necessário reforçar a aposta na livre iniciativa, cujo valor social é intrinsecamente reconhecido como fundamento da República. Que o vírus da pandemia, após debelado, não se converta no vírus do desmedido dirigismo. Carlos Eduardo Pianovski é professor de Direito Civil da UFPR. Doutor e mestre em Direito pela UFPR. Membro-fundador do IBDCont. Advogado. Árbitro. __________ 1 ROPPO, Enzo. O Contrato. Coimbra: Almedina, 2009. 2 Permitimo-nos remeter a PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. Institutos fundamentais do direito civil e liberdade(s). Rio de Janeiro, GZ, 2011 3 Relevante exemplo pode ser colhido no REsp 945.166 - GO, assim ementado: DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. CONTRATO DE COMPRA E VENDA DE SAFRA FUTURA DE SOJA. CONTRATO QUE TAMBÉM TRAZ BENEFÍCIO AO AGRICULTOR. FERRUGEM ASIÁTICA. DOENÇA QUE ACOMETE AS LAVOURAS DE SOJA DO BRASIL DESDE 2001, PASSÍVEL DE CONTROLE PELO AGRICULTOR. RESOLUÇÃO DO CONTRATO POR ONEROSIDADE EXCESSIVA. IMPOSSIBILIDADE. OSCILAÇÃO DE PREÇO DA "COMMODITY". PREVISIBILIDADE NO PANORAMA CONTRATUAL. (STJ - Relator Ministro Luiz Felipe Salomão - Dje: 12/03/2012). 4 Sobre o tema, GLITZ, Frederico Eduardo Zenedin. Contrato e sua conservação: lesão e cláusula de hardship. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2008.
Texto de autoria de Eduardo Nunes de Souza e Rodrigo da Guia Silva As alarmantes proporções da pandemia da COVID-19, causada pelo novo coronavírus (variante SARS-CoV-2), seguem assustando a sociedade mundial e impõem desafios crescentes aos instrumentos disponíveis nos mais diversos setores sociais para lidar com a crise. Contribuíram para a ampla conscientização acerca da gravidade das circunstâncias os anúncios da Organização Mundial da Saúde (OMS) quanto à Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII, o mais alto nível de alerta da OMS), em 30 de janeiro de 2020, e quanto à classificação da COVID-19 como pandemia, em 11 de março de 2020, bem como os sucessivos atos normativos, mundo afora, que instituíram restrições das mais diversas ordens. Em boa hora, o saber científico volta a ser valorizado, enquanto as atenções de todo o mundo se voltam aos esforços da comunidade acadêmica, nos mais diversos campos do conhecimento humano, em prol do desenvolvimento de instrumentos para administrar os impactos da pandemia. Esse imprescindível empenho não se limita às ciências da natureza, estendendo-se, sem dúvida, também às humanidades. Particularmente na esfera jurídica, entram em pauta discussões prementes, que convidam o intérprete a revisitar os fundamentos dos mais tradicionais setores. Em matéria contratual, por exemplo, debatem-se temas da ordem do dia, como a repressão à elevação abusiva de preços por produtos essenciais cuja procura disparou diante da crise atual1, os dilemas que ameaçam a atividade empresarial de lojistas (em particular, os locatários de pontos comerciais em shopping centers)2, bem como a busca pela manutenção do equilíbrio atuarial dos seguros de saúde em cotejo com a cobertura de novos exames e novos tratamentos em benefício dos segurados3. Como sói acontecer diante de um evento fático dessa magnitude, com tantos impactos na vida quotidiana, uma das reações mais imediatas da doutrina costuma ser a de propor possíveis qualificações jurídicas para a crise, de modo a atrair a incidência da normativa que parece ser mais adequada a administrá-la. O empenho subjacente à pluralidade de proposições pode, contudo, ser prejudicial (em vez de benéfico), caso não seja acompanhado do devido respeito aos fundamentos e requisitos próprios de cada instituto. Sem dúvida, o novo coronavírus representa uma novidade fática, porém não inovou na ordem jurídica: as categorias normativas continuam sendo as mesmas de sempre - e, ao menos no campo estrito do direito privado, não parece conveniente a edição de leis de afogadilho, fomentadas pela incerteza e pela ansiedade generalizadas causadas pela pandemia. Cabe ao intérprete, assim, à semelhança do criterioso trabalho desempenhado pelos cientistas de outras áreas, manejar os instrumentos jurídicos com técnica e segurança, sempre com vistas a promover estabilidade (e não a agravar as incertezas ínsitas ao momento). Nesse cenário, uma discussão da maior relevância para o momento atual (e que despertou a imediata atenção da doutrina) diz respeito às possíveis repercussões da pandemia sobre as hipóteses de resolução contratual. Com efeito, o impacto da COVID-19 sobre os negócios em todo o mundo rapidamente remete a categorias clássicas do direito civil voltadas a flexibilizar a força vinculante dos pactos diante de bruscas alterações das circunstâncias, motivadas for fatores imprevisíveis e, ao menos no curto prazo, insuperáveis. É preciso, porém, proceder com cautela, de modo a se evitarem soluções que, no ímpeto de responderem à crise, forcem a subsunção da pandemia a modelos normativos que não a comportam efetivamente4. A enunciação de alguns exemplos práticos (em particular, de contratos de execução diferida ou a trato sucessivo, naturalmente mais suscetíveis às mudanças de cenário global) permitirá, nessa direção, ponderar quando e em que medida o recurso a institutos autorizadores da resolução contratual mostra-se tecnicamente adequado. Em um primeiro grupo de hipóteses fáticas, pense-se nas numerosas situações em que atos normativos formais estabelecem a suspensão temporária da prática de certas atividades. Assim tem ocorrido, por exemplo, com os cinemas, teatros, casas de espetáculos, estádios, todos eles impedidos de abrirem as portas por diversos entes federativos, no intuito de se evitar a formação de aglomerações e, com isso, conter-se a difusão do novo coronavírus. A dúvida, nesse caso, acerca da solução a ser oferecida aos bilhetes comprados com antecedência é inevitável. Situação semelhante se verifica nos meios de transporte cuja operação tenha sido suspensa, como ocorreu, a título puramente ilustrativo, na recente proibição da circulação de carros de aplicativos e de ônibus de linhas intermunicipais entre a cidade do Rio de Janeiro e o restante da Região Metropolitana do Estado. Essas hipóteses têm uma relevante circunstância em comum: um ato estatal inviabilizou o cumprimento da prestação a cargo de algum dos contratantes - o cinema não pode reproduzir o filme, a arena não pode abrigar o show, o transportador não pode conduzir o passageiro e assim por diante. Em um segundo grupo de hipóteses fáticas, pense-se nas também numerosas situações em que, a despeito da ausência de norma ou de ato estatal que inviabilize a execução do contrato, um dos contratantes perde por completo o interesse originário na prestação que incumbia à contraparte, em razão dos riscos suscitados pela difusão da COVID-19. Essa é, por exemplo, a situação dos passageiros de transporte aéreo (doméstico ou internacional) que, por imperativo de segurança, optam por não realizar as viagens, a despeito de o embarque não ter sido proibido e de as fronteiras do local de destino não terem sido formalmente fechadas pelas autoridades públicas competentes. Em situação similar estão os consumidores que haviam reservado hospedagem em hotéis ou contratado pacotes turísticos e que, com a disseminação da doença, acabaram decidindo por não desfrutar de tais serviços, visando à prevenção contra uma possível contaminação pelo novo coronavírus. Tais hipóteses apresentam, em comum, a circunstância de o contexto fático de difusão da pandemia (e não um óbice jurídico criado pelo Poder Público) inviabilizar que a prestação a cargo de algum dos contratantes produza a utilidade que originariamente dela se esperava. Por fim, em um terceiro grupo, cogite-se do agravamento do sacrifício econômico originalmente imposto pelo contrato a um dos contratantes, diante do cenário de difusão da COVID-19. Aqui, o óbice à execução do acordo não vem nem da atuação estatal, nem da perda de interesse na prestação, mas sim de um grave desequilíbrio do sinalagma originário, de modo que a contraprestação a que fazia jus um dos contratantes não mais compensa, economicamente, a prestação a que ele próprio se obrigou. Pensando-se na situação das companhias aéreas, por exemplo, inúmeras razões podem levar ao agravamento do sacrifício econômico decorrente do cumprimento dos contratos de transporte já firmados antes do advento da crise: o aumento global dos custos a fim de atender às mais atuais demandas de higienização e prevenção à disseminação do novo coronavírus; o agravamento do equilíbrio global projetado pela companhia, na medida em que o desfazimento do contrato por variados passageiros finda por impor à transportadora a realização dos custos globais sem a contrapartida que adviria da quantidade inicialmente esperada de passageiros; e assim por diante. Apesar da diversidade subjacente a esses grupos de hipóteses fáticas, verifica-se uma forte tendência doutrinária a centralizar o debate em torno de uma alegada ausência de responsabilidade do devedor em razão da configuração de caso fortuito ou força maior. Embora compreensível, diante da tradicional conceituação de tais figuras (associadas a eventos imprevisíveis e inevitáveis, dos quais a pandemia logo se afigura como um provável bom exemplo), essa tendência ignora que, em rigor conceitual, a categoria do caso fortuito não traduz uma hipótese autorizadora da resolução (e muito menos da revisão) do contrato, mas sim um caso de exclusão da responsabilidade civil em decorrência da interrupção do nexo causal. Em outros termos, se o próprio devedor que pretende isentar-se de cumprir o contrato alega a ocorrência de caso fortuito, ele está, ainda que involuntariamente, deslocando o foco da discussão para a responsabilidade civil - e, como o dever de arcar com perdas e danos pressupõe o inadimplemento (absoluto ou relativo), poder-se-ia concluir que esse devedor está, implicitamente, afirmando seu próprio ilícito contratual, o que, no mais das vezes, não corresponde ao seu verdadeiro anseio. Trata-se, portanto, de uma alegação possível em via de defesa no âmbito de uma ação indenizatória, mas não de um argumento voltado a legitimar um pleito de resolução contratual. E nem se suponha que o recurso às categorias do caso fortuito ou da força maior (aqui tratadas indistintamente, diante do amplo reconhecimento da irrelevância da sua diferenciação no direito brasileiro)5 poderia servir automaticamente como argumento para evidenciar a ausência de "fato ou omissão imputável ao devedor" (e, assim, impedir a configuração de inadimplemento, a teor do art. 396 do Código Civil). Com efeito, não se ignora que o inadimplemento contratual depende de um elemento culposo por parte do devedor, índice de sua imputabilidade. O caso fortuito, porém, como afirmado acima, insere-se na esfera de aferição da causalidade na responsabilidade civil, e não da culpa6. Por evidente, não se está a afirmar que a pandemia não possa configurar, para os fins pertinentes, um caso fortuito. No entanto, enquanto o debate permanecer restrito ao caráter fortuito da pandemia, a discussão permanece circunscrita, no mais das vezes, à definição da eventual responsabilidade civil do devedor por perdas e danos, sem particular preocupação com a investigação do cabimento da resolução contratual. Para este último fim, é preciso aferir os requisitos de outros institutos. No desenvolvimento da reflexão sobre o cabimento ou não da resolução contratual diante das vicissitudes suscitadas pela pandemia da COVID-19, incumbe ao intérprete buscar na dogmática geral do direito civil os subsídios para o equacionamento dos casos. No que tange ao primeiro grupo de hipóteses fáticas acima descritas (a saber, os casos em que a atuação estatal inviabiliza o cumprimento do contrato), outra solução que costuma vir à mente dos operadores do direito é a invocação da teoria da excessiva onerosidade. Aqui, mais uma vez, a qualificação parece prejudicada pela enorme proximidade do cenário fático com as noções de imprevisibilidade e extraordinariedade. Aduz-se, nessa linha de raciocínio, que as repercussões do novo coronavírus poderiam ser entendidas como circunstâncias supervenientes e imprevisíveis, a corresponder a alguns dos requisitos elencados pelo art. 478 do Código Civil para a resolução por onerosidade excessiva (em especial, na passagem "em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis")7. A alegação de onerosidade excessiva não parece, contudo, o fundamento mais apurado para o pleito de resolução contratual a ser porventura movido pelos credores nas diversas situações relatadas (os adquirente dos ingressos para certo show ou peça teatral, por exemplo). Nelas, como visto, não se está diante de um agravamento do sacrifício econômico a cargo do credor - o que inviabiliza, de pronto, a invocação da teoria da excessiva onerosidade. O que se verifica naquelas hipóteses fáticas parece se qualificar mais propriamente, em realidade, como uma clássica ocorrência de impossibilidade jurídica superveniente do objeto do contrato, o que poderia vir a justificar, a depender de cada caso concreto, o pedido de resolução. Trata-se de solução amplamente consagrada pelo Código Civil brasileiro, como se verifica, por exemplo, no tratamento dispensado à impossibilidade superveniente da prestação no âmbito da disciplina geral das obrigações de dar coisa certa (art. 234), de fazer (art. 248) e de não fazer (art. 250), bem como na seara do regramento específico do contrato de prestação de serviço (art. 607). Semelhante conclusão - embora a partir de fundamentação diferenciada - se alcança no segundo grupo de hipóteses fáticas (a saber, aquelas em que uma das partes não mais encontra interesse útil na prestação a que faria jus). Em tais situações, a conjuntura atual (composta pelos graves riscos associados, nos exemplos descritos, à circulação e à aglomeração de pessoas) inviabiliza a concretização das finalidades que as partes originariamente almejaram ao entabular as prestações a cargo de cada uma delas8. Essa impossibilidade se associa, assim, à figura que, em decorrência de certa contaminação pela experiência da common law, por vezes se denomina frustração do fim do contrato - expressão com a qual se busca tão somente aludir à impossibilidade de concretização do programa contratual originário, isto é, da concretização da síntese de interesses que as partes objetivamente inseriram na avença (informada pela noção de causa contratual em concreto)9. Em suma, a peculiaridade dessas hipóteses fáticas, que não deixam de representar uma impossibilidade superveniente, reside na circunstância de que tal impossibilidade somente se percebe no plano funcional (não já no plano estrutural, como aquela decorrente de simples norma proibitiva da execução do contrato). Em outros termos, sua identificação se dá a partir da constatação de que a prestação a cargo do devedor não mais se revela idônea a promover a síntese de interesses insculpidos no contrato. Exige-se, assim, do intérprete uma análise mais sofisticada, atenta à dinâmica contratual, porém ainda atrelada ao tradicional instituto da impossibilidade. Por certo, as circunstâncias do novo coronavírus não podem ser interpretadas como evidência, ipso facto, da impossibilidade superveniente de concretização de todo e qualquer programa contratual. A análise, como sempre (e, particularmente, quanto mais demarcada for a relevância de um olhar funcional sobre o contrato), dependerá das peculiaridades de cada caso concreto. Em linhas gerais, parece razoável supor que, para a generalidade dos passageiros em voos aéreos, por exemplo, o risco de contaminação (seja no próprio voo, seja no local de destino), em se tratando de enfermidade com a virulência e o índice de letalidade da COVID-19, há efetiva impossibilidade de obtenção dos fins originalmente previstos pelo contrato. A solução, porém, poderia ser diferente, a depender de inúmeras variáveis. A contratação se deu depois de divulgadas as primeiras notícias sobre a pandemia? A finalidade (turística, profissional etc.) da viagem foi informada no âmbito da negociação? Essa finalidade foi efetivamente prejudicada com a disseminação da doença? E assim por diante. Chega-se ao terceiro grupo de hipóteses fáticas, a saber, aquelas em que uma das partes passa a sofrer sacrifício patrimonial muito superior ao originalmente previsto. É precisamente nestas que parece mais razoável cogitar da configuração da onerosidade excessiva, o que torna ainda mais curiosa a circunstância de esse grupo de hipóteses fáticas raramente ser suscitado nos estudos que invocam a teoria em comento. De qualquer modo, é nas situações deste grupo que parece mais embasada, ao menos em tese, a alegação de excessiva onerosidade, em razão do possível agravamento do sacrifício econômico a ser suportado pelo devedor. Não se olvide que a resolução dependerá, em todo caso, de o devedor lograr demonstrar tanto a efetiva configuração de excessiva onerosidade, com manifesta vantagem para a outra parte, quanto o preenchimento dos demais requisitos previstos em lei. Em qualquer caso, a resolução, seja em decorrência da impossibilidade superveniente, seja em decorrência da onerosidade excessiva, além de resultar na extinção das obrigações decorrentes do contrato, poderá dar azo à deflagração do dever de restituir (caso um dos contratantes tenha recebido uma prestação sem ter ele próprio prestado a devida contrapartida)10. A extinção contratual, solução radical que é, acarreta, em regra, consequências drásticas, motivo pelo qual se impõe cautela na modulação de seus efeitos retroativos, sobretudo quando se pretende dar fim a relações contratuais de longa duração11. Justamente por isso, supera-se, cada vez mais, a antiga concepção segundo a qual a resolução do contrato seria menos atentatória à autonomia privada do que a sua revisão12. Nesse sentido, sempre que possível, o reequilíbrio do contrato por meio de sua revisão deve ser visto como remédio preferencial ao pleito resolutório13. E, de todo modo, tanto a resolução quanto a revisão devem observar cuidadosamente os requisitos legalmente previstos. Mais do que isso, devem-se prestigiar sempre as soluções consensuais que possam ser alcançadas em cada setor econômico, sobretudo em um momento excepcional como o presente. Assim, por exemplo, a Abrasce, associação de empresas de shopping center, e a Alshop, entidade representante dos lojistas, firmaram entendimento em relação à isenção dos aluguéis devidos pelos lojistas durante o período em que seus estabelecimentos permanecerem fechados14. Do mesmo modo, algumas produtoras de eventos musicais adiados em decorrência das medidas de contenção da COVID-19 transferiram automaticamente os ingressos já vendidos para novas datas, aparentemente sem prejuízo ao interesse da média dos espectadores, ao mesmo tempo em que facultaram aos adquirentes a possibilidade de reembolso se assim preferirem15. Tais soluções são louváveis, na medida em que evitam a judicialização desnecessária dessas questões. A responsabilidade do jurista em tempos de crise, como se afirmou, é a de zelar pela garantia dos valores do ordenamento e, em meio à incerteza sentida no meio social, promover estabilidade e segurança nas relações jurídicas. Antes, portanto, de ceder ao impulso de qualificações jurídicas precipitadas, incumbe-lhe indagar se estão presentes os elementos caracterizadores das hipóteses normativas, frutos de juízos de valor previamente realizados pelo legislador, dos quais não pode abrir mão. Particularmente em matéria contratual, deve, ainda, perquirir se e em que medida as circunstâncias da disseminação da COVID-19, sem dúvida alarmantes, efetivamente comprometeram o originário equilíbrio de interesses de cada contrato concretamente considerado. A rigor, este será, ainda e sempre, o critério balizador, seja dos institutos autorizadores da resolução contratual, seja de eventuais pedidos revisionais16. Eduardo Nunes de Souza é doutor e mestre em Direito Civil pela UERJ. Professor Adjunto de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). Rodrigo da Guia Silva é doutorando e mestre em Direito Civil pela UERJ. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCont). Advogado. __________ 1 V., por todos, MUCELIN, Guilherme; D'AQUINO, Lúcia Souza. O papel do Direito do Consumidor para o bem-estar da população brasileira e o enfrentamento à pandemia de COVID-19. Revista de Direito do Consumidor, vol. 129, maio/jun. 2020, item 1. 2 V., ao propósito, TERRA, Aline de Miranda Valverde. Covid-19 e os contratos de locação em shopping center. Migalhas, 20/03/2020. 3 Registre-se, por oportuno, que a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), por meio da Resolução Normativa n. 453, de 12 de março de 2020, estabeleceu a cobertura obrigatória e a utilização de testes diagnósticos para infecção pelo Coronavírus no âmbito da saúde suplementar. 4 Da maior relevância, nesse sentido, é a advertência feita por Anderson Schreiber sobre o momento atual, que alerta a respeito de "um erro metodológico grave, que se tornou comum no meio jurídico brasileiro: classificar os acontecimentos em abstrato como 'inevitáveis', 'imprevisíveis', 'extraordinários' para, a partir daí, extrair seus efeitos para os contratos em geral. Nosso sistema jurídico não admite esse tipo de abstração. O ponto de partida deve ser sempre cada relação contratual em sua individualidade" (SCHREIBER, Anderson. Devagar com o andor: coronavírus e contratos - Importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar de qualquer medida terminativa ou revisional. Migalhas, 23/03/2020). 5 A respeito, v., por todos, PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. Rio de Janeiro: GZ, 2011, p. 398-399. 6 Sobre o equívoco na confusão entre causalidade e as noções de culpa e imputabilidade, cf. SOUZA, Eduardo Nunes de. Nexo causal e culpa na responsabilidade civil: subsídios para uma necessária distinção conceitual. Civilistica.com, a. 7, n. 3, 2018, passim. 7 Para o desenvolvimento da análise dos requisitos previstos pelo art. 478 do Código Civil, v. TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil. Volume único. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2019, p. 603 e ss. 8 Em sentido semelhante, v. MIRAGEM, Bruno. Nota relativa à pandemia de coronavírus e suas repercussões sobre os contratos e a responsabilidade civil. Revista dos Tribunais, vol. 1015, maio 2020, item "Impossibilidade de cumprimento"; e OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. O coronavírus, a quebra antecipada não culposa de contratos e a revisão contratual: o teste da vontade presumível. Migalhas, 17/03/2020. 9 Sobre a utilidade da noção de causa em concreto para o melhor tratamento dessa figura, bem como a possibilidade de enquadramento da frustração do fim do contrato como uma hipótese de impossibilidade superveniente, v. SOUZA, Eduardo Nunes de. De volta à causa contratual: aplicações da função negocial nas invalidades e nas vicissitudes supervenientes do contrato. Civilistica.com, a. 8, n. 2, 2019, item 5. 10 Ao propósito da deflagração do dever de restituir no âmbito da relação de liquidação instaurada pela resolução contratual, em hipótese de ausência superveniente de causa para a atribuição patrimonial (art. 885 do Código Civil), seja consentido remeter a SILVA, Rodrigo da Guia. Enriquecimento sem causa: as obrigações restitutórias no direito civil. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 274 e ss. 11 Para um desenvolvimento da análise, v. SILV, Rodrigo da Guia. Cláusulas de não restituir versus cláusulas de não indenizar: perspectivas de delimitação dogmática a partir de uma análise funcional dos efeitos da resolução contratual. Revista IBERC, v. 2, n. 1, jan./abr. 2019, item 3. 12 A destacar o prestígio contemporâneo da revisão contratual, v. TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Fundamentos do direito civil. Volume 2: Obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 225. V., ainda, TEPEDINO, Gustavo; KONDER, Carlos Nelson. In: Fundamentos do direito civil. Volume 3: Contratos. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 140. 13 No mesmo sentido, v. SCHREIBER, Anderson. Devagar com o andor: coronavírus e contratos, cit. 14 Shoppings e lojistas orientam isenção de aluguel de lojas fechadas. Valor Econômico, 23/03/2020. 15 Saiba tudo que já foi cancelado na cultura por causa do coronavírus. Folha de São Paulo, 12/03/2020. 16 Nesse sentido, v. SOUZA, Eduardo Nunes de. De volta à causa contratual, cit., item 5.
Texto de autoria de Roger Vidal Ramos En el presente contexto globalizado y nacional, el Estado y los privados, enfrentan los efectos negativos del coronavirus. La historia nos remite a un escenario sin precedentes, la paralización de las industrias (minería, construcción, turismo, pesca, textil y otros), negocios pequeños como restaurantes locales, etc. y toda forma de intercambio comercial, se encuentran paralizados en su mayor extensión (salvo las excepciones establecidas en el D.S. n° 044-2020-PCM). El desplome de las bolsas de valores, de las inversiones (bonos, fondos de AFP) no configuran los únicos estragos generados en la económica peruana, sin dejar de establecer, los serios problemas de la mediana y pequeña economía, en buena cuenta el coronavirus "estornuda a todos" en mayor o menor impacto económico. El negocio de la intermediación laboral no es ajeno en lo absoluto al impacto económico negativo generado por el "Coronavirus", a manera de referencia, para afirmar lo mencionado nos apoyamos exclusivamente en el caso del rubro de limpieza. En cualquier negocio: banco, supermercado, gimnasio, cine, restaurante, oficina o incluso fábricas, por lo usual, el personal de limpieza no forma parte de la planilla o mantiene subordinación directa con el propietario del negocio, y la actividad de limpieza, es efectuada exclusivamente por un personal externo, con la característica de mantener el uniforme con un logotipo y el número de contacto del empleador, lo cual trae consigo, una percepción sencilla de advertir que el personal de limpieza, no forma parte de la fuerza laboral del establecimiento o negocio frecuentado. La actividad de intermediación laboral, se encuentra regulada por Ley N° 27626 y su Reglamento, el Decreto Supremo N° 003-2002-TR, la relación de intermediación laboral involucra a tres agentes: a) La empresa de intermediación (persona jurídica o cooperativa autorizada por la autoridad de trabajo y con el objeto de brindar servicios de intermediación), b) La empresa usuaria (persona natural o jurídica que se beneficia de la prestación de limpieza externa de la empresa de intermediación) y c) El personal u operario de limpieza, en este caso (trabajadores). Esta modalidad en el derecho laboral, se denomina contratación laboral indirecta, modalidad bajo la cual, la empresa usuaria ejerce la condición de acreedor, imponiendo a su deudor (empresa de intermediación) diversas cláusulas contractuales propias del código civil y la práctica comercial, entre las cuales se incorporan: confidencialidad, garantías, indemnidad, responsabilidad, variación del precio, solidaridad en aspectos laborales, resolución contractual, penalidades, normas anticorrupción, protección de datos personales, reserva de derechos de propiedad intelectual, pacto arbitral, etc. Asimismo, conforme al derecho laboral, se vincula al contrato principal, la obligación de mantener vigente una carta fianza bancaria o contractual a fin de proteger a los operarios de limpieza, ante la presencia de hipotéticos incumplimientos laborales atribuibles a la empresa de intermediación. Del contrato de intermediación laboral, se vinculan cláusulas de carácter laboral, como desvinculación laboral o de subordinación, que protegen a la empresa usuaria, aspectos conexos al cumplimiento de la ley de salud y seguridad en el trabajo, prevención del hostigamiento sexual y diversos compliance nacionales o internacionales con incidencia laboral. Conforme a lo expuesto en forma general, el contrato de intermediación laboral mantiene un componente contractual regulado por el código civil peruano y los pactos comerciales entre la empresa de intermediación y la empresa usuaria, y el vínculo laboral directo está establecido entre los operarios de limpieza y la empresa de intermediación. A fin de proteger los derechos laborales toda interpretación contractual no podría vulnerar los principios y derechos laborales de los trabajadores de limpieza. Nuestro breve análisis, está enfocado conforme a la estructura contractual y corporativa del contrato de intermediación laboral, sin distorsionar o ingresar a los aspectos legales de índole estrictamente laboral. En estos días con las medidas firmes y necesarias impuestas por el gobierno peruano, solo a manera de ejemplo, los negocios retirados temporalmente del mercado, con las excepciones vinculadas al D.S. 044-2020-PCM (alimentación, hospedaje, combustible, medios de comunicación bancario y salud, etc.) no requieren personal de limpieza en oficinas, fábricas o establecimientos comerciales, ante lo cual existe una variación y reducción de las labores de limpieza en los establecimientos de la empresa usuaria, que podría implicar amplias posibilidades de: a) reducción del personal, b) suspensión del servicio de limpieza, c) culminación del contrato y d) renegociación del contrato. Es necesario destacar en forma breve y compartir las opiniones, recientemente publicadas en redes sociales de algunos colegas, respecto a las implicancias contractuales del coronavirus y algunas ideas relacionadas con la teoría de caso fortuito, imprevisión, derecho de desastres, frustración del contrato y la buena fe contractual. García Long, establece: "La alegación exitosa del coronavirus como excusa contractual dependerá de la regla específica aplicable (legal o convencional) y de los hechos concretos del caso bajo análisis, siendo los hechos tal vez lo más importante a efectos de determinar qué vía legal se puede alegar"² y finaliza con los siguientes argumentos: "Dependerá porque el cambio de circunstancias (1) genera distintos efectos (imposibilidad física, ilegalidad sobrevenida, sobrecosto en la ejecución de la prestación, pérdida del valor de la contraprestación), (2) para cada efecto se han propuesto teorías distintas (imprevisión, base del negocio, excesiva onerosidad, frustración, impracticabilidad), (3) como tal, no existe una teoría unificadora ni denominación que abarque a todos los efectos, y (4) el efecto en cuestión puede dar lugar a diferentes remedios (resolución, suspensión, adaptación, renegociación)". La destacada profesora San Martin Neira, de la Universidad Alberto Hurtado, atribuye a la pandemia un evento con calificación de desastre: "Esto implica tener en consideración la siguiente premisa: el caso fortuito inicia allí donde termina el riesgo atribuible al demandado. Lo importante, entonces, es cómo se determina este ámbito de riesgos y la respuesta difiere si estamos o no en presencia de una relación contractual"³. En presencia de un contrato, la cuestión fundamental será determinar, de acuerdo a la distribución de riesgos operada por la relación contractual, quién debe soportar la ocurrencia de un determinado evento y, mirándolo desde el lado del deudor de una de las obligaciones generada por el contrato, si él asumió o no el riesgo de ese evento, entendiendo por tal la ocurrencia del evento en sí mismo y las consecuencias perniciosas que de él se deriven. Cabe señalar que la pregunta sobre la asunción de riesgos no implica una aceptación expresa de los mismos, sino que será el juez, a través de la interpretación del contrato, quien determinará si esa situación estuvo o no pudo menos que estar en las previsiones de las partes al momento de contratar4[4]. Respecto de la relación de fuerza obligatoria que genera el contrato, Yuri Vega5 sustenta: "Como decía, no podemos ser indiferentes ni aplicar estrictamente los pactos (pacta sunt servanda) sin analizar cada caso en particular para determinar si, el contrato puede convertirse en causa del abuso de un derecho contrario a la buena fe, o si es posible rescatar aquella vieja idea del jurista italiano Emilio Betti sobre la cooperación o colaboración entre las partes, o la aplicación del principio solidarístico en el campo de los contratos como ha postulado, por ejemplo, y de modo insistente, el profesor (también italiano) Alessando Somma (aplicando ese principio desde su Constitución)". En una situación como la que atravesamos, la contratación no es ajena a la buena fe. Y me parece que esta no solo exige una conducta que exprese corrección y lealtad sino también, dependiendo de las circunstancias, una necesaria solidaridad6. Finalmente Chang Hernández, bajo la teoría de frustración del contrato, aporta lo siguiente: "Sin embargo, no debemos olvidar que el Código no deja desprotegido al deudor quien, como hemos dicho, no ha cumplido por causa ajena, por lo cual tampoco sería justo que asuma todas las consecuencias negativas de la imposibilidad y por ende la norma sustantiva le reconoce la posibilidad de accionar frente a los derechos que le podrían asistir en relación al contrato cuyo cumplimiento se frustro por el evento imprevisible, esto es cobrar, por ejemplo, si invirtió algún dinero para ejecutar su futura prestación7. A fin de ingresar a analizar aspectos contractuales prácticos, en la coyuntura actual del negocio de la intermediación laboral, vamos a presentar 2 escenarios a modo de conclusión: a) Actividades de intermediación relacionados con el D U 044-2020-PCM.- Si las empresas o entidades públicas vinculadas a las labores esenciales y que atiendan el estado de emergencia, dentro los rubros de alimentación, banca o salud, mantienen personal de limpieza, desde el inicio de la cuarentena, la empresa de intermediación no debería, reducir la cantidad de operarios (con la salvedad que no participan del ciclo productivo) destacados a la empresa usuaria, con lo cual un supuesto de resolución contractual no mantendría asidero, sin perjuicio de dejar establecido que se podría ampliar la demanda de mayor personal de limpieza, derivado de un incremento descomunal de los pacientes en clínicas y hospitales o en las plantas de producción, almacenamiento o depósito de los alimentos, incluso por la escases de operarios de limpieza, se podría generar una excesiva onerosidad o sobrecosto del servicio de intermediación laboral. b) Actividades de intermediación ajenas con el D U 044-2020-PCM. - Sin duda, la principal contingencia laboral y financiera, se encuentra representada, por este bloque de actividades numerosas. Una tienda por departamentos, agencias de turismo, discotecas, tragamonedas o restaurantes, al no existir actividad empresarial principal, la actividad accesoria de limpieza, seria innecesaria, surgiendo las implicancias de reducción de la contraprestación o suspensión del contrato de intermediación, por causas ajenas a la voluntad de la empresa usuaria y de la empresa de intermediación, ante este escenario, se podría establecer adendas de reducción de gastos en la estructura de costos (utilidad, materiales o insumos de limpieza o gastos administrativos) fuera de los aspectos laborales que vinculen a las empresas de intermediación, la prestación de dar y hacer (limpieza) no se estaría cumplimiento por causa no imputable al deudor y tampoco no imputable al acreedor, la reducción de la contraprestación y conforme al plazo de vigencia del contrato sería una formula comercial más acertada y bajo el principio de la buena fe contractual. Conforme a los amplios alcances del D.S. 044-2020-PCM, generados en el negocio de intermediación laboral, salvo las actividades o servicios permitidos, nos encontramos ante un escenario real, donde ya no existe la necesidad del servicio de limpieza o esta desapareció, y a su vez podría existir una variación o reducción de las labores de limpieza en los establecimientos de la empresa usuaria, que podría involucrar amplias posibilidades (reducción de personal, suspensión del servicio de limpieza, culminación o renegociación del contrato). Bajo este escenario, de estar permitido por Ley, la imposibilidad de brindar la prestación de intermediación (limpieza) por causa no imputable al deudor, por la alta contingencia laboral (demandas o denuncias de los operarios a la empresa usuaria vía solidaridad), ante una posible resolución del contrato principal (en perjuicio de la empresa de intermediación) y a fin de prevenir posibles sanciones de la SUNAFIL, es necesario arribar a un pacto de modificación del contrato y bajo concesiones reciprocas, establecer nuevas condiciones (disminución de la cantidad de operarios, materiales de limpieza, gastos administrativos y porcentaje de la utilidad de la empresa de intermediación) a fin de mantener el vínculo contractual durante el periodo de la cuarentena e incluso su ampliación, es forzoso conservar en estas complicadas circunstancias el negocio de la intermediación laboral. Finalmente, ante la culminación del vínculo contractual (por causas imputables a las partes o ajeno a estas) ante la presencia de un próximo litigio judicial o arbitral, serán ampliamente aceptables y debatibles, las teorías: caso fortuito, la teoría de la frustración del contrato, la teoría de la imprevisión y el derecho de desastres con las implicancias del derecho civil y laboral necesariamente vinculadas en la modalidad de contratación labora indirecta. __________ 1 Magister en Derecho Civil y Comercial y candidato a Doctor por la Universidad Nacional Mayor de San Marcos (UNMSM). Segunda especialización en Derecho Ambiental y Recursos Naturales por la Pontificia Universidad Católica del Perú (PUCP). Docente en la Facultad de Derecho de la Universidad Nacional Mayor de San Marcos, de la Universidad San Martin de Porres, y de la Universidad Nacional Hermilio Valdizán de Huánuco. Presidente del Instituto Peruano de Derecho Civil, miembro de la Asociación Iberoamericana de Derecho Privado y Instituto Brasilero de Derecho Contractual. Fundador del Estudio Vidal Abogados y Árbitro en controversias comerciales y contrataciones estatales. [email protected]. 2 GARCIA LONG. Sergio. Contratos en cuarentena: Coronavirus y cambio de circunstancias. En: Ius 360. Del 17 de marzo del 2020. El coronavirus podría presentarse como un supuesto de force majeure que afecte temporalmente al contrato y lo suspenda, o lo afecte de manera definitiva y proceda su resolución. Si no se trata de un supuesto de imposibilidad física sino de ilegalidad sobrevenida, lo natural será la resolución del contrato salvo que la suspensión sea posible si la ilegalidad es temporal y por plazo corto. También podríamos estar ante imposibilidad parcial en donde cabría la reducción de la contraprestación. 3 SAN MARTIN NEIRA. Lilian. 27F, 18O y Covid-19: derecho de desastres y caso fortuito. En: El Mercurio Legal (Chile) Santiago de Chile, 18 de marzo del 2020. 4 Ibídem. 5 VEGA MERE- Yuri. El coronavirus, la fuerza mayor y la buena fe contractual. En: La Ley de Gaceta Jurídica. Lima 18 de marzo del 2020. 6 Ibídem. 7 CHANG HÉRNANDEZ. Guillermo. Frustración del cumplimiento contractual por emergencia sanitaria y responsabilidad de las partes: apropósito del D S 044-2020-PCM. En: Pasión por el derecho. Lima 19 de marzo del 2020.
Texto de autoria de Anderson Schreiber Multiplicam-se, nos últimos dias, artigos jurídicos sobre o impacto do coronavírus nas relações contratuais. A maioria dos textos qualifica a pandemia como "caso fortuito ou força maior", concluindo, a partir daí, que os contratantes não estão mais obrigados a cumprir seus contratos, nos termos expressos do artigo 393 do Código Civil brasileiro1. Outros preferem qualificar o espantoso avanço do novo coronavírus como "fato imprevisível e extraordinário", invocando o artigo 478 do Código Civil2 para deixar ao contratante a opção de extinguir o contrato ou exigir sua revisão judicial. Há, nos dois casos, um erro metodológico grave, que se tornou comum no meio jurídico brasileiro: classificar os acontecimentos em abstrato como "inevitáveis", "imprevisíveis", "extraordinários" para, a partir daí, extrair seus efeitos para os contratos em geral. Nosso sistema jurídico não admite esse tipo de abstração. O ponto de partida deve ser sempre cada relação contratual em sua individualidade. É preciso, antes de se qualificar acontecimentos em teoria, compreender o que aconteceu em cada contrato: houve efetivamente impossibilidade de cumprimento da prestação pelo devedor? Ou - hipótese que será necessariamente diversa - houve excessiva onerosidade para o cumprimento da prestação? Ou houve, ainda, algum impacto diverso sobre a relação contratual (como a frustração do fim contratual, o inadimplemento antecipado etc.)? Ou não houve, como é possível, impacto algum? São situações completamente distintas que somente podem ser aferidas à luz de cada contrato e é somente após a verificação do que ocorreu em cada relação contratual que se deve perquirir a causa (ou as causas) de tal ocorrência. Em outras palavras: é somente à luz da impossibilidade da prestação específica de um contrato que se pode cogitar, tecnicamente, de caso fortuito ou força maior para fins de liberação do devedor. E o mesmo vale para acontecimentos ditos extraordinários ou imprevisíveis, noção que somente faz sentido juridicamente diante da aferição específica de excessiva onerosidade para o cumprimento de um determinado contrato3. Não se pode classificar acontecimentos - nem aqueles gravíssimos, como uma pandemia - de forma teórica e genérica para, de uma tacada só, declarar que, pronto, de agora em diante, todos os contratos podem ser extintos ou devem ser revistos. Aliás, mesmo nos casos concretos em que houver impossibilidade ou excessiva onerosidade, não será necessariamente a pandemia em si o evento que afeta o contrato. Em muitos casos, o impacto nos contratos está sendo gerado por restrições adotadas pela Administração Pública - fato do príncipe, na expressão consagrada na tradição publicista - em virtude da pandemia. São essas restrições e sua influência sobre cada contrato que precisam ser analisadas individualmente. E mais: mesmo quando se estiver diante de situações de impossibilidade do cumprimento da prestação ou de excessiva onerosidade para o seu cumprimento, como ocorre, por exemplo, com contratos de transporte diante de fechamento de fronteiras e outras restrições à circulação de pessoas, é preciso ter muito cuidado com fórmulas generalizantes ou soluções em abstrato, especialmente aquelas que podem ser invocadas para embasar o descumprimento de contratos em meio a um cenário de crise. Como diz o sábio provérbio, surgido nas procissões religiosas realizadas no interior do Brasil: "devagar com o andor que o santo é de barro". A queda acentuada das bolsas de valores, associada à baixa dos preços do petróleo, e outros tantos fatores negativos que se associaram naquilo que muitos já consideram uma "tempestade perfeita", pode tornar desinteressante a preservação de muitos contratos já firmados. Nem por isso se terá aí fundamento jurídico para rompimento ou mesmo para revisão do contrato, se não houver impacto econômico direto sobre as prestações devidas. Não custa lembrar que, para a economia em geral e para a própria preservação das relações sociais, é imprescindível que a maior parte dos contratos já firmados seja mantida e que as prestações devidas sejam cumpridas. O adequado abastecimento dos centros urbanos, para ficar em apenas um exemplo, depende fundamentalmente disso. O velho pacta sunt servanda não merece ataques desnecessários nesse momento. A propósito, convém registrar que, mesmo no âmbito daqueles contratos cujas prestações sejam economicamente afetadas pelas restrições a todos impostas neste momento, antes de qualquer pleito revisional deve-se recorrer à boa-fé objetiva e ao dever de renegociar. Soluções alternativas podem e devem ser encontradas pelos próprios contratantes para preservar o cumprimento de seus contratos, tanto mais na situação que estamos vivendo, em que o Poder Judiciário, em funcionamento restrito, deve ser acionado apenas para situações realmente urgentes. Extinção de vínculos contratuais e revisão judicial de contratos são remédios extremos que as partes têm o dever de evitar sempre que possível, diante do imperativo de mútua cooperação e lealdade que deriva do artigo 422 do Código Civil brasileiro e do princípio constitucional da solidariedade social (art. 3º, I). A pandemia já está exigindo de todos nós - e promete exigir ainda mais - sacrifícios pessoais e econômicos. É hora de suportarmos todos, na medida das nossas forças, esses sacrifícios. À ciência jurídica compete servir de instrumento para soluções que preservem, tanto quanto possível, os direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros e as bases econômicas necessárias para que esses direitos sejam exercidos em sua máxima intensidade. Para isso, é importantíssimo preservar tanto quanto possível os contratos já celebrados, evitando o risco real de que, em um cenário de crise, os instrumentos jurídicos sejam manipulados de modo oportunista por aqueles que não têm real necessidade de aplicá-los. __________ 1 "Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado. Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir". 2 "Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação". A revisão judicial do contrato encontra, por sua vez, amparo no artigo 317 do Código Civil, consoante interpretação amplamente majoritária na doutrina brasileira. 3 Sobre o tema, seja consentido remeter a Anderson Schreiber, Equilíbrio Contratual e Dever de Renegociar, São Paulo: Saraiva, 2018, pp. 202 e seguintes.
Texto de autoria de Fernando Rodrigues Martins Este ano o Código de Defesa do Consumidor completa trinta anos. O momento é propício para profundas reflexões acerca da retomada de seu protagonismo, especialmente, no que respeita ao contrato, instituto jurídico mensalmente tratado nesta coluna. Se a realidade atual é totalmente diversa daquela experimentada nas três décadas anteriores, isso não retira a imprescindibilidade do CDC enquanto legislação disciplinadora de temas essenciais ao quotidiano dos reconhecidos vulneráveis. A intensa qualificação jurídica da lei consumerista nacional é fortemente correspectiva à base protetiva constitucional. Isso equivale dizer que o CDC, nas relações jurídicas entre consumidores e fornecedores, teve (e tem) o mérito em conferir concretude e efetividade ao fundamento da dignidade da pessoa humana, retirando-o da 'eloquência abstrata' para estabelecer justiça ao caso concreto, quer na esfera individual quer na coletiva, já que intensamente vocacionado à sociedade de massas. Para isso é de boa medida recordar que tanto na parte principiológica quanto nos fragmentos dispositivos, o CDC enumera e positiva diversos interesses jurídicos contributivos aos valores constitucionais fundamentais, proporcionando ao consumidor, entre outros, direitos de elevada magnitude: vida, saúde e segurança; incolumidade econômica; informação clara, correta e precisa; equilíbrio contratual; prevenção e reparação de danos; proteção de dados pessoais e privacidade. Sem prejuízo de demais tópicos normativos com extremadas correlações jusfundamentais, ainda se sagra como área de informação, enformação e transformação dos rumos macroeconômicos brasileiros, compondo estratégia diretiva conjuntamente a outros princípios da 'Constituição Econômica' (CF, art. 170). Não fossem as observações acima, a legislação consumerista é igualmente cativa à intensa coordenação sistêmica existente entre a Constituição Federal e os tratados internacionais de direitos humanos, justamente porquanto preserva e reconhece, enquanto princípio e na técnica legislativa de presunção absoluta, a vulnerabilidade dos consumidores destinatários finais de produtos e serviços, sempre expostos às falhas de mercado. É esta proclamada vulnerabilidade, oriunda de cartas internacionais e internalizada no direito brasileiro, que vincula o Estado aos deveres de proteção dos direitos fundamentais dos consumidores, fixando diálogo com semelhantes fontes promocionais à pessoa. Sob esta perspectiva, o conjunto disciplinar vocacionado ao consumidor resta caracterizado como 'norma-garantia' à efetiva tutela da grande coletividade de excluídos, mediante estratégia de acessos: ao mínimo existencial via bens fundamentais; à justiça distributiva; e, ao mercado de consumo. Em correntio, a despeito de dogmática própria e independente, a 'jovem trintenária' codificação merece respeito e seguidas atualizações adequadas (desde que compatíveis), mesmo porque, ao lado de outros microssistemas conflui na realizabilidade diária do 'direito constitucional protetivo'1. Nítido trajeto bumerangue dado que buscando fundamentação na Lei Maior, à mesma devolve efeito útil e justo. Epistemologicamente, o direito do consumidor aos poucos firmou-se na ciência jurídica. A doutrina propiciou salto qualitativo e especializado analiticamente quanto aos conhecidos institutos jurídicos de direito privado (contrato, responsabilidade civil, oferta, direitos da personalidade etc.), que foram readequados conforme as diretrizes fundantes do microssistema, dentre tantas a ordem pública contratual. Se para parte de respeitável doutrina, o contrato, além de programa de regulação jurídica de vontades, é instituto de natureza objetiva e funcional na operação de mercados2 e, por isso, instrumento paritário celebrado em ambiente 'isento' de falhas para alcance de finalidades econômicas, para a dogmática consumerista o contrato relaciona-se a pontos científicos extremamente diversos. Resumidamente, as proposições desencadeadas ao contrato pelo chamado 'direito dos vulneráveis' convergem para: i) consolidação da máxima de que o poder deve ser controlado pela razão; ii) insuficiência de agendas baseadas exclusivamente em eficiência e maximização de riquezas como tábuas de soluções jurídicas e justas; iii) reconhecimento do consumidor no mercado como agente desigual e, portanto, claramente em posição jurídica de desvantagem e desprovido de poder negocial; iv) necessidade de submissão das escolhas econômicas respeitantes à massa de utentes a critérios jurídicos e axiológicos, partindo-se de valores fundamentais (humanidade e dignidade) para atender preceitos de justiça, equidade, segurança3; v) compreensão do contrato como instituto jurídico de atendimento às necessidades básicas da pessoa consumidora, mediante razoável equilíbrio. Essas proposições espargem em conteúdos específicos de enorme repercussão na investigação científica dos contratos, concluindo em 'nova teoria contratual'. No plano das normas, há imersão respeitável aos princípios da autonomia privada4, boa-fé objetiva5, confiança6, justiça contratual (equilíbrio contratual). Muito embora a doutrina civilista já se debruçasse quanto aos recentes rumos principiológicos dos contratos, o advento do CDC configurou claro estímulo para utilização justificada e motivada das modalidades normativas, otimizando as funções interpretativas e argumentativas, conferindo maior nível de densidade às decisões jurídicas e exigindo maior preparado do operador. Ressalte-se que a proteção contratual disposta no CDC ressignificou a posição jurídica dos vulneráveis. Havendo nítido liame lógico entre a positivação de limites éticos ao mercado e a exigência de solidariedade, enquanto fundamento constitucional7. Nesta esteira, as fases de formação do contrato (oferta, publicidade8 e força vinculante), execução do contrato (vedação de práticas abusivas, bancos de dados9, cobrança de dívidas, rol de cláusulas abusivas e interpretatio favor consumidor), extinção do contrato (direito de arrependimento, cumprimento imperfeito do contrato, direito de resolução e restituição, direito de revisão) e eficácia pós-contratual (deveres de informação, lealdade e proteção, entre eles a assistência) estão compostas de disposições jurídicas consentâneas à condição humana da pessoa exposta às atividades de mercado. Não fossem os relevantes pontos aqui distinguidos, ainda é possível descortinar subsídios dogmáticos propiciados pelo direito do consumidor peculiares à 'taxonomia' contratual. A edição do CDC e o necessário cotejo com outras legislações (especialmente a civil) à luz das tendências do mercado e das transformações da sociedade civil acabaram por permitir as mais variadas distinções de modelos contratuais. Analisados do ponto de vista do 'observador externo', os contratos tornam-se objetos de categorização mais intensificada, abstraindo da então dicotomia paritários - adesão para, sem perder o núcleo central, serem especificados em modelos conforme à funcionalidade e à finalidade operada. Foi perceptível, portanto, à comunidade acadêmica designações relevantes de modelos contratuais, com destaque: contratos relacionais10 e contratos cativos e de longa duração; contratos existenciais e contratos de lucro; contratos de consumo e contratos interempresariais11; contratos eletrônicos e contratos digitais12. Classificações apenas se fazem apropriadas quando resultam em serventia e aproveitamento no campo científico e pragmático. E esse foi exatamente o desfecho do rol de categorias propostas pela destacada doutrina, posto que os modelos declinados auxiliam não apenas na hermenêutica contratual, senão na análise da correção do processo obrigacional, no escrutínio das expectativas legítimas que se esperam, e, notadamente, no exame do maior ou menor grau de intervenção dos aparelhos estatais diante da entabulação celebrada. Questões atinentes ao crédito responsável e superendividamento13, atendimento hospitalar e operadoras de saúde14, telefonia e Internet, financiamentos habitacionais e moradia, educação em estabelecimentos de natureza privada, serviços públicos contínuos, operações bancárias são seguramente dilucidadas (em efetivo ad colorandum) pela percepção dos modelos contratuais. A jurisprudência nacional evoluiu na efetividade dos direitos (não só contratuais) dos vulneráveis. De início, com muita desconfiança e dificuldade, contando com acórdãos em votos iluminados, porém vencidos, para posteriormente ganhar notável espaço de aceitabilidade perante os Tribunais superiores. A construção de julgados favoráveis aos consumidores não foi tarefa fácil, exigiu trabalho diário, reiterado e cuidadoso. Havia necessidade em ultrapassar e vencer os grilhões de um 'culto judicial' extremamente favorável e obsequioso ao direito privado liberal e individualista. Merece menção a contribuição do saudoso Min. Ruy Rosado de Aguiar Júnior que, com apoio na doutrina de Clóvis do Couto e Silva, sustentou heroicamente a aplicação do princípio da boa-fé e desdobramentos, escrevendo capítulo 'único e irreversível' na história jurisprudencial brasileira: verdadeiro marco teórico da integridade do Direito. Consolidada a jurisprudência quanto aos reclamos dos consumidores, logo alavancaram notáveis prumos diferenciados: suporte valoroso e fundamental para aplicação e interpretação do Código Civil de 2002, quando da respectiva entrada em vigor; e, 'construção' de novas soluções ante os problemas detectados nos julgamentos diários, subsidiando prudentemente a doutrina (v.g., nas hipóteses de hipervulnerabilidade15 e do finalismo aprofundado)16. Atualmente a tutela do consumidor tem dois desafios extremados: a realidade digital e o claro desconstrutivismo estatal. O acendrado volume de inovações geradas a partir do mundo virtual apenas corrobora a evidente e ampla primordialidade de atualização do CDC para tutela satisfatória do usuário. Nas plataformas eletrônicas, do mesmo modo que ocorre no mundo real, são incontáveis as externalidades negativas relativas a acidentes de consumo (defeito), publicidades ilícitas, incumprimento de contratos, uso indevido de dados pessoais, abusos aos direitos da personalidades, tudo a ensejar juridicamente a identificação de notória 'vulnerabilidade digital'. Dois projetos de lei (3514/15 - comércio eletrônico; 3515/15 - prevenção e tratamento ao superendividamento) em trâmite na Câmara dos Deputados configuram excelentes escolhas valorativas (decidibilidade parlamentar) para empoderar os consumidores em situações de danosidade ou de ameaça de lesão e prejuízo. Contudo, sobram motivos para preocupação. O enfretamento atual é daninho e perverso. Cinge mais acentuadamente em face de retrocessos desencadeados pela adoção de políticas que tendem a esvaecer e dissipar o direito do consumidor, tanto no campo estrutural, como no jurídico. Exemplos disso são fartos: a instituição de Colégio de Ouvidores no âmbito da SENACON para eventual punição de agentes públicos que compõem o sistema nacional de defesa do consumidor; a criação de pauta para rediscutir decisões administrativas impositivas de multas sancionatórias a fornecedores por condutas violadoras das regras previstas no decreto 2.181/87; e, o pior: nítida sujeição, dos órgãos do governo federal vinculados à defesa do consumidor, ao mercado e às empresas, em inconfessável desvio da finalidade legal e constitucional de promoção ao vulnerável. Estorvo, recuo, declínio e atraso: onde a grande tendência é a substituição da ética da convicção (fundamentos) pela ética de resultados (eficiência)17. Argentina e Chile experimentaram essa mesma onda ultraliberal, reduzindo o Estado em razões de mercado e deixando ao pleno sabor das injustiças quase a totalidade da população. Os pouquíssimos milionários aumentaram os ganhos em detrimento da grande massa. Ao menos os consumidores encontram nos PROCON's, defensorias públicas e Ministérios Públicos o status constitucional inscrito, exigido e positivado: direito fundamental a ser promovido pelo Estado, que deve ser compromissário dos deveres fundamentais de proteção. Os exercícios das funções e competências pelas instituições mencionadas, somadas ao reconhecido esforço de entidades da sociedade civil organizada, têm por escopo reinserir nas pautas das políticas públicas, de forma transparente e mais incisiva, a relevância cidadã do consumidor, não só enquanto agente 'no' mercado, senão pela qualidade de pessoa, cuja dignidade quando respeitada, concede legitimação ao tráfego jurídico. Referências BESSA, Leonardo Roscoe. Responsabilidade civil dos bancos de dados de proteção ao crédito. In: RDC. v. 92. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Poder econômico: direito, pobreza, violência, corrupção. Tercio Sampaio Ferraz Junior, Calixto Salomão Filho, Fabio Nusdeo. Barueri - SP: Manole, 2009. GARCIA, Leonardo de Medeiros. Direito do Consumidor: Código comentando e jurisprudência. Salvador: JusPodivm, 2013. GREGORI, Maria Stella. Planos de saúde: a ótica da proteção do consumidor. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. LORENZETTI, Ricardo Luis. Consumidores. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 2006, p. 13. MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Contratos relacionais e defesa do consumidor. São Paulo: RT, 2007. MARQUES, Cláudia Lima; CAVALLAZZI, Rosangela Lunardelli; LIMA, Clarissa Costa de. Direitos do consumidor endividado II - Vulnerabilidade e inclusão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 8ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 329. MOSSET ITURRAPSE, Jorge. Interpretación economica de los contratos. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 1994, p. 25. NORONHA, Fernando. Contratos de consumo, padronizados e de adesão. In: Doutrinas essenciais de direito do consumidor. v. 4. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 137-168. ________________. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais (autonomia privada, boa-fé, justiça contratual). São Paulo: Saraiva, 1994. PASQUALOTTO, Adalberto. Os efeitos obrigacionais da publicidade no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 505. PINHEIRO, Patrícia Peck; WEBER, Sandra Tomaz; OLIVEIRA NETO, Antônio Alves. Fundamentos dos negócios e contratos digitais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. ROPPO, Enzo. Il contratto. Bologna: Il Mulino, 1977. SCHMITT, Cristiano Heineck. A hipervulnerabilidade do consumidor idoso. In: Doutrinas essenciais de direito do consumidor. v. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 463-493. TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção Neves. Manual de direito do consumidor: direito material e processual. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2019, p. 27. Fernando Rodrigues Martins é doutor em Direito Civil pela PUC/SP. Promotor de Justiça em Minas Gerais. Professor de Direito Civil da Universidade Federal de Uberlândia. Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual (IBDCONT). __________ 1 LORENZETTI, Ricardo Luis. Consumidores. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 2006, p. 13. 2 ROPPO, Enzo. Il contratto. Bologna: Il Mulino, 1977. 3 MOSSET ITURRAPSE, Jorge. Interpretación economica de los contratos. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 1994, p. 25. 4 NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais (autonomia privada, boa-fé, justiça contratual). São Paulo: Saraiva, 1994. 5 TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção Neves. Manual de direito do consumidor: direito material e processual. 8ª ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2019, p. 27. 6 MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. 8ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 329. 7 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 505. 8 PASQUALOTTO, Adalberto. Os efeitos obrigacionais da publicidade no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. 9 BESSA, Leonardo Roscoe. Responsabilidade civil dos bancos de dados de proteção ao crédito. In: RDC. v. 92. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. 10 MACEDO JÚNIOR, Ronaldo Porto. Contratos relacionais e defesa do consumidor. São Paulo: RT, 2007. 11 NORONHA, Fernando. Contratos de consumo, padronizados e de adesão. In: Doutrinas essenciais de direito do consumidor. v. 4. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 137-168. 12 PINHEIRO, Patrícia Peck; WEBER, Sandra Tomaz; OLIVEIRA NETO, Antônio Alves. Fundamentos dos negócios e contratos digitais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. 13 MARQUES, Cláudia Lima; CAVALLAZZI, Rosangela Lunardelli; LIMA, Clarissa Costa de. Direitos do consumidor endividado II - Vulnerabilidade e inclusão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. 14 GREGORI, Maria Stella. Planos de saúde: a ótica da proteção do consumidor. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019. 15 SCHMITT, Cristiano Heineck. A hipervulnerabilidade do consumidor idoso. In: Doutrinas essenciais de direito do consumidor. v. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 463-493. 16 GARCIA, Leonardo de Medeiros. Direito do Consumidor: Código comentando e jurisprudência. Salvador: JusPodivm, 2013. 17 FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Poder econômico: direito, pobreza, violência, corrupção. Tercio Sampaio Ferraz Junior, Calixto Salomão Filho, Fabio Nusdeo. Barueri - SP: Manole, 2009.
segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

O contrato de underwriting de valores mobiliários

Texto de autoria de Pablo Renteria O mercado de valores mobiliários e o princípio do full and fair disclosure Na atual conjuntura econômica, em razão da redução expressiva observada na taxa básica de juros, os brasileiros têm voltado os seus investimentos para valores mobiliários, como ações, debêntures e cotas de fundos de investimento imobiliários, em busca de melhores perspectivas de rentabilidade. Tais modalidades de investimento apresentam, em contrapartida, riscos maiores do que os produtos financeiros conservadores, como títulos públicos e depósitos bancários, podendo conduzir à perda de todo o capital investido ou até mesmo, em certos casos, à contração de dívida. Nesse particular, em linha como o modelo regulatório consagrado nos Estados Unidos por meio da Securities Act of 1933 e hoje encontrado na maioria dos países, o direito brasileiro adota o princípio do full and fair disclosure, segundo o qual não cabe ao Poder Público imiscuir-se no exame de mérito das oportunidades de investimento oferecidas ao público, mediante a seleção prévia, por um quadro de técnicos especializados, daquelas julgadas mais promissoras e seguras. Compete-lhe, em vez disso, assegurar o acesso dos investidores a informações corretas, claras e completas para que possam, por conta própria, tomar a sua decisão de investimento de forma informada, assumindo conscientemente os riscos daí decorrentes. Nas palavras sugestivas do jurista norte-americano Louis Loss, um dos fundadores da moderna teoria dos valores mobiliários, "a regulação não foi concebida para privar o cidadão do direito de ser tolo, mas procurou prevenir que outros o façam de tolo"1. Seguindo tal orientação, a legislação brasileira e, mais especificamente, a regulamentação editada pela Comissão de Valores Mobiliários (autarquia federal vinculada ao Ministério da Economia), promovem a transparência dos emissores e de seus valores mobiliários, com vistas a proporcionar os elementos informacionais necessários à tomada de decisão do investidor. O investidor se depara com duas formas de adquirir valores mobiliários. De um lado, pode obtê-los de outro investidor, valendo-se das informações disponíveis publicamente para avaliar o preço. De outro, pode comprar ou subscrever os títulos em oferta pública, no mais das vezes realizada pelo próprio emissor, que busca, desse modo, recursos novos para desenvolver as suas atividades produtivas. As ofertas públicas, usualmente, movimentam grandes cifras e exigem do ofertante esforços extraordinários de distribuição, de maneira a alcançar pessoas interessadas em adquirir os títulos por um preço proveitoso. Justamente em razão de sua relevância para a economia, as ofertas se submetem a regramento específico da CVM, que, entre outras medidas destinadas a preservar o bom funcionamento do mercado, requer a prestação de informações minuciosas sobre o ofertante e os valores ofertados. O contrato de underwriting Nos termos da regulamentação vigente, o ofertante é, via de regra, obrigado a contratar instituição intermediária (normalmente instituição financeira) para se encarregar da distribuição pública dos valores mobiliários ofertados (Instrução CVM nº 400/2003, art. 3º, § 2º). A função primária desse contrato de distribuição, comumente denominado underwriting, consiste na aproximação entre o ofertante e os investidores com o fim de alcançar o resultado útil da oferta, consistente na subscrição ou aquisição dos valores mobiliários ofertados. O contrato deve conter obrigatoriamente as cláusulas indicadas no Anexo VI da Instrução CVM 400, de 2003, que tratam, entre outros aspectos, do escopo da distribuição, do procedimento a ser observado e da remuneração a ser percebida pelas instituições intermediárias. Cuidando-se de ofertas vultosas, que exigem maiores esforços de venda e apresentam maiores riscos, faculta-se a formação de consórcio entre diferentes instituições, que passam, assim, a atuar de forma conjunta, em conformidade com as obrigações contratuais assumidas por cada uma. Nesse caso, como previsto no § 1º do art. 34 da aludida Instrução, o contrato deve indicar qual delas assume a condição de instituição líder do consórcio, a quem incumbe desempenhar obrigações específicas previstas na regulamentação da CVM, bem como agir como representante comum das instituições perante o ofertante, os investidores e o órgão regulador. Na doutrina, apontam-se usualmente duas razões para a contratação de intermediário2. Em primeiro lugar, sublinha-se a falta de expertise profissional do ofertante para conduzir, diretamente, a oferta pública, haja vista os conhecimentos especializados e a experiência que se fazem necessários para levar a bom termo a operação. O ofertante pode enfrentar dificuldades para conseguir, por conta própria, encontrar investidores interessados na oferta e, ainda, definir o preço dos valores mobiliários em valor próximo ao ótimo, que, ao mesmo tempo, maximize a obtenção de recursos e se mostre atraente para os adquirentes. Nesse particular, em razão da sua elevada especialização profissional, a presença da instituição intermediária tende a tornar mais provável o êxito da oferta. Em segundo lugar, o contrato de underwriting t serve de instrumento de transferência dos riscos da oferta para a instituição intermediária, que pode assumir a qualidade de agente garantidor do resultado almejado pelo ofertante, mediante o recebimento, em contrapartida, da remuneração ajustada contratualmente. Reconhece-se às partes ampla liberdade para dispor sobre a alocação dos riscos no contrato de distribuição. Na prática, identificam-se três modalidades típicas, consoante a extensão dos riscos assumidos pela instituição. Na primeira, ela se obriga a adquirir todos os valores mobiliários emitidos para, em seguida, repassá-los ao público (straight underwriting ou garantia firme). Na segunda modalidade, compromete-se a subscrever o restante dos títulos que não tenham sido adquiridos pelo público (stand by underwriting). Na terceira, a intermediária não assume os riscos relacionados ao êxito da oferta, prometendo tão somente envidar os seus melhores esforços para colocar os papéis junto ao público (best effort underwriting)3. Além da sua finalidade intrapartes, a instituição intermediária assume deveres perante os destinatários da oferta, terceiros não contratantes que recebem especial proteção da ordem jurídica. Tais deveres denotam a notável função social desempenhada por essa espécie de contrato. Reconhecendo a inclinação natural do ofertante em superestimar as virtudes e subestimar os riscos daquilo que está oferecendo, a regulamentação atribui à instituição intermediária (e, em caso de consórcio de distribuição, à instituição líder) o dever de verificar as informações fornecidas na oferta, com vistas a assegurar a sua veracidade, qualidade e suficiência (Instrução CVM nº 400/2003, art. 56, § 1º; Instrução CVM nº 476/2009, art. 11, I). Ao ofertante cabe a responsabilidade primária pelas informações providas na oferta, incumbindo ao intermediário a função de revisor da adequação dessas informações. Daí a se dizer que o intermediário desempenha o papel de gatekeeper, agindo, no interesse dos investidores, como "guardião" do cumprimento da obrigação imposta ao ofertante. Cumpre, todavia, ter em vista os limites da atividade conduzida pelo intermediário. Segundo o disposto no art. 56, § 1º, da Instrução CVM nº 400/2003, a instituição "deverá tomar todas as cautelas e agir com elevados padrões de diligência, respondendo pela falta de diligência ou omissão, para assegurar que: I - as informações prestadas pelo ofertante são verdadeiras, consistentes, corretas e suficientes, permitindo aos investidores uma tomada de decisão fundamentada a respeito da oferta (.)". Cuida-se, inegavelmente, de obrigação de meios, não sendo legítimo exigir do intermediário que afirme a infalibilidade das informações prestadas pelo ofertante. A instituição, cumpre reiterar, não presta um seguro de cobertura do risco de falha informacional; ao reverso, a sua obrigação consiste em agregar segurança à qualidade das informações fornecidas aos investidores, sem tornar-se, contudo, garante do bom cumprimento da obrigação de informação imposta ao ofertante. Ônus da prova e meios de defesa do intermediário Sendo a obrigação de meios, o inadimplemento da instituição intermediária só se configura ante a comprovação de que não foram empregados o cuidado e a perícia que dela se exigiam, tendo em vista os padrões usuais de diligência profissional. A esse respeito, já se afirmou que, sendo a obrigação de meios, caberia sempre à vítima comprovar o descumprimento da obrigação imposta ao devedor. No entanto, tal entendimento restou superado em virtude da expansão das hipóteses normativas de inversão do ônus da prova4. Na atual ordem jurídica, prevalece o princípio do ônus dinâmico da prova, de modo a fazê-lo recair sobre quem esteja em melhores condições para produzir as provas necessárias à instrução do processo5. Há boas razões para entender que, a princípio, compete à instituição intermediária se desincumbir do ônus de demonstrar que desempenhou a contento a sua obrigação. Isto porque, nos termos do art. 56, § 4º, da Instrução CVM nº 400, de 2003, cumpre-lhe guardar, por cinco anos, a documentação comprobatória de sua diligência para o cumprimento da obrigação de revisão das informações fornecidas pelo ofertante. Assim, mostra-se razoável supor que esteja em melhores condições do que o investidor para estabelecer a prova de que tenha observado, no desempenho do seu ofício, os padrões usuais de diligência profissional. Nesse particular, a instituição intermediária dispõe de dois meios de defesa para eximir-se de responsabilidade nos casos em que reste demonstrada a falha informacional do ofertante. O primeiro recebeu na doutrina norte-americana a denominação due diligence defense e consiste na demonstração de que tenha, por conta própria, investigado a correção e a completude das informações prestadas pelo ofertante. A jurisprudência norte-americana, em lição plenamente aplicável ao direito brasileiro, ressalta que a investigação deve ser razoável, considerada a diligência profissional usual, e não exaustiva, o que sequer seria compatível com o tempo de que dispõe a instituição para realizar a tarefa dentro do cronograma da oferta. Em seu juízo de razoabilidade, os tribunais destacam a importância de o intermediário conduzir uma investigação independente, consultando fontes externas ao emissor sempre que estiverem disponíveis e guardando, ao longo do seu trabalho, uma postura cética em relação às informações recebidas do ofertante. Caso se depare com sinais de alerta (red flags), que levantem dúvidas sobre as informações examinadas, cumpre ao intermediário aprofundar a sua investigação de modo a obter evidências suficientes para embasar a sua opinião. O segundo meio de defesa decorre da natureza heterogênea das informações relacionadas à oferta. Admite-se que o intermediário possa se valer dos serviços prestados por especialistas para investigar a correção de dados que demandem conhecimentos técnicos. Traduz prática usual no mercado brasileiro a solicitação a um auditor independente de carta de conforto acerca das informações financeiras, bem como a contratação de advogado para emitir parecer legal acerca da conformidade jurídica das informações. Dado o grau de expertise necessário à avaliação das informações financeiras e dos aspectos jurídicos do prospecto, a instituição pode confiar nas declarações recebidas dos especialistas, sem que seja obrigada a conduzir investigação por conta própria. Assim, se for constatada alguma irregularidade nessas informações, o intermediário pode eximir-se de responsabilidade mediante a prova de que se fiou na opinião de profissional especializado. Cuida-se de meio de defesa que, na doutrina norte-americana, foi cunhado de reliance defense, e cuja validade no ordenamento brasileiro já foi confirmada pela Comissão de Valores Mobiliários6. No entanto, essa linha de defesa não é absoluta, cessando sempre que a instituição se deparar, no curso da sua atividade de revisão, com sinais de alerta (red flags) acerca da existência de informações falsas, imprecisas ou incompletas. Nessa hipótese, ainda que se trate de algum dado coberto pela declaração de um especialista, cumpre à instituição conduzir uma investigação própria para se assegurar da adequação da informação7. Conclusões Com a crescente popularização do mercado de valores mobiliários, mostra-se urgente a tarefa de disseminar as regras de seu funcionamento, entre as quais se destaca o princípio de que o investidor é livre para avaliar e assumir os riscos associados aos investimentos que lhe são ofertados, tendo em conta as informações públicas disponíveis. Nesse contexto, o contrato de underwriting traduz importante mecanismo de promoção da eficiência das captações públicas de recursos. Embora tenha por finalidade primordial atender aos interesses do ofertante, que almeja levar a bom termo a colocação pública de seus valores mobiliários, o contrato cumpre inegável função social ao servir igualmente de instrumento de proteção dos investidores. A instituição intermediária, como visto, atua como gatekeeper do cumprimento, pelo ofertante, da sua obrigação de prestar informações corretas, úteis e completas ao público. No entanto, a sua obrigação é de meios, cabendo-lhe envidar os seus melhores esforços na verificação das informações, gerando, com isso, maior credibilidade para a oferta, mas sem se comprometer a alcançar esse resultado prático, de modo que o investidor continua a incorrer, ainda que de forma atenuada, no risco de o ofertante não cumprir adequadamente a sua obrigação de informação. Com o crescente amadurecimento do mercado, surgem novas questões sobre o regime regulatório das ofertas públicas. Discute-se, por exemplo, a extensão das informações que devem ser obrigatoriamente fornecidas aos investidores, haja vista o tamanho, muitas vezes desmesurado, dos documentos elaborados para essa finalidade. Já se observou a esse respeito que o excesso de informações pode se mostrar tão pernicioso quanto a insuficiência, vez que compromete a capacidade do investidor para identificar, dentre aquelas que lhe são franqueadas, as que são realmente úteis para a sua decisão de investimento. Essa e outras questões vem sendo continuamente debatidas entre os profissionais de mercado, as suas entidades de representação e a CVM, que já anunciou para 2020 uma ampla reforma da regulamentação das ofertas públicas, que vem sendo ansiosamente aguardada. *Pablo Renteria é professor de Direito Civil do Departamento de Direito da PUC-Rio. Sócio do escritório Renteria Advogados. Membro Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCONT. Ex-Diretor e ex-Superintendente de Processos Sancionadores da Comissão de Valores Mobiliários. __________ 1 Louis Loss and Joel Seligman, Fundamentals of Securities Regulation, 1998, 3ª edição, p. 177. 2 Cf. nessa direção Nelson Eizirik, Negócio Jurídico de Underwriting - Questões Contemporâneas, in Ecio Perin Junior, Daniel Kalansky e Luis Peyser (coord.), Direito Empresarial - Aspectos atuais de Direito Empresarial brasileiro e comparado, São Paulo: Método, 2005, p. 250 e seguintes. 3 V. Nelson Eizirik, Emissão de debêntures, in Temas de direito societário, Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 403. 4 Seja consentido remeter a Pablo Renteria, Obrigações de Meios e de Resultado: Análise Crítica, São Paulo: Método, 2011, p. 101-121. 5 Nessa direção, o art. 373, § 1º, do Código de Processo Civil estabelece que: "Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo [probatório] nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído." 6 V. Processo Administrativo Sancionador CVM nº RJ2015/10276, Dir. Rel. Pablo Renteria, j. 11.7.2017. 7 V. novamente Processo Administrativo Sancionador CVM nº RJ2015/10276, Dir. Rel. Pablo Renteria, j. 11.7.2017.
Texto de autoria de Marcos Ehrhardt Jr.1 Nas primeiras semanas de cada ano que se inicia, costumamos avaliar projetos em andamento, fazer novos planos, decidir quais rumos seguir. Listas, metas, desafios e novas expectativas. O que esperar para o campo dos contratos nos próximos anos? Essa foi a primeira pergunta que surgiu assim que recebi o convite do IBDCONT para colaborar com esta coluna. O desafio da complexidade e o impacto da tecnologia Tanto no campo acadêmico quanto no campo profissional, preocupa-me a crescente dificuldade dos operadores jurídicos (magistrados, advogados, membros do Ministério Público...) de lidarem com situações cada vez mais complexas. O modelo contratual clássico, com suporte em papel e vocação puramente patrimonial, não é mais suficiente para uma realidade negocial plural, transnacional e em constante mutação, provocada por avanços tecnológicos que mudaram não apenas o nosso modo de comunicação e interação com o próximo, mas também a forma como registramos os atos que praticamos e até mesmo os bens objeto dos negócios jurídicos que celebramos. Enquanto nosso Código Civil remete à contratação entre ausentes por correspondência epistolar e detalha formas de contratação envolvendo bens imóveis com observância de requisitos formais específicos, registrados em um suporte físico (papel), a maioria dos alunos que iniciam seus passos no mundo do direito vivem num período em que nunca experimentaram enviar uma carta para um amigo pelo correio, não atribuindo importância à conservação de documentos físicos, quando guardam "na nuvem" informações e dados que consideram importantes. A interação social ocorre em redes sociais, normalmente de forma escrita em mensagens de poucos caracteres, arquivos de áudio de poucos minutos, sendo cada vez mais raro encontrar, entre as novas gerações, quem utilize primordialmente o telefone para a função de ligar e conversar em tempo real com outra pessoa. Recentemente, ao ligar para um amigo a fim de cumprimentá-lo por seu aniversário, ouvi do outro lado da linha a pergunta: "está tudo bem?", pois "se você ligou em vez de enviar mensagem, deve estar ocorrendo algo bastante sério". Vivemos num período em que as noções de tempo e espaço são redefinidas pela forma de interação tecnológica que adotamos. A tecnologia mudou antigos hábitos, e com ela surgiu a necessidade de desenvolvermos novas habilidades. Mas nem todos abraçam a tecnologia e suas funcionalidades com a mesma rapidez e/ou têm acesso aos mesmos recursos. Se antes havia uma clara distinção entre os que eram alfabetizados e aqueles que não conseguiam ler, o avanço tecnológico criou barreiras, que podem ser ainda mais difíceis de transpor do que a alfabetização de um indivíduo. Em tempos de obsolescência programada e de uma incessante busca por novas funcionalidades e interação, não é nada fácil manter-se atualizado, conseguindo dominar o último modelo de computador, smartwatch ou smartphone, nova versão do sistema operacional, definições de segurança da informação e acesso remoto a dados. Se você consegue garantir atualização nisso, é preciso perguntar ainda se tem o mesmo nível de informação e desenvoltura quando o tema da conversa passa por IOT (internet das coisas), aplicações com uso de inteligência artificial ou registros blockchain. Isso sem falar em registros biométricos para criptografia e nos demais aspectos relativos à infraestrutura relacionada aos avanços tecnológicos. Aqueles que receberam formação jurídica nos últimos 30 anos acostumaram-se a buscar a solução de todos os problemas exclusivamente no campo jurídico e raramente realizavam incursões noutros campos do saber. Mas o monopólio das soluções a partir das normas jurídicas não é possível no cenário atual, considerando os avanços científicos. Difícil propor soluções para o que não conhecemos em profundidade ou de que não vivenciamos a utilização. Como entender um match numa rede social, as consequências de um bloqueio de seguidor ou o compartilhamento em serviços de streaming sem a experiência de ser usuário de uma aplicação de semelhante natureza? Em que ponto da aplicação de tecnologias você, caro leitor, se encontra? Considerando a lista a seguir, o que faz parte do seu cotidiano: rádio, jornal, televisão aberta, TV por assinatura, streaming, podcast, notificações em tempo real por aplicativos, realidade ampliada com uso de inteligência artificial e uso de assistentes pessoais (= e.g.: Siri)? Eu poderia perguntar de outra forma: você paga suas contas no banco? Em lotérica? Em aplicativo para telefone celular? Com dinheiro tradicional ou com moedas eletrônicas? Será que todos ao seu redor utilizam a tecnologia da mesma forma? Como navegar num oceano de desafios. Hora de inflar as velas da colaboração e da informação Num momento de transição entre o universo de usuários e não usuários, dos iniciados em tecnologia e daqueles que não se importam em entender como ela funciona, é nos contratos que buscamos ferramentas de tradução da realidade e a prevenção dos problemas que essa intensa disparidade de conhecimento provoca, exigindo de quem atua na área a máxima atenção com a boa-fé objetiva e o dever de informação, que não deve se limitar à redação de cláusulas contratuais. Lidamos com interesses diversos, acesso a informações de modo assimétrico, que se repete no campo financeiro e técnico. Lidar com assimetrias e com questões que transcendem interesses individuais para o campo dos direitos transindividuais e difusos faz-se presente na agenda de qualquer profissional. De um trabalho tradicionalmente individualista, realizado na solidão de nossos escritórios, passamos a experimentar um espaço aberto de colaboração, no qual múltiplos saberes e competências são necessários para lidar com intricadas questões, quer sejam sobre aplicações da engenharia genérica para a saúde, quer seja sobre a utilização de informações pessoais por terceiros para fins econômicos, ou ainda o risco do desenvolvimento de novas tecnologias em substituição por máquinas de atividades exercidas por seres humanos. Contrato combina com complexidade? Acredito que a resposta seja afirmativa. O contrato, enquanto expressão do exercício da liberdade negocial, vale dizer, da autonomia privada, é o espaço privilegiado para lidar com o campo da inovação e das incertezas. Não é possível ignorar a realidade e seus avanços. A vida não espera a regulamentação dos novos campos de atuação pelo poder público. É justamente neste espaço de atuação que o trabalho dos profissionais que atuam elaborando contratos se torna decisivo. Além de definir partes e objeto do contrato, há de se analisar os efeitos da avença para com terceiros, observar sua adequação às normas ambientais e demais marcos regulatórios, o atendimento adequado às diretrizes de compliance do outro contratante e por vezes dos seus parceiros, juntamente com o posicionamento do negócio em relação aos demais stakeholders (funcionários, fornecedores, acionistas e consumidores). Em breve, entrará em vigor a Lei Geral de Proteção de Dados2, adicionando novas camadas de requisitos a serem observados em contratações que há muito tempo não se limitam a aspectos materiais do negócio, passando a regular também o procedimento da solução de controvérsias, na busca do mecanismo mais adequado para a resolução de problemas de execução, seja no campo do Judiciário, seja através de um método alternativo escolhido de acordo com as peculiaridades do caso específico. Mais do que definir as condições de preço, forma de pagamento e obrigações das partes, deve o profissional que elabora contratos agir prospectivamente, analisando futuros cenários do relacionamento negocial, elegendo ferramentas de superação de intercorrências na direção do melhor adimplemento possível para contratantes que precisam enxergar no outro polo da avença um colaborador proativo e não um antagonista. Se nem sempre é fácil ser bem-sucedido na elaboração e execução de contratos fechados e por tempo determinado, o que dizer dos contratos cativos de longa duração, vale dizer, dos contatos relacionais, cuja duração se confunde com a própria existência dos seus figurantes? Para ilustrar, cabe aqui uma pergunta: desde quando, caro leitor, você tem plano de saúde e até quando pretende mantê-lo? No modelo dos contratos relacionais, a alocação dos riscos do negócio vai sendo alterada durante a sua própria execução, não sendo possível, no momento de sua celebração, precisar o cenário futuro após décadas de vigência de cláusulas negociais pensadas noutro contexto de regulação e equilíbrio econômico. Para lidar com situações como a acima descrita, desenvolvem-se teorias acerca de contratos propositalmente incompletos, nos quais a mencionada alocação de riscos não é estabelecida no momento de sua celebração, estabelecendo-se, ao contrário, mecanismos para a solução das contingências ao tempo que forem surgindo. Em tempos de economia do compartilhamento, em que ter propriedade plena, para muitos, deixa de ser algo essencial, para ser substituído pelo direito de uso de certos bens por determinados períodos, considerando-se ainda que a velocidade da disrrupção dos avanços tecnológicos pode tornar obsoleto determinado serviço em poucos anos, fazer uso de formas deliberadamente incompletas de contratos, permitindo avenças sucessivas entre as partes ou a deliberação dos problemas por terceiros previamente estabelecidos para a resolução de questões pontuais, passará a ser uma estratégia negocial cada vez mais frequente a fim de enfrentar as mudanças de circunstâncias que interferem no equilíbrio do acordo entre as partes. Enfim as perspectivas... Estamos acostumados a visualizar os contratos como um texto cheio de itens registrados em papel e temos dificuldade em reconhecer, com o mesmo grau de importância e necessidade de atenção, formas de contratação verbais e, especialmente, aquelas realizadas por interação eletrônica. Ainda existem os que pensam que "se não está registrado em papel no cartório, não é tão importante". Aqui não me refiro apenas à contratação em sites de comércio eletrônico, mas a negócios celebrados em redes sociais (WhatsApp, Facebook, Instagram) e dentro de aplicativos de jogos e utilitários. Juntem-se a isso as plataformas on line de resolução de conflitos e as transações negociais sobre direitos patrimoniais disponíveis. Contratamos quando realizamos o download de um joguinho, por mais inofensivo que ele pareça, pois concordamos em dar acesso a dados pessoais que vão remunerar a utilização do aplicativo, em conjunto com a publicidade que deve ser assistida como um requisito para mudar de fase ou conseguir alguma vantagem no jogo. Desenvolvedor, provedores de acesso e aplicação, agentes de marketing, empresas interessadas em divulgar produtos e serviços, são figurantes de uma cadeia complexa de fornecedores que apresenta diversas coligações contratuais, sendo difícil enxergar todo o quadro negocial envolvido. Um dos maiores desafios que os próximos anos nos reservam é a forma como colocaremos em prática a necessária tradução de uma teoria contratual analógica para um mundo digital. De nada adianta discutir com um profissional o que seria um contrato "5.0" quando não se compreendem adequadamente as categorias fundamentais de um contrato "1.0". Cite-se, por exemplo, a cada vez mais frequente referência a smart contracts. Mesmo quando celebrados de modo automatizado, por vezes com utilização de recursos de inteligência artificial, os requisitos de existência, validade e eficácia estão presentes na programação que possibilita sua concretização no mundo jurídico. Via de regra, experimentamos um período de lacuna legislativa sobre parte considerável dos avanços tecnológicos citados acima. Enquanto operadores do direito, não podemos aguardar a elaboração de novas leis para tratar das situações que já estão a ocorrer. Há se se funcionalizar e ressignificar institutos clássicos da teoria contratual e fazer uso de uma hermenêutica contratual que garanta efetividade aos direitos e garantias fundamentais de nossa Constituição. É preciso discutir o futuro (= novas formas de contratação e a necessidade de sua regulação), sem esquecer o presente (= tradução e ressignificação dos institutos). Neste aspecto, o advento de novas iniciativas legislativas não pode comprometer uma base teórica sólida que vem sendo lapidada no último século. Desse modo, causa preocupação o projeto de um novo Código Comercial3 que, entre outras alterações, pretende criar uma teoria das obrigações comerciais autônoma4, ao tempo que, infelizmente, não aprofunda em seu texto o debate sobre as inovações tecnológicas aqui debatidas. As referências ao comércio eletrônico, utilização de documentos eletrônicos e, principalmente, responsabilidade dos empresários no meio digital carecem de maior discussão e diálogo com outros microssistemas, o que em muito poderia contribuir, especialmente no que se refere às relações empresariais assimétricas, num país no qual parcela considerável dos empresários pode ser enquadrada como pequenos e microempreendedores. Após todo o esforço de unificação da teoria das obrigações negociais efetuado com a criação do Código Civil em 2002, a simples leitura de alguns dispositivos do referido projeto permite detectar diversos pontos em que não se observa a melhor técnica5, desconsiderando-se o entendimento doutrinário e jurisprudencial já sedimentado em nosso país. A aprovação do texto do projeto, na sua versão atual, repristinaria vários debates no Judiciário sobre a natureza jurídica da relação (v.g., se civil ou comercial), criando um ambiente que parece ser o oposto de quem sustenta serem necessárias a segurança e a previsibilidade na alocação de riscos para o desenvolvimento econômico. Nos dias atuais, há de se compreender os vários matizes do contrato contemporâneo. Quando se menciona "contrato", de qual espécie estamos tratando? Seria um contrato paritário, com partes em condições de igualdade, em posição de discutir de modo equidistante e leal seu conteúdo? Seria um contrato entre particulares, preocupado com o valor de uso do bem e as necessidades pessoais de sua família? Estamos tratando de um contrato massificado, impessoal, com predisposição unilateral de suas condições para o oferecimento de produtos ou serviços em que não há espaço para sua customização de acordo com as necessidades individuais específicas? Por acaso seria um ajuste coletivo, que versa sobre interesses de um grupo, com posição jurídica semelhante? Estamos lidando com um contrato celebrado entre pessoas que gozam de capacidade civil e têm plenas condições de compreender o sentido e alcance técnico, econômico e/ou jurídico das cláusulas estabelecidas, ou estamos diante de relações marcadas por uma vulnerabilidade latente e que necessita de regulação? Tratando de regulação, estamos elaborando um contrato típico com entendimento jurisprudencial consolidado ou lidando com o desafio da lacuna legislativa, num ambiente de forte interferência dos avanços tecnológicos que exigem novas soluções para a garantia da validade e eficácia dos pactos? A tecnologia não está apenas no conteúdo das avenças, nas na forma de sua celebração. Já estão entre nós contratos celebrados em vídeo, cláusulas negociais com explicação em áudio, hiperlink para um glossário ou ainda para um questionário específico, a fim de tornar inequívoca a manifestação da vontade, bem como o consentimento negocial utilizando assinatura criptografada e registro do negócio exclusivamente em meio digital. Em vez de ir ao cartório assinar a escritura, utilizamos um token para assinar e obter o código de validação, lançando mão das mais variadas formas de plataforma de mídia. Porém, conforme mencionado acima, os contratos ditos "inteligentes" ainda dependem de pessoas responsáveis por sua programação e aplicação. A fronteira de até onde avançaremos com a inteligência artificial e a internet das coisas ainda está longe de ser definida. Mas o receio daqueles que imaginam que serão substituídos em breve por uma máquina pode reduzir um pouco se nos prepararmos para um novo período no qual a capacidade de argumentação e a criatividade ganharão cada vez mais espaço em detrimento da cômoda opção de realizar tarefas repetitivas. O contrato do futuro marcará o início de uma caminhada e não necessariamente traçará todos os capítulos do percurso dos contratantes. Os profissionais que atuarem no setor não se despedirão dos figurantes negociais no dia de sua celebração, mas acompanharão a jornada e as necessárias correções de rumo na busca de benefícios mútuos, incorporando avanços científicos, novas oportunidades e interesses, desde que não percamos de vista que o contrato, como instrumento de integração social, evolui e acompanha nossa sociedade em todos os seus passos. Tem-se afirmado com frequência que não podemos ignorar os avanços. Mas disrrupção e inovação não significam ignorar de onde viemos. Se pretendemos visualizar para onde estamos seguindo, é preciso compreender como chegamos até aqui e quais foram os agentes da mudança. Sem entender nossos erros e como eles ocorreram, estamos fadados a repeti-los. Se todos parecem concordar que a perspectiva é de mudança, os caminhos para ela não são unânimes e alguns parecem bem tortuosos. Para lançar um pouco de luz sobre a direção a seguir, devemos reafirmar nosso compromisso com a proteção dos sujeitos. A garantia da dignidade não transige com a necessidade de colocar os contratos a serviço das pessoas, e não o contrário. Que tenhamos um excelente ano. _______________ 1 Doutor em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor de Direito Civil da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e do Centro Universitário CESMAC. Editor da Revista Fórum de Direito Civil (RFDC). Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito Civil (IBDCIVIL) e Membro Fundador do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCont. Advogado. 2 O art. 65 da Lei nº 13.709/2018, publicada em 15.8.2018, estabelece um vacatio legis de 24 (vinte e quatro) meses para o início da vigência, com exceção dos artigos indicados no inciso I do referido dispositivo. 3 BRASIL. SENADO. Projeto de lei  487/2013. Acesso em 10.12.2019. 4 Para aprofundar a questão, remete-se o leitor ao recente artigo de José Fernando Simão e Marcello Kairalla, publicado nesta coluna e que pode ser acessado no link clique aqui. 5 Para outras considerações e críticas ao projeto, ver o artigo "A interpretação do negócio jurídico empresarial no projeto de Código Comercial do Senado Federal nº 487/2013", de autoria de Pablo Malheiros, publicado nesta coluna e que pode ser acessado no link clique aqui.
Texto de autoria de Pablo Malheiros da Cunha Frota I. A parcial unificação do direito negocial civil e empresarial: é necessário novamente separar as disciplinas jurídicas? José Fernando Simão e Marcello Kairalla, em coluna publicada no Migalhas Contratuais em 18/11/2019, entenderam pela correção da unificação latina do Direito Privado Negocial, bem como do direito obrigacional interno, por meio da teoria das obrigações, respeitadas as peculiaridades de cada país1. Tal unificação, no mínimo, é relevante para tentar a diminuição dos custos econômicos dos negócios jurídicos2 no Mercosul. Nessa linha, o Código Civil de 2002 (CC) unificou parcialmente o direito negocial civil e empresarial, já que, como destacado por Silvio Meira, ainda quando o Código Civil de 1916 ainda era um Projeto de Lei, "não há tipo para essa arbitrária separação de leis a que deu-se o nome de Direito Comercial ou Código Comercial; pois que todos os atos da vida jurídica, excetuados os benéficos, podem ser comerciais ou não comerciais, isto é, tanto podem ter por fim o lucro pecuniário, como outra satisfação de existência"3. Isso não afeta eventuais diferenças que possam existir entre as disciplinas jurídicas4. Diante disso, causa estranheza um retorno à separação do direito negocial civil e empresarial, como se percebe no projeto de lei do Senado 487/2013 (Projeto de Código Comercial)5, devidamente criticada por Simão e Kairalla: É de se perguntar, outrossim, a quem interessa a "dessistematização" do direito privado. A quem interessa o retorno das discussões se determinada obrigação é ou não comercial. E, ainda, a quem interessa o retrocesso centenário ao direito compartimentado em um cenário cada vez mais globalizado e unificado? O propósito do presente breve texto é, então, responder as questões formuladas e analisar a ideia da unidade do direito das obrigações, especialmente de sua teoria geral, no ensejo da discussão do projeto de um novo Código Comercial que, entre outras alterações, pretende criar uma teoria das obrigações comerciais autônoma6. Não obstante os questionamentos acima, em matéria de interpretação do negócio jurídico, o Projeto de Código Comercial também pretende trazer enunciados normativos dedicados ao tema, sendo que o art. 113 do CC já trata do assunto, como será exposto em breves linhas no tópico seguinte. II- Textos do Projeto de Código Comercial e do Código Civil Em seu texto inicial, o Projeto de Código Comercial o tópico referente à interpretação do negócio jurídico empresarial foi posto nos arts. 166-170: Art. 166. Na interpretação do negócio jurídico empresarial, o sentido literal da linguagem não prevalecerá sobre a essência da declaração. Parágrafo único. A essência da declaração será definida: I - pelos objetivos visados pelo empresário; e II - pela função econômica do negócio jurídico empresarial. Art. 167. As declarações do empresário, relativas ao mesmo negócio jurídico, serão interpretadas no pressuposto de coerência de propósitos e plena racionalidade do declarante. Art. 168. Não prevalecerá a interpretação do negócio jurídico empresarial que implicar comportamentos contraditórios. Parágrafo único. O disposto neste artigo não exclui a coibição ao comportamento contraditório, considerada a conduta da parte na execução do contrato. Art. 169. No caso de silêncio, presume-se que não foi dado assentimento pelo empresário de quem se esperava a declaração, salvo se: I - as circunstâncias ou o comportamento posterior dele indicarem o contrário; ou II - pelos usos e costumes, considerar-se diverso o efeito da ausência de declaração. Art. 170. O negócio jurídico empresarial é presumivelmente oneroso. O Senador Armando Monteiro apresentou emenda n.º 2 para modificar a redação do citado art. 166, sob o fundamento de que deve ser deixado "expresso no texto como indicador para definir a essência, a real vontade dos contratantes. Não deveria ele trazer uma listagem totalmente fechada, mas indicativa", tendo sugerido a seguinte redação: Art.166................................................................................ Parágrafo único. A essência da declaração será fundamentalmente definida, sem prejuízo de outros justificados elementos de convicção: I - pelos objetivos visados pelo empresário; e II - pela função econômica do negócio jurídico empresarial". O senador Pedro Chaves propôs o substitutivo (Emenda 16), no qual vários artigos foram renumerados, com o citado art. 166 tendo sido renumerado para o art. 145: Art. 145 . Na interpretação do negócio jurídico empresarial, o sentido literal da linguagem não prevalecerá sobre a essência da declaração. Parágrafo único. A essência da declaração será definida, sem prejuízo de outros justificados elementos de convicção: I - pelos objetivos visados pelo empresário; e II - pela função econômica do negócio jurídico empresarial. Existe ainda uma versão do Projeto de Código Comercial ainda em debate no Senado Federal, cuja proposição, até o presente momento, é a seguinte: Art. 125. Na interpretação do negócio jurídico empresarial, o sentido literal da linguagem não prevalecerá sobre a essência da declaração. Parágrafo único. A essência da declaração será fundamentalmente definida, sem prejuízo de outros justificados elementos de convicção: I - pelos objetivos visados pelo empresário; e II - pela função econômica do negócio jurídico empresarial. § 1º. As declarações do empresário, relativas ao mesmo negócio jurídico, serão interpretadas no pressuposto de coerência de propósitos e plena racionalidade do declarante. § 2º. No caso de silêncio, presume-se que não foi dado assentimento pelo empresário de quem se esperava a declaração, salvo se: I - as circunstâncias ou o comportamento posterior dele indicarem o contrário; ou II - pelos usos e costumes, considerar-se diverso o efeito da ausência de declaração. Os arts. 112 e 113 do CC, que teve sua redação alterada pela lei 13.874/19, possuem a seguinte redação: Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem. Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. § 1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que: (Incluído pela lei 13.874, de 2019) I - for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio; (Incluído pela lei 13.874, de 2019) II - corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio; (Incluído pela lei 13.874, de 2019) III - corresponder à boa-fé; (Incluído pela lei 13.874, de 2019) IV - for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e (Incluído pela lei 13.874, de 2019) V - corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração. (Incluído pela lei 13.874, de 2019) § 2º As partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei. (Incluído pela lei 13.874, de 2019)7 Indaga-se: qual a razão do tema ser novamente tratado no referido Projeto de Código Comercial se a redação dos arts. 112 e 113 do Código Civil é mais completa, sem olvidar a construção sobre o tema produzida pela literatura jurídica e pelos Tribunais? III. Crítica ao Projeto de Código Comercial A resposta à indagação anterior é negativa, uma vez que os arts. 166, 145 ou 125 das várias versões do Projeto de Código Comercial: a) manteve a redação posta no art. 112 do CC, lembrando que é inadequado, após o giro-linguístico da segunda metade do século XX, utilizar a ideia de literalidade do texto constitucional ou infraconstitucional, uma vez que um texto comporta, com Victoria Iturralde Sesma, um sentido convencional, que delimita o limite da interpretação8. Nessa linha, a convencionalidade posta no Direito brasileiro sobre a interpretação dos negócios jurídicos de qualquer natureza autoriza a interpretação do texto negocial contextualizado aos comportamentos concretos das partes em todos os momentos pré-negociais, negociais e pós-negociais, como emana do art. 422 do CC. Procurar pela intenção das partes tende a gerar prova diabólica para ao menos uma das partes, além do que a intenção pode ser uma e o comportamento externalizado outro, a prevalecer este último sobre a intenção; b) a proteção ao comportamento em detrimento da literalidade ou da intenção das partes também está presente no Enunciado 409 das Jornadas de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal (CJF); não há nada de novo nos arts. 166, 145 ou 125 das várias versões do Projeto de Código Comercial. c) tal concepção já está posta no § 1º do art. 113 do CC e é aplicável a qualquer negócio jurídico; e) não se pode reduzir as funções de um negócio jurídico à função econômica, porque os negócios jurídicos possuem outras funções como social, mesmo que esta possa não atingir todos os negócios jurídicos9, regulatória e ambiental10; f) continua a trabalhar com presunção em caso de silêncio, hipótese já resolvida pelo art. 111 do CC. IV. Notas conclusivas Ante ao exposto, o Projeto de Código Comercial, no que toca à interpretação do negócio jurídico traz disposições já dispostas nos arts. 111, 112 e 113 do CC, não inovando e nem contribuindo em nada para uma melhor interpretação dos negócios jurídicos, com o risco de fragmentar a análise do negócio jurídico empresarial em relação ao negócio jurídico civil, separação esta que não faz mais sentido, pois a teoria do negócio jurídico posta no CC abarca todos os negócios jurídicos civis e empresariais. __________ 1 SIMÃO, José Fernando; KAIRALLA, Marcello Uriel. A desnecessidade de uma teoria geral da obrigação empresarial e os equívocos do projeto de Código Comercial. Migalhas Contratuais. Acesso em 10/12/2019. 2 WILLIAMSON. Oliver E. The Economic Institutions of Capitalism: firms, markets, relational contracting. London: Collier Macmillan Publishers, 1985; WILLIAMSON, Oliver E. Transaction Cost Economics: How it works; where it is headed. In: De Economist. Netherlands, vol. 146 (1151), n. 1, 1998. 3 MEIRA, Silvio. Teixeira de Freitas - o Jurisconsulto do Império: Vida e Obra. São Paulo: Editora Olympio, 1979, pp. 347-365. 4 SIMÃO, José Fernando; KAIRALLA, Marcello Uriel. A desnecessidade de uma teoria geral da obrigação empresarial e os equívocos do projeto de Código Comercial. Migalhas Contratuais. Acesso em 10/12/2019. 5 BRASIL. SENADO. Projeto de lei  487/2013. Acesso em 10.12.2019. 6 SIMÃO, José Fernando; KAIRALLA, Marcello Uriel. A desnecessidade de uma teoria geral da obrigação empresarial e os equívocos do projeto de Código Comercial. Migalhas Contratuais. Acesso em 10/12/2019. 7 Sobre as mudanças do art. 113 do CC diante da Lei da Liberdade Econômica veja: TARTUCE, Flavio. A "LEI DA LIBERDADE ECONÔMICA" (LEI N. 13.874/2019) E OS SEUS PRINCIPAIS IMPACTOS PARA O DIREITO CIVIL. SEGUNDA PARTE. MUDANÇAS NO ÂMBITO DO DIREITO CONTRATUAL. Acesso em 10/12/2019; ELIAS, Carlos. LEI DA LIBERDADE ECONÔMICA: DIRETRIZES INTERPRETATIVAS DA NOVA LEI E ANÁLISE DETALHADA DAS MUDANÇAS NO DIREITO CIVIL E NO REGISTROS PÚBLICOS. Acesso em 10/12/2019. 8 SESMA, Victoria Iturralde. Interpretación literal y significado convencional. Madrid: Marcial Pons, 2014. 9 Sobre o tema veja: PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. Institutos Fundamentais do Direito Civil e Liberdade(s). Rio de Janeiro: GZ, 2011. 10 FROTA, Pablo Malheiros da Cunha. Os deveres contratuais gerais nas relações civis e de consumo. Curitiba: Juruá Editora, 2011.
Texto de autoria de José Fernando Simão e Marcello Kairalla I - Unificar ou não unificar: eis a questão! A unificação do direito não é questão recente nos debates jurídicos. Já em 1976 Limongi França, em seu "La unificación del derecho obligacional y contractual latino-americano", expôs os motivos pelos quais acreditava na unificação do direito. Aliás, o autor coloca como pressuposto para a integração comunitária, econômica, política e social, a integração jurídica. E, mais além, afirma que a integração deve se dar em dois âmbitos, o externo e o interno, aquele por meio de tratados, convenções e protocolos e este pela unificação do Direito Privado1. Limongi França explicava que havia severa dificuldade na unificação de searas como o direito de família, em razão das muito arraigadas tradições e dos costumes milenares de cada povo. A unificação dos ramos contratual e obrigacional do direito privado, por outro lado, seria uma "impostergável necessidade" como meio para superação de conflitos econômicos dentro da comunidade2. Isso foi afirmado, pois o direito latino-americano possui, grosso modo, as mesmas raízes históricas, quais sejam, primeiramente romana, entre nós fundante das principais regras de direito privado, mas também dos direitos godo, canônico, comum e, posteriormente, ibérico, cujo maior exemplo são as Ordenações Filipinas. Mas as influências comuns não cessaram, pois nos séculos XIX e XX toda a América Latina foi grandemente influenciada pelos códigos civis de Alemanha e França. Dúvidas não há, portanto, que todo o ordenamento privado desses países bebeu da mesma fonte. É verdade que Limongi França, ao descrever o Projeto de Código Civil do Chile, narra que circunstâncias peculiares de cada país influenciaram na elaboração de seus respectivos códigos3. Isso vale para todos os países. Contudo, essas peculiaridades não desnaturaram o fato de os ordenamentos serem essencialmente iguais, de modo que seria recomendável pensar na sua unificação, diante das raízes comuns e da "massa de investimentos". A função da unificação é simples: facilitar as trocas econômicas entre os diversos países de tradição romano-germânica. A unificação do direito privado traria facilidade de transações econômicas ou, na linguagem de Williamson, uma redução dos custos de transação4. Segundo a corrente pró-unificação, militam em favor o fato de que na América Latina há uma quase unidade cultural e linguística. Haveria, nessa região do globo, uma universalidade da formação etnográfica e cultural, de modo que a América Latina seria, portanto, o "primeiro caminho viável para a unificação universal do Direito". Ademais, as regras dos Códigos Civis são afins, como visto, somente com pequenas mudanças em razão de peculiaridades regionais. Ora, se com razão se defendeu a unificação latina das obrigações, com mais razão ainda se deve defender a unificação do direito obrigacional interno. Aqui, com o advento do Código Civil de 2002, procedemos à unificação da teoria geral das obrigações. Isto com base na ideia essencial de Teixeira de Freitas, de razão comum. Não poderiam duas situações fáticas idênticas, com iguais razões de ser, possuir regramento distinto. Já em 1867, Teixeira de Freitas, vendo tal inaceitável incompatibilidade, advogou pela unificação do direito civil e do comercial, ao defender o Esbôço como Código de Direito Privado. Na carta enviada ao Ministro da Justiça em 1867, deixou claro que a unificação era o único modo que "corrigirá o vício de quase todos os trabalhos legislativos, que é o de tomar a parte pelo todo"5. Na preciosa obra de Silvio Meira, há transcrição integral de cartas de Teixeira de Freitas, em especial uma enviada ao Ministro da Justiça que o havia contratado para elaboração do Código Civil, na qual disse: "não há tipo para essa arbitrária separação de leis a que deu-se o nome de Direito Comercial ou Código Comercial; pois que todos os atos da vida jurídica, excetuados os benéficos, podem ser comerciais ou não comerciais, isto é, tanto podem ter por fim o lucro pecuniário, como outra satisfação de existência". Em síntese, quase qualquer ato da vida pode ser civil ou comercial, com exceção aos gratuitos. Assinala Teixeira que são exceções, "raros casos", nos quais é "necessário distinguir o fim comercial, por motivo da diversidade nos efeitos jurídicos"6. Não se pode, então, normatizar com base na exceção. Nos dizeres de Teixeira, a unificação "é o plano que nos permitirá erigir um monumento glorioso, plantar as verdadeiras bases da codificação, prestar à ciência um serviço assinalado"7. É de se perguntar, outrossim, a quem interessa a "dessistematização" do direito privado. A quem interessa o retorno das discussões se determinada obrigação é ou não comercial. E, ainda, a quem interessa o retrocesso centenário ao direito compartimentado em um cenário cada vez mais globalizado e unificado? O propósito do presente breve texto é, então, responder as questões formuladas e analisar a ideia da unidade do direito das obrigações, especialmente de sua teoria geral, no ensejo da discussão do projeto de um novo Código Comercial que, entre outras alterações, pretende criar uma teoria das obrigações comerciais autônoma. II - Substitutivo ao Projeto de Lei do Senado 487/13 O substitutivo ao Projeto de lei do Senado 487/13, que pretende instituir um novo Código Comercial, foi amplamente debatido, em Brasília, por diversos juristas convidados na sexta-feira dia 8/11/2019. Dois pontos merecem reflexão nas presentes linhas. O Livro IV do Projeto tem por título "Das obrigações empresariais" e está dividido em três títulos com seus vários capítulos conforme tabela que se segue: Passamos a abordar os problemas que os dispositivos que pretendem criar regras para o inadimplemento da obrigação empresarial (Título I, Capítulo II) criam para o sistema. O artigo 111 do Projeto é inútil. Repete o Código Civil com imprecisão teórica. Equivoca-se o artigo ao não permitir a resolução contratual. Exigir que a parte prejudicada seja mantida em um vínculo ainda que a prestação tenha se tornado inútil ao credor, é ignorar a realidade fática contratual. É o caso do vendedor (empresário) de matéria-prima que, por desídia, deixa o objeto perecer. Se o credor não tem interesse na prestação após o perecimento, pela boa técnica, pedirá a resolução do contrato e as perdas e danos. O projeto, de maneira atécnica, prevê apenas as perdas e danos que, por sinal, podem ser exigidas com a resolução ou mesmo com a exigência de cumprimento da prestação. Seguindo no exemplo acima exposto, trata-se do caso de o vendedor (empresário) que, mesmo que haja atrasa na entrega de matéria prima, ainda se submente à vontade do comprador, que ainda pode ter interesse em exigir a matéria-prima, mais perdas e danos. É por isso que a redação do art. 475 do Código Civil é mais técnica e suficiente para o que pretende o artigo 111 do projeto. Pior são os incisos do dispositivo que mencionam consectários: (i) correção monetária; (ii) juros; (iii) indenização pelas perdas e danos derivados da mora; e (iv) cláusula penal. Note-se que a redação do inciso III menciona "perdas e danos derivados da mora" apesar de o caput do dispositivo falar em perdas e danos. A atecnia grita! Novamente transcrevemos dois dispositivos do Código Civil: Inadimplemento absoluto e mora são distintos segundo a boa doutrina. Na mora a prestação ainda é útil ao credor enquanto no inadimplemento absoluto não é mais. É por isso que a mora pode ser purgada (emendatio morae). Mas do que trata o artigo 111 do projeto? De mora ou de inadimplemento absoluto? Caput e inciso III não dialogam entre si. Há uma confusão categorial evidente por tratar de duas situações distintas em um mesmo dispositivo. Melhor seria que o projeto copiasse os artigos do Código Civil cuja redação não merece reparos. Será que o projeto de Código Comercial pretende excluir dos efeitos da mora e do inadimplemento absoluto o pagamento de honorários advocatícios? Se pretende, que o faça expressamente sob pena de aplicação subsidiária do Código Civil e determinação de pagamento de honorários pelo inadimplente. O que faz a cláusula penal como consectário do inadimplemento contratual se, a cláusula penal, segundo a melhor doutrina (por todos Otávio Luiz Rodrigues Junior8) é exatamente a prefixação das perdas e danos? Poderia o credor cobrar as perdas e danos (caput do art. 111), depois novamente as perdas e danos (inciso III do art. 111) e ainda a cláusula penal? Resposta: não. É por isso que, com melhor técnica, o Código Civil não inclui a cláusula penal como efeito da mora ou do inadimplemento absoluto. A confusa redação do projeto pode levar a crer (em erro) que o credor pode cobrar as perdas e danos somadas à cláusula penal. A função histórica da cláusula penal é de prefixar as perdas e danos (livrando o credor do ônus de provar o dano e sua extensão), bem como de limitar a responsabilidade civil (vide texto do artigo 416 do CC). Teria o projeto de código comercial reinventado a cláusula penal? Toda a categoria passaria a ser puramente punitiva sem nenhuma limitação como as previstas nos artigos 412 (o valor da cominação imposta na cláusula penal não pode exceder o da obrigação principal.) e 413 (a penalidade deve ser reduzida equitativamente pelo juiz se a obrigação principal tiver sido cumprida em parte, ou se o montante da penalidade for manifestamente excessivo, tendo-se em vista a natureza e a finalidade do negócio) do CC? Sobre a correção monetária, o ajuste do valor de compra da moeda em razão da inflação, o projeto demonstra sua completa falta de operabilidade, pois assim prevê: "§ 1º. Se não constar do contrato ou título de crédito, o índice da correção monetária será o setorial que medir a variação dos custos no segmento de mercado em que atua o credor, e, em sua falta, prevalecerá o índice geral usualmente adotado pelos empresários". Admitir correção monetária pelo "índice geralmente adotado pelos empresários" é de uma inconveniência ímpar, pois será enorme o debate sobre qual índice seria esse e muito problemática a dilação probatória para se "descobrir" qual índice aplicar. A indeterminação da taxa de juros do artigo 403 do CC revela que a ausência de um valor fixo leva o sistema ao colapso, pois atualmente são intermináveis os debates na doutrina e na jurisprudência se a taxa legal de juros de mora é de 1% ao mês ou seria a SELIC. Melhor seria que toda essa "teoria geral" que o projeto "cria" seja retirada do texto. Isso porque as novas regras criam mais insegurança e confusão do que operabilidade ao sistema obrigacional. Alguns poucos ajustes ao texto do Código Civil (por exemplo sobre os percentuais de juros de mora) resolvem a questão sem quebrar a espinha dorsal do sistema, distorcendo-o. Por fim, cabe uma breve análise das regras previstas para a validade dos negócios jurídicos empresariais (Título II, Capítulo I). Esse trecho do projeto é assustador para quem conhece Teoria Geral do Direito e os ensinamentos da doutrina. Toda a premissa do Projeto nesse título é a seguinte: "art. 118. O negócio jurídico empresarial nulo pode ser confirmado, por retificação ou ratificação, a qualquer tempo, mesmo que já iniciada a ação de nulidade". Ação de nulidade? Falta um adjetivo. Ação declaratória de nulidade. Confirmar negócio jurídico nulo? Segundo alguns, isso reduziria a insegurança jurídica. Bem, se assim fosse, caberia ao projeto especificar em quais hipóteses o negócio jurídico nulo se convalida, ao invés de criar uma regra geral gravosa ao sistema. Causa perplexidade o fato de a ratificação poder ser expressa (por declaração ou manifestação de vontades) ou tácita (pela conduta das partes). Cria o projeto a manifestação por retificação. Retificar é corrigir, alterar. A leitura do texto do Projeto implica a seguinte questão: a simples correção convalida o negócio nulo, ainda que seja uma mudança de data ou a alteração do conteúdo de uma cláusula? E pior: "art. 119. O negócio jurídico empresarial nulo convalesce com o decurso do tempo" e no prazo de 2 anos (art. 128, §1º do projeto). Qual é o problema de se admitir a confirmação (tácita ou expressa do negócio jurídico nulo) ou mesmo sua convalidação após dois anos? O problema é que o projeto ignora as razões que podem levar à nulidade absoluta do negócio jurídico previstas no art. 166 do CC. Vejamos apenas os incisos III e VI: "III - o motivo determinante, comum a ambas as partes, for ilícito; (...) VI - tiver por objetivo fraudar lei imperativa;" Sim, o projeto de Código Comercial pretende tornar válido, por decurso do prazo, negócios jurídicos em fraude à lei imperativa e cujo motivo seja ilícito. E o exemplo da doutrina que é recorrente (o menor com 15 anos que vota em assembleia e depois de 20 anos pretende ter a declaração de nulidade) está nas hipóteses de não convalidação do nulo (inciso I do art. 122 do projeto). Não seria melhor ao sistema prever hipóteses de negócios jurídicos que podem ser ratificados e que se convalidam com decurso do tempo ao invés de se criar uma regra geral que permite aos contratantes fraudarem a lei imperativa? O dispositivo projetado esquece de "combinar com os russos". Se o negócio jurídico empresarial for simulado em fraude ao fisco, após dois anos a nulidade desaparece. O fisco, como terceiro, está impedido de demandar a nulidade para receber o tributo devido? A resposta é não. A solução seria a cobrança de perdas e danos. Pela análise de custos, passa a ser vantajosa a celebração de negócios jurídicos nulos, contando as partes com o beneplácito da lei, pois após 2 anos nada poderá ser reclamado, salvo as perdas e danos cuja prova, no mais das vezes, é difícil e custosa. Novamente, o projeto cria novidades difíceis de se compreender e que, portanto, gerarão dúvidas à aplicação do sistema. Melhor manter a parte geral do Código Civil, com alterações pontuais em matérias específicas. III - Notas conclusivas Conforme exposto, o Projeto de Código Comercial está repleto de atecnias. Falta tanto precisão técnica e quanto cuidado às categorias jurídicas. O projeto falha ao delimitar a resolução contratual, falha ao interpretar e definir a mora e falha ao incluir a cláusula penal como efeito da mora. Mas as falhas a essas supra narradas não se restringem. O projeto quando inova, inova mal. Dinamitar o sistema de nulidades, fazendo com que elas, em regra, convalesçam, é tenebroso para o direito. Beneficia e facilita a fraude e aqueles que atuam em desvio às regras de padrão de conduta. Diante das atecnias o projeto gera mais dúvidas que soluções na aplicação das teorias gerais das obrigações e dos negócios jurídicos. Melhor seria retirar totalmente do Projeto o Título I, capítulo II e o Título II, capítulo I, o que não traria quaisquer prejuízos à operabilidade do sistema, mas, ao contrário, confortaria os empresários com regras já conhecidas e funcionais há décadas, senão séculos ou milênios. É óbvio que isso não afasta eventual necessidade de ajustes pontuais, para suprir demandas específicas da prática, dissolvendo controvérsias atualmente existentes. Não é necessário matar o paciente para curar o resfriado. *José Fernando Simão é livre-docente, doutor e mestre pela Faculdade de Direito da USP. Professor Associado do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP. Segundo Secretário do IBDCONT. Presidente do Conselho Consultivo do IBRADIM. Advogado e parecerista. *Marcello Kairalla é mestrando em Direito Civil na Faculdade de Direito da USP. Advogado. __________ 1 FRANÇA, Rubens Limongi. La unificación del derecho obligacional y contractual latino-americano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976. 2 FRANÇA, Rubens Limongi. La unificación del derecho obligacional y contractual latino-americano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976. 3 Consta da "Mensaje de Montt e Ovalle, sobre a originalidade do texto Projeto chileno: 'Desde luego concebiveis que no nos hallamos em el caso de copiar a la letra ninguno de los códigos modernos. Era menester servirse de ellos sin perder de vista las circunstancias peculiares de nuestro país. Pero em lo que estas no presentaban obstáculos reales, no se há trepidado em introducir provechosas inovaciones'" FRANÇA, Rubens Limongi. La unificación del derecho obligacional y contractual latino-americano. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976, p. 76. 4 Ver: WILLIAMSON. Oliver E. The Economic Institutions of Capitalism: firms, markets, relational contracting. London: Collier Macmillan Publishers, 1985. E também, do mesmo autor: Transaction Cost Economics: How it works; where it is headed. IN: De Economist. Netherlands, vol. 146 (1151), n. 1, 1998. 5 MEIRA, Silvio. Teixeira de Freitas - o Jurisconsulto do Império: Vida e Obra. São Paulo: Editora Olympio, 1979, pp. 347-365. 6 Continua o autor, exemplificando com a maestria de praxe: ". os contratos em geral, o mandato, a compra e venda, a troca, a locação, o mútuo, a fiança, a hipoteca, o penhor, o depósito, as sociedades, os pagamentos, a novação, a compensação, a prescrição e os seguros, voltarão a seus respectivos grémios no Código Civil, onde as inscrições são as mesmas. O mandato completar-se-á com as disposições sobre correctores, agentes de leilões e comissários. A locação de serviços com as relativas a feitores, guarda-livros, caixeiros, comissários de transportes, capitães de navios, pilotos, contramestres e gente da tripulação. O depósito com as concernentes a trapicheiros e administradores de armazéns. A troca com o contrato de câmbio e as letras de câmbio. A locação de bens com os fretamentos. O mútuo com as contascorrentes, letras de terra, notas promissórias e empréstimos a risco. A indemnização do dano completar-se-á com as avarias". MEIRA, Silvio. Teixeira de Freitas - o Jurisconsulto do Império: Vida e Obra. São Paulo: Editora Olympio, 1979, pp. 347-365. 7 MEIRA, Silvio. Teixeira de Freitas - o Jurisconsulto do Império: Vida e Obra. São Paulo: Editora Olympio, 1979, pp. 347-365. 8 RODRIGUES JÚNIOR, Otavio Luiz; JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. Função, natureza e modificação da cláusula penal no direito civil brasileiro. 2006.Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.
Texto de autoria de Angélica Carlini Aprovada a lei 13.874, de 2019, Lei de Liberdade Econômica, é o momento de avaliarmos seus impactos para setores específicos. Nesta reflexão, a avaliação do impacto da nova lei é construída para os contratos de seguros privados regulados pela Superintendência de Seguros Privados - SUSEP e, mais especificamente para a forma como esse órgão regulador atua na fiscalização de modalidades de seguro disponibilizadas no mercado. Os seguros privados regulados pelo Conselho Nacional de Seguros Privados - CNSP e pela Superintendência de Seguros Privados - SUSEP são todos aqueles praticados no Brasil, exceto a saúde suplementar. Assim, os seguros de incêndio, automóvel, pessoas, responsabilidade civil em suas múltiplas coberturas, são regulados e fiscalizados pelo CNSP e SUSEP. Também são regulados pelo CNSP e pela SUSEP a previdência complementar aberta. Já os seguros saúde estão sob regulação e fiscalização do Conselho Nacional de Saúde e da Agência Nacional de Saúde Suplementar. O artigo 36, letra "c" do decreto 73/66, que regula as atividades de seguros privados no Brasil, determina que compete à SUSEP na qualidade de executora da política traçada pelo CNSP como órgão fiscalizador da constituição, organização, funcionamento e operações das sociedades seguradoras, fixar condições de apólices, planos de operações e tarifas a serem utilizadas obrigatoriamente pelo mercado segurador nacional. Em razão dessa determinação fixada na letra "c" do artigo 36, do decreto 73/66, os contratos de seguro se tornaram fortemente padronizados, ainda que produzidos por diferentes seguradoras e para diferentes coberturas de risco. A SUSEP trabalha com um instrumento denominado Lista de Verificação organizada para cada modalidade de seguro e, a partir dele determina minuciosamente o que o contrato de seguro pode conter. Para propor um produto de seguro para ser praticado no mercado, o segurador se adequa à Lista de Verificação da SUSEP para aquela modalidade de seguro e, em seguida, encaminha o material para avaliação da SUSEP que poderá aprovar ou não. O artigo 8º, parágrafos 1º e 3º do decreto 60.459, de 13 de março de 1967, modificado pelo Decreto 3.633 de 18 de outubro de 2000, determina que as seguradoras enviarão à SUSEP para análise e arquivamento, as condições dos contratos de seguros que comercializarem, com as respectivas novas técnicas atuariais. O parágrafo 1º prevê que a SUSEP poderá a qualquer momento, diante da análise que fizer, solicitar informações, determinar alterações, promover a suspensão do todo ou de parte das condições e das notas técnicas atuariais a ela apresentadas; e, no parágrafo 2º está determinado que as condições de seguro deverão incluir cláusulas obrigatórias determinadas pela SUSEP. Em razão dessas determinações, os seguradores só operam com produtos de seguro que tenham sido aprovados pela SUSEP porque o risco de colocar um contrato no mercado e ter que revê-lo, ou modifica-lo é operacionalmente negativo em vista dos custos administrativos que seriam gerados. Desse modo, é preferível aguardar que o corpo técnico da SUSEP analise, faça as exigências de modificação ou aprove, para somente depois colocar o contrato de seguro no mercado para ser distribuído para os setores interessados na contratação. Dessa prática resultam modelos de apólice quase sempre padronizados, divididos em condições gerais, condições especiais, particulares e específicas que nem sempre são facilmente compreendidas pelos canais de distribuição de seguros (corretores de seguro e agentes) e, ainda menos são compreendidas pelos tomadores de seguro, empresas privadas que em razão das especificidades técnicas e operacionais de sua atuação econômica, certamente, prefeririam contratar seguros organizados de forma mais específica, singular, para atender suas necessidades. A dificuldade de compreensão que em grande medida é fruto da necessidade de adequação à Lista de Verificação da SUSEP não é exclusiva de distribuidores e tomadores. Não raro, no âmbito dos tribunais brasileiros são detectadas dificuldades na compreensão dos clausulados, na hierarquia das cláusulas (gerais, especiais, particulares ou específicas) entre magistrados e desembargadores e, não raro, a judicialização do setor decorre dessa dificuldade de compreensão que atinge muitas pessoas. A liberdade para proposição de novas coberturas, de novos modelos de seguro é muito reduzida. Os seguros não-padronizados são pouco praticados no Brasil porque há dificuldade de serem aprovados pelos técnicos que atuam na SUSEP e, com isso são criadas dificuldades para a concorrência e a inovação. No ramo de seguros de responsabilidade civil geral e suas coberturas especiais o problema é constante. A cada dia surgem novas atividades econômicas, novas tecnologias quase sempre indutoras de outras possibilidades de risco e, consequentemente, da necessidade de novos produtos de seguro ou ao menos, de novas coberturas a serem inseridas no clausulado. A velocidade das mudanças na produção econômica com características de intangibilidade como tem ocorrido em tempos de inovação, não é acompanhada pelas coberturas de seguro no Brasil em razão do modelo restritivo adotado pelo órgão regulador e fiscalizador. Os modelos padronizados e os modelos não-padronizados fortemente regulados pela SUSEP impedem que os tomadores de seguro contratem as coberturas mais adequadas a seus negócios e, por vezes, contribuam com as especificidades de sua atividade econômica para o desenvolvimento de novos produtos de seguro, novas modalidades a serem desenvolvidas para contemplar áreas econômicas específicas como o setor de entretenimento, por exemplo, que se expande cada vez mais em todo o mundo. Em outros países do mundo, é possível contratar um seguro com clausualdo all risks que ao contrário do que a tradução literal sugere não cobre todos os riscos, mas, todos aqueles que não estão expressamente excluídos no clausulado. Essa modalidade quase não é praticada no Brasil também em razão da dificuldade de aprovação pelo órgão regulador. Há também o risco de ser colocada no mercado e depois ter que ser retirada por determinação do órgão regulador, se este entender que há alguma inadequação no clausulado adotado pelo segurador. Em 1988 a Constituição Federal no artigo 174 definiu que como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá na forma da lei as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. É possível interpretar o artigo 174 da Constituição Federal como instrumento legal suficiente para mitigar o poder da SUSEP no que tange a aprovação e redação dos clausulados de seguros. Seu poder de regular e fiscalizar, à luz do artigo 174 da Constituição Federal, ficaria restrito às reservas de sinistros e de provisões técnicas das seguradoras, ou seja, com foco na solvência e na liquidez das operações realizadas pelos seguradores e não nos clausulados de contratos colocados no mercado. É preciso reconhecer que o arcabouço jurídico construído a partir da Constituição Federal de 1988 já possuía instrumentos satisfatórios para proteger o equilíbrio das relações contratuais, em especial para os consumidores, mas, não apenas para eles conforme determinações emanadas dos artigos 421 e seguintes do Código Civil de 2002. Assim, desse 1988, já não era mais necessário que a SUSEP monitorasse a atividade dos seguradores na criação de modelos de contrato ou, de clausulados diferentes adequados às necessidades decorrentes das práticas dos agentes econômicos e do mercado. Em conformidade com as melhores práticas regulatórias contemporâneas, o papel do regulador não é coibir a liberdade empresarial mas, fiscalizar com parâmetros objetivos os resultados dessas práticas, em especial, no caso de seguros, a solvência e liquidez das empresas que operam no mercado. A lei 13.874, de 2019, recentemente aprovada, determinou em seu artigo 1º, normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício da atividade econômica e, disposições sobre a atuação do Estado como agente normativo e regulador nos termos do inciso IV do caput do artigo 1º do parágrafo único do artigo 170 e, do caput do artigo 174 da Constituição Federal. Em relação à lei 10.406, de 2002, Código Civil brasileiro, a Lei de Liberdade Econômica trouxe modificações expressivas que, certamente, poderão contribuir para um novo momento na regulação dos contratos de seguro no Brasil. Determina a redação do parágrafo único do artigo 421 que nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. O artigo 421-A inseriu vários aspectos relevantes para as relações entre tomador e segurador em contratos não regidos pelo Código de Defesa do Consumidor, como se pode constatar na nova redação do artigo Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: (Incluído pela lei 13.874, de 2019), I - as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução; (Incluído pela lei 13.874, de 2019), II - a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e (Incluído pela lei 13.874, de 2019), III - a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada. Presunção de paridade e simetria até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção; parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais; alocação de riscos definida pelas partes, respeitada e observada; e, revisão contratual em caráter excepcional e limitada. Todos esses são aspectos que podem ser aplicados aos contratos de seguro firmados entre tomadores não-consumidores e seguradores. A regulação e a fiscalização da SUSEP assumirão, a partir da Lei de Liberdade Econômica deverão estar voltadas para aspectos de solvência e liquidez das empresas de seguro, e, consequentemente, menor intervenção no tocante aos clausulados e produtos de serviços criados pelos seguradores para serem disponibilizados no mercado. As determinações contidas nos decretos 73/66, 60.459/67 modificado pelo decreto 3.633, de 2000, precisarão necessariamente ser revistas e reinterpretadas à luz da Constituição Federal e da Lei de Liberdade Econômica, com objetivo de permitir que o setor de seguros seja mais proativo na oferta de coberturas e clausulados e, ao mesmo tempo, seja fiscalizado pela SUSEP nos critérios de solvência e liquidez, para que as reservas técnicas sejam calculadas e administradas de forma segura, com objetivo de proteger os legítimos interesses dos segurados e, de toda a sociedade. O setor de seguros privados no Brasil tem necessidade de novos produtos e coberturas em todas as áreas. Nos seguros de automóvel, nos grandes riscos, na infraestrutura, no agronegócio, na inovação tecnológica, nos seguros de responsabilidade civil, existem muitas possibilidades de criação de produtos para serem oferecidos ao mercado, de forma mais compatível com as necessidades de tomadores empresariais, que contenham clausulados mais objetivos, de compreensão facilitada e organizados em conformidade com as necessidades específicas do segurado. Impedir essa evolução com regulação incompatível com o dinamismo da sociedade contemporânea e com a Constituição Federal não é desejável e, nem está adequado à legislação agora aprovada, a Lei de Liberdade Econômica. A regulação e fiscalização da SUSEP é essencial para que os seguradores não deixem de ser rigorosos na organização e administração das reservas técnicas. Nesse sentido, a trajetória do segmento de seguros é ilustrativa do papel técnico desempenhado pela SUSEP porque poucos foram, nos últimos anos, os episódios de liquidação de seguradoras e, em 2008, quando grupos financeiros norte-americanos viveram sérios problemas de liquidez e solvência, as seguradoras que operam no Brasil seguiram normalmente com suas atividades. A fiscalização das reservas técnicas de seguros no Brasil tem qualidade e experiência e, precisa seguir em conformidade com as melhores práticas. A regulação na área de clausulados de contratos de seguro e de viabilidade de novas coberturas precisa, no entanto, ser revista para se adequar à legislação em vigor. A Constituição Federal e a Lei de Liberdade Econômica determinam que a iniciativa privada deve ter liberdade para atuar e isso significa, evidentemente, liberdade para construir contratos com produtos e serviços adequados para os contratantes, em especial quando as áreas de atividade econômica desses contratantes são específicas, tecnológicas, inovadoras e necessitam de customização, sem que isso signifique abrir mão do regramento técnico e da fiscalização que garantem a viabilidade atuarial das seguradoras. Se na atualidade a SUSEP já colocou para debate público o modelo de sandbox para regulação de propostas de atividades em seguro caracterizadas por inovação, provindas quase sempre de startups ou, mais especificamente, insurtechs, é chegado o momento de colocar em debate maior liberdade para elaboração de produtos de seguro por pelos seguradores, de forma que a livre concorrência seja ampla, efetiva e segura para os tomadores. Existem fundamentos legais para maior liberdade na concepção de coberturas de contratos de seguro e, existe necessidade de que esses produtos cheguem ao mercado brasileiro para tomadores cujos riscos são complexos, específicos e, precisam de coberturas securitárias mais adequadas. É o momento de rediscutir o papel da Superintendência de Seguros Privados - SUSEP para preservar o que ela tem de melhor - a fiscalização de reservas técnicas - e, permitir a liberdade econômica na concepção de novos contratos de seguro, atentos às necessidades de tomadores, do novo modelo de produção econômica que estamos vivendo e, da própria sociedade brasileira do século XXI. __________ Angélica Carlini é advogada. Doutora em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Direito Civil pela UNIP. Pós-doutorado em Direito pela PUC/RS. Docente na Escola de Negócios e Seguros e professora convidada no Programa de Mestrado em Administração da UNIP e na pós-graduação da Escola Paulista de Direito - EPD. Diretora Acadêmica da Associação Internacional de Direito do Seguro e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCONT.
Texto de autoria de Everilda Brandão Guilhermino Na década de 70 um jovem de 17 anos ansiava pela maioridade para ganhar um carro e assim poder exercer sua liberdade dirigindo para qualquer lugar. O patrimônio exclusivo era o seu reconhecimento social de autonomia, status e poder. Em 2019, o jovem de 17 anos, filho do anterior, impacta o seu pai quando em um jantar de família afirma "eu não terei carro, vou de UBER". Mas o que aconteceu entre uma geração e outra para fazer esvair a ideia de patrimônio exclusivo e de acumulação de bens como desejo primordial de uma pessoa? A resposta está na maior revolução já vivida sobre o pertencimento desde a Revolução Francesa e a criação do Estado Liberal. A nova geração não quer "ter", mas "acessar". Acesso e compartilhamento são o futuro do pertencimento. A acumulação de bens impacta uma geração que, vivendo na era digital, percebe o mundo de forma leve e fluida. O peso do mundo corpóreo e da acumulação é um obstáculo ao seu projeto de vida, que inclui uma ótima gestão do tempo e uma experiência de bons serviços. E não há problema se para isso tiver que abrir mão da titularidade exclusiva. Esses novos valores mudaram o jeito de morar, de se alimentar, de trabalhar, de se locomover e de se entreter. Há uma preocupação maior em saber a origem do alimento que se come e da roupa que se veste. Há uma necessidade de tornar acessível tudo que se produz intelectualmente, e nasce um desejo permanente de se estar conectado a tudo e a todos. Eis a era do compartilhamento, que já impacta a economia e a propriedade privada. E como a legislação civil ainda não acompanhou esse novo sujeito e sua nova vida, será o contrato o instrumento que dará segurança jurídica às relações jurídicas oriundas desse novo modo de viver. O direito de acesso como ruptura da propriedade exclusiva Historicamente o acesso aos bens era limitado. Nem tudo estava disponível e nem todos podiam acumular bens, e por isso mesmo, quem conseguia recebia destaque entre os pares no meio social. Ocorre que em algum momento a necessidade de experienciar o acesso aos bens da vida se desarticulou da titularidade, dispensando-se a qualificação de "proprietário" sobre esses bens. O problema do acesso aos bens gerou as primeiras discussões que levaram ao surgimento do Estado Social, afinal era urgente integrar às discussões legais sobre propriedade, o direito de acesso a ela. Se o código protegia o proprietário e seu domínio sobre as coisas, só estaria amparado pela lei aquele que pudesse compor o status de proprietário, mas havia uma tutela a ser gerada para os não-proprietários. Os não-proprietários, por não possuírem uma titularidade sobre qualquer bem, estavam alijados do Direito Civil, pois se nada tinham, não chegavam a se qualificar como um sujeito de direito na ordem civil. Na abstração da lei todos podiam sê-lo, contudo, as relações de mercado separavam bem os que nasceram para servir e os que nasceram para ser servidos, um critério decisivo para a aquisição de bens. (Guilhermino, 2018, p. 70) Para mudar essa realidade, cresceu então uma concepção ligada ao direito de um acesso compartilhado a certos bens de importância universal. Como bem acentua Marcelo Milagres (2014, p. 171), "se é certo que a pessoa é o cento das preocupações, é o valor-fonte da ordem jurídica; não menos necessária é a defesa da acessibilidade a bens indispensáveis ao seu pleno desenvolvimento". Utilizando-se da expressão de Eroulths Cortiano (2002, p. 159-162), essa reflexão traria importantes rupturas no discurso proprietário que marcariam para sempre o modelo de apropriação e de acesso aos bens dos liberais. Esse cenário proporcionou novos arranjos jurídicos que causaram uma ruptura fundamental na propriedade exclusiva. Migrou-se de uma economia de proprietários para uma economia de usuários. A base econômica do capitalismo, fundada da troca de bens (como ocorre na compra e venda) deu lugar a um modelo de acesso, com um proprietário e muitos usuários. Diz Jeremy Rifkin (2001, p. 6) que um tipo diferente de ser humano está surgindo: "Talvez ainda mais importante, em um mundo em que a propriedade pessoal foi considerada há muito como uma extensão do próprio ser e a "medida de um homem", a perda de seu significado no comércio sugere uma mudança considerável na maneira como as futuras gerações percberão a natureza humana. De fato, um mundo estruturado em torno de relações de acesso provavelmente produzirá um tipo bem diferente de ser humano". A sociedade está repensando os tipos de vínculos que definirão as relações humanas a partir do século XXI e buscam nos novos arranjos contratuais a base legal para lhes garantir segurança jurídica de que necessitam. "O capital intelectual, por outro lado, é a força propulsora da nova era, e muito cobiçada. Conceitos, ideias e imagens - e não coisas - são os verdadeiros itens de valor na nova economia" (Rifkin, 2001, P. 4) Por isso é importante avançar no estudo dos bens incorpóreos, essencialmente os digitais, para se compreender esse novo tempo e melhor articular os novos negócios. Na era do acesso não se busca uma apropriação exclusiva, mas o direito de acessá-los na condição de não-proprietário individual. A perspectiva é de tornar esses bens instrumentos de acesso de todos a direitos que são essenciais para a condição humana digna, permitindo a todos vivenciar seu tempo histórico num processo global de inclusão, ao mesmo tempo que garantem a materialização de outros direitos, como a formação da personalidade e o direito de livre expressão (Guilhermino, 2018, p.72). Tomemos por base a indústria do entretenimento. Ela já teve como base a acumulação de bens, agora tem no direito de acesso o seu arranjo contratual básico. Há vinte anos, as experiências de lazer ligadas ao prazer de ouvir músicas, assistir a filmes e ler bons livros passavam necessariamente pelo acúmulo de bens. Todos tinham suas estantes de livros, discos ou CDs, filmes ou DVDs. Agora, uma única caixa guarda todos esses bens, ao alcance da mão em qualquer lugar. É o tempo dos smartphones e aplicativos. Nesse novo modelo contratual, não se estabelece a troca de bens, mas o acesso ao acervo de alguém. Há apenas um proprietário para muitos usuários. E isso reestrutura não só a titularidade sobre esses bens, como redefine alguns importantes parâmetros sobre os poderes que se exerce sobre a coisa contratada. Nesse contexto, contratos de empresas como Netflix ou Spotfy, estabelecem novas regras para o uso da coisa contratada. E a base essencial está na titularidade. Se quem é dono tem o poder ilimitado sobre a coisa, quem é usuário está limitado as regras de acesso. Por isso, o documento mais importante do contrato passa a ser o chamado "termos e condições de uso". Se um filme é retirado do acervo do Netflix, por exemplo, o usuário não tem nenhum direito de exigir o seu retorno, pois não estabeleceu compra e venda sobre ele, apenas o direito de acesso. Um caso interessante aconteceu quando uma senhora residente em Sorocaba, Estado de São Paulo, mãe de uma criança autista, teve problemas com a retirada de um desenho animado do acerto do Netflix. Somente aquela animação acalmava seu filho, pois como autista, precisa estabelecer rituais para muitas atividades do seu cotidiano. A senhora foi até as páginas da Disney e da Netflix no Facebook questionar a retirada do filme do catálogo, e relatou o drama do filho. Teria ela algum direito em virtude do contrato que estabeleceu com a empresa? Certamente não, pois seu direito é de acesso, e não estabelece titularidade, como na compra e venda. A possibilidade de mudança unilateral do acervo está escrita no documento "termos e condições de uso" e demonstra a nova relação do usuário com os bens. Para ter à mão um acervo maior precisa abrir mão da titularidade exclusiva, e correr o risco de a qualquer momento não ter mais a disponibilidade do objeto que lhe interessa. E não há qualquer abusividade no estabelecimento de tal cláusula contratual, pois a base estruturante é totalmente diferente do que se tinha no passado. Quem deseja ter o domínio pleno deve escolher o modelo do acúmulo de bens, mas quem quiser acesso, pode se limitar a cumprir regras do titular do acervo. Novos tempos, certamente. Jeremy Rifkin (2001, p. 93) afirma que estamos preparando uma nova fase do capitalismo, diferente de qualquer coisa que já vivemos. É a consequência do nascimento de uma economia de rede e da contínua desmaterialização dos bens. Para o autor o acesso está se tornando a medida das relações sociais. O compartilhamento como modelo de negócios Outra relevante e substancial ruptura no modelo clássico da propriedade privada está nas relações advindas da economia do compartilhamento, ou economia solidária. As pessoas descobriram que podem ter acesso aos bens que lhe garantem uma melhor qualidade de vida, bastando somente se desapegar da necessidade de uma titularidade exclusiva, compartilhando-o com outras pessoas. O mundo digital forneceu as bases estruturantes para esse novo modelo de viver, onde se compartilha a moradia, o transporte, o local de trabalho, e tantas outras possibilidades. Em outras palavras, todos os itens básicos essenciais a uma vida privada no ambiente urbano já estão inseridos no modelo compartilhado. A cidade de Seul já se denomina a capital do compartilhamento. O governo tem investido intensamente em modelos de negócios compartilhados, nas mais diversas áreas, o que já impacta substancialmente a economia local. E nada mais significativo para demonstrar essa ruptura do modelo proprietário do que os contratos já ofertados pelo mercado imobiliário: o modelo que ressignifica o desejo da "casa própria", elemento marcante na cultura do brasileiro. Os novos contratos propõem uma moradia onde a prioridade seja a qualidade de vida, representada pela proximidade entre casa e trabalho, eliminação de horas de trânsito, e acesso a uma estrutura de qualidade que o morador não teria em uma casa própria, especialmente com financiamentos de uma vida inteira. Tudo isso a partir de um modelo compartilhado de moradia. Para tanto, três modelos contratuais já estão no mercado. O primeiro, permite uma titularidade exclusiva de uma unidade imobiliária reduzida, com amplo acesso compartilhado a serviços essenciais de uma residência, como lavanderia, cozinhas amplas, academias e até closets. O segundo modelo é o chamado "cohousing". Nesse tipo de moradia, há o compartilhamento do espaço físico entre várias pessoas que podem ser até mesmo totalmente desconhecidas. Existem uma área privada para cada pessoa no imóvel, as quais compartilham as áreas comuns. Também é possível um vilarejo privado, com apartamentos exclusivos e toda a área de serviços acessível pelo compartilhamento. O destaque desse tipo de moradia está em ser um atrativo para a terceira idade, o "cohousing sênior". Pessoas que não desejam envelhecer sozinhas, escolhem esse tipo de moradia para garantirem uma moradia digna, à medida que terão acesso a certos bens e serviços que não conseguiria no modelo exclusivo, e ainda terão companhia para afastar a solidão. O terceiro modelo é a multipropriedade. Dividindo o tempo, e não o espaço, muitas famílias podem usufruir do mesmo imóvel, de forma ampla, e somente no tempo que lhes é conveniente. Neste caso, o mercado tem um foco maior em imóveis de lazer, como resorts, mas já está disponível apartamentos residenciais, em negócios destinados a executivos ou outras profissões que não exijam do morador permanecer muito tempo em uma mesma cidade. A modalidade conhecida como time-share é ainda mais inovadora, pois a titularidade se dá sobre "um" imóvel e não sobre "o" imóvel. Em outras palavras, a titularidade existe, mas não sobre um imóvel determinando, e sim aquele que está disponível em determinado condomínio edilício. Esse modelo, típico de imóveis de veraneio, já está sendo estendido para unidades habitacionais, podendo o proprietário trocar sua unidade a qualquer tempo e sem custo, dentro da rede da construtora em todo o país. Eis um desafio interessante para o direito tributário, pois há de se definir se há ou não dever de recolhimento do ITBI nessa permuta. O acesso a curto prazo no lugar de uma propriedade a longo prazo é o atrativo do negócio na economia do compartilhamento, destacando o quão ociosos são determinados imóveis ao longo do ano, apenas atribuindo custos ao seu titular com manutenção e impostos. O mais interessante na multipropriedade é que mescla o modelo tradicional da propriedade exclusiva com o moderno direito de acesso. Além disso, o modelo inclusivo, e não exclusivo, permite um acesso a bens de luxo que não seria possível na propriedade exclusiva. Sem dúvida, o compartilhamento materializa um importante dever constitucional ligado à propriedade: o cumprimento da função social. À medida que esses novos arranjos contratuais afastam a ociosidade dos bens e permitem um melhor uso do espaço urbano, permitem que a propriedade cumpra a missão que sempre se esperou dela desde a criação do estado social, a solidariedade social. Paulo Lôbo (2017, p. 32) defende inclusive a necessidade de regulação de mercado para garantir o acesso aos bens da vida. "Daí a necessidade de regulação do mercado e de intervenção legislativa no sentido de efetivação crescente do acesso das pessoas aos bens da vida. Especialmente os que se consideram essenciais à existência da pessoa, em suas dimensões. Torna-se imprescindível a convivência entre liberdade e poder sobre as coisas, de um lado, e solidariedade social e funcionalização do direito, do outro, como indicação da propriedade contemporânea no Brasil". Na mesma seara, o deslocamento no espaço urbano teve sua revolução nos serviços de transporte por aplicativos. A propriedade exclusiva de um veículo, que já foi o maior desejo de gerações está dando espaço ao foco apenas no deslocamento urbano com conforto e agilidade. A nova geração vê no automóvel algo pesado, de alto custo de manutenção, e com estacionamentos. O veículo compartilhado elimina esses custos e ainda mantém a experiência do modelo exclusivo. Nesse sentido, importante decisão foi proferida pelo STJ que reconheceu não haver vínculo empregatício entre a empresa UBER e o motorista que se utiliza do aplicativo. Do julgado destaca-se os seguintes trechos: "Os motoristas de aplicativo não mantém relação hierárquica com a empresa Uber porque seus serviços são prestados de forma eventual, sem horários pré-estabelecidos e não recebem salário fixo, o que descaracteriza o vínculo empregatício entre as partes As ferramentas tecnológicas disponíveis atualmente permitiram criar uma nova modalidade de interação econômica, fazendo surgir a economia compartilhada (sharing economy), em que a prestação de serviços por detentores de veículos particulares é intermediada por aplicativos geridos por empresas de tecnologia. Nesse processo, os motoristas, executores da atividade, atuam como empreendedores individuais, sem vínculo de emprego com a empresa proprietária da plataforma" (Conflito de Competência N. 164.544. Ano 2019) A decisão torna-se essencial pela segurança jurídica que lança sobre os novos modelos contratuais fundados sobre o pilar do compartilhamento. A compreensão de que o mundo mudou e com ele mudou a forma de se viver e de produzir relações jurídicas é essencial para não se impedir a evolução dos novos tempos. Em virtude da ruptura que causa na propriedade exclusiva, será o contrato a fonte normativa que estabelecerá dois elementos essenciais: a definição do modelo de negócio e as regras de utilização do bem. Isso é fundamental para evitar que um novo modelo de pertencimento seja interpretado pelo Judiciário com base no modelo antigo, decretando-se nulidades, ou mesmo alterando contratos por não se entender sua essência. Por fim, o ambiente de trabalho. O desejo de um estudante sempre foi ter sucesso profissional e ter uma sala enorme para atender seus clientes, em um escritório com tantas outras salas, a um custo altíssimo com salário, manutenção do espaço e tributos. Porém, a própria natureza do trabalho mudou. Empregados que ingressavam na empresa e de lá só saíam aposentados vai sendo substituído pelo trabalho ligados a projetos, propiciando ciclos de atividades em diversas empresas, e até ao mesmo tempo. O foco em resultado se tornou mais importante que a ostentação de espaços físicos e com isso mudou a relação do trabalhador com o seu ambiente de trabalho. Essa perspectiva fez nascer o modelo contratual de "coworking", onde profissionais de diferentes áreas compartilham o mesmo espaço físico, a mesma secretária e a mesma sala de reunião. O modelo permite não só o acesso a um ambiente de trabalho mais luxuoso, como também a uma troca de experiências com novas pessoas e até possibilidades de negócios, tudo isso a custos bem menores do espaço físico. É a insuficiência de recursos, impedindo que todos tenham uma titularidade sobre eles, que demanda uma reformulação no modelo proprietário. O direito de acesso e o compartilhamento redefinem a lógica de mercado, baseada na oferta e na procura, igualando os que podem e os que não podem pagar por uma titularidade exclusiva. E é Stefano Rodotá (2013, p. 44) quem propõe o que denominou, numa tradução livre, de "fundo não proprietário" (retroterra non propietario), um "interesse não proprietário" que surge a partir de uma emersão de um direito que transcende o indivíduo e que caminha paralelo ao interesse proprietário de caráter exclusivo. Para ele, é preciso abandonar a lógica proprietária e o direito civil precisa de uma imagem diversa daquela do passado, organizada em torno das relações proprietárias. Todos esses modelos demonstram o atraso do legislador civil, apegado ao modelo proprietário clássico do século XIX, ao mesmo tempo que tornam o contrato o grande protagonista da relação jurídica. Aumenta a responsabilidade dos contratantes, pois a ênfase está no bom uso da autonomia da vontade, criando negócios criativos, inclusivos e cumpridores da função social, sem descuidar da boa-fé e do solidarismo contratual, princípios que continuarão como bússola dos negócios jurídicos. E já que estamos falando de compartilhamento, se você gostou deste texto, curte e compartilha. Referências Bibliográficas CORTIANO Jr. Eroulths. O Discurso Jurídico da Propriedade e suas Rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Renovar: Rio de Janeiro, 2002. GUILHERMINO, Everilda Brandão. A Tutela das Multititularidades. Lumen Júris: Rio de Janeiro, 2018. LÔBO, Paulo Luiz Neto. Coisas. Saraiva: São Paulo, 2017. MILAGRES, Marcelo de Oliveira. A dimensão privada do existir e a funcionalidade dos bens. In Direito Privado e Contemporaneidade: desafios e perspectivas do direito privado no século XXI. Braga Netto, Felipe Peixoto Braga; Silva, Michael César (orgs). Belo Horizonte : D'Plácido, 2014. RIFKIN, Jeremy. A Era do Acesso: a transição de mercados convencionais para networks e o nascimento de uma nova economia. Makron Books: São Paulo, 2001. RODOTÀ, Stefano. Il Terrible Diritto: studi sulla proprietà privata e i beni comuni. 3 ed. Il Mulino: Bologna, 2013.
segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Mediação em conflitos contratuais

Texto de autoria de Fernanda Tartuce Ao celebrar contratos, as pessoas buscam atender aos seus interesses por meio dos ajustes. Apesar da existência de positivos incentivos e de altas expectativas na fase inicial da contratação, fatores variados (como desgastes no convívio, insatisfação pessoal e mudança na visão sobre a melhor forma de aplicação do teor pactuado) podem gerar impasses. A frequente verificação de controvérsias nas relações interpessoais apresenta um efeito potencialmente comprometedor; se o objetivo é evitar prejuízos à interação produtiva entre pessoas e/ou instituições, é essencial dispensar-lhes o tratamento adequado. Apesar das circunstâncias desfavoráveis, muitas vezes as partes não desejam encerrar totalmente a relação, mas apenas reorganizar uma específica situação. Os contratantes podem estar insatisfeitos com a aplicação de uma cláusula em certo contexto, mas não desejar romper o vínculo contratual: vantagens podem seguir presentes em outros pontos e manter a parceria pode ser relevante. O caminho natural é buscar conversar para ajustar a situação. Em momentos de crise, porém, nem sempre a negociação direta é considerada viável. Após experiências pautadas por fatores como comunicação ruim, trocas de acusações e atribuições de culpa, mingua a disposição de conversar; além disso, a descrença na boa fé do outro arrefece o ânimo de dialogar. Tentativas de negociação podem ter ocorrido e restado infrutíferas. Quando alguém reporta essa situação, cabe perquirir: houve atuação esmerada de negociadores com paciência para escutar e refletir sobre opções? Muitas vezes a resposta é negativa. Quando a negociação foi feita sem técnicas nem engajamento, soa adequado considerar que o problema está no mecanismo consensual? Ou é apropriado reconhecer que as pessoas envolvidas podem ter se complicado na comunicação? Havendo dificuldades para dialogar, contar com a presença de uma pessoa imparcial para favorecer a conversação faz toda a diferença. A mediação consiste no meio consensual de abordagem de controvérsias em que um terceiro imparcial atua para facilitar a comunicação entre os envolvidos e propiciar que eles possam, a partir da percepção ampliada dos meandros da situação controvertida, protagonizar saídas produtivas para os impasses que os envolvem (TARTUCE, 2019, p. 53). Embora o caminho consensual tenha um potencial proveitoso, há quem resista a trilhá-lo por acreditar que, se não foi apto a negociar sozinho, nada mais pode ser feito. Apesar de compreensível, essa visão não merece prevalecer: o mediador é capacitado tecnicamente para, com técnicas apropriadas, favorecer o fluxo da comunicação e contribuir para a remoção de entraves na negociação. Em termos de gestão apropriada de controvérsias, terceirizar a solução do conflito a um julgador é adequada? Em relações complexas (como as verificadas em muitos vínculos contratuais), delegar a decisão de controvérsias a uma pessoa alheia ao contexto é um fator de grande risco que, estrategicamente, busca-se conter. A mediação, por permitir a contratação de profissionais capacitados e focados no aprofundamento da situação conflitiva, permite dosar riscos e buscar convertê-los em ganhos recíprocos, evitando a delegação da decisão a um terceiro que pode dar tudo a ganhar ou pôr tudo a perder (TARTUCE e MARCATO, 2018, p. 520). Por envolver, sem rígida delimitação de seu escopo, conversações e negociações facilitadas por uma pessoa imparcial, a mediação permite que os envolvidos tratem oralmente de muitos assuntos que o Poder Judiciário provavelmente não alcançaria; como o propósito é satisfazer os interesses subjacentes, variados temas podem ser tratados pelos interessados. Como exemplo, imagine uma discussão em que o locador exige o reajuste do aluguel segundo o índice contratual e o locatário se recusa a arcar com tal aumento. Apesar de as posições evidenciarem preocupações econômicas antagônicas, além do valor locatício há outros interesses relevantes (como a manutenção do contrato e as boas condições do imóvel) que podem até ser convergentes. A negociação mediada por um terceiro imparcial será útil para clarificar intenções e permitir a ampliação de percepções. O mediador poderá colaborar para que os envolvidos dialoguem sobre os interesses comuns estimulando-os a cogitar sobre alternativas e considerar opções que levem em conta não apenas o valor monetário, mas também outras vantagens (como a realização de reparos no imóvel, por exemplo). Reconhecida a existência de interesse mútuo na manutenção de boas relações, diante de um episódio litigioso pode-se colher a oportunidade de trabalhar em prol da realização de ajustes no contrato também em outros pontos; assim, além de resolver o conflito, os envolvidos poderão aperfeiçoar sua atuação negocial e promover seus interesses de forma antes não imaginada (RISKIN, 2002, p. 25). Sob o prisma profissional, oferecer meios rápidos e menos custosos é uma iniciativa importante para que advogadas(os) e gestores(as) de conflitos possam fidelizar as pessoas que atendem. O advogado que se propõe a negociar sem a contribuição de um mediador pode encontrar dificuldades a que não deu causa. Em cenários de intenso desgaste no relacionamento o diálogo direto soa inviável por conta da intolerância de um ou mais participantes; apesar disso, se os envolvidos na controvérsia, apesar das diferenças, seguirem dispostos a buscar uma saída consensual, poderão fazê-lo com a participação de um facilitador da comunicação. Nos contratos empresariais, a mediação pode se revelar apta a viabilizar a maximização de êxito, sobretudo no que tange a três finalidades essenciais: a satisfação dos consumidores, a administração de conflitos nos negócios e a melhoria do funcionamento orgânico da instituição, aprimorando a comunicação entre seus componentes, ponto especialmente relevante em se tratando de empresas familiares (TARTUCE, 2019, p. 383). Com o restabelecimento do diálogo, possibilita-se que a vontade de cada pessoa integre a solução alcançada; tal fator proporciona a formação de um consenso genuíno não só quanto aos termos do acordo como também em relação à sua concretização, conduzindo ao desejado cumprimento espontâneo dos pactos. Há proveitosas experiências concretas em andamento; como informa Diego Faleck, "existem diversos casos de sucesso de mediação no país em setores como seguro, resseguro, construção civil, energia, contratos comerciais, questões societárias e disputas internacionais, envolvendo grandes e importantes empresas nacionais e internacionais que atuam no Brasil e renomados escritórios de advocacia" (FALECK, 2014, p. 263.). São vantagens da mediação contratual: i) a menor duração do procedimento de mediação em comparação com a extensão dos processos judicial e arbitral; ii) a boa relação de custo-benefício-duração que a mediação tem o potencial de oferecer; iii) a existência de inúmeros mediadores capacitados e câmaras privadas de mediação aptas a lidar com controvérsias; iv) a possibilidade de participação dos contratantes na formatação de saídas criativas para compor o conflito (TARTUCE e MARCATO, 2018, p. 525). Cabe aqui um esclarecimento sobre uma falsa representação: a suposta inexorável presença de renúncias em negociações e mediações. Há quem pense que no término do procedimento terá havido concessões recíprocas, de modo que sempre haveria algo a perder. No entanto, como há tempos esclareceu a Escola de Harvard (FISHER; URY; PATTON, 2011), ao adotar um mecanismo consensual disponibiliza-se às partes a alternativa de negociar de forma estruturada, baseando-se não em posições rígidas mas sim nos interesses subjacentes (BERGAMASCHI; TARTUCE, s/d). Ao se valerem da composição consensual, as pessoas abrem um leque de opções para criar formas de acomodar os interesses envolvidos e agregar valor ao que cada uma desejava inicialmente; nessa perspectiva, a eclosão do conflito, especialmente na seara contratual, pode ser vista como oportunidade de melhoria. O contexto atual é propício a que se envidem esforços para desenhar soluções que importem em vantagens recíprocas - especialmente no caso de contratantes que não se veem como concorrentes, mas como parceiros em potencial. A solução da controvérsia é encarada, sob essa perspectiva, como abertura de novas oportunidades negociais. Como exemplo, cabe citar as bem-sucedidas experiências norte-americanas relativas à mediação de conflitos securitários. O meio consensual se revelou eficiente para conjugar os interesses do segurado - que, em princípio, deseja receber a integralidade da indenização securitária -, com aqueles da seguradora - visando a aceitação apenas de riscos cobertos e pagamentos somente nos estritos limites da apólice. Do estudo, resultaram patentes as inúmeras vantagens da mediação para compor tal ordem de controvérsias, destacando-se: (i) a participação de segurado e seguradora na formatação da solução, gerando benefícios mútuos e acordos com maior probabilidade de cumprimento espontâneo; (ii) a melhoria da imagem das seguradoras perante os segurados e o Poder Judiciário, minimizando a impressão de que seriam litigantes contumazes; (iii) a fidelização do cliente, já que as condições gerais e particulares das apólices foram melhor compreendidas pelas partes durante o procedimento; (iv) a possibilidade de reforço dos laços comerciais com corretores e parceiros gerando relações mais duradouras; (v) a redução dos custos das seguradoras na provisão de sinistros a liquidar, conjugada à minimização dos custos de processos arbitrais ou judiciais; (vi) a redução do tempo para a solução dos conflitos (em comparação com a duração dos procedimentos contenciosos) (MARCATO; FERREIRA DA SILVA, 2016, p. 13). Ao permitir o afastamento da sobreposição de posições, a mediação viabiliza a harmonização dos interesses dos contratantes permitindo que construam situações de equilíbrio em relação a prazos, interesses e critérios objetivos. Referências BERGAMASCHI, André Luís; TARTUCE, Fernanda. A solução negociada e a figura jurídica da transação: associação necessária? Acesso em: 13 ago. 2019, FALECK, Diego. Mediação empresarial: introdução e aspectos práticos. Revista de Arbitragem e Mediação, 42, 2014, p. 263-278. FISHER, Roger; URY, William; PATTON, Bruce. Getting to Yes: negotiating agreement without giving in. 3 ed. New York: Penguin Books, 2011. RISKIN, Leonard L. Compreendendo as orientações, estratégias e técnicas do mediador: um padrão para iniciantes. In: AZEVEDO, André Gomma de (org.). Estudos em arbitragem, mediação e negociação. Brasília: Brasília Jurídica, 2002. TARTUCE, Fernanda. Mediação nos conflitos civis. 5ª ed. São Paulo, 2019. TARTUCE, Fernanda; MARCATO, Ana Cândida Menezes. Mediação no direito empresarial: possibilidades interessantes em conflitos securitários. REVISTA DE PROCESSO, v. 279, p. 513-527, 2018. TARTUCE, Fernanda; FALECK, Diego; Gabbay, Daniela Monteiro. Meios alternativos de solução de conflitos. Rio de Janeiro: FGV, 2014. *Fernanda Tartuce Silva é doutora e mestre em Direito Processual pela USP. Professora no programa de doutorado e mestrado da FADISP. Coordenadora e professora em cursos de especialização na Escola Paulista de Direito - EPD. Presidente da Comissão de Mediação Contratual do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Presidente da Comissão de Processo Civil do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCont. Vice-presidente da Comissão de Mediação do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP). Diretora do Centro de Estudos Avançados de Processo (CEAPRO). Membro do IASP. Advogada, mediadora e autora de publicação jurídicas.