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Suicídio racional por completed life - O cansaço existencial como base para o suicídio assistido

segunda-feira, 27 de junho de 2022

Atualizado em 24 de junho de 2022 17:08

David Goodall, cientista australiano, não sofria de nenhuma doença ameaçadora da vida, mas alegava que a idade avançada, aliada ao processo de envelhecimento, lhe confinaram à uma existência que representava um aniquilamento de sua dignidade. Em entrevista ao canal australiano ABC, admitiu publicamente seu desejo de morrer, reafirmando que sua infelicidade advinha da impossibilidade de concretizar seu desejo de uma morte digna.1

À época a Austrália não admitia o suicídio assistido,2 o que obrigou o professor a viajar para Suíça, país que permite a prática em estrangeiros, e por meio de uma organização civil, pôde concretizar seu desejo.

Hélène Wuillemin, francesa de 100 anos, parece vivenciar o mesmo dilema: com limitações físicas inerentes à senectude avançada que lhe restringem a autonomia, também buscou a morte digna por meio de organizações de suicídio assistido na Suíça, mas foi recusada diante da ausência de diagnóstico de enfermidade que caracterize a terminalidade de vida.3

David e Hélène não são os únicos a vivenciarem dilemas entre vida e morte na senitude. Recentemente foi bastante noticiado o caso do artista Alain Delon, 86 anos, também em busca do seu ideal de morte digna.4 Na verdade, alguns fatores ocorridos no século XX e XXI, como a tecnologia aplicada à medicina, modificação do perfil epidemiológico das doenças crônicas e o aumento significativo da expectativa de vida, impactaram de forma determinante as decisões de fim de vida.

A Organização Mundial da Saúde estima que o número de pessoas com idade superior a 60 anos chegaria a 2 bilhões em 2050.5 Em outro estudo, a OMS revela que 60% da população mundial morrerá em decorrência de doenças crônicas, o que aponta para uma fatia considerável da população que passará muito tempo doente e terá que lidar com o sofrimento e a deterioração da qualidade de vida.6

Dados do IBGE relativos à expectativa de vida do povo brasileiro informam que, em 2019, alcançou a idade de 79,9 anos para mulheres, e de 72,8 anos para homens,7 confirmando a real possibilidade de se viver mais tempo que o desejado, como os casos de Goodall e Wuillemin.

Todo esse panorama mundial demanda um novo olhar sob a autonomia para decidir sobre a duração da vida associada ao ideal da dignidade humana: questões existenciais reivindicam sua prevalência diante dos valores morais e religiosos da sociedade.

Afinal, diante de um processo de envelhecimento que atente contra a dignidade humana teria o Estado legitimidade para obrigar alguém a viver as intempéries de uma velhice limitadora e humilhante? Quando há uma tensão entre o direito à vida e a dignidade da pessoa humana, qual caminho seguir?

Antes de adentrarmos nos embates jurídicos que cercam o tema, é necessário conceituar o que é o suicídio assistido e o cansaço existencial chamado de completed life.

Segundo Barroso e Martel,8 o suicídio assistido é a retirada da própria vida com auxílio ou assistência de terceiros. O ato causador da morte é de autoria daquele que põe termo à própria vida e o terceiro, médico ou não, colabora com o ato. Quando prestado por um médico, chama-se suicídio medicamente assistido, e a assistência consiste, geralmente, em prescrição de dose letal de medicamento.

Já o termo completed life surgiu na Holanda, no projeto de lei denominado Completed Life Bill (PL 35.534), proposto pela parlamentar Pia Dijkstra, em 17/7/20. O projeto enfrenta a questão do suicídio assistido com base na ideia de completed life e visa atender ao anseio de uma parcela crescente de idosos holandeses que desejam ter mais autonomia em seu fim de vida.

O tema já é discutido na Holanda há bastante tempo. Um de seus marcos históricos foi o ensaio do professor e juiz emérito Huib Drion, intitulado "O fim desejado pelos idosos", publicado no NRC Handelsblad em 1991,9 no qual Drion defendeu a provisão de um meio pelo qual os idosos pudessem encerrar suas vidas em momento que lhes parecesse apropriado.

Huib foi o primeiro acadêmico holandês a afirmar a obrigação do Estado de fornecer medicamento letal a cidadãos maiores de 70 anos, para que pudessem decidir, de forma autônoma, quando encerrar suas vidas.10

Assim, o termo completed life diz respeito ao sentimento vivenciado por pessoas de idade avançada, relativo à sensações de perda da dignidade pessoal, deterioração da saúde, dependência crescente e declínio, de modo que suas vidas lhes parece longa demais e alegam estarem "fartos de viver".11

Esta sensação está geralmente ligada à limitações próprias da velhice avançada, mas não se resume a estes fatores. O cansaço existencial atinge também aspectos sociais e psicológicos profundos, numa complexa interação de fatores, tornando os dias do idoso insuportáveis. A desorganização física, social ou emocional pode se tornar significativa ao ponto de fazer nascer o desejo consciente e livre de morrer.

O fenômeno da vida concluída é uma soma de incapacidades, limitações e ausência de vontade de se conectar com a vida, configurando uma postura de desapego e alienação. O idoso não possui mais nenhum desejo de viver porque nada mais há para esperar da vida.12

Frise-se que a experiência é sempre pessoal, de modo que não há como desenvolver uma definição objetiva do completed life. A análise acerca da existência do quadro é sempre subjetiva, uma vez que apenas o próprio indivíduo pode dizer de que forma as circunstâncias da vida são sentidas. Se o idoso conclui que deseja encerrar sua existência, aceitar esse desejo e ajudar também pode ser uma forma de respeito e cuidado.

Se por um lado, as condições econômicas, sociais e psíquicas de uma pessoa podem ter-lhe conduzido à um processo de envelhecimento condizente com seus critérios de dignidade, por outro, muitas enfrentam limitações de diversas ordens que as empurram para perda gradativa da autonomia.  Nesse contexto, o idoso pode antever dias indignos e abdicar desta vivência dissociada de seu projeto de vida.

Embora não seja o caso de todos, nessa fase da vida é comum a perda da qualidade de vida e o aumento significativo da possibilidade de conviver com uma ou mais doenças crônicas. Também é corriqueiro o enfrentamento de deficiências em várias funções orgânicas, ampliando a possibilidade de ocorrência da temida dependência de familiares e o confinamento a uma vida mais biológica que biográfica.

Recentemente, em 20/5/22, a divisão especial do Conselho de Estado holandês, em análise ao PL 35.534, acima mencionado, emitiu parecer sugerindo a substituição do termo completed life para suffering from life.

O Conselho argumentou que o termo completed life possui conotação positiva e pode levar à impressão de que se trata de pessoas que completaram sua vida de forma satisfatória, quando na verdade refere-se à um grupo para o qual a vida se tornou um sofrimento insuportável. O departamento, então, optou por usar o termo suffering from life, ou, em português, sofrendo da vida.13

Diante das premissas que configuram o suffering from life, passamos ao seu cotejo com a CF/88 brasileira e os direitos da personalidade.

A CF/88 funda seu Estado Democrático de Direito posicionando a dignidade da pessoa humana como objeto e razão de ser de todo ordenamento jurídico. O conteúdo desta dignidade humana, no campo da autonomia existencial, está inexoravelmente atrelada à ideia de liberdade para viver segundo suas escolhas pessoais.

A ligação estreita entre dignidade e liberdade reflete a viabilidade de um projeto de vida digna para cada um. Dizer que ninguém pode determinar a vida alheia é o mesmo que dizer que só a pessoa tem o poder de se autodeterminar no que se refere à sua vida privada.

Os direitos da personalidade, por sua vez, asseguram este ambiente decisório pessoal e íntimo que envolve as diversas fases do viver e parece abarcar também o exercício da autonomia para morrer, já que a morte compõe a vida, ainda que como sua derradeira etapa. E se assim o é, optar pelo suicídio assistido diante do cansaço existencial parece ser um direito protegido pelo nosso ordenamento jurídico.

Aqui vale citar a relevante distinção entre ser humano e ser pessoa, duas perspectivas diferentes e pertinentes nesta análise, já que em casos ligados à morte digna e fim de vida, a dignidade a ser preservada não é aquela geral ligada à qualidade de ser humano, mas a outra, aquela específica dignidade atrelada ao ser pessoa, que é encontrada considerando o desenvolvimento pessoal da personalidade e as peculiaridades que tornam aquele indivíduo ele mesmo.

Nesse contexto, a mesma situação, por exemplo, o suicídio assistido por suffering from life, pode vir a integrar o projeto de pessoalidade de alguém, e deverá ser tutelado porque, neste caso, a dignidade será protegida no respeito à escolha subjetiva assumida pela pessoa.14 Da mesma forma, para alguém que não contempla o suicídio assistido em seu ideal de "vida boa", a opção representará uma afronta à sua dignidade. Aqui vale o ditado popular: o que para uns é remédio, para outros é veneno.

Rodotà, tratando de dignidade nas questões pessoais, as identifica como o núcleo da existência do homem e defende que o Estado, ao permitir este exercício da autodeterminação, não está fazendo uso de autolimitação de seu poder, mas operando verdadeira transferência de soberania ao indivíduo.15 O professor italiano refere-se à este espaço decisório próprio do indivíduo de spazio indecibile per il legislatore, ou seja, um ambiente delimitado pelo constituinte para o exercício da autonomia privada do indivíduo.16

É frequente a identificação da dignidade com a capacidade humana de autodeterminação, habilidade individual de fazer escolhas autônomas que devem ser respeitadas por representarem a autonomia moral do indivíduo. Numa sociedade pluralista e democrática, coexistem diversos projetos de vida divergentes que reclamam convivência harmoniosa.

Como bem ensina Maria Celina Bodin de Moraes, o indivíduo, se não agride a ordem jurídica nem atenta contra direito de terceiros, tem poder sobre sua própria vida e morte, de modo que a intervenção do Estado à revelia da pessoa parece atentar contra a sua dignidade.17

O exercício da dignidade para à livre escolha quanto à morte remete inevitavelmente ao tão defendido direito à vida, que a despeito de ser de fato especial e representar um consenso nas sociedades ocidentais, não é absoluto. Tradicionalmente concebido como um direito irrenunciável e indisponível,18 surge a necessidade de revisitar tais características quando se trata das decisões de fim de vida.

Por muito tempo prevaleceu a ideia da irrenunciabilidade/indisponibilidade desse bem jurídico, não havendo espaço para sua livre disponibilidade, nem para manifestação da vontade do ofendido. Este entendimento se encontra superado.19 Na verdade, a própria doutrina não obteve êxito na definição e determinação de que bens são ou não disponíveis, isto porque encontrar um critério diferenciador, num estado plural, fatalmente representará uma imposição do que seja ou não disponível conforme a moral dominante.20

Rose Melo Vencelau Meireles identifica que poder de disposição e autonomia privada se confundem, porque ambos representam o poder de criar, modificar ou extinguir situações jurídicas, de modo que o caráter existencial das situações jurídicas não impede a existência de um poder de disposição do seu titular. Muito ao contrário.21 A escolha pela morte, se inserida dentro de um projeto de pessoalidade, integra o exercício do direito à vida, porque exprime sua realização ainda que seja para o seu fim.

Nas palavras de Meireles (p. 159):22A afirmação de que as situações jurídicas existenciais são indisponíveis é demais simplória e desconsidera que a autonomia privada em termos exclusivamente patrimonialista é incompatível com a centralidade que a pessoa humana ocupa no ordenamento jurídico. 

Em questão de vida e morte, ao se relativizar a dignidade para dar prevalência à vida, como defendem as concepções tradicionais, surgem situações dramáticas que desafiam o Direito, como o caso de Goodall e Wuillemin. Ainda que se reconheça hierarquia normativa entre os dispositivos do texto maior, certamente não estará a vida acima da dignidade humana, que como fundamento da República, detém superioridade axiológica frente a outros interesses reconhecidos.23

Szatjn24 afirma que a inviolabilidade da vida, defendida a ferro e fogo por tantos, vale contra terceiros, mas não pode se voltar contra o indivíduo, lhe suprimindo a capacidade decisória sobre a duração de sua vida. A vida inviolável, pois, é aquela que se amolda à autonomia individual do sujeito de direitos, em respeito à suas escolhas diante de seu projeto pessoal de vida.

O ordenamento jurídico deve dirigir sua proteção à vida qualificada com os predicados escolhidos por cada ser humano e respeitada segundo os parâmetros por ele mesmo ditados. Viver de maneira precária, independentemente de critérios de qualidade, pode representar uma opção válida para muitos e até, em certos casos, uma dádiva. Mas não para todos.

O suicídio assistido por suffering from life, como ato de autonomia existencial, merece tutela do ordenamento jurídico, porque conduz ao conteúdo jurídico da dignidade humana. A opção consciente e válida acerca da interrupção do envelhecimento se liga à realização do ideal de morte digna e se sobrepõe aos demais princípios constitucionais, porque prestigia o princípio-fonte do qual decorrem todos os outros.

Ao Direito cabe exigir de alguém um comportamento que fira sua própria dignidade humana? Muito ao contrário: a ele cabe apresentar opções legítimas para o desenvolvimento pleno da personalidade, que se dará segundo as concepções de cada um, inseridas aí as decisões relativas à morte e o morrer. 

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DAVID Goodall: 104-year-old scientist to end own life in Switzerland. 2018. The Guardian [site], 2018. Disponível aqui

2 Em 2017, o estado de Victoria, na Austrália, aprovou a Lei de Morte Assistida Voluntária. Disponível aqui. 

Disponível aqui. 

4 Disponível aqui. Acesso: 07 jun. 2022

5 NAÇÕES UNIDAS BRASIL. Mundo terá 2 bilhões de idosos em 2050; OMS diz que "envelhecer bem deve ser prioridade global". Naçõesunidas.org [site], Brasil. Disponível aqui

6 NAÇÕES UNIDAS BRASIL. Número de pessoas idosas com necessidade de cuidados prolongados triplicará nas Américas até 2050. Nacoesunidas.org [site], Brasil, 02 out. 2019. Disponível aqui

7 IBGE notícias [site]. Disponível aqui

8 BARROSO, Luís Roberto; MARTEL, Letícia Campos Velho. A morte como ela é: dignidade e autonomia individual no final da vida. Panópitica, v. 5, n. 2, p. 69-104, 2010.

9 DRION, Huib. The self-chosen death of elderly people. NRC Handelsblad, 1991.

10 SERBETO, Enrique. Holanda aprobará uma pastilla letal para los mayores de 70 cansados de vivir. ABC sociedad [site]. Disponível aqui

11 Esta descrição tem por base a exposição de motivos de E. Sutorius, J. Peters e S. Daniels pertencentes à Proeve van Wet que emergiu da iniciativa de cidadania «Vida concluída».

12 WIJNGAARDEN, E. Van. Ready To Give Up on Life. [s.l.] University of Humanistic Studies, Department of Care Ethics, 2016.

13 Disponível aqui

14 SÁ, Maria de Fátima; MOUREIRA, Diogo. Autonomia para morrer. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2015.

15 RODOTÀ, Stefano. Autodeterminação e laicidade. Revista Brasileira de Direito Civil, Belo Horizonte, p. 139-152, 2018.

16 RODOTÀ, Stefano; MARTINI, Eleonora; FERRARA, Giuliano. Cultural a que asistimos y la libertad de conciencia. Entrevista, p. 1-3, 2008.

17 MORAES, Maria Celina Bodin de. Ampliando os direitos da personalidade. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional, v. 1, p. 121-148, 2010.

18 TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil constitucional positivo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

19 SIQUEIRA, Flávia. Autonomia, consentimento e direito penal da medicina. São Paulo: Marcial Pons, 2019.

20 MARINHO, Renato Silvestre. Princípio da autorresponsabilidade no direito penal. São Paulo: LiberArs, 2018.

21 MEIRELES, Rose Melo. Autonomia privada e dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009.

22 Idem. 

23 SCHREIBER, Anderson. Direitos de personalidade. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2014.

24 SZTAJN, Rachel. Autonomia privada e direito de morrer: eutanásia e suicídio assistido. São Paulo: Cultural Paulista, 2018.