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Migalhas de Direito Médico e Bioética

Temas do Direito de Saúde e Bioética.

Wendell Lopes Barbosa de Souza, Miguel Kfouri Neto, Fernanda Schaefer, Rafaella Nogaroli e Igor Mascarenhas
Um trecho da clássica obra de C.S. Lewis, As Crônicas de Nárnia, descreve, de certa forma, um recente caso julgado pelo TJ/RJ1. O episódio da referida obra versa sobre uma conversa entre o Sr. Castor e as crianças escolhidas, demonstrando o medo que possuíam da Feiticeira e a pressa que estavam para encontrar o leão Aslam: "- Ela vai de trenó, e nós vamos a pé: nunca chegaremos antes. - Tudo está perdido, então? - perguntou Susana. - Deixe de aflições, minha filha, e vá buscar naquela gaveta meia dúzia de lenços. Claro que não está tudo perdido. Não chegaremos antes dela, mas poderemos escolher um caminho diferente daquele que ela pensa. Assim talvez a gente escape.2" O caso mencionado tratou de uma ação de obrigação de fazer cumulada com indenização por danos morais proposta por uma consumidora idosa que, por um lapso de memória, deixou de pagar cinco mensalidades do plano de saúde, ensejando o cancelamento deste pela operadora.  Em suma, a reclamação da consumidora baseou-se em dois motivos: a ausência de cobrança da operadora do plano de saúde acerca da inadimplência e a falta de notificação prévia para o cancelamento do respectivo contrato. Sobre a inadimplência, cabe ressaltar que a autora informou que possuía o plano de saúde há mais de 20 anos, bem como apresentou um laudo médico demonstrando que se encontrava acometida por um declínio cognitivo progressivo de causa neurodegenerativa, o qual causou o esquecimento do pagamento das mensalidades do plano de saúde. No mais, a fim de evidenciar a sua boa-fé contratual, a consumidora depositou judicialmente as parcelas pendentes de pagamento. Já a operadora do plano de saúde alegou que o cancelamento do contrato ocorreu em razão do inadimplemento da consumidora e após a regular notificação prévia. Antes de tratar do julgamento do caso, para fins de estudo neste artigo, cabe tecer algumas considerações a respeito da relação contratual existente entre as partes, do esquecimento e da inadimplência da consumidora.   De acordo com a lei 9.656/98 (lei dos planos de saúde), o contrato individual de plano de saúde pode ser resolvido no caso de inadimplência superior a sessenta dias, conforme ocorrido no caso em tela3. Contudo, nesse aspecto, em primeiro lugar, cabe recordar que o contrato de plano de saúde possui um caráter existencial, haja vista que o seu objeto é tutela da pessoa humana4, de modo que este tipo de contrato deve ser norteado pelo direito social à saúde (art. 6º, CF) e, notadamente, pelo princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF)5. Nesse mesmo sentido, importa registrar que, apesar da autonomia privada se tratar de um princípio basilar nas relações contratuais, há limites a serem observados na esfera contratual, fundamentalmente calcados no princípio da boa-fé objetiva (art. 4º, III do CDC6; art. 422 do CC7), corolário da solidariedade social insculpida na CF/888. Deste modo, não obstante a legislação apontada pela operadora do plano de saúde permitir, numa primeira análise, o cancelamento do plano de saúde da consumidora em razão do inadimplemento, o formalismo na aplicação da lei deverá abrir espaço à análise do perfil funcional da relação jurídica, ou seja, a interpretação da norma deverá observar a finalidade contratual perseguida em conformidade com os valores constitucionais envolvidos9.  Nessa linha de raciocínio, observa-se no caso em apreço que o esquecimento do pagamento das mensalidades do plano de saúde em decorrência de uma doença se trata, sem sombra de dúvidas, de uma situação jurídica merecedora de tutela10, tendo em vista que considerar a prevalência da autonomia privada, fincada na liberdade contratual, violaria frontalmente a integridade psicofísica da autora, a qual teria grande dificuldade de obter o tratamento médico necessário, colocando em risco sua saúde. Portanto, considerando as peculiaridades do caso concreto (vulnerabilidade da autora idosa, tempo de uso do plano de saúde, adimplemento do contrato durante anos, enfermidade da autora, depósito judicial das parcelas inadimplidas), a violação da boa-fé objetiva resta delineada na hipótese11. Nessa esteira, o parâmetro hermenêutico para aplicação do princípio da boa-fé objetiva se caracteriza em razão da inobservância do comportamento leal, voltado à tutela da confiança dos envolvidos, por parte da operadora do plano de saúde, de maneira a promover um ambiente contratual sadio e colaborativo. Nesse contexto, cabe lembrar que a doutrina versa que a boa-fé objetiva possui uma tríplice função: (i) jurígena (fonte autônoma de deveres jurídicos); (ii) limitativa (limite ao exercício de direitos subjetivos); e (iii) hermenêutica (critério de interpretação dos negócios jurídicos)12. No presente caso, analisando-se o aspecto funcional do contrato de plano de saúde em questão, nota-se que a violação do princípio da boa-fé objetiva se deu no âmbito de todas as suas funções. A função jurígena da boa-fé objetiva alude ao reconhecimento de direitos e deveres implícitos a ambas as partes, o que, na hipótese, se relaciona ao dever de confiança e lealdade no pacto contratual. Ao tratar da função hermenêutica, conforme motivos anteriormente expostos, poder-se-ia defender que a expectativa da autora ao manter um contrato por longo período certamente não era sofrer uma interrupção abrupta do serviço ajustado, pelo que o critério interpretativo serviria, nesta hipótese, para corrigir o desequilíbrio contratual existente entre as partes13. Igualmente, o abuso do direito restou caracterizado14, tendo em vista o comportamento desleal da ré, a qual se valeu da sua posição contratual para promover uma resolução sem observar o caso concreto e os requisitos necessários para tanto.  Apesar de não haver menção sobre este ponto nos autos, na hipótese também seria possível ventilar a aplicação do Tema 1.082 do STJ15, o qual dispõe sobre a impossibilidade de cancelamento do plano de saúde ao usuário que estiver em tratamento médico garantidor de sua sobrevivência ou incolumidade física. Porém, o aludido tema também versa que há necessidade de que o consumidor esteja adimplente com o contrato de plano de saúde, o que dificultaria a aplicação da tese no caso em questão. Sob outra perspectiva, considerando a relação consumerista existente16, observa-se que o cancelamento unilateral do plano de saúde se tratou de um ato próprio da operadora, afastando eventual discussão sobre a responsabilidade desta quando derivada de atos praticados por terceiros (hospitais, clínicas e médicos)17. Na hipótese, o ato praticado pela operadora atraiu a incidência da responsabilidade civil objetiva decorrente do defeito na prestação de serviço (art. 14 do CDC18), caraterizado pela frustração da legítima expectativa da consumidora causada pelo cancelamento unilateral do plano de saúde e pela violação do dever de informação (art. 6º, III do CDC) em virtude da ausência de notificação prévia 19.  Em relação à falta de notificação prévia, a parte final do art. 13, II da lei dos planos de saúde deixa clara a obrigatoriedade de a operadora notificar o usuário do plano acerca da inadimplência. No caso, a autora alegou a ausência de notificação prévia, enquanto a ré informou que realizou a notificação apresentando uma correspondência nos autos. Neste ponto, importa mencionar que a consumidora relatou que a notificação citada pela operadora foi entregue a terceiro, sendo que esta situação não foi rebatida pela operadora,  fazendo com que o não recebimento da notificação se tornasse um fato incontroverso20. Ainda sobre o tema, vale ressaltar que, na época do julgamento em comento, as regras sobre a notificação por inadimplência e a ciência do consumidor eram regidas pela RN ANS 593/23. Retornando ao julgamento do caso, cumpre expor que a sentença foi prolatada pelo juízo singular julgando procedente o pleito autoral para determinar à ré a manutenção do plano de saúde e uma indenização por danos morais no valor de R$ 6.000,00. Em síntese, o magistrado entendeu que a notificação prévia não foi devidamente cumprida.  A operadora do plano de saúde interpôs recurso de apelação em face da sentença, reiterando a argumentação exposta na defesa, especialmente baseada na legalidade do cancelamento em decorrência do inadimplemento pelo período de cinco meses e na regularidade da notificação.  Ao julgar o recurso, a 9° Câmara de Direito Privado do Estado do Rio de Janeiro entendeu que a inadimplência momentânea da consumidora em razão da enfermidade que a acometia alinhada ao tempo de contratação do plano de saúde e a busca pela solução administrativa do imbróglio são fatores que justificam a manutenção do plano de saúde, sendo certo que a conduta da operadora "não se amolda aos parâmetros da boa-fé objetiva, que se afigura como uma crença que permeia todo o ordenamento jurídico como forma regulamentadora das relações humanas". Noutro ponto do acórdão, o julgador reforçou o dever de lealdade e confiança intrínseco à relação contratual, destacando que "devem as partes respeitar reciprocamente os interesses legítimos e as expectativas razoáveis de cada uma delas na relação contratual que as vincula, agindo de forma leal, sem abusar ou obstruir a execução da avença, abstendo-se de causarem ou auferirem vantagem indevida ou excessiva." Ademais, foi ressaltado que a ré não se desincumbiu do ônus probatório relativo  à ausência de notificação da autora, descumprindo a determinação emanada na lei 9656/98. Desta forma, foi negado provimento ao recurso interposto pela ré, sendo mantida a sentença em sua integralidade.  Percebe-se, assim, que, apesar do inadimplemento contratual, considerando as particularidades do caso concreto, mediante uma interpretação sistemática e teleológica do acordo firmado entre as partes, em observância ao princípio da boa-fé objetiva, o tribunal carioca entendeu por resguardar os interesses e legítimas expectativas da consumidora, parte vulnerável da relação jurídica.  Na história narrada, a operadora em vez de se prestigiar a lealdade no trato, valorizando a transparência, a luminosidade na relação, preferiu o caminho da escuridão e do abuso.  Nessa trilha, a obra anunciada no início deste artigo manifesta alguns anseios próprios do ser humano, como a passagem que versa sobre Lúcia, uma das crianças escolhidas, que teve a missão de encontrar uma fórmula mágica para curar a invisibilidade do povo da ilha. Ao se dirigir ao andar de cima, local onde era guardado o livro mágico, Lúcia iniciou a sua leitura "e assim continuou durante mais de trinta páginas. Se pudesse decorá-las, teria aprendido a achar um tesouro enterrado, a lembrar coisas esquecidas, a esquecer coisas aborrecidas, a adivinhar se os outros dizem a verdade, a evitar e chamar o vento, o nevoeiro, a neve, a geada, a mergulhar as pessoas no sono (como aconteceu ao pobre Príncipe das Orelhas de Burro).21" __________ 1 Apelação Cível n. 0858238-34.2024.8.19.0001, Des. Rel. Paulo Sérgio Prestes dos Santos, 9ª Câmara de Direito Privado, julgado em 06/11/2024, TJ-RJ. 2 LEWIS, C.S. As Crônicas de Nárnia. Volume único. O leão, a feiticeira e o guarda-roupa. Trad. por Paulo Mendes Campos e Silêda Steuernagel. Ed. Martins Fontes, São Paulo: 2012, p. 49. 3 Lei n. 9.656/98. Art. 13.  Os contratos de produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei têm renovação automática a partir do vencimento do prazo inicial de vigência, não cabendo a cobrança de taxas ou qualquer outro valor no ato da renovação. Parágrafo único. Os produtos de que trata o caput, contratados individualmente, terão vigência mínima de um ano, sendo vedadas: II - a suspensão ou a rescisão unilateral do contrato, salvo por fraude ou não-pagamento da mensalidade por período superior a sessenta dias, consecutivos ou não, nos últimos doze meses de vigência do contrato, desde que o consumidor seja comprovadamente notificado até o qüinquagésimo dia de inadimplência;      4 "Quando o objeto da tutela é a pessoa, a perspectiva deve mudar: torna-se uma necessidade lógica reconhecer, em razão da natureza especial do interesse protegido, que é exatamente a pessoa a constituir ao mesmo tempo o sujeito titular e o ponto de referência objetivo da relação." (PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Trad. por Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, p. 764) 5 "Com efeito, a escolha da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, associada ao objetivo fundamental de erradicação da pobreza e da marginalização, e de redução de desigualdades sociais, juntamente com a previsão do §2º do art. 5º, no sentido da não exclusão de quaisquer direito e garantias, mesmo que não expressos, desde que decorrentes dos princípios adotados pelo texto maior, configuram uma verdadeira cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana, tomada como valor máximo pelo ordenamento." (TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil - Tomo II. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. A Tutela da Personalidade no Ordenamento Civil-constitucional Brasileiro, p. 54) 6 CDC. Art. 4º. A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: III - harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170, da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores; 7 Código Civil. Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. 8  "Se a solidariedade fática decorre da necessidade imprescindível da coexistência humana, a solidariedade como valor deriva a consciência racional dos interesses em comum, interesses esse que implicam, para cada membro, a obrigação moral de "não fazer aos outros o que não se deseja que lhe seja feito". Esta regra não tem conteúdo material, enunciando apenas uma forma, a forma da reciprocidade, indicativa de que "cada um, seja o que for que possa querer, deve fazê-lo pondo-se de algum modo no lugar de qualquer outro. É o conceito dialético de "reconhecimento" do outro." (BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos à Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009 p. 111/112) 9 "Nesses  termos,  a  obrigação  deixa de ser  concebida  com  um  fim  em  si  mesmo  para  ser valorada, na sua essência, como um instrumento de cooperação social para a satisfação de certo  interesse do credor.5Esta  sua  função  jurídica  orienta todo  o desenvolvimento a  relação  obrigacional  até  o  momento  de  sua  extinção,  servindo,  em  particular,  de parâmetro  para  a  valoração  do  comportamento  das  partes,  que  são  chamadas,  de acordo com a cláusula geral da boa-fé objetiva, a colaborarem mutuamente para a plena realização dos seus legítimos interesses." (KONDER,  Carlos  Nelson;  RENTERÍA,  Pablo. A  funcionalização  das  relações  obrigacionais: interesse  do  credor  e  patrimonialidade  da  prestação. Civilistica.com. Rio  de  Janeiro,  a.1,  n.  2, jul.-dez./2012. Disponível aqui. Acesso realizado em 07/11/2024) 10 A tutela da autonomia privada ocorrerá quando o ato praticado atender a uma função juridicamente relevante. (PERLINGIERI, Pietro. Op. cit.) 11 "A incidência da boa-fé implica a multiplicação de deveres das partes. Assim, são observados não apenas os deveres principais da relação obrigacional (o dever de pagar o preço ou entregar a coisa, por exemplo), mas também deveres anexos ou laterais, que não dizem respeito diretamente com a obrigação principal, mas sim com a satisfação de interesses globais das partes, como os deveres de cuidado, previdência, segurança, cooperação, informação, ou mesmo os deveres de proteção e cuidado relativos à pessoa e ao patrimônio da outra parte." (MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor, 6ª Ed., RT, 2016, p. 146) 12 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 45. 13 Sobre o assunto, cabe destacar o art. 47 do CDC, o qual dispõe que: "s cláusulas contratuais serão interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor." 14 Código Civil. Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. 15 Tema 1.082, STJ - A operadora, mesmo após o exercício regular do direito à rescisão unilateral de plano coletivo, deverá assegurar a continuidade dos cuidados assistenciais prescritos a usuário internado ou em pleno tratamento médico garantidor de sua sobrevivência ou de sua incolumidade física, até a efetiva alta, desde que o titular arque integralmente com a contraprestação devida. 16 Súmula n. 608, STJ. Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde, salvo os administrados por entidades de autogestão. 17"A responsabilidade objetiva das operadoras de planos de saúde não se aplica aos casos de erro médico. Melhor dizendo, prova-se a culpa do médico (ou inverte-se o ônus da prova) e sua responsabilidade contamina a operadora, qualquer que seja a relação jurídica entre ambos - empregado, credenciado ou referenciado." (GODOY, Cláudio Luiz Bueno de et al. Responsabilidade Civil na Área da Saúde. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.) 18 CDC. Art.14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. 19 "Assim, qualquer defeito na prestação do serviço impõe a responsabilização objetiva e solidária da operadora em virtude de um risco-proveito por ela assumido e a responsabilização subjetiva do profissional liberal que motivou os danos físicos ou morais causados ao paciente." (SCHAEFER, Fernanda. Responsabilidade Civil dos Planos e Seguros de Saúde. Curitiba: Editora Juruá, 2003, p.17.)20 "Agravo interno no agravo em recurso especial. Plano de saúde. Cancelamento da apólice. Notificação prévia. Necessidade. Notificação entregue a terceiro. Fundamento não impugnado. Súmula 283/STF. Artigo 1021, § 4º, do Código de Processo Civil. Caráter protelatório não evidenciado. Inviabilidade. Precedentes. Não provido. 1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consolidou-se no sentido de não admitir a rescisão unilateral, mesmo em caso de inadimplência do consumidor, sem que antes a operadora do plano de saúde proceda à notificação prévia do usuário. Precedentes. 2. No caso, o pressuposto adotado no acórdão de recorrido, de que a notificação prévia ao cancelamento da apólice foi encaminhada a terceiro, sem relação com o segurado, não foi impugnado pelo recorrente. Incidência da Súmula 283/STF. 3. O mero não conhecimento ou improcedência de recurso interno não enseja a automática condenação na multa do artigo 1.021, § 4º, do CPC/2015, devendo ser comprovado o manifesto propósito protelatório, o que não ocorreu na espécie. 4. Agravo interno a que se nega provimento." (STJ - AgInt no AgInt no AREsp: 2404980 SP 2023/0238196-4, Relator: Ministra Maria Isabel Gallotti, Data de Julgamento: 22/04/2024, T4 - Quarta Turma, Data de Publicação: DJe 13/05/2024). 21 LEWIS, C.S. As Crônicas de Nárnia. Volume único. A viagem do Peregrino da Alvorada, Trad. por Paulo Mendes Campos e Silêda Steuernagel. Ed. Martins Fontes, São Paulo: 2012. p. 459. 
IntroduçãoAtualmente, o Brasil é o segundo país do mundo no ranking das cirurgias plásticas, o que inclui intervenções embelezadoras em geral (ISAPS, 2021, p. 5). Vive-se em uma sociedade cada vez mais técnica, globalizada, do consumo e digital, com publicidades médicas sendo realizadas nas redes sociais, em que variados profissionais postam fotos de "antes e depois" e mostram resultados de intervenções já realizadas, o que atrai potenciais pacientes, que buscam médicos para realizarem procedimentos eletivos e de cunho estético.1 Tais procedimentos são caracterizados, por parte da doutrina2 e da jurisprudência (exemplo: entendimento do STJ exarado no AREsp 328.110), como obrigações de resultado, por envolverem grandes expectativas dos pacientes. Data máxima vênia, não concordamos com essa visão, sobretudo porque a Medicina é uma ciência inexata e porque há diversos fatores, para além da atuação do médico, por exemplo, o comportamento do paciente, que repercutem no resultado embelezador da intervenção. Dito isso, este panorama de busca pela beleza e pelo bem-estar em termos de autoestima vem atraindo muitos homens, pois há maior diversidade de possibilidade de intervenções, tais como procedimentos de harmonização genital peniana. Trata-se de procedimento invasivo cada vez mais comum e que vem sendo estudado por entidades do âmbito médico, pois existem diversas técnicas para sua execução. O uso de ácido hialurônico é uma das mais indicadas, pois demonstra segurança em relação à aplicação da substância e sua interação com o organismo humano (CRM-SC, 2021, p. 2). No entanto, mesmo com todo este contexto de procura, existem médicos que não se sentem confortáveis em realizar tais intervenções, sobretudo devido à falta de consenso científico sobre este procedimento na genitália masculina (Dae Yul Yang et al, 2020, p. 5). Muitos médicos, em razão desta incerteza quanto aos efeitos a longo prazo destes procedimentos, ponderam se há real indicação de serem realizados3 ou, se é algo que o paciente pretende realizar mesmo possuindo o órgão genital dentro do considerado padrão pela literatura científica. Destarte, quando procurado pelo paciente, compete ao médico analisar, a partir de sua autonomia profissional, se pretende e se se sente confortável em realizar tais procedimentos, sobretudo com base na ponderação de riscos, benefícios e, ainda, de acordo com as normativas editadas pelo CFM - Conselho Federal de Medicina. Depois disso, o médico precisa esclarecer ao paciente sobre os riscos referentes ao procedimento, informando-o de forma ampla sobre a intervenção, bem como apresentar opções de conduta conservadora e, uma vez que o paciente tenha compreendido e consentido na realização do ato, o médico deve agir nos termos da lex artis e da boa prática médica, optando por métodos mais seguros dentre os existentes. 1. Relação médico-paciente e deveres de informação e esclarecimento para o consentimento A relação médico-paciente é sui generis, tem como base a confiança e assimétrica por natureza, sobretudo porque o médico é o detentor do conhecimento técnico frente ao paciente, que normalmente é leigo em assuntos médicos. Por este motivo, cabe ao médico, antes de qualquer ato , conversar com o paciente, para que este compreenda o que será realizado em seu organismo. O médico precisa informar e esclarecer, de forma rigorosa, sobre todos os riscos do procedimento, sobretudo aqueles de cunho eletivo, no sentido de que "mesmo os acidentes mais raros e as sequelas mais infrequentes devem ser relatados" (Kfouri Neto, 2021, p. 236). Ressalte-se que, quando a intervenção tem o caráter exclusivamente estético, o sentido terapêutico está diluído em um conjunto de motivos de ordem pessoal (França, 2021, p. 231), vez que o sentido primário é embelezar. Tais procedimentos dizem respeito à Medicina do aprimoramento (enhancement), vez que o paciente visa a uma melhora subjetiva do próprio corpo a partir de diferentes interesses, baseados em seus desejos e valores individuais (Siqueira, 2019, p. 281). Além disso, é certo que a saúde envolve um estado completo de bem-estar físico, mental e espiritual, não somente ausência de doenças e enfermidades (OMS, 1947), daí porque, sobretudo nestes casos de procedimentos embelezadores, cabe ao paciente decidir o que pretende fazer em sua esfera corporal, o que reflete o paradigma da autonomia, ligado à dignidade humana e aos direitos fundamentais de vida digna e liberdade. Neste sentido, adota-se a premissa de que o consentimento do paciente é a pedra de toque que legitima a intervenção médico-cirúrgica (Siqueira, 2019, p. 81), sobretudo nos procedimentos eletivos de harmonização genital masculina, que repercutem na saúde mental, autoestima e confiança dos pacientes que, por motivos diversos, podem não estar satisfeitos com a aparência de seu pênis. Ademais, é importante ressaltar que o consentimento do paciente deve ser visto como um processo de comunicação, pois não basta ao médico somente informar, o profissional deve se certificar de que o paciente compreendeu o que foi dito (Kfouri Neto, 2021, p. 267), bem como eventualmente sanar dúvidas que venham a surgir. Isto é, o consentimento do paciente para o ato médico será considerado válido se a pessoa tiver sido suficientemente esclarecida para que possa tomar uma decisão autodeterminada (Barroso, 2010, p. 8), no sentido de que o conteúdo da informação deve ser o mais completo possível, de forma que o paciente consiga sopesar os prós e contras da intervenção (Hilgendorf, 2019, p. 48). Após o consentimento válido do paciente, que está relacionado ao dever de esclarecimento, cabe ao médico agir de acordo com as normas referentes à lex artis, que abrangem regras universalmente reconhecidas da ciência médica e, ainda, os demais deveres de cuidado gerais da boa prática médica (Brito, 2002, p. 376). Ressalte-se que a lex artis são normas específicas de comportamento, fixadas e aceitas por certos círculos profissionais, destinadas a conformar as atividades respectivas dentro de padrões de qualidade, além de evitarem a concretização de perigos para bens jurídicos que podem resultar de tais atividades (Dias, 2004, p. 646). Isto é, o médico, quando da intervenção, precisa seguir standards de comportamento seguro, sobretudo para preservar a incolumidade física do paciente e garantir sua segurança. Ademais, segundo Souza (2009, p. 19), o profissional, no momento da realização de determinado procedimento, deve avaliar o princípio do risco-benefício, que diz respeito a um critério ético-jurídico que obriga tanto o médico quanto o paciente, possuindo relação com os deveres de cuidado aos quais o profissional está vinculado, incluindo as consequências daquela intervenção frente ao paciente individualmente considerado, ainda mais se o procedimento for eletivo, que envolve um processo de reflexão por parte do paciente. 2. Procedimentos de harmonização genital masculina: Autonomia profissional e autonomia do paciente Com efeito, em relação aos procedimentos de harmonização genital masculina, existem técnicas possíveis de serem utilizadas pelo médico, mas, ao mesmo tempo, alguns profissionais ainda se sentem inseguros, justamente pela falta de consenso das Sociedades de especialidades. Isto é, há médicos que defendem a realização da intervenção de aumento peniano e outros que rechaçam a realização destes procedimentos, independentemente das técnicas utilizadas. No entanto, alguns fatores precisam ser avaliados, tais como a indicação do procedimento e as autonomias do médico e do paciente. A Sociedade Brasileira de Urologia (SBU, 2019)4, por exemplo, aduz que a maioria dos homens que buscam atendimento visando aumento peniano possui pênis com tamanho normal, sem anormalidades anatômicas. Por isso, para a entidade, a orientação ética e honesta é não indicar a cirurgia nestes pacientes, e sim conduta conservadora com tratamento psicológico/emocional. Neste caso, segundo a SBU, haveria um quadro de dismorfofobia, no qual o paciente tem uma percepção distorcida das dimensões da sua genitália. Logo, entendem que a proposta de aumento peniano como um procedimento cosmético do pênis normal é ainda considerada uma técnica experimental. Reforçam, também, que várias técnicas de alongamento e/ou ganho de espessura peniana têm sido descritas, mas nenhuma se mostrou efetiva e segura, vez que ainda faltam maiores evidências nestes procedimentos. O índice de complicações e insatisfações com tais procedimentos é grande e ainda não apresenta resultados satisfatórios. Em parecer, aduzem que o CFM define tais procedimentos como experimentais, indicando a resolução 1.482/975, já revogada e, portanto, não se aplica. É fato que, até o momento, a literatura acerca deste tema, nacional e estrangeira, ainda não apresenta um consenso, pois há os que entendem que, a depender da técnica, o método é sim seguro, tais como os procedimentos com uso de ácido hialurônico (AH), já utilizado usualmente em cirurgias estéticas ou modeladoras faciais, conforme resultado dos estudos de Zhang et al (2022)6 e Oates e Sharp (2017).7 Por outro lado, há estudos que apontam a falta de literatura robusta que ateste a segurança destes procedimentos a longo prazo (Zilg e Rasten-Almqvist, 2017)8, questionando indicação do procedimento para estes pacientes. Na conclusão dos estudos mencionados, lançam a reflexão sobre a real necessidade do procedimento ou se é algo psicológico do paciente, que pode eventualmente estar se comparando com outras pessoas, sofrendo pressão estética da mídia e por isso, pode ter buscado o procedimento. Assim, há uma gama de profissionais que entende que o tratamento da situação deve se dar no âmbito de questões psicoterapêuticas e não com a intervenção de harmonização peniana em si (Silvinato et. al, 2020). Como não há consenso entre os médicos sobre a segurança da técnica, não obstante não sejam procedimentos proibidos, o que se tem é que, na prática, compete a cada profissional9, ponderando riscos e benefícios e sentindo-se confortável, decidir se pretende realizar tais intervenções, mesmo quando procurados por pacientes, o que tem relação com o direito básico referente à autonomia do médico.10 Assim, quando procurado por algum paciente, cabe ao médico decidir, a partir de sua autonomia profissional, se irá realizar o ato médico e, a partir daí, se optar pela realização da intervenção, deve informar e esclarecer o paciente sobre os riscos e efeitos daquele procedimento, ponderando o posicionamento de entidades médicas mesmo sem questionamento por parte dos pacientes da comprovação baseada em literatura médica.11 Ademais, independentemente da indicação do procedimento a partir da perspectiva do médico (se o paciente possui micro pênis ou não, por exemplo), cabe ao paciente decidir se pretende realizar a intervenção, de modo que, aqui, pode ser feita uma analogia com procedimentos de prótese mamária. Ora, se determinada mulher possui seios de um tamanho "normal", mas, mesmo assim, queira realizar o procedimento estético, que tem relação com sua saúde mental e autoestima, bem como com seu conceito subjetivo de beleza, cabe a ela ter uma conversa com o médico assistente de confiança e optar pela realização ou não da intervenção. Deste modo, de forma semelhante aos procedimentos de harmonização genital masculina, cada paciente deve ser avaliado de modo criterioso pelo médico e por equipe multidisciplinar antes da realização do procedimento.12 Logo, o paciente precisa estar ciente do que pode ocorrer frente ao procedimento, eventuais resultados, efeitos colaterais e problemas daí decorrentes. A título de exemplo, se o médico faz o procedimento de aumento peniano em determinado paciente com uso de ácido hialurônico, deve informar à pessoa que pode ser que, depois de um tempo, sejam necessárias reaplicações do fármaco no pênis e que não é um resultado harmonizador eterno. Da mesma forma, precisa explicar que há risco, mesmo que baixo, de infecção, edema, dor, deformidade genital, nodulações e até mesmo perda tecidual. No mesmo sentido, se o médico opta por utilizar polimetimetacrilato (PMMA) em procedimento de harmonização peniana, precisa explicar todos os riscos que englobam a substância ao paciente, ainda mais porque, segundo estudo realizado pelo Conselho Regional de Medicina de Santa Catarina (CRM-SC, 2021), elencado em nota conjunta das câmaras técnicas de urologia e cirurgia plástica sobre tais intervenções, tem-se que a resolução de deformidades decorrentes do uso de tal substância é bastante complicada, por tratar-se de substância inabsorvível difusamente distribuída no corpo peniano cuja retirada necessariamente implica na retirada do tecido saudável adjacente. Na mesma linha, caso determinado resultado adverso seja inerente ao procedimento realizado, é crucial que o médico, além de explicar e conversar com o paciente, faça constar tais hipóteses em termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE), sobretudo para evitar eventual alegação futura de negligência informacional, o que, por si só, pode ser causa de responsabilização do profissional, que pode ser condenado a pagar indenização ao paciente, como já decidiu o STJ em situações envolvendo questionamento de conduta médica em geral (Exemplo: REsp 1.848.862).13 3. Inexistência de responsabilidade, dever de informar e riscos inerentes Uma vez que o paciente esteja informado e esclarecido sobre o ato médico, sobretudo em relação aos riscos inerentes relacionados ao procedimento, eventual efeito adverso não pode ser imputado ao médico, nem a título de negligência informacional, tampouco com fundamento em suposto erro na intervenção. Isso porque não se admite responsabilidade automática e presumida do médico, ainda mais se ele cumpriu os deveres de esclarecimento e de informação, cruciais para a validade do consentimento dado pelo paciente. Ademais, para que seja fixada a responsabilidade do médico, é preciso comprovar que o profissional agiu de forma culposa, a saber, imprudente, negligente ou imperita, e que esta conduta tenha relação causal e normativa com os danos que o paciente alega ter sofrido. Como dito, também se admite a responsabilização com base em negligência informacional, mas, se o médico informou ao paciente sobre os riscos do procedimento e explicou sobre eventuais efeitos adversos daí decorrentes, o que, normalmente, resta comprovado via documentos, esta tese acusatória perde força. No entanto, é importante ressaltar que, caso o médico deixe de abordar informação relevante ao paciente antes de este decidir pela realização do procedimento, tal omissão pode dar ensejo a demandas ético-disciplinares, cíveis e eventualmente criminais, sobretudo com fundamento na negligência informacional e na violação aos deveres de transparência e esclarecimento. Portanto, na prática, tem-se que a comunicação entre as partes, considerando-se a vulnerabilidade técnica do paciente em relação ao médico, evita problemas jurídicos e reflete segurança, o que reflete tanto a autonomia profissional quanto a do paciente. Considerações finais Por esta razão, entende-se que, a partir de sua autonomia profissional e da ponderação de riscos e benefícios, é possível que o médico dê seguimento ao procedimento de harmonização genital masculina estética, que guarda relação com a promoção da saúde mental do paciente e ao seu bem-estar, sobretudo porque tais procedimentos envolvem autoestima, autoconfiança e o conceito de beleza do paciente individualmente considerado. Ademais, existe a necessidade de o médico avaliar caso a caso de forma específica, os anseios individuais dos pacientes e, ao fim e ao cabo, cumprir, de modo completo, os deveres de informação e esclarecimento. Ainda assim, o médico deve proceder à realização do ato de forma segura, optando pela técnica que trouxer menos riscos ao paciente (Exemplo: Utilização de ácido hialurônico), o que refletirá diligência e cuidado, bem como poderá afastar alegações futuras de negligência informacional ou má execução do ato médico caso algum resultado adverso se faça presente. ________ 1 Devem ser respeitadas as normas de publicidade médica elencadas no Código de Ética Médica, Resolução 2.336/2023 do Conselho Federal de Medicina e Manual da CODAME, bem como orientações do CRM/CFM sobre a temática, sob pena de o médico ser investigado em razão da prática de infração ética. 2 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil - V. II / Atual. Guilherme Calmon Nogueira da Gama. - 29. ed. rev. e atual. - Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 64. Nas obrigações de resultado, a execução considera-se atingida quando o devedor cumpre o objetivo final, pois a essência da prestação é o bem jurídico almejado ao passo que, nas de meio, o devedor se obriga a empreender esforços para atingir certo objetivo, não se comprometendo, porém, a obtê-lo, sendo que a inexecução se caracteriza pelo desvio de certa conduta ou omissão de certas precauções a que alguém se comprometeu, não sendo relevante o resultado final. 3 A título de exemplo, analisam se o paciente possui micro pênis, que é aquele que apresenta um comprimento 2,5 desvios-padrão abaixo da média para a idade. SCUCH, Thiago et. al. Pênis de Comprimento Reduzido em Idade Pré-Puberal: Avaliação Inicial e Seguimento. Disponível aqui. Acesso em 16. Set. 24. 4 Sobre o posicionamento da SBU, ver: PARECER sobre os procedimentos de aumento peniano. Disponível aqui. Acesso em 10 set. 2024 5 Entendemos, com todo respeito, que é o caso de avaliação particularizada de cada paciente e de cada caso, ainda mais para se considerar o que é um pênis de tamanho "normal" e o que não é. Ademais, o ato normativo editado pelo CFM que aduzia que tal procedimento era experimental foi revogado, disponível aqui. No mesmo sentido, uma intervenção que era experimental em 1997 pode não ser mais considerada deste modo quase três décadas depois, ainda mais porque, como dito, não há nenhum tipo de vedação em relação aos procedimentos de aumento peniano, mas sim algo que, na prática, dependerá de cada médico. 6 ZHANG, Chun-Long et al. Penile augmentation with injectable hyaluronic acid gel: an alternative choice for small penis syndrome. Asian Journal of Andrology (2022) 24, 1-6; doi: 10.4103/aja20223; published online: 08 April 2022. 7 OATES, Jayson; SHARP, Gemma. Nonsurgical Medical Penile Girth Augmentation: Experience-Based Recommendations. Aesthetic Surgery Journal, 2017, Vol 37(9) 1032-1038, DOI: 10.1093/asj/sjx068. 8 ZILG, Brita; Rasten-Almqvist, Petra. Fatal Fat Embolism After Penis Enlargement by Autologous Fat Transfer: A Case Report and Review of the Literature. J Forensic Sci, 2017, doi: 10.1111/1556-4029.13403. 9 Para fins de não alongarmos o texto, o enfoque será dado à conduta do médico que realiza tais procedimentos, muito embora, hoje, outros profissionais, por exemplo, biomédicos, divulguem e realizem tais procedimentos de harmonização peniana, o que resvala na complexa discussão sobre a invasão do ato médico e eventual caracterização do crime de exercício ilegal da Medicina, que não são os objetos do presente artigo. 10 Ver Cap. I- VII, VIII e XVI, Cap. II- VIII, Cap. III - art. 20, todos do Código de Ética Médica (Resolução 2.217/2018 do CFM). 11 Ressalte-se que aguardar respaldo das especialidades médicas para assegurar este procedimento, obviamente, não anula os riscos de complicações, mas gera segurança jurídica aos médicos que se dispõem a realizar tais intervenções. 12 Pode ser que, por exemplo, o paciente seja diagnosticado com transtorno dismórfico corporal e acredite que tem uma ou mais imperfeições ou defeitos na aparência física, porém, esse defeito na realidade não existe ou é leve. Disponível aqui. Acesso em 11 set. 2024. 13 O STJ condenou o médico a indenizar o paciente devido ao descumprimento do dever de informação. Inteiro teor da decisão disponível aqui. Acesso em 13 set. 2024. ________ CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DE SANTA CATARINA (CRM-SC). Nota conjunta das câmaras técnicas de urologia e cirurgia plástica sobre procedimentos médicos de aumento peniano. Disponível aqui. Acesso: 30 jul. 2024. HILGENDORF, Eric. Introdução ao direito penal da medicina / Eric Hilgendorf: tradução Orlandino Gleizer. - 1. Ed. - São Paulo: Marcial Pons, 2019. INTERNATIONAL Society of Aesthetic Plastic Surgery (ISAPS). Disponível aqui. Acesso em 17 jul. 2024. NETO, Miguel Kfouri. Responsabilidade civil do médico / Miguel Kfouri Neto. - 11. Ed. rev., atual. e ampl. - São Paulo Thomson Reuters Brasil, 2021. OATES, Jayson; SHARP, Gemma. Nonsurgical Medical Penile Girth Augmentation: Experience-Based Recommendations. Aesthetic Surgery Journal, 2017, Vol 37(9) 1032-1038, DOI: 10.1093/asj/sjx068. PORTAL da Urologia, 2019. Parecer sobre os procedimentos de aumento peniano. Disponível aqui. Acesso em 30 jul. 2024. SCUCH, Thiago et. al. Pênis de Comprimento Reduzido em Idade Pré-Puberal: Avaliação Inicial e Seguimento. Disponível aqui. Acesso em 16. Set. 24SILVINATO, Antônio et. al. Cirurgia estética genital masculina. Disponível aqui. Acesso em 10 set. 2024. SIQUEIRA, Flávia. Autonomia, consentimento e direito penal da medicina. 1 ed. São Paulo: Marcial Pons, 2019. Coleção Direito Penal e Criminologia. SOUZA, Paulo Vinicius Sporleder de Souza. O médico e o dever legal de cuidar. Revista Bioética, 2006, pp. 229-238, p. 231. PARECER sobre os procedimentos de aumento peniano. Disponível aqui. Acesso em 10 set. 2024. YANG, Dae Yun et al. The journal of sexual Medicine, 2020. A Comparison Between Hyaluronic Acid and Polylactic Acid FillerInjections for Temporary Penile Augmentation in Patients with SmallPenis Syndrome: A Multicenter, Patient/Evaluator-Blind,Comparative, Randomized Trial. Disponível aqui. Acesso em 30 jul. 2024. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil - V. II / Atual. Guilherme Calmon Nogueira da Gama. - 29. ed. rev. e atual. - Rio de Janeiro: Forense, 2017. ZHANG, Chun-Long et al. Penile augmentation with injectable hyaluronic acid gel: an alternative choice for small penis syndrome. Asian Journal of Andrology (2022) 24, 1-6; doi: 10.4103/aja20223; published online: 08 April 2022. ZILG, Brita; Rasten-Almqvist, Petra. Fatal Fat Embolism After Penis Enlargement by Autologous Fat Transfer: A Case Report and Review of the Literature. J Forensic Sci, 2017, doi: 10.1111/1556-4029.13403
A Súmula Vinculante 60, publicada pelo STF em 20/9/24, tem como principal objetivo harmonizar a análise e fornecimento de medicamentos pelo SUS e os processos de judicialização relacionados ao tema. Essa súmula está vinculada ao Tema 1.234, que abordou questões relevantes sobre a judicialização da saúde, estabelecendo um novo patamar para o tratamento dessas demandas, com base nos acordos interfederativos homologados pelo STF no RE 1.366.243/SC. A Súmula Vinculante tem como objetivo promover uma articulação entre os Poderes Judiciário e Executivo, visando organizar o fluxo de demandas judiciais e administrativas. No entanto, é importante destacar que, embora essa articulação busque padronizar os procedimentos, podem surgir obstáculos ao acesso à justiça, com restrições que, em excesso, podem dificultar o acesso de cidadãos a medicamentos e tratamentos não oferecidos diretamente pelo SUS. Por ser uma Súmula Vinculante, seu conteúdo tem observância obrigatória tanto pelo Judiciário quanto pela Administração Pública, estabelecendo uma regra uniforme para o tratamento de casos similares. Em situações de descumprimento ou divergência nas decisões judiciais, a reclamação constitucional se torna um instrumento relevante, conforme previsto no art. 102, I, "l", da CF/88, assegurando que o entendimento do STF seja respeitado e evitando interpretações conflitantes decorrentes da aplicação da súmula. Os três acordos homologados pelo STF no contexto do Tema 1.234, referenciados pela Súmula Vinculante 60, estabelecem seis diretrizes principais para a gestão dos pedidos e para a judicialização da saúde, quais sejam: Competência; Definição de medicamentos não incorporados; Custeio; Análise judicial do ato administrativo de indeferimento de medicamento pelo SUS; Plataforma nacional; Medicamentos incorporados. No que tange à primeira diretriz, que trata da fixação de competência, cria-se uma regra de competência jurisdicional absoluta para demandas relacionadas a medicamentos não padronizados pelo SUS, mas registrados pela ANVISA. Quando o valor anual do tratamento com o fármaco for igual ou superior a 210 salários-mínimos, a competência será da Justiça Federal. O valor do tratamento é calculado com base no CAP - Coeficiente de Adequação de Preços aplicando o PMVG - Preço Máximo de Venda ao Governo, estabelecidos pela CMED - Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos. Esse critério reflete o real custo para a Administração Pública, que adquire medicamentos por preços inferiores ao valor praticado no setor privado. Para os fármacos cujo valor anual é inferior a 210 salários-mínimos, a competência será definida de acordo com as diretrizes sobre custeio, que serão abordadas na terceira diretiva do acordo, relacionada ao custeio. A segunda diretriz estabelece a definição de medicamentos não incorporados, fundamental para evitar interpretações discrepantes e assegurar a correta aplicação da Súmula Vinculante 60. Conforme o item 2.1 do acordo homologado, medicamentos não incorporados são aqueles que não constam na política pública do SUS; incluem medicamentos previstos nos PCDTs - Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas para outras finalidades (experimentais), medicamentos sem registro na ANVISA, ou aqueles usados fora da indicação aprovada (off-label) sem respaldo em PCDTs ou que não integrem listas do componente básico. A clareza conceitual desse termo visa proporcionar segurança jurídica e uniformidade no tratamento das demandas relacionadas a medicamentos não incorporados, evitando que sua aplicação gere dúvidas ou interpretações conflitantes no âmbito judicial. A terceira diretriz trata dos critérios de custeio, observando a competência para os casos em que o valor do tratamento anual, valor da causa, não atinge 210 salários-mínimos. As ações envolvendo medicamentos não incorporados e cujo valor da causa seja inferior a esse limite poderão ser ajuizadas na Justiça Estadual, atribuindo regras de ressarcimento e financiamento dos medicamentos não incorporados entre os entes federados União e Estados membros. Quanto ao valor da causa, o acordo interfederativo estabelece que: Valor da causa entre 7 e 210 salários-mínimos: As ações podem ser propostas na Justiça Estadual, onde o ente estado demandado custeará o tratamento. Após o custeio, o ente estado poderá ser ressarcido em 65% dos valores desembolsados (3.3.1). Para medicamentos oncológicos, o percentual de ressarcimento será de 80% (3.4). Valor da causa abaixo de 7 salários-mínimos: As ações devem ser propostas na Justiça Estadual, sendo que o ente estado demandado assumirá integralmente os custos do tratamento. Nos casos em que o valor da causa seja inferior a 7 salários-mínimos, o custeio deverá ser integralmente assumido pelo ente estadual, sem possibilidade de ressarcimento. Novamente, para o valor da causa se aplica o CAP-PMVG - Coeficiente de Adequação de Preços por Preço Máximo de Venda ao Governo. Nos casos em que o medicamento prescrito não possui registro na ANVISA, a competência para julgar e custear o tratamento é da Justiça Federal, sendo responsabilidade da União assumir integralmente os custos. Aplica-se, nesse contexto, a tese fixada no Tema 500 do STF, afetada por repercussão geral. A quarta diretriz trata da Análise Judicial do Ato Administrativo de Indeferimento de Medicamento pelo SUS, estabelecendo uma regra de observância obrigatória para a atuação judicial. O juízo competente deve, sob pena de nulidade do ato jurisdicional, conforme os arts. 489, §1º, V e VI, e 927, III, §1º, ambos do CPC, proceder à análise tanto do ato comissivo ou omissivo da CONITEC em relação à não incorporação do fármaco, quanto da negativa de fornecimento na via administrativa. O juízo deve verificar se a decisão de não incorporar o medicamento foi devidamente justificada, uma vez que a validade do ato administrativo depende da regularidade dos fundamentos que o sustentam. É relevante destacar que, mesmo quando a CONITEC não recomenda a incorporação de um medicamento, a análise judicial continua essencial. A ausência de incorporação ou de análise pela CONITEC não implica automaticamente o indeferimento da demanda judicial. Cabe ao Judiciário avaliar as necessidades específicas do caso concreto, assegurando que o direito à saúde seja respeitado e que a omissão administrativa não cause prejuízos ao paciente. O autor da ação deve demonstrar a imprescindibilidade do medicamento não incorporado, com base na Medicina Baseada em Evidências, comprovando não apenas a segurança e eficácia do fármaco, mas também a inexistência de substitutos terapêuticos já fornecidos pelo SUS. É extremamente importante reiterar que a não recomendação pela CONITEC não significa que o fármaco não poderá ser deferido judicialmente. Pelo contrário, nos termos da STA 175-AgR, o ministro relator Gilmar Mendes decidiu o seguinte: "deverá ser privilegiado o tratamento fornecido pelo SUS em detrimento de opção diversa escolhida pelo paciente, sempre que não for comprovada a ineficácia ou a impropriedade da política de saúde existente." A ressalva mencionada pelo ministro relator Gilmar Mendes é clara: Sempre que não for comprovada a ineficácia ou a impropriedade da política de saúde existente, o tratamento oferecido pelo SUS deve ser priorizado. Isso quer dizer que, mesmo em casos de não recomendação pela CONITEC, o ônus da prova continua a recair sobre o autor, que deve demonstrar, de forma inequívoca, a ineficácia ou inadequação do tratamento disponibilizado pelo SUS. Entretanto, essa exigência probatória rigorosa pode representar um obstáculo significativo para muitos pacientes do SUS, que frequentemente não possuem os recursos financeiros ou acesso a especialistas para elaborar a prova técnica necessária. A continuidade de utilização do e-NATJUS se mostra essencial para garantir uma análise qualificada do caso concreto, funcionando como um órgão de assessoramento técnico ao juízo. Ele auxilia na avaliação de demandas de saúde ao fornecer pareceres embasados em evidências científicas, permitindo que o juízo tome decisões mais informadas e seguras. Dessa forma, o e-NATJUS contribui diretamente para a equidade no acesso à justiça, garantindo que questões técnicas complexas, como tratamentos e medicamentos não incorporados, sejam tratadas com o rigor necessário, sem sobrecarregar os litigantes com exigências probatórias desproporcionais. Na quinta diretriz, observa-se a criação de uma "Plataforma Nacional", que tem como objetivo a implementação de um sistema integrado entre os entes federativos e o Poder Judiciário. Essa iniciativa visa centralizar informações essenciais acerca das demandas administrativas e judiciais de acesso a medicamentos, promovendo uma otimização do fluxo de informações entre os diferentes entes envolvidos. No que tange aos medicamentos incorporados, a sexta diretriz do acordo interfederativo estabelece um fluxo administrativo e judicial a ser seguido por todos os entes federativos. O fluxo administrativo aprovado é baseado na portaria de vonsolidação 2, de 28/9/17, que organiza os medicamentos disponíveis no SUS em diferentes grupos, definindo as responsabilidades de custeio, aquisição e distribuição. Dessa forma, cada grupo de medicamentos, que pode incluir o CEAF - Componente Especializado da Assistência Farmacêutica, o CBAF - Componente Básico da Assistência Farmacêutica ou o CESAF - Componente Estratégico da Assistência Farmacêutica, delimita claramente a responsabilidade dos entes federativos no fornecimento e financiamento, otimizando o acesso a medicamentos essenciais e assegurando um tratamento uniforme nas demandas judiciais. A observância rigorosa dessas disposições é crucial para garantir a eficiência na prestação dos serviços de saúde, minimizando a possibilidade de litígios desnecessários e divergências entre as esferas de governo. É possível constatar que a implementação da Súmula Vinculante 60 pelo STF representa um marco na organização do fornecimento de medicamentos pelo SUS, estabelecendo diretrizes que visam otimizar o fluxo administrativo e judicial. Entretanto, é imperativo que a nova norma respeite a inafastabilidade da jurisdição, conforme previsto no art. 5º, XXXV da CF/88. Embora a intenção de reduzir a litigância no Judiciário seja compreensível, isso não deve criar obstáculos ao acesso à justiça para aqueles que dependem do SUS. Assim, qualquer acordo entre entes federativos deve ser um mecanismo que assegure o acesso equitativo à saúde, e não uma barreira que impeça a população de buscar seus direitos. Neste contexto, o Judiciário deve desempenhar um papel fundamental como guardião dos direitos individuais, analisando as demandas por medicamentos com uma perspectiva que considere a realidade clínica dos pacientes. A análise cuidadosa e individualizada é crucial, principalmente em casos de tratamentos oncológicos, nos quais a interrupção pode ter consequências graves. Portanto, o sucesso da implementação da Súmula Vinculante 60 dependerá de um monitoramento contínuo que mantenha o foco na dignidade do paciente e na efetividade do direito à saúde no Brasil, promovendo um sistema de saúde mais justo e equitativo. _________ BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante nº 60. O pedido e a análise administrativos de fármacos na rede pública de saúde, a judicialização do caso, bem ainda seus desdobramentos (administrativos e jurisdicionais), devem observar os termos dos 3 (três) acordos interfederativos (e seus fluxos) homologados pelo Supremo Tribunal Federal, em governança judicial colaborativa, no tema 1.234 da sistemática da repercussão geral (RE 1.366.243). Brasília, DF: Supremo Tribunal Federal, [2024]. Disponível aqui. Acesso em: 27 set. 2024. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 1366243 - Tema 1.234. Disponível aqui. Acesso em: 2 out. 2024. BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. e-NatJus. Disponível aqui. Acesso em: 27 set. 2024. Ministério da Saúde (MS). Resolução nº 4 de 18 de dezembro de 2006. Disponível aqui. Acesso em: 27 set. 2024. Ministério da Saúde (MS).  Portaria de Consolidação n. 2 de 28 de setembro de 2017. Disponível aqui. Acesso em 27 de set. 2024.
O presente estudo aborda as repercussões jurídicas e éticas decorrentes do uso de redes sociais para fins publicitários por profissionais médicos, com enfoque na responsabilização civil desses profissionais. A análise examina a distinção entre obrigação de meio e obrigação de resultado na prática médica e discute o impacto da publicidade sobre as expectativas dos pacientes. À luz das disposições do CDC e das resoluções do CFM, são investigadas as circunstâncias em que a publicidade inadequada pode configurar alteração da obrigação contratual, transformando-a em obrigação de resultado, com consequências jurídicas adversas para os profissionais. O estudo visa oferecer uma reflexão sobre os riscos e responsabilidades inerentes ao uso das mídias digitais por médicos, especialmente no tocante à criação de expectativas infundadas.  1. Introdução A utilização de redes sociais por profissionais de saúde para a divulgação de serviços médicos tornou-se uma prática amplamente difundida, sendo vista, muitas vezes, como uma ferramenta eficaz para a captação de pacientes e a promoção de suas atividades. Contudo, esse fenômeno suscita complexas questões jurídicas e éticas, especialmente quando se considera o regime de responsabilidade civil aplicável a tais profissionais. O exercício da medicina é tradicionalmente classificado como uma obrigação de meio, ou seja, o médico compromete-se a empregar os melhores recursos e conhecimentos disponíveis, sem, no entanto, garantir um resultado específico. No entanto, quando a publicidade veiculada nas redes sociais cria a expectativa de resultados garantidos, a relação contratual pode ser alterada, convertendo-se em uma obrigação de resultado, o que pode levar à responsabilização do médico em caso de insucesso. Este artigo tem por objetivo analisar a responsabilidade civil do médico sob essa perspectiva, com base nas disposições do CDC e nas normas éticas do CFM. 2. Distinção entre obrigação de meio e obrigação de resultado na prática médica No âmbito do direito civil, a distinção entre obrigação de meio e obrigação de resultado é de fundamental importância para a compreensão da responsabilidade do médico. A obrigação de meio, predominante na prática médica, impõe ao profissional o dever de agir com diligência, perícia e prudência, empregando todos os meios disponíveis para o sucesso do tratamento, mas sem garantir a obtenção de um resultado específico. Essa natureza da obrigação decorre da imprevisibilidade dos fatores biológicos que influenciam os tratamentos médicos. Por outro lado, a obrigação de resultado implica a entrega de um desfecho concreto e previamente estabelecido. Esse tipo de obrigação é excepcional no campo da saúde, dada a natureza incerta dos tratamentos e a resposta variável de cada organismo aos procedimentos. Em raras situações, como em certos procedimentos estéticos, pode-se considerar a existência de uma obrigação de resultado, mas tal circunstância é incomum e deve ser interpretada de forma restritiva. 3. A Influência da publicidade médica nas redes sociais A publicidade médica, especialmente quando veiculada nas redes sociais, tem o potencial de alterar a percepção do paciente acerca da natureza da obrigação assumida pelo médico. Ao fazer uso de meios publicitários, o profissional deve abster-se de prometer resultados garantidos ou de sugerir que o sucesso do tratamento é assegurado, pois tal prática pode configurar a transmutação da obrigação de meio para obrigação de resultado. Essa alteração é prejudicial, na medida em que expõe o médico à responsabilidade civil, caso o desfecho prometido não seja atingido. A resolução CFM 1.974/11, posteriormente atualizada pela resolução CFM 2.336/23, estabelece parâmetros rigorosos para a publicidade médica, objetivando impedir que os profissionais façam uso de linguagem sensacionalista, de autopromoção ou de garantias infundadas quanto aos resultados dos tratamentos. Em consonância, o CDC, em seu art. 37, considera publicidade enganosa aquela que induz o consumidor ao erro, seja por veicular informações inverídicas, seja por omitir dados relevantes. Dessa forma, a publicidade que sugere a certeza de um resultado positivo gera uma obrigação de resultado, afastando o caráter de imprevisibilidade inerente à prática médica e aumentando o risco de litígios. 4. A responsabilidade civil do médico no âmbito da publicidade A responsabilidade civil do médico decorre do descumprimento de sua obrigação ou da prática de atos que configurem negligência, imprudência ou imperícia. Quando a publicidade médica, veiculada por meio das redes sociais, cria no paciente a expectativa de um resultado garantido, o médico pode ser responsabilizado judicialmente, mesmo que tenha agido em conformidade com os preceitos técnicos da medicina. Exemplo 1: Um cirurgião plástico divulga em suas redes sociais a realização de lipoaspirações com a promessa de "resultados permanentes" e "satisfação garantida". Se o paciente, após o procedimento, não alcançar o resultado esperado, o médico poderá ser responsabilizado civilmente, pois, ao prometer um desfecho específico, compromete-se a uma obrigação de resultado. Exemplo 2: Uma clínica de emagrecimento anuncia que seus tratamentos garantem a perda de "até 10 kg em um mês". O paciente, ao não atingir o objetivo prometido, poderá demandar judicialmente, alegando que a clínica descumpriu a obrigação contratual de resultado. Esses exemplos ilustram como a publicidade inadequada pode aumentar os riscos de responsabilização civil para o médico, convertendo a obrigação de meio em uma obrigação de resultado. 5. Consequências da responsabilidade civil por publicidade enganosa As consequências jurídicas da responsabilização civil do médico por publicidade enganosa ou abusiva são vastas, podendo incluir: Danos materiais: O paciente pode pleitear a restituição dos valores pagos pelo tratamento, bem como a reparação de despesas adicionais incorridas para corrigir complicações. Danos morais: A frustração gerada pela expectativa não atendida pode ensejar a reparação por danos morais, especialmente em casos de abalo psicológico ou emocional. Danos estéticos: Em situações que resultem em deformidades físicas ou cicatrizes, o paciente poderá buscar indenização por danos estéticos. Responsabilidade ética e administrativa: Além da responsabilização civil, o médico pode ser submetido a processos disciplinares perante o Conselho Regional de Medicina, estando sujeito a sanções que variam desde advertências até a suspensão do exercício profissional. A publicidade inadequada ou sensacionalista não apenas compromete a reputação do profissional, mas também pode acarretar graves consequências financeiras e éticas, comprometendo sua atuação no mercado. 6. Conclusão O uso da publicidade nas redes sociais por profissionais médicos deve ser conduzido com extremo cuidado, dentro dos limites impostos pela ética e pela legislação vigente. As promessas de resultados concretos e garantidos em campanhas publicitárias expõem o médico ao risco de responsabilização civil, caso o desfecho não seja alcançado, desviando-se da tradicional obrigação de meio que rege a prática médica. A publicidade médica deve ser sempre pautada pela transparência e veracidade, esclarecendo que os resultados podem variar de acordo com as particularidades de cada paciente. Além disso, é imperativo que o consentimento informado seja devidamente utilizado, garantindo que o paciente tenha plena ciência dos riscos e limitações dos tratamentos propostos, prevenindo expectativas irreais e, por conseguinte, eventuais litígios.
No livro "Nação Tarja Preta"1, a psiquiatra norte-americana Anna Lembke, expõe de forma incisiva como a relação entre médicos e a indústria farmacêutica pode levar a consequências devastadoras para pacientes e para a prática médica, como um todo. A autora, que é professora em Stanford, descreve como a influência das grandes indústrias farmacêuticas pode resultar em prescrições excessivas e inadequadas, contribuindo diretamente para crises de saúde pública, como a devastadora epidemia de opioides existente nos EUA2. No caso específico dos opioides, Lembke detalha como, em poucos anos, foi moldado um ambiente no qual o médico passou a ser refém de um sistema que ela denomina como "enlouquecido" e em que aqueles profissionais que se opunham à prescrição excessiva de opioides passaram a ser estigmatizados. Essa situação evidencia o risco envolvido quando há conflito de interesse na atuação médica e demonstra uma tendência global de regulamentação na área da saúde. Os EUA promulgaram a lei de abrangência federal denominada Physician Payments Sunshine Act3 em 2010, mas o Brasil ainda discute o assunto, com alguns projetos de lei tramitando há anos4, sem previsão de quando ocorrerá a deliberação definitiva. O único Estado brasileiro que regulamenta o assunto é Minas Gerais, por meio da lei Estadual 22.440/16. Nesse contexto e exercendo suas prerrogativas, o Conselho Federal de Medicina se antecipou à lei federal, publicando, em setembro de 2024 a Resolução CFM 2.386/24 (com vigência em março de 2025), para normatizar os vínculos entre médicos e indústrias (farmacêuticas de insumos de saúde e equipamentos médicos) bem como para trazer maior transparência e fortalecer a confiança nas relações médico-paciente, evitando que os interesses financeiros se sobreponham à qualidade do cuidado prestado. 1. Obrigação de Informar Vínculos com Indústrias (Art. 2º): Uma das principais exigências da resolução é a obrigação do médico de informar quaisquer vínculos com indústrias farmacêuticas, de insumos da área da saúde e equipamentos médicos, bem como com empresas intermediadoras da venda desses produtos. A comunicação deve ser feita no 'CRM-Virtual' do Conselho Regional de Medicina no qual o médico possui inscrição ativa. A resolução detalha que o médico deve informar o nome das empresas com as quais mantém vínculo e comunicar ao Conselho quando a relação se encerrar, sendo o prazo da obrigação de 60 dias contados do recebimento do benefício. Apesar de existir menção à 'remuneração' e a 'benefício', não há uma delimitação das situações que podem ser consideradas como geradoras do vínculo ou do conflito de interesse, fato que pode gerar interpretações dissonantes ou conflituosas. Na prática, seria importante para o médico compreender, por exemplo, se um almoço patrocinado por um laboratório deverá ser informado, sendo desejável que o CFM se manifeste nesse sentido. 2. Definição do Vínculo e Situações Abrangidas (Art. 3º) Conforme delimitado no art. 3º do referido ato normativo, o vínculo se caracteriza por um contrato formal ou prestação ocasional para desenvolver atividades ligadas à indústria, divulgar produtos ou para proferir palestras. Devem informar o vínculo, portanto, todo médico que firma contrato para desenvolver 'ocupação ligada às empresas da indústria farmacêutica'. Porém, não ficou claro se a obrigação se estende aos profissionais empregados naquelas empresas, mediante contrato de trabalho sem tempo determinado. Abrange essa obrigação de informar, a participação de médicos em pesquisas e desenvolvimento de produtos e a condição de membro de comissões técnicas, como a Conitec -Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde e de outros conselhos deliberativos da ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar ou Anvisa  -Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Demonstra-se, nesse art. 3º, a significativa preocupação com a possibilidade de influência e interferência de profissionais que atuam perante órgãos públicos, na definição de políticas que repercutam no dispêndio de altas somas de dinheiro público. 3. Proibição de Recebimento de Benefícios em relação a divulgação de produtos sem registro na Anvisa (Art. 4º e 5º) A norma proíbe o recebimento de quaisquer benefícios relacionados a medicamentos, órteses, próteses, materiais especiais e equipamentos hospitalares que não tenham registro na Anvisa. Essa disposição busca impedir a promoção de técnicas ou procedimentos ainda não validados ou sem a adequada comprovação científica. A exceção existe para os casos de protocolos de pesquisa aprovados por comitês de ética em pesquisa, quando, ainda em fase de testes, dependem da participação dos médicos, que podem ser remunerados pelos patrocinadores. Importante, portanto, que tais relações estejam bem amparadas por contratos específicos, evitando questionamentos ou penalidades. 4. Declaração de Conflitos de Interesse em Exposições Públicas (Art. 6º) Assim como havia sido definido no art. 10, da resolução CFM 2.336/23, que trata da propaganda e publicidade médicas, a recente norma reitera a obrigação do médico em declarar seus conflitos de interesse em entrevistas, debates, palestras e quaisquer eventos. Apesar de a resolução anterior ter previsto o disclosure apenas em 'eventos para o público leigo', esta ampliou a abrangência e incluiu os 'eventos médicos'. Tal disposição, conforme bem ponderaram os Dantas e Coltri, decorre da necessidade de "equilibrar a liberdade de expressão e a promoção de serviços médicos com a garantia de que tais práticas não comprometam a confiança pública na profissão médica"5 . Sendo assim, não há vedação da prática de tais atos, apenas pretende-se garantir que potenciais interesses sejam evidenciados. 5. Exceções à Regra (Art. 7º) Não obriga à a notificação por parte do médico o recebimento de amostras grátis de medicamentos, assim classificadas pela legislação específica6, o que é razoável e evita a necessidade de um controle demorado e custoso para o profissional. Ademais, já existe regulação sobre a forma como as amostras podem ser distribuídas, cabendo à farmacêutica tal gestão. Também foram excluídos da obrigação, informar os rendimentos decorrentes de investimentos, como ações e/ou cotas de participação em empresas do setor de saúde. Neste caso, apesar de a resolução evitar a exposição de rendimentos decorrentes do trabalho - na maioria das vezes, por questões fiscais, as remunerações pela prestação do serviço médico são contabilizadas em sociedade constituída com este propósito7 - essa exceção pode, em alguns casos, desviar a norma de seu objetivo de promover a transparência. Não é raro um médico administrar ou investir diretamente nas centenas de startups voltadas à área da saúde - healthtechs - e o fazem com o objetivo de obter a valorização do patrimônio das sociedades investidas8. Vislumbra-se, portanto, um potencial conflito de interesses, que, se ocultado, pode prejudicar a confiança no profissional. A terceira exceção ocorre nos benefícios recebidos por 'sociedades científicas' ou 'entidades médicas' de forma genérica, inexistindo uma especificação dos propósitos ou do tipo jurídico de tais instituições. Considerações finais Apesar de não ter força de lei9, a resolução CFM 2.386/24 representa um avanço significativo na regulação das interações entre médicos e a indústria da saúde, ao colocar luz sobre eventuais conflitos de interesse que possam influenciar a prescrição ou a aquisição pelo poder público de medicamentos e outros produtos médicos. Ressalta-se que ela não pretende proibir a relação de médicos com as empresas da saúde, sendo livre e até benéfica a associação e contratação entre as partes, para que exista diálogo, troca de conhecimento e a difusão de novas terapêuticas ou tecnologias, diante da constante evolução da medicina. O que se pretende evitar são situações, como a que se deflagrou nos Estados Unidos, em que o médico perde sua autonomia diante de uma imposição perversa de atores com grande poder de influência, desvirtuando os propósitos da Medicina e o comprometimento ético do médico. Para o médico, o cumprimento dessas normas reitera seu compromisso com a prática ética e fortalece a confiança do paciente, fundamentais para a preservação da integridade da profissão e a manutenção de um ambiente seguro e responsável. ________ 1 LAMBKE, Anna. Nação Tarja Preta: o que há por tras da conduta dos médicos, da dependência dos pacientes e da atuação da indústria farmacêutica. São Paulo: Vestígio, 2024. 208 p. 2 Disponível aqui. Acesso em 25.09.24. 3 Section 6002, da Public Law 111-148, de 23 de março de 2010, essa legislação se tornou um marco na transparência das relações entre médicos e a indústria, servindo como referência para normas similares ao redor do mundo. 4 Tramita na Câmara o PL 7.990/2017, no qual estão apensados os demais: PL 11.050/18, PL 11.177/18, PL 204/19 e PL 1.041/24. Disponível aqui. Acesso em 24/09/24. 5 DANTAS, Eduardo; COLTRI, Marcos. Comentários ao Código de Ética Médica. 5. ed. São Paulo: Juspodivm, 2024. 672 p. P. 490. 6 A RDC 60/2009, da ANVISA, dispõe sobre a produção, dispensação e controle de amostras grátis de medicamentos e dá outras providências. 7 Nesse sentido: COSTA, Vivian Carla da. Sociedade simples de médicos e a contribuição previdenciária patronal. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 28 set. 2024. 8 Neste sentido: MÉDICA, Afya Educação. Conheça 10 médicos empreendedores de sucesso. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 27 set. 2024. SAÚDE, Futuro da. Número de rodadas de investimentos em healthtechs se mantém, mas valores são menores ano a ano. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 27 set. 2024. 9 As resoluções do Conselho Federal de Medicina vinculam eticamente todos os médicos enquanto exercendo sua profissão, em todas os campos possíveis, nos termos do Código de Ética Médica (Resolução CFM 2.217/10). O descumprimento pode repercutir em penalidades, aplicadas conforme a gravidade da infração.   
Resumo O presente trabalho visa discutir o contexto para edição da resolução 238/16 do CNJ determinando aos tribunais a criação do Núcleo de Apoio Técnico do Judiciário e analisar o impacto dessa ferramenta essencial para a condução segura dos processos judiciais em saúde pública e suplementar permitindo o equilíbrio entre a garantia do direito individual à saúde e a higidez do SUS e da Saúde Suplementar. A nota técnica e o parecer técnico-científico elaborados pelo Núcleo de Apoio Técnico do Judiciário permitem que o magistrado decida com fundamento na Medicina Baseada em Evidências, observando os protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas, diretrizes diagnósticas e terapêuticas, rol de procedimentos da Agência Nacional de Saúde Suplementar, garantindo a aplicação dos princípios da universalidade, integralidade, equidade, acesso igualitário, mutualismo e solidariedade intergeracional. Para tanto, analisar-se-á a estatística dos Tribunais de Roraima e Goiás quanto à urgência ou não do pedido, e quanto à manifestação pela procedência, procedência parcial ou improcedência do pedido. Os dados apresentaram que no TJ/RR 12,31% dos pareceres foram considerados urgentes e no TJ/GO 18,14%. Quanto ao mérito do parecer no TJ/RR 53,79% foram totalmente favoráveis. Os dados comprovaram a hipótese de que a remessa do processo ao NatJus não atrasa a prestação jurisdicional e permite que a decisão esteja em consonância com a medicina baseada em evidências. Introdução A judicialização da saúde pública e suplementar cresceu significativamente, demandando a intervenção dos Tribunais Superiores e do CNJ devido ao impacto financeiro nos orçamentos público e privado. Esse aumento é impulsionado pela demanda crescente por medicamentos e tecnologias ainda não incorporados ao SUS e ao rol de procedimentos da ANS, com risco de descontinuidade da política pública de saúde e o equilíbrio econômico-financeiro das operadoras de planos de saúde. De acordo com dados do CNJ, em 2020 havia 416,42k processos relacionados à saúde pública e 206,28k relacionados à saúde suplementar no Brasil. Esses números subiram para 511,07k e 290,89k, respectivamente, em 2024. A Suspensão de Tutela Antecipada 175 foi um marco na jurisprudência sobre o direito à saúde, oportunidade que o STF estabeleceu diretrizes importantes, como a solidariedade dos entes federativos, a intervenção judicial para garantir a eficácia das políticas de saúde e a exigência de registro de medicamentos na ANVISA. O tribunal destacou a prioridade do tratamento previsto no SUS, mas permitiu alternativas em casos de ineficácia clínica e ausência de PCDT - Protocolo Clínico, vedados os tratamentos experimentais. Essa decisão, embora sem efeito vinculante, tem forte poder persuasivo e influenciou a criação de ampla jurisprudência nos Temas 6, 793, 1.234 e 500 do STF, e Tema 106 e IAC 14 do STJ. O CNJ, por meio de diversas resoluções, implementou importantes medidas para racionalizar a judicialização da saúde. Foi estabelecido o Fórum Nacional do Poder Judiciário para monitorar as demandas de saúde (resolução 107/10) e criados os Comitês Estaduais de Saúde. Além disso, foram especializadas varas em comarcas que possuem mais de uma vara de Fazenda Pública. A estruturação dos NatJus foi formalizada pela resolução 238/16, juntamente com a recomendação de priorizar o julgamento de processos relativos à saúde suplementar (resolução 43/13). O CNJ também elaborou o fluxo de cumprimento adequado das decisões judiciais em saúde (resolução 146/23) e organizou as Jornadas Nacionais da Saúde para debater questões relacionadas à judicialização. Apesar das diretrizes, parte da magistratura resiste em remeter processos ao NatJus, citando a "extrema urgência" dos casos, a autonomia judicial e médica, ou a ausência de NatJus no tribunal correspondente. No entanto, pesquisas mostram que muitos casos não são urgentes, e alguns pedidos são improcedentes. A resistência à consulta ao NatJus compromete a observância dos protocolos do SUS, recomendações da CONITEC, obrigatoriedade de registro na ANVISA, avaliação de evidências científicas, eficácia e custo-efetividade, essenciais para decisões técnicas em saúde. Objetivo Apresentar estudo estatístico comprovando a imprescindibilidade de remessa dos processos ao NatJus para a devida qualificação técnica das decisões judiciais em saúde, em observâncias às determinações dos Tribunais Superiores, CNJ e FONAJUS, a fim de que se tenha o maior grau de certeza possível do benefício do medicamento ou tecnologia demandada, observando-se os princípios da saúde pública e suplementar. Métodos Foi realizado o levantamento manual nas notas técnicas produzidas pelo NatJus do TJ/RR no período de 2019 a julho de 2024 pesquisando a urgência ou não do parecer e se procedente, parcialmente procedente ou improcedente o pedido. No NatJus de Goiás foi feito o levanto manual das notas técnicas produzidas no período de 2023 até o primeiro quadrimestre de 2024 buscando-se a análise de frequência de objetos e classificadores de objetos referentes aos processos, que solicitaram urgência. Tais processos foram avaliados e classificados como urgentes pelos médicos pareceristas, segundo os critérios de urgência e emergência da resolução 1.451/95 do Conselho Federal de Medicina.  Dessa forma, o tema foi abordado por meio do método dedutivo. A pesquisa foi realizada quanto à natureza de forma aplicada, com a abordagem quantitativa, objetivo descritivo e procedimento técnico documental, cuja aplicação tem por finalidade a elaboração de instrumento de pesquisa adequado à realidade a ponto de delinear a problemática em questão. Discussão Urgência e Emergência na Judicialização da Saúde Na judicialização da saúde, a maioria das petições iniciais inclui pedido de tutela de urgência, argumentando que o paciente corre risco iminente de morte ou lesão irreversível de órgão-alvo. Esse tom apelativo frequentemente leva magistrados a decidir rapidamente, sem consultar notas técnicas do NatJus ou ouvir gestores de saúde, criando cenário propício para o surgimento de demandas predatórias, oferta de terapias ineficazes, inobservância das filas de espera, desestruturação das políticas públicas e comprometimento do equilíbrio econômico-financeiro da saúde suplementar. É essencial adotar critérios seguros para a definição temporal da necessidade da apreciação dessas liminares, conforme a legislação e protocolos médicos. Dois marcos normativos são referência: A Resolução do CFM - Conselho Federal de Medicina 1.451/95 define urgência como agravo à saúde necessitando de assistência imediata, e emergência como risco iminente de vida. A lei 9.656/98, para planos de saúde, limita emergência a riscos imediatos de vida e urgência a casos de acidentes ou complicações gestacionais. A diferença entre urgência e emergência está no nível de gravidade. Urgências não envolvem risco de vida iminente, mas requerem atendimento rápido para evitar agravamento. Emergências exigem atendimento imediato devido a ameaça à vida. A organização de filas de cirurgias e atendimentos utiliza protocolos médicos como o Protocolo de Manchester, que classifica pacientes em cinco níveis de prioridade, do atendimento imediato à espera de até 240 minutos. Cirurgias são classificadas em quatro grupos de prioridades: Eletivas, prioridade médica, urgência e emergência. Cirurgias eletivas, como mamoplastia reparadora, podem esperar. Prioridade médica usa o parâmetro Time-Sensitive, talhado pela Sociedade Americana de Cardiologia, quando atrasos maiores que 1 a 6 semanas podem afetar negativamente desfechos. Cirurgias de urgência devem ocorrer em até 24 ou 48 horas, como apendicectomias. Cirurgias de emergência, como ferimentos por arma de fogo, requerem atenção imediata. O parecer do CFM do Espírito Santo (Parecer Consulta 006/15) delineia a classificação das cirurgias: Eletivas podem ser programadas, urgências requerem atenção em até 48 horas, e emergências exigem ação imediata. Esses parâmetros ajudam a organizar o sistema de saúde e garantir que casos mais graves recebam prioridade. O projeto de lei 2.728/21 que dispõe sobre prazos máximos para a realização de procedimentos cirúrgicos eletivos no âmbito do SUS, apresenta os seguintes parâmetros: Prioridade absoluta: 60 dias; Prioridade moderada: 120 dias; Prioridade baixa: 180 dias. A lei 12.732/12, que dispõe sobre o primeiro tratamento de paciente com neoplasia maligna, estabelece prazo para seu início no prazo de até 60 dias contados a partir do dia em que for firmado o diagnóstico. O uso inadequado da judicialização na saúde viola a isonomia de acesso, como no caso do Ceará, que regula a fila cirúrgica pela classificação de SWALIS, na qual as categorias A1 e A2 (maior gravidade) possuem prioridade sobre o critério cronológico, que deve ser observado nas categorias B, C e D (menor gravidade). Em caso de judicialização, independente do grau de gravidade da doença o paciente também tem prioridade sobre a ordem cronológica. Estatísticas do NatJus do Tribunal de Justiça de Roraima Foram levantadas manualmente as notas técnicas produzidas entre os anos de 2019 a agosto de 2024. Foram apuradas 1.186 notas técnicas oportunidade em que se constatou que em 251 (21,16%) não houve pedido de apreciação de urgência, 146 (12,31%) foram consideradas urgentes e 789 (66,52%) consideradas não urgentes. Destas 267 (33,84%) foram prioridade médica, 290 (36,75%) eletivas e 232 (29,4%) medicamentos (não urgentes). Quanto ao mérito do pedido 638 (53,79%) foram favoráveis, 133 (11,21%) não favoráveis, 387 (32,63%) parcialmente favoráveis e 28 (2,36%) inconclusivos. Estatísticas do NatJus do Tribunal de Justiça de Goiás Foi realizada a análise dos processos remetidos ao NatJus, que solicitaram urgência no período de 2023 até o primeiro quadrimestre de 2024. Tais processos foram avaliados e classificados como urgentes pelos médicos pareceristas, segundo os critérios de urgência e emergência da resolução 1.451/95 do CFM. Foram solicitados em caráter de urgência 2.365, dentre os quais apenas 429 (18,14%) foram classificados como urgentes e 1.936 (81,86%) não urgentes. Portanto, considerando que a Portaria 1/24 prevê a disponibilização da nota técnica em até 24h nos casos urgentes, não se justifica decidir sem a manifestação do NatJus. Conclusão A judicialização da saúde no Brasil revela um cenário complexo, onde o uso excessivo e muitas vezes inadequado de tutelas de urgência tem impactado negativamente tanto o sistema público quanto o privado. A pesquisa demonstra que, na grande maioria das vezes, as demandas judiciais não representam situações de urgência real, sugerindo a necessidade de um processo mais criterioso na concessão de decisões judiciais. Isso é corroborado pelas estatísticas do NatJus dos Tribunais de Justiça de Roraima e Goiás, que evidenciam que apenas uma pequena fração dos casos requer intervenção imediata, com apenas 53,79% classificados como totalmente procedentes. O estudo reafirma a importância de utilizar critérios objetivos e baseados em evidências científicas, como aqueles estabelecidos pelas resoluções do CFM, para diferenciar entre casos de urgência e emergência. O Protocolo de Manchester e a classificação de cirurgias em eletivas, prioridade médica, urgência, e emergência são ferramentas essenciais para garantir que os casos mais graves recebam a devida prioridade, evitando o colapso do sistema de saúde e assegurando o uso racional dos recursos disponíveis. Além disso, é fundamental que os magistrados se apoiem nas notas técnicas emitidas pelo NatJus para orientar suas decisões, assegurando que estejam alinhadas com as diretrizes dos Tribunais Superiores e do CNJ. A resistência de parte da magistratura em consultar o NatJus compromete a implementação de políticas de saúde eficazes e baseadas em evidências, prejudicando tanto a eficiência quanto a equidade do sistema de saúde. Portanto, a integração de mecanismos de controle rigorosos e a educação contínua dos profissionais do direito e da saúde sobre a importância das decisões técnicas são passos cruciais para conduzir a judicialização da saúde de forma responsável. Ao garantir que o direito à saúde seja exercido de maneira justa e eficaz, pode-se promover um sistema de saúde mais sustentável e equitativo para todos. _________ CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA - CNJ. Estatísticas processuais de direito à saúde. Brasília, DF: Conselho Nacional de Justiça. s.d. Disponível aqui. Acesso em: 06/08/2024. ITRIA, A. Fundamentos de Avaliação de Tecnologias em Saúde. USP e UNB, 2024. MARTIMBIANCO, R. et al. Saúde Baseada em Evidências - Conceitos, Métodos e Aplicação Prática. 1. ed. São Paulo: Atheneu, 2023. SCARABEL, R. Saúde Suplementar: Estrutura e Operação do Sistema Brasileiro. Mackenzie, 2024.
No início de outubro deste mês, o STF divulgou no DOU - Diário Oficial da União a súmula vinculante 61, que estabelece diretrizes para o Judiciário avaliar solicitações de fornecimento de medicamentos de alto custo ainda não incorporados ao SUS. Essas diretrizes seguem os critérios estabelecidos no julgamento do tema 6 de repercussão geral, no RE 566.471. Alguns dias antes, o STF já havia publicado a súmula vinculante 60, determinando que os pedidos e análises de medicamentos na rede pública de saúde, bem como seus desdobramentos administrativos e jurisdicionais, devem observar os termos dos três acordos interfederativos homologados pelo STF, no contexto da governança judicial colaborativa, no tema 1.234 da sistemática da repercussão geral (RE 1.366.243). Inicialmente, observa-se que as referidas súmulas estabelecem diretrizes aplicáveis exclusivamente ao SUS e às relações dentro do regime jurídico administrativo. O STF decidiu retomar a publicação de súmulas vinculantes no contexto da judicialização da saúde, destacando sua importância na uniformização da interpretação das normas e na garantia de previsibilidade nas decisões judiciais. Desde que a corte começou a transformar seus julgados em teses com repercussão geral, houve uma queda significativa na edição de súmulas vinculantes. Em 2023, foi publicada a súmula vinculante 59, sendo que a última anterior a ela datava de 2015. Embora os julgados com repercussão geral tenham efeito ultra partes e alcancem outros casos, sua aplicação se restringe ao âmbito interno do Poder Judiciário. Em contrapartida, as Súmulas Vinculantes impactam toda a administração pública, incluindo o Poder Executivo. O resgate desse instituto jurídico é fundamental, especialmente considerando sua relevância em questões como a dispensação de medicamentos de alto custo, registro de fármacos e a incorporação de tecnologias sanitárias no SUS1. Um ponto específico que foi objeto de deliberação pelo STF tanto no tema 6 como no 1.234, e que avança em relação ao tema 106 do STJ1, é a deferência imposta aos juízes e juízas às decisões da Conitec - Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS sobre a incorporação de novos medicamentos ao SUS. Em regra, e excetuando eventuais vícios processuais na análise, não é permitido ao Judiciário reavaliar ou desconsiderar o mérito da recomendação da Conitec, que, assim, se torna vinculante2. Mas em relação à saúde suplementar? As operadoras de planos de saúde serão impactadas por tais decisões? Haverá uma tendência de deferência, por parte do Poder Judiciário, às decisões da Cosaúde - Comissão de Atualização do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar? Nesse contexto, é fundamental entender como ocorrem as ações e os serviços de saúde no país. O sistema de saúde no Brasil é caracterizado por sua natureza mista, combinando um robusto sistema público, o SUS, com a participação significativa do setor privado. O Sistema Único de Saúde é responsável por oferecer acesso universal e gratuito a serviços e ações de saúde, diretamente ou através de instituições privadas, que atuam de forma complementar, priorizando a equidade e a integralidade no atendimento. Cerca de 70% da população brasileira dependem exclusivamente do SUS. No entanto, a crescente demanda por serviços de saúde, aliada ao subfinanciamento crônico, tem levado muitos brasileiros a buscarem alternativas no setor privado. As operadoras de planos e seguros de saúde desempenham um papel relevante nesse cenário, oferecendo uma variedade de serviços que buscam atender às necessidades específicas dos beneficiários. Esses planos, que possuem regulamentação própria, através da lei 9.656/98, podem proporcionar agilidade no atendimento e acesso a uma gama mais ampla de especialidades médicas, muitas vezes reduzindo o tempo de espera em comparação ao sistema público. Assim, os planos de saúde se tornam uma opção atrativa para aqueles que desejam maior comodidade e uma abordagem mais personalizada ao cuidado de saúde. A saúde suplementar no Brasil pode se organizar de diversas maneiras, oferecendo opções variadas para atender às necessidades dos usuários. Entre os modelos disponíveis, destacam-se a autogestão, onde empresas e entidades criam planos de saúde para seus colaboradores; a medicina de grupo, que reúne profissionais para oferecer serviços de forma integrada; as cooperativas médicas, que promovem a colaboração entre médicos para proporcionar atendimento de qualidade; e os seguros de saúde, que garantem cobertura financeira para despesas médicas. Essa diversidade permite que os beneficiários escolham a alternativa que melhor se adequa ao seu perfil e às suas necessidades de cuidado. Assim como na saúde pública, na Saúde Suplementar enfrenta-se um aumento exponencial na judicialização. Cada vez mais, os beneficiários de planos de saúde recorrem à justiça para obter tratamentos e serviços em saúde. Isso acontece quando as operadoras se recusam a cobrir procedimentos, medicamentos ou internações que os beneficiários consideram essenciais para sua saúde, ocorrendo o denominado fenômeno da jurisdicionalização do processo decisório.3 4 5 Essa tendência reflete a busca dos usuários por garantir acesso a cuidados médicos que julgam necessários para sua saúde (integridade psicofísica) e vida digna, mas que as operadoras se negam a fornecer.6 No entanto, é importante notar que a negativa de procedimentos na saúde suplementar, especialmente aqueles já incluídos no rol da ANS e reconhecidos pela jurisprudência, tem consequências que vão além do setor privado, afetando diretamente o sistema público de saúde e os cofres públicos. Quando as operadoras negam cobertura para procedimentos que deveriam ser oferecidos, muitos beneficiários se veem forçados a recorrer ao SUS como alternativa, seja pela urgência do tratamento, pela falta de recursos para iniciar um processo judicial, ou pela demora na resolução de casos já judicializados. Esta situação gera uma sobrecarga adicional no SUS, que já enfrenta desafios significativos de financiamento e capacidade. Consequentemente, há um aumento nos gastos do erário, pois o sistema público acaba absorvendo custos que, por direito, deveriam ser de responsabilidade das operadoras privadas. Além disso, a negativa de cobertura pelas operadoras também pode levar a um aumento na judicialização contra o próprio SUS, com pacientes entrando com ações contra o Estado exigindo tratamentos que foram negados pelos planos de saúde. É importante refletir que as operadoras de planos de saúde atuam em um mercado altamente regulado e com riscos bem conhecidos. O setor de saúde suplementar no Brasil é conhecido por sua alta lucratividade, e as operadoras entram no mercado cientes das regulamentações e obrigações legais. No entanto, parece haver uma relutância em assumir esses riscos inerentes ao negócio. A negativa de procedimentos já incluídos no rol da ANS sugere uma tentativa de maximizar lucros às custas da saúde dos beneficiários, uma postura que pode ser vista como uma forma de transferir riscos e custos para os beneficiários e para o sistema público de saúde. A implementação de mecanismos mais eficientes de ressarcimento ao SUS por parte das operadoras e a revisão dos critérios de solvência e reservas técnicas das operadoras poderiam ajudar a garantir que elas possam cumprir suas obrigações.7 A Conitec desempenha um papel crucial na avaliação e incorporação de novos medicamentos ao SUS, garantindo que as decisões sejam baseadas em evidências científicas e na eficiência dos tratamentos. Sua função de estabelecer critérios rigorosos é fundamental para a sustentabilidade do sistema de saúde pública e para a proteção dos recursos financeiros. Já na Saúde Suplementar, a avaliação de tecnologias em saúde (ATS) que é composta pelos membros da CAMSS - Câmara de Saúde Suplementar e tem por finalidade assessorar a ANS na definição da amplitude das coberturas assistenciais dos planos de saúde. A discussão sobre a autonomia técnica que um governo, ou uma operadora de plano de saúde, deve adotar em contraste com a crescente exigência de integrar novas tecnologias na área da saúde se revela, cada vez mais, um desafio persistente. Como podemos quantificar o valor de uma vida saudável? Até que ponto, enquanto sociedade, estamos dispostos a investir em benefícios para a saúde? Qual deve ser o critério que determina esse benefício e ele varia conforme a etapa da vida ou a condição de saúde considerada? Em novembro de 2022, a Conitec definiu os limites de custo-efetividade para a inclusão de tratamentos. Com isso, foi sugerido o uso de um valor-referência de R$ 40 mil por ano de vida ajustado pela qualidade (QALY), correspondente a 1 PIB per capita. Para situações específicas, como doenças raras, a recomendação foi de considerar três vezes esse valor-referência8. Já na saúde suplementar, verifica-se que as discussões sobre parâmetros de avaliação econômica no processo de atualização do Rol ainda estão engatinhando. Isso porque o cenário da saúde suplementar é bem mais complexo, pois envolve aspectos como a fragmentação do setor, a diversidade de fontes pagadoras, a dificuldade de negociação de preço, o modelo baseado no mutualismo, a falta de protocolos clínicos padronizados e falta dos debates sobre equidade. Como tratar uma cooperativa de cinco mil vidas, e uma operadora com dois milhões de vidas, com os mesmos critérios? Por certo não podemos desconsiderar o impacto orçamentário e tratar como uma consequência que os contratantes têm que cobrir. Mas também não se pode esquecer que estamos tratando, em regra, de relações jurídicas de direito privado. Apesar do alto custo das tecnologias sanitárias e da necessidade de uma avaliação econômica criteriosa, é fundamental destacar que, ao contrário SUS, as operadoras oe planos de saúde, exceto os planos de autogestão, funcionam sob um regime jurídico de direito privado e têm como objetivo primordial a maximização do lucro. Essa lógica de mercado impõe que, em busca de resultados financeiros, as operadoras podem negligenciar a qualidade do atendimento e o acesso dos usuários aos tratamentos necessários. Não se pode aceitar que a saúde dos indivíduos seja comprometida em nome da distribuição de lucros para acionistas; garantir o acesso à saúde deve sempre prevalecer sobre a busca pelo lucro, refletindo uma responsabilidade social (função social do contrato e deveres anexos) que é negligenciada por muitas dessas instituições. A recente lei 14.454/22, que estabelece que o Rol da ANS é meramente exemplificativo, surgiu como efeito backlash causado por uma decisão anterior do STJ, no EREsp 1.886.929, que restringia o acesso a medicamentos e insumos necessários, e que não estivessem devidamente incorporados nas listagens do referido órgão regulador, salvo em situações excepcionais. Com essa nova regulamentação, as operadoras de planos de saúde são agora obrigadas a fornecer tratamentos que tenham respaldo em evidências científicas, ampliando assim o acesso a terapias inovadoras e essenciais, mesmo que ainda não estejam no rol da ANS. Além disso, as tecnologias incorporadas pela Conitec devem ser automaticamente analisadas pela ANS, garantindo que, à medida que novas evidências e tecnologias sejam reconhecidas, também sejam incluídas no rol de coberturas obrigatórias. Essa mudança representa um avanço significativo na defesa dos direitos dos beneficiários, promovendo uma saúde suplementar mais justa e equitativa. Verifica-se, porquanto, que a deferência conferida pelo STF às decisões da Conitec, conforme registrado nas Súmulas Vinculantes 60 e 61, ainda encontra limitações para aplicação na judicialização da saúde suplementar. O aprimoramento do setor deverá perpassar por iniciativas como o processo de pesquisa acoplado à incorporação (para avaliar se a tecnologia em saúde entrega o que foi prometido); acordos de risco compartilhados justos e transparentes; regras de excepcionalidades para segmentos específicos (oncologia, doenças raras e ultrarraras, por exemplo). E não podemos nos esquecer da necessidade de repensar a regulação de preços de tecnologias sanitárias no Brasil. Trata-se de demanda premente que a CMED Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos aprimore seus mecanismos de precificação, especialmente diante do cenário atual em que tecnologias sanitárias milionárias têm se tornado cada vez mais comuns. A falta de transparência nas práticas de precificação não só compromete a sustentabilidade do sistema de saúde público e suplementar, mas também facilita abusos por parte da indústria farmacêutica, que pode explorar lacunas regulatórias para aumentar os preços de forma desproporcional. Ao estabelecer critérios claros e justos para a avaliação de preços, a CMED poderia garantir que os custos dos medicamentos sejam mais acessíveis e que os recursos do sistema de saúde sejam utilizados de maneira eficiente, promovendo um equilíbrio entre inovação e justiça social. A transparência nesse processo é essencial para que pacientes, profissionais de saúde e gestores possam tomar decisões informadas, assegurando que o acesso a tratamentos essenciais não seja comprometido por interesses econômicos desmedidos. Ou como asseverou Paul Farmer, aclamado antropólogo e médico estadunidense, e cofundador da organização Partners In Health: "A saúde não é um produto para ser vendido, mas um direito fundamental de cada ser humano." Essa afirmação ressalta a importância de priorizar, sempre e invariavelmente, o bem-estar das pessoas acima de considerações meramente financeiras. ________ 1 FILHO, João Trindade Cavalcante. As súmulas vinculantes ainda respiram (por aparelhos). In: Portal Consultor Jurídico, de 01 de outubro de 2024. 2 SANTOS, Bruno Henrique Silva. Temas 6 e 1.234 do STF, Conitec e Poder Judiciário - A dança do quadrado. In: Migalhas, de 08 de outubro de 2024. Disponível aqui. 3 JUDICIALIZAÇÃO DA SAÚDE NO BRASIL: PERFIL DAS DEMANDAS, CAUSAS E PROPOSTAS DE SOLUÇÃO. Instituto De Ensino E Pesquisa - INSPER. Disponível aqui.  Acesso em 14 de outubro de 2024. 4 Ferraz OLM. Health as a human right: the politics and judicialisation of health in Brazil. New York: Cambridge University Press; 2020. 5 AGÊNCIA BRASIL. SUS tem mais de R$ 2,9 bilhões a receber das operadoras de planos de saúde. 2018. Disponível aqui. Acesso em: acesso em 14 de outubro de 2024. 6 COSTA, Fabricio Veiga; MOTTA, Ivan Dias da; ARAÚJO, Dalvaney Aparecida de. Judicialização da saúde: a dignidade da pessoa humana e a atuação do STFno caso dos medicamentos de alto custo. Rev. Bras. Polít. Públicas, Brasília, v. 7, 3, 2017 p. 844-874 7 SEBASTIANI, Rafael Teixeira, & OLIVEIRA, Rogério Nogueira de (2024). O fenômeno da judicialização da saúde no Brasil: análise pautada nos dados do CNJ existentes entre 2008 e 2023. CONTRIBUCIONES A LAS CIENCIAS SOCIALES, 17(5), e6707. https://doi.org/10.55905/revconv.17n.5-064 8 LIMA, Jordão Horácio da Silva Lima. Quanto custa uma vida? Reflexões quanto à adoção de limiares de custo-efetividade pelo SUS. In: Migalhas, 13 de junho de 2022. Disponível aqui. Acesso em: 11 out 2024. ________ 1 A concessão dos medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS exige a presença cumulativa dos seguintes requisitos: i) Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS; ii) incapacidade financeira de arcar com o custo do medicamento prescrito; iii) existência de registro do medicamento na ANVISA, observados os usos autorizados pela agência.
Imagine que um paciente de baixa renda descobre que os tratamentos disponíveis na rede pública de saúde não são capazes de tratar sua doença. O médico que o assiste prescreve outro, afirmando que existem estudos atestando que existe uma alternativa de cura. A questão que se coloca é a seguinte: o paciente pode processar o Estado para o custeio do medicamento fora dos limites estabelecidos pelas políticas públicas? O STF vem enfrentando a questão da judicialização de medicamentos desde a promulgação da Constituição. Recentemente, em setembro de 2024, publicou as teses dos temas 1.2341 e 62, disciplinando a maneira pela qual é possível buscar medicamentos fora das políticas. A análise desses temas é o objeto deste breve artigo. Na ocasião, o STF firmou claro posicionamento ao determinar que o Judiciário deve adotar uma postura de deferência às decisões tomadas pelo gestor da saúde e de contenção na intervenção sobre a execução das políticas públicas da área. Esse não é um posicionamento recente. De forma mais ampla, o STF já havia, no julgamento do agravo regimental em suspensão de tutela antecipada 175, em 20103, buscado privilegiar, como regra, o que foi planejado pela autoridade administrativa, permitindo a entrega de medicamentos fora da política pública apenas em casos excepcionais. A relevância dos novos temas está no aprofundamento dessas diretrizes, com o desenvolvimento de critérios bastante complexos para autorizar a dispensação de medicamentos não padronizados. Não farei uma análise completa dos temas. O objetivo é compreender os critérios capazes de solucionar a situação descrita no início. Algumas qualificações devem ser realizadas à hipótese formulada: o paciente possui uma patologia e, por motivos individuais, não reage ou não pode utilizar o medicamento padronizado disponível no SUS; ele recebe prescrição médica de medicamento de alto custo que não está incluído nas políticas públicas, embora tenha registro na Anvisa; o medicamento jamais teve a incorporação ao SUS analisada pela Conitec4; e, finalmente, o paciente não possui capacidade econômica para adquiri-lo com recursos próprios. Eis a pergunta: O que o paciente deve demonstrar, a partir dos recentes julgamentos do STF, para receber o medicamento do Estado? Medicina baseada em evidências e a opinião do médico assistente A regra geral estabelecida pelo STF é a de que, independentemente do custo, a ausência de inclusão de medicamento nas listas de dispensação do SUS impede o fornecimento por decisão judicial (tema 6, tese 1). Excepcionalmente, presentes diversas condições, a parte pode postular medicamentos não disponibilizados (tema 6, tese 2). De forma simplificada, dentre outros requisitos, pode-se afirmar que o paciente deve demonstrar que: (1) o medicamento é imprescindível para tratar sua saúde; (2) ele não pode ser substituído por outro padronizado; e (3) existem evidências científicas de que é efetivo e seguro5. Analisar esses requisitos não é algo que se possa fazer dentro do domínio teórico do direito, mas dentro do domínio da saúde. Não vamos solucionar a controvérsia citando princípios jurídicos ou o texto da CF/88, mas buscando evidências científicas de cada um desses predicados. O STF expressamente determinou que a demonstração dessas circunstâncias deve ser feita com base em critérios de medicina baseada em evidências (MBE), sendo vedada a tomada de decisão fundamentada unicamente na opinião do médico da parte (tema 6, tese 3, 'a' e 'b'). Para compreender o que isso significa, precisamos analisar, ainda que de forma superficial, as características centrais do movimento da MBE e, como consequência, a posição da opinião do médico dentro da hierarquia das evidências científicas. O movimento da MBE teve início nos anos 1990, buscando discutir, a partir de observações clínicas reais, quais são as evidências disponíveis para determinar que um tratamento é eficaz. A premissa básica do movimento é a ideia de que existe uma conexão íntima entre evidência de alta qualidade e verdade, ou seja, só podemos acreditar que um tratamento é efetivo se existirem pesquisas confiáveis que sustentem essa conclusão6. Em outras palavras, aquilo em que podemos acreditar depende da confiabilidade da evidência disponível, sendo certo que o grau de confiança nessa evidência é determinado pelos processos de produção do conhecimento. A criação de padrões sobre o que conta como evidência traz vantagens, mas também gera um problema. As principais vantagens são a garantia de que o conhecimento será construído por métodos que asseguram resultados confiáveis e, no tratamento dos pacientes, a possibilidade de criar protocolos de atendimento baseados em regras de probabilidade. No entanto, o problema surge justamente nessa última vantagem: nem todas as pessoas reagem aos tratamentos de acordo com a média esperada para a população7. Os modelos mais populares de hierarquia dividem as evidências, da menos para a mais confiável, na seguinte ordem: opinião de especialista, estudos de caso, estudos observacionais, ensaios clínicos randomizados, revisões sistemáticas e meta-análise. Os pormenores dessas evidências aqui não são pertinentes. Para o argumento, basta destacar que o STF expressamente afirmou que a parte tem o ônus de demonstrar a necessidade do medicamento não incorporado a partir de "evidências científicas de alto nível, ou seja, unicamente ensaios clínicos randomizados, revisão sistemática ou meta-análise" (tema 1.234, tese 4.4). Nesse contexto, qualquer documento emitido pelo médico equivale à opinião de um especialista e, portanto, recebe o menor grau de confiabilidade dentro da hierarquia. NATJUS - Núcleo de Apoio Técnico do Poder Judiciário Se a opinião do médico não é suficiente, qual é a forma exigida para comprovação de que o medicamento não disponibilizado é efetivo e necessário para o tratamento de saúde? Segundo o STF, o magistrado tem o dever de submeter o processo à prévia análise do NATJUS - Núcleo de Apoio Técnico do Poder Judiciário, sob pena de nulidade da decisão proferida por descumprimento de precedente vinculante. Se não existir NATJUS na respectiva jurisdição, ele deve consultar entidades ou pessoas com expertise técnica na área (tema 6, tese 2, "b"). O NATJUS, com base nos documentos juntados aos autos - inclusive laudo médico descrevendo a patologia, os tratamentos já realizados e a impossibilidade de substituição da medicação por outra padronizada -, fará a análise técnica do pedido formulado, emitindo parecer. A decisão judicial será proferida levando em consideração esse documento. Não é possível dispensar a participação do NATJUS, por exemplo, trazendo aos autos uma publicação de revisão sistemática em revista científica apoiando a prescrição. A publicação não é autocertificadora da qualidade do estudo, ou seja, a revisão sistemática deve ser analisada por seus próprios méritos metodológicos e não pelo simples fato de ter sido publicada. A ressalva é importante, pois estudo recente apontou a existência de 3.035 revisões sistemáticas publicadas na plataforma PubMed realizadas por um único autor, o que indica que elas devem ter sua metodologia analisada com precaução8. Segundo o mesmo estudo, a complexidade que envolve a realização de revisões sistemáticas não recomenda que elas sejam realizadas por apenas uma pessoa, mas por uma equipe, considerando as diferentes competências envolvidas (expertise clínica, metodológica e estatística)9. Na hipótese de não existir NATJUS, o juiz deve ouvir especialistas. O STF emprega a expressão entes ou pessoas com "expertise técnica na área", o que torna legítimo perguntar: qual é a área na qual a entidade ou o profissional devem ter expertise? Imagine que o paciente no nosso exemplo hipotético sofra de uma condição cardíaca. A área de expertise deve ser a cardiologia, a avaliação da metodologia em evidências científicas ou ambas? Um cardiologista sem formação na metodologia do conhecimento científico, ou seja, alguém que não é capaz de distinguir, por exemplo, entre revisões sistemáticas de boa e de má qualidade, certamente não será capaz de cumprir aquilo que foi determinado pelo STF. O profissional adequado, portanto, no mínimo deve ter boa formação em MBE e, se possível, formação em cardiologia. Em um plano ideal, obviamente, ambas as formações são recomendáveis, mas não é possível dispensar a formação metodológica, sob pena de introduzir no processo uma prova baseada, na prática, em uma opinião do especialista. Em outras palavras, embora os médicos sejam especialistas em suas áreas de atuação, nem sempre estão capacitados para realizar análises metodológicas. As habilidades necessárias para esse tipo de estudo não faziam parte dos currículos acadêmicos tradicionais e, mesmo atualmente, estão presentes em poucos programas universitários. Em suma, o pedido para entrega de medicamento não disponibilizado no SUS depende da comprovação, a partir de evidências científicas de alto nível devidamente constatadas por alguém com capacidade de realizar esse tipo de análise, de que o medicamento é imprescindível para o tratamento da doença, não pode ser substituído por outro padronizado e é efetivo e seguro. Se todos os pressupostos indicados no tema 6 forem comprovados nos autos, o STF permite a procedência do pedido e determina que o magistrado oficie ao Ministério da Saúde para que avalie a incorporação desse medicamento aos programas de atenção farmacológica. ________ 1 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 1.366.243, tema 1.234 de repercussão geral. Rel.: Min. Gilmar Mendes. Tribunal Pleno, Dje. 19/09/2024. 2 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 566.471, tema 06 de repercussão geral, Rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac Min. Gilmar Mendes e Min. Roberto Barroso. Tribunal Pleno, julgado em 21 set. 2024. 3 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STA 175 AgR. Rel. Min. Gilmar Mendes. Tribunal Pleno, Dje, 30/04/2010. 4 Note que, dentro dessa ideia geral de deferência administrativa, se a Conitec emitir parecer contrário à incorporação do medicamento ao SUS, não poderá o Judiciário determinar a entrega, exceto se ficar comprovada alguma ilegalidade no processo administrativo, vedada a incursão no mérito do ato administrativo (tema 6, tese 3, alínea 'a'). 5 Tema 6, tese 2, alíneas 'c', 'd' e 'e'. Os demais requisitos são os seguintes: registro na Anvisa; negativa administrativa do fornecimento do medicamento; ilegalidade do ato de não incorporação do medicamento pela Conitec, ausência de pedido de incorporação ou da mora na sua apreciação; e incapacidade financeira de custeio.  6 DJULBEGOVIC, Benjamin; GUYATT, Gordon H.; ASHCROFT, Richard E. Epistemologic Inquiries in Evidence-Based Medicine. Cancer Control, v. 16, n. 2, p. 158-168, abr. 2009. 7 DJULBEGOVIC, Benjamin; GUYATT, Gordon H. Progress in evidence-based medicine: a quarter century on. The Lancet, v. 390, p. 415-423. 8 PACHECO, Rafael Leite. et al. Many systematic reviews with a single author are indexed in PubMed. Journal of Clinical Epidemiology, v. 156, abr. 2023. p. 124-126. 9 Ibid., p. 125.
Os julgamentos dos Temas de Repercussão Geral 6 (RE 566.471) e 1.234 (RE 1.366.243) pelo STF foram dois marcos históricos na judicialização da saúde no Brasil. No tema 6, o STF estabeleceu requisitos para a concessão judicial de medicamentos de alto custo não incorporados ao SUS. Já no tema 1.234, que originariamente tratava da legitimidade passiva da União nas ações em que se buscam medicamentos não padronizados nas políticas públicas, o STF ampliou consideravelmente a questão afetada para julgamento para, mediante a instauração de amplo procedimento autocompositivo, tratar de uma série de pontos relacionados à judicialização da saúde em si. Neste momento, chamo o leitor para refletir sobre um ponto específico que foi objeto de deliberação pelo STF tanto no tema 6 como no 1.234, que é a deferência imposta aos juízes e juízas às decisões da Conitec sobre a incorporação de novos medicamentos ao SUS. Na tese do tema 6, o STF consignou o seguinte: "(...) 3. Sob pena de nulidade da decisão judicial, nos termos do art. 489, § 1º, incisos V e VI, e art. 927, inciso III, § 1º, ambos do Código de Processo Civil, o Poder Judiciário, ao apreciar pedido de concessão de medicamentos não incorporados, deverá obrigatoriamente: (a) analisar o ato administrativo comissivo ou omissivo de não incorporação pela Conitec ou da negativa de fornecimento da via administrativa, à luz das circunstâncias do caso concreto e da legislação de regência, especialmente a política pública do SUS, não sendo possível a incursão no mérito do ato administrativo." Já no tema 1.234, consta na tese firmada que: "(...) 4.1) No exercício do controle de legalidade, o Poder Judiciário não pode substituir a vontade do administrador, mas tão somente verificar se o ato administrativo específico daquele caso concreto está em conformidade com as balizas presentes na Constituição Federal, na legislação de regência e na política pública no SUS. 4.2) A análise jurisdicional do ato administrativo que indefere o fornecimento de medicamento não incorporado restringe-se ao exame da regularidade do procedimento e da legalidade do ato de não incorporação e do ato administrativo questionado, à luz do controle de legalidade e da teoria dos motivos determinantes, não sendo possível incursão no mérito administrativo, ressalvada a cognição do ato administrativo discricionário, o qual se vincula à existência, à veracidade e à legitimidade dos motivos apontados como fundamentos para a sua adoção, a sujeitar o ente público aos seus termos." Como se pode perceber, o STF adotou uma posição rígida em relação à necessidade de observância, pelo Poder Judiciário, do mérito das decisões da Conitec que recomendam a não incorporação de um medicamento ao SUS. Como regra, e ressalvando vícios procedimentais no processo de análise, não é possível uma reavaliação judicial ou a desconsideração do mérito da recomendação da Conitec, que passa a ser, então, vinculante. Concordando-se ou não com o STF, é compreensível a decisão de vincular os juízes às recomendações da Conitec. O que se tem observado em grande parte das decisões judiciais em processos de saúde é a desconsideração das análises da Conitec, que ora sequer são verificadas, ora são mencionadas, mas deixadas de lado em favor de prescrições ou relatórios médicos individuais, ou então de notas técnicas - também individuais - produzidas por Natjus - Núcleos de Apoio Técnico. Sobre isso, o relatório "Judicialização da Saúde no Brasil: perfil das demandas, causas e propostas de solução"1, realizado pelo Insper em parceria com o CNJ, informa o seguinte: "Os dados ora analisados indicam que em todos os estados e instâncias os juízes referem-se mais aos NATs do que à Conitec em suas decisões. O fato de não citarem a Conitec tanto quanto os NATs pode indicar um menor conhecimento dos magistrados sobre a política de incorporação de tecnologias, ou, também, uma confiança maior de juízes na competência dos técnicos do NAT para discutir a política de saúde. Nesse sentido, os magistrados prefeririam referir-se ao NAT do que apostar em seus próprios conhecimentos sobre o SUS e citar a Conitec. (...) Mesmo em São Paulo, estado que ainda registra os maiores índices de casos novos ajuizados todos os anos, apenas 72 das mais de 80 mil decisões analisadas fazem referência à Comissão. O Tribunal que mais faz referência à Conitec é o TRF4, com 359 ou 2,28% de suas decisões. Isso não significa que pertencer à justiça federal implica maior probabilidade de os casos fazerem referência tanto aos NATs quanto à Conitec." O estudo foi publicado em 2019. Desde então, provavelmente o índice de adesão do Poder Judiciário às recomendações da Conitec tenha aumentado, mas certamente ainda não atingiu um patamar satisfatório de deferência que se espera em favor de um órgão altamente qualificado para avaliar a incorporação de tecnologias de saúde ao SUS. A importância da adesão judicial às análises e decisões técnicas da Administração Pública na definição da política de assistência farmacêutica é inquestionável. O Poder Executivo - especialmente por meio da Conitec - é a instância com competência, legitimidade e capacidade técnica para avaliar as novas tecnologias em saúde passíveis de incorporação ao SUS, devendo as suas decisões ser respeitadas pelo Poder Judiciário, que normalmente atua em caráter pontual nas demandas de saúde, sem uma perspectiva global e necessária para o aperfeiçoamento e a sustentabilidade do SUS. Por essas razões, havendo decisão expressa do Ministério da Saúde, após a devida avaliação da Conitec, pela não incorporação de um determinado medicamento ao SUS, não cabe, via de regra, ao Poder Judiciário imiscuir-se em nova análise e desconsiderar a decisão do gestor e do órgão técnico capacitado para avaliação de tecnologias em saúde. Foi nesse sentido que o STF decidiu nos já referidos temas 6 e 1.234 de repercussão geral. Apesar de tudo isso, é preciso que sejam assegurados meios de, excepcionalmente, questionar e até mesmo revisar as recomendações da Conitec judicialmente. Ninguém, por mais qualificado que seja, é insuscetível a erros. Por isso, também a Conitec pode errar e isso não é nenhum demérito dela. Já tive a oportunidade de tecer algumas considerações críticas à atuação da Conitec, por exemplo, nas avaliações de incorporação do nusinersena para o tratamento da AME2. Isso pelo fato de aquela Comissão ter alterado seu entendimento de forma sucessiva e em um curto espaço de tempo, sem que as razões para a mudança tivessem ficado suficientemente claras. Pode ser citada em acréscimo, também, a recomendação da Conitec pela não incorporação ao SUS do metilfenidato e da lisdexanfetamina para o tratamento de TDAH em crianças (Relatório 601). A conclusão, que foi fundamentada na ausência de evidências científicas consistentes acerca da efetividade do tratamento, é contrária à de várias e reputadas agências estrangeiras de avaliação de tecnologias em saúde, tais como o Nice (Inglaterra), o CADTH (Canadá), o SMS (Escócia) e o PBAC (Austrália). Isso constou no próprio relatório da Conitec. Além disso, o PCDT do TDAH (Portaria Conjunta SAES/SCTIE 14, de 29 de julho de 2022) não prevê o uso de nenhum medicamento para o tratamento da doença nas crianças. Por outro lado, é fato notório que o metilfenidato é largamente utilizado na prática médica. Trata-se, então, de uma situação em que a recomendação da Conitec poderia ao menos ser questionada judicialmente, ainda que fosse ao final mantida. Certamente os eventuais equívocos da Conitec na avaliação das evidências científicas e da relação de custo x efetividade das tecnologias que se propõem a ser incorporadas ao SUS serão muito menores do que aqueles que podem ser cometidos pelo Poder Judiciário, que não tem expertise nem atribuição originária para isso. Os erros assumidos com a deferência às decisões da Conitec, portanto, serão seguramente menores do que aqueles perpetrados com uma reavaliação judicial indiscriminada das recomendações da comissão. A deferência às decisões da Conitec, então, é mais custo-efetiva (apropriando-se da terminologia das avaliações de tecnologias em saúde) do que um poder de reavaliação amplo do Judiciário, mesmo considerando os possíveis equívocos da Conitec. Assumir que algumas avaliações podem estar equivocadas é um remédio amargo, mas melhor do que a alternativa de permitir ampla investigação judicial do mérito das aludidas recomendações. Os compositores Serafim Borges e Sharon Acioly Arcoverde sabiamente disseram, em uma de suas canções, o seguinte: Eu disse ado-a-ado Cada um no seu quadrado Ado-a-ado! Cada um no seu quadrado De fato, não cabe ao Poder Judiciário dançar no quadrado que é da Conitec. Mesmo diante de tudo isso, não se pode fechar completamente as portas para o questionamento judicial das recomendações da Conitec em relação àqueles poucos - mas existentes - casos em que ela pode eventualmente falhar, até porque o direito de acesso à Justiça é uma garantia constitucional. Ninguém está imune a uma intervenção do Poder Judiciário quando pratica um ato irregular. O que é preciso é cautela na admissão dessa possibilidade na hipótese de interferência em uma política pública para perscrutar um ato de acentuada complexidade técnica ou de alta discricionariedade, como é uma avaliação da Conitec. Os questionamentos devem ser feitos, no entanto, em ações coletivas ajuizadas especificamente com esse propósito. As ações podem ser propostas tanto pelo Ministério Público como pela Defensoria Pública ou por entidades ou associações que representam os pacientes. Isso confere legitimidade à atuação judicial em prol de toda a política pública existente, e não apenas do tratamento de determinadas pessoas nas ações individuais. As ações coletivas, além de se voltarem para a política pública em si, permitem uma ampla e profunda instrução, com a participação de diversos atores, inclusive a título colaborativo (amicus curiae), e produzem efeitos em todo o território nacional. Nada disso ocorre nas ações individuais propostas por cada paciente. Com as discussões sendo feitas em demandas coletivas, permite-se, de forma criteriosa, qualificada e menos intrusiva, o controle das avaliações da Conitec que possam eventualmente estar equivocadas, sem dela retirar a prerrogativa originária de avaliar novas tecnologias a serem incorporadas ao SUS. Essa possibilidade não significa afronta ao que foi decidido pelo STF nos temas 6 e 1.234 de repercussão geral pelo simples fato de que o questionamento de uma avaliação da Conitec não seria feito em uma ação individual que busca o fornecimento de medicamento. Essa situação (ação individual em que se pretende o recebimento de um tratamento do SUS) é que foi objeto de análise pelo Supremo Tribunal Federal nos referidos julgados.  O que se propõe aqui é eventual questionamento de uma recomendação da Conitec em uma ação coletiva específica e que teria como objeto a política pública em si. Também nas ações coletivas - é bom frisar - a deferência do Poder Judiciário às recomendações da Conitec deve ser a regra, mas assegurada a possibilidade de, mediante profunda instrução probatória, auxílio de especialistas e instituições capacitadas e colaboração do próprio Poder Executivo, eventualmente ser demonstrada uma falha na avaliação de tecnologia em saúde. Desta maneira, assegura-se o estrito cumprimento das deliberações do STF, preserva-se a competência da Conitec como regra geral, cuida-se da sustentabilidade das políticas públicas de saúde, mas tudo isso sem afastar a possibilidade de um excepcional e criterioso controle judicial de atos da Conitec que possam não ter seguido as melhores evidências científicas ou econômicas, a serem satisfatoriamente demonstradas. Enfim, são muito bem-vindas as decisões do STF, que impõem a necessária deferência judicial às avaliações da Conitec, mas sem impedir eventual correção por meio de ações específicas direcionadas pontualmente contra recomendações que não estejam seguindo as melhores evidências científicas ou econômicas na avaliação da incorporação de novos tratamentos ao SUS, até porque, voltando à Dança do Quadrado, no quadrado do Poder Judiciário também está a possibilidade de corrigir eventuais irregularidades praticadas inclusive no exercício das competências discricionárias ou técnicas do Poder Executivo. ----- 1 Disponível aqui  2 Disponível aqui
segunda-feira, 30 de setembro de 2024

O pacto da trindade: Medicina, direito e seguros

Aspectos premissológicos da lógica filosófica. Na matemática, bem como na numerologia, o número 3 é considerado perfeito. Segundo Pitágoras: "O princípio de tudo é o número."1 Este número, de tão fundamental, está presente em muitos aspectos essenciais do universo e da vida humana. Vejamos alguns exemplos: No estado da matéria: Sólido - Gasoso - Líquido; No Homem: Corpo - Mente - Espírito; Na santíssima trindade: Pai - Filho - Espírito Santo; Na Teoria da separação dos poderes de montesquieu: Legislativo - Executivo - Judiciário; entre outros. Neste conceito, a existência de uma tríade representa um ideal de excelência. A medicina e o Direito, enquanto campos de estudo e prática, têm sido pilares da civilização por séculos. A medicina, como ciência, e o Direito, como sistema de codificação, têm mais de três séculos de evolução. Os seguros, enquanto contratos e apólices, surgiram em Gênova, na Itália, no ano de 1347.2 O que esses três campos têm em comum, além de sua longa trajetória histórica? Um autor desconhecido relatou de forma perspicaz: "0 ser humano sempre esteve preocupado com a estabilidade de sua existência."3 A busca por melhores condições de vida, a necessidade de proteção contra perigos, as incertezas sobre o futuro, a fragilidade e a necessidade de restaurar a saúde têm sido constantes na experiência humana. Viver envolve riscos. Como afirmou Sir William Osler, "a Medicina é a ciência das incertezas e a arte da probabilidade."4 Já o Direito é descrito por Wilson Campos de Souza Batalha como um conjunto de normas que regula a vida externa e as relações humanas.5 E o seguro, essencialmente, é um mecanismo para transferir o risco de uma pessoa para outra. Embora tenham evoluído ao longo dos séculos, os riscos permanecem uma constante na vida humana. Da medicina ao Direito - Um dueto entorno da judicialização da relação médico-paciente. Malgrado a medicina e o Direito não tenham se transformado em ciências, juntas, foram frutos de um mesmo tempo, em que se primava da razão e valorava-se o saber, por meio da chegada do Renascimento e do Iluminismo. O processo de como a Medicina torna-se ciência, bem destacado por Camila Vasconcelos, teve como marco a publicação da obra "Uma Introdução ao Estudo da Medicina Experimental", em 1865, pelo médico francês Claude Bernard.6 De outro lado, em 1794, surge o código da prússia, considerado por muitos o primeiro código moderno, influenciado pelos pensamentos iluministas e das construções do jusracionalistas. Desde então, ambas as ciências andavam desapartadas. Cada qual por si! Eis que, em oposto a todo o processo iluminista e renascentista que tantos bons frutos deram para a humanidade, pairou-se o tempo nefasto do autoritarismo, extremismo e as atrocidades ocorridas na Segunda Grande Guerra Mundial. É sobre os escombros, descobertas dos campos de extermínios humanos e de milhões de corpos das batalhas travadas, inclusive com o uso de arma de destruição em massa, que a medicina e o Direito se encontraram! A Segunda Guerra nos mostrou que não existe o limite para o mal, ainda que sobre um falso pretexto da prática do bem. Emerge no pós-guerra, notadamente no julgamento de Nuremberg, em 1945-1947, a necessidade de se codificar os limites da medicina, questionando a ciência, em suas práticas e objetivos, até então impensável. Porquanto, surge aí um grande marco para a "bioética"! Vejamos o que diz a primeira parte do Código de Nuremberg de 1947: "1. O consentimento voluntário do ser humano é absolutamente essencial."7 Antes de ser ciência, a medicina era ética, arte! Para tanto, basta citar o juramento do pai da Medicina, o grego Hipócrates: "Antes de tudo, não causar o dano." Se por um lado a bioética trouxe um valioso arcabouço de direitos dos pacientes e não-pacientes, por outro, inegável e legitimadamente impôs aos médicos maiores deveres. A não observância destes deveres médicos, não é mera violação aos direitos dos pacientes, em detrimento da ciência médica ou de seu avanço. Mas desrespeito ao propósito maior da própria Medicina, enquanto preservação da saúde humana: "Saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença". OMS em 1948.8 A judicialização da Medicina emerge no contexto de uma proteção ampliada para os pacientes mais vulneráveis na relação médico-paciente. Eclodido nos EUA, esse fenômeno está se tornando cada vez mais presente no Brasil. Fatores específicos do país, como o aumento do número de cursos de Medicina, a ampliação da força de trabalho médica e as mudanças na estrutura de trabalho dos profissionais de saúde, estão contribuindo para a elevação dessas ações judiciais. Segundo o infográfico de 2024, "Panoramas da Judicialização da Medicina no Brasil", elaborado por Renato Assis e baseado em dados do CFM e do CNJ de 2023, o cenário atual revela um aumento na judicialização.9 Independentemente das causas desse crescimento, é evidente que os médicos estão enfrentando um número crescente de questionamentos sobre sua conduta ética e os possíveis danos causados aos pacientes. Saímos de um modelo paternalista e tradicional da medicina para um modelo de empoderamento do paciente e humanístico da medicina atual. Já nos encontramos na medicina dos 4Ps: Preditiva; Preventiva; Personalizada e participativa/proativa.10 É inegável que, atualmente, os médicos enfrentam uma série de deveres e obrigações que antes não existiam. Isso implica que eles estão sujeitos a riscos que não enfrentavam anteriormente. Atualmente, não é mais aceitável que um médico não dialogue com o paciente sobre os riscos e benefícios da conduta médica proposta. O processo de obtenção do consentimento informado implica na aceitação de riscos por ambas as partes: o paciente, que, após ser adequadamente informado, exerce sua autonomia ao aceitar ou recusar o tratamento, e o médico, que deve esclarecer de maneira clara e completa os objetivos esperados, benefícios, riscos, efeitos colaterais, complicações, duração do tratamento e cuidados necessários. O CFM recomenda que o médico forneça essas informações de forma suficiente para justificar a escolha da terapia (Recomendação CFM 01/16).11 Além disso, é fundamental que o médico respeite a decisão do paciente, mesmo após fornecer todas as informações necessárias. Em resumo, a judicialização da Medicina reflete a crescente demanda por maior transparência e responsabilidade na prática médica. Para enfrentar esse cenário, é crucial que médicos e pacientes mantenham um diálogo aberto e esclarecedor, assegurando que as decisões sobre o tratamento sejam tomadas com um entendimento claro e mútuo das opções, riscos e benefícios envolvidos. Esse approach não só protege os direitos dos pacientes, mas também contribui para a redução de litígios e promove uma prática médica mais ética e responsável. Hat-trick da medicina! Barba, cabelo e bigode para a sociedade de riscos. Um pódio que todos nós merecemos.    Em 1986, o sociólogo alemão Ulrich Beck publicou o livro "Sociedade de Risco", logo após o desastre de Chernobyl. Neste trabalho, Beck explora a ideia de uma cultura centrada na gestão de riscos, que exige conhecimento para prevenir perigos e proteger-se em situações de emergência. Atualmente, vivemos em uma sociedade que demonstra crescente preocupação com o futuro e com a segurança, o que intensifica a percepção de riscos gerados pela própria sociedade.12 Assim, o conceito de "risco" tornou-se parte do nosso cotidiano. Mas como podemos controlar esses riscos? A resposta está na gestão de riscos, ou Risk Management. Este processo não é exclusivo de um grupo seleto nem significa a limitação das atividades a que se aplica. O estudo histórico da administração de riscos serve como base para aprimorar métodos que identificam os riscos em suas diversas formas. Na indústria da aviação, por exemplo, a segurança não é baseada apenas em teorias ou previsões, mas em experiências passadas, com muitos acidentes e situações que, infelizmente, foram vivenciadas. Da mesma forma, na medicina, o gerenciamento de riscos é essencial. Médicos não podem se afastar da profissão por medo de falhar ou de ser acusados de erro médico. Assumir certos riscos é inerente a muitas atividades, incluindo a prática médica. Os riscos podem ser controlados, reduzidos, eliminados ou mitigados. A gestão de riscos é viável e frequentemente necessária. Na medicina, o avanço nos cuidados ao paciente é uma forma de gestão de riscos, assim como os controles de infecção hospitalar. A assinatura do TCLE - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido é outro exemplo de gestão de riscos, pois garante que o paciente esteja devidamente informado e que sua autonomia seja respeitada. Em um cenário de crescente judicialização e complexidade na relação médico-paciente, com potencial para danos irreparáveis, alguns países já adotam mecanismos de gestão e transferência de risco, como o seguro de responsabilidade civil profissional para médicos - RCP. Exemplos incluem os EUA, Portugal, Argentina, Alemanha e Inglaterra. Imagine um paciente que, sabendo que seu médico é um excelente profissional que adota as melhores práticas e mantém um diálogo ativo com ele, também está protegido por um seguro de responsabilidade civil profissional contratado pelo médico. Se ocorrer um erro médico grave, o seguro pode cobrir despesas com tratamentos das sequelas, além de pensão e indenização por danos morais e estéticos. Nesse cenário, o paciente é compensado pelos danos, e o médico não enfrenta prejuízos financeiros. Assim, tanto o médico quanto o paciente se beneficiam do seguro de responsabilidade civil profissional. O médico é protegido contra prejuízos financeiros, enquanto o paciente recebe a devida compensação. Além disso, a sociedade também se beneficia, pois evita que vítimas de erros médicos fiquem desamparadas. Atualmente, o médico conta com protocolos e melhores práticas médicas, além do médico, como forma de prevenção e mitigação de riscos. A integração entre medicina, Direito (especialmente o médico e bioética) e seguros é essencial. Cada um desses componentes desempenha uma função essencial: a Medicina proporciona o cuidado direto ao paciente, o Direito estabelece as normas e a Bioética orienta o comportamento ético. No exemplo da prática médica mais segura, o médico é como o paraquedista em salto, a medicina é a técnica aprendida, o direito médico é o paraquedas principal e o seguro de responsabilidade civil profissional é o paraquedas reserva. Cada um tem seu papel e responsabilidade. Ter um seguro de RCP não isenta o médico de sua responsabilidade de mitigar riscos, assim como a assinatura do TCLE não substitui o diálogo e a adoção das melhores práticas médicas no cuidado com o paciente. Abrir mão de práticas sólidas na medicina, do direito médico e do seguro de responsabilidade civil profissional é comparável a um país renunciar às medalhas de ouro, prata e bronze conquistadas nas Olimpíadas, no mesmo pódio e na mesma modalidade esportiva. Conclusão. Por fim, o número 3, que tem sido associado historicamente à perfeição e totalidade em várias áreas do saber e da vida humana, também está presente nesta tríade: Medicina, e seguro. Estas áreas, cada um com sua relevância e evolução ao longo do tempo, têm se entrelaçado em uma colaboração mútua para enfrentar os riscos, desafios e imprevistos que surgem no dia a dia. A judicialização da medicina no Brasil revela um aumento significativo da busca por transparência e responsabilidade, evidenciando a necessidade de um diálogo aberto entre médico e pacientes e mecanismos de maior proteção para os profissionais da saúde, no exercício da medicina ética e esclarecido. A integração entre medicina, Direito e seguro de responsabilidade civil profissional exemplifica a abordagem prática e multifacetada para a gestão de riscos. Cada um desses componentes desempenha uma função essencial: a medicina proporciona o cuidado direto ao paciente, o estabelece as normas e a bioética orienta o comportamento ético, enquanto o seguro oferece uma rede de proteção financeira e segurança. Juntas, essas esferas constituem um sistema resistente que busca não apenas mitigar os riscos, mas também garantir que tanto os pacientes quanto os profissionais da saúde sejam protegidos e respeitados. Assim sendo, é fundamental compreender e apreciar a interdependência entre esses campos, para promover uma sociedade mais segura, tranquila e justa. ________ 1. SABOYA, Maria Clara Lopes. Pitágoras: Todas as coisas são números. Revista da Faculdade Eça de Queirós. 2015. Disponível aqui. Acesso em 20 agos. 2024. 2. ARIAS, José Eduardo Teixeira. Teoria Geral do Seguro. O Seguro no tempo. p. 09 e 10. Rio de Janeiro. Editora Escola de Negócios e Seguros - ENS. 2021. 3. DIEHL, Leandro. Grandes nomes do raciocínio clínico 6: Sir William Osler. Raciocínio Clínico. A Ciência e arte do diagnóstico. 2021. Disponível aqui. Acesso em 19 ago. 2024. 4. NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito/ Paulo Nader. Ed,- Rio de Janeiro: Forense, 2015. 5. VASCONCELOS, Camila. Direito Médico e Bioética. História e judicialização da relação médico-paciente. p. 16. Rio de Janeiro. Editora Lumen Juris. 2020.  6. Código de Nuremberg. Centro de Bioética do CREMESP. Disponível aqui. Acesso em: 20 ago. 2024. 7. CRUZ, Marly Marques da. Concepção de saúde-doença e o cuidado em saúde. Fiocruz. Disponível aqui. Acesso em 18 ago. 2024. 8. ASSIS, Renato. Infográfico 2024. Judicialização da Saúde e da Medicina no Brasil. 2024.   9. NAGOROLI, Rafaella; SILVA, Rodrigo da Guia. Debates Contemporâneos em Direito Médico e da Saúde. Capítulo 2. Inteligência Artificial na Análise Diagnóstica: Benefícios, Riscos e Responsabilidade do Médico. Disponível aqui. Acesso em: 10 set. 2024. 10. RECOMENDAÇÃO CFM 1/2016. Conselho Federal de Medicina. 2016. Disponível aqui. Acesso em: 17 ago. 2024. 11 RECOMENDAÇÃO CFM 1/2016. Conselho Federal de Medicina. 2016. Disponível aqui. Acesso em: 17 ago. 2024. 12. BECK, Ulrich. Sociedade de Risco. Rumo a uma outra modernidade. Editora 34. Disponível aqui. Acesso em 17 ago 2024.
Uma sociedade simples de serviços médicos, quando diante de lucro, deve distribuí-lo aos sócios. Ademais, também pode haver a remuneração, por meio do pro labore, àqueles que exercem a administração da sociedade. Pode o fisco, diante disso, exigir contribuição previdenciária referente à totalidade do valor distribuído aos sócios administradores? E quanto à distribuição aos não sócios, caso não seja equitativa, pode cobrá-la por, supostamente, indicar vínculo trabalhista? Para construir tais respostas, de início, podemos entender que a contribuição social para a seguridade cobrada do empregador ou das empresas de modo geral "[...] são impostos pelos fatos geradores e bases de cálculo, mas finalísticos pela vinculação da arrecadação [...]"1. Assim, por um lado, a contribuição previdenciária patronal é, de fato, imposto finalístico, mas, por outro, é tributo não vinculado, quando pode muito bem ser compreendido a partir da clássica fórmula carvalhiana "verbo e complemento"2. Com efeito, a contribuição previdenciária patronal tem como critério material da hipótese "[...] pagar ou creditar salários e demais rendimentos do trabalho a empregado ou prestador de serviço [...]"3. Tudo, aliás, nos termos do art. 195, I, "a", daCF/88. De toda sorte, na apresentação do critério material da contribuição previdenciária patronal, não parece haver disputa quanto aos verbos "pagar" ou "creditar". O mesmo não ocorre, porém, com seu complemento, uma vez que o termo "salário" não é de fácil precisão. Nesse sentido, uma ideia simples é que o significado da palavra "salário" deveria ser buscado em outras áreas que não a tributária, mais especificamente na área trabalhista, à qual estaria o legislador ordinário atado ao instituir essa contribuição. Todavia, visando a evitar tais discussões é que adveio a EC 20, de 1998, ampliando a competência tributária4 e estabelecendo que outros rendimentos do trabalho, além do salário, podem ser tributados, incluindo, assim, os "pagamentos de autônomos e administradores". Com tal arranjo, portanto, diluíram-se as dúvidas, ao menos as mais consistentes, sobre se pagamentos a sócios em razão da administração da empresa poderiam ser eleitos como hipótese da contribuição previdenciária patronal, uma vez que pro labore significa "salário dos proprietários da empresa, provenientes de seus serviços prestados"5-6. Agora, se o pro labore está ao alcance da contribuição previdenciária patronal, pois abrangido pelo conceito de demais rendimentos do trabalho, o mesmo não pode ser dito da distribuição de lucro, uma vez que, com efeito, decorre do capital e não do trabalho: por um lado, o lucro é produto do capital; por outro, a remuneração por exercer a função de administrador é produto do trabalho. Nessa linha, quando se trata de contribuição previdenciária patronal, o que se deve ter em conta não é o fato de ser sócio ou acionista, mas sim exercer ou não sua administração7. Não precisamos discorrer, neste artigo, sobre o autônomo na contribuição previdenciária, figura na qual se compreende o profissional liberal, podendo focar-nos na sociedade simples, que não deve ser confundida com seus sócios. Com efeito, as sociedades são constituídas por contrato, sendo seu traço marcante a busca pelo lucro, e podem ser, no mais, classificadas em razão de sua atividade ou objeto, o que as faz simples ou empresárias. Por essa divisão, a sociedade empresária tem como escopo a atividade própria do empresário, por sua vez, a sociedade simples, também denominada de sociedade civil, "[...] deve ficar reservada às atividades típicas de profissões liberais ou prestadores de serviços técnicos [...]"8. Nessa linha, médicos podem tornar-se sócios e formar sociedade com fito de prestar serviço de medicina9. Agora, se o objeto contratual é a prestação de serviços médicos, ao menos dois pontos precisam ser especificados, quais sejam, quem será o administrador dessa sociedade e qual a forma de distribuição dos resultados, tudo por meio do contrato social, o qual, entre outras funções, prevê a atividade econômica e a partilha de resultados. Por um lado, o administrador da empresa deve receber pro labore, pagamento que está sujeito à contribuição previdenciária patronal, por outro, os sócios da empresa devem receber, em razão dessa condição, distribuição de lucros, a qual não se subsome, contudo, à contribuição em questão. Em linhas gerais, o lucro é distribuído de forma proporcional ao capital social, mas, frisa-se, essa é a regra e nada impede que os sócios deliberem diferentemente. De certo, temos que a distribuição de lucros não precisa ser exatamente igual ao percentual das cotas de cada sócio, estabelecido contratualmente, e pode ser feita, havendo deliberação e concordância, em patamares diversos10. Se há lucro, pode ele ser distribuído, mesmo que de modo desproporcional ao contrato social, desde que haja manifestação prévia dos sócios e até o limite de sua apuração, mas não há de se falar que tal distribuição configuraria uma espécie de pagamento por demais rendimentos do trabalho, uma vez que continua a ser remuneração do capital. Para tanto, receber lucro apurado em percentual diferente das cotas societárias - quer a maior, quer a menor - é situação permitida, chegando mesmo a ser comezinha e, portanto, não pode embasar qualquer exigência de contribuição previdenciária patronal. Ademais, não há que se confundir a distribuição de lucros, que pode ser desproporcional à participação societária, com a remuneração para a administração da sociedade, uma vez que ambas têm, conceitualmente, naturezas distintas. Em um caso, o pagamento decorre do capital, em outro, do trabalho, sendo causa de invalidade de uma autuação não considerar essa distinção. Entretanto, cabe à empresa, ao realizar os lançamentos contábeis, demarcar isso para que não haja dúvidas sobre o que foi pago e a que título, o que se configura dever de cautela. Sem dúvidas, os profissionais liberais, médicos no caso deste artigo, se presente affectio societatis, podem compor uma sociedade simples, não existindo qualquer impedimento a que o administrador dessa sociedade receba pro labore, muito menos que, havendo lucros, sejam eles distribuídos de forma desproporcional. Tais fatos estão plenamente de acordo com o Direito, sendo permitidos, portanto, e não podem ser tomados mesmo como indícios de irregulares, uma vez que chegam a ser ordinários. Outra coisa seria a simulação11, que mereceria, evidentemente, reprovação. Assim, não se olvida que sempre há a possibilidade, principalmente em uma sociedade simples, de que haja, em vez de sócios, deveras, uma relação de subordinação entre os administradores e os outros sócios, que só ostentariam tal posição em aparência. Ou seja, não se pode descartar a priori a simulação. Contudo, haja vista a gravidade que tem tal afirmação, repercutindo, inclusive, em outras searas, como a penal, então "[...] as regras partem do pressuposto de que aquele que diz algo encontra-se (sic) preparado a provar o que diz [...]"12. Portanto, se há empresa constituída por meio de contrato social, não se pode conjecturar, simplesmente, que se trata de simulação e determinar ao sujeito passivo que prove o contrário, depois, imaginando que ele não conseguiu isso fazer adequadamente, lavrar auto de infração exigindo tributo, no caso, a contribuição previdenciária patronal, como se a distribuição de lucros fosse, de fato, outros rendimentos do trabalho. Isso porque o ônus da prova cabe à fiscalização. Na verdade, pelo vínculo que a questão tem com o princípio da legalidade e da tipicidade, chega-se mesmo a afirmar que o ônus da prova é uma verdadeira obrigação da administração no caso da exigência de tributo. Assim, em síntese, não se olvida que a questão societária é provada com o contrato social devidamente registrado e, nessa linha, não se pode, sem outras bases, simplesmente alegar que isso não seria prova suficiente. Ademais, não é o caso de fechar-se, totalmente, as portas ao uso de indícios pelo fisco, mas se deve ter em conta que algo só poderá exercer essa função se houver alguma relação entre o que se percebe e o que se alega como ilícito. Todavia, possuir em uma sociedade sócios-administradores e também sócios que não são administradores, bem como praticar uma distribuição de lucros desproporcional às cotas de cada um, não é indício de nada, uma vez que são atividades lícitas e comuns em todos os tipos de sociedade - o que inclui, por óbvio, a simples. Por fim, mesmo que se reconheça alguma inconsistência na contabilidade empresarial, isso não é causa para desconsiderá-la in totum, o que somente pode ser realizado em situações extremas, pois, com efeito, o que sempre deve imperar é a proporcionalidade e a razoabilidade. Assim, se for clara o suficiente para que se distinga, especialmente em relação aos sócios-administradores, os recursos que lhe foram transferidos em razão da distribuição de lucros e aqueles que lhe foram a título de pro labore, então não poderá a fiscalização meramente desconsiderar tal condição e exigir, sobre todo o montante, contribuição previdenciária patronal. ________ 1 Sacha Calmon Navarro Coêlho, Contribuições no direito brasileiro: seus problemas e soluções. São Paulo: Quartier Latin, 2007. p. 94. 2 Depois de apontar o "critério material" como núcleo do tributo, ensina-nos Paulo de Barros Carvalho que "[...] será formado, invariavelmente, por um verbo seguido de seu complemento". CARVALHO, Paulo de Barros. Teoria da norma tributária. 5.ed. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 126. 3 Paulo de Barros Carvalho, Tributação sobre "vendas diretas" pelo INSS, in ______, Derivação e positivação no direito tributário, v. 1. São Paulo: Noeses, 2011, p. 93-116. 4 Sobre a norma de competência tributária, leia-se: Valterlei da Costa, Teoria trilógica do tributo: um estudo normativo sobre tributação, competência e lançamento. São Paulo: Noeses, 2024. p. 238 e seguintes. 5 Sérgio de Iudícibus e José Carlos Marion, Dicionário de termos de contabilidade. Colaboração de: Elias Pereira e Valmor Slomski. São Paulo: Atlas, 2001. Verbete "pró-labore", p. 160. 6 Lei nº 8.212/90, com redação dada pela Lei nº 9.876/99: "Art. 22. A contribuição a cargo da empresa, destinada à Seguridade Social, além do disposto no art. 23, é de: [...] III - vinte por cento sobre o total das remunerações pagas ou creditadas a qualquer título, no decorrer do mês, aos segurados contribuintes individuais que lhe prestem serviços; [...]". 7 "Administrador, nas sociedades por ações, é o diretor ou membro de Conselho de Administração. Nos demais tipos de sociedade, são considerados administradores os que praticam atos de gestão da sociedade com poderes oriundos do contrato social e que são aptos a obrigar a pessoa jurídica". Edmar Andrade Filho, Imposto de renda das empresas. 10.ed. São Paulo: Atlas, 2013. p. 402. 9 Sílvio Venosa, Direito civil: contratos em espécie; v. III. 16.ed. São Paulo: Atlas, 2016. p. 644. 9 Maria Helena Diniz dá-nos como exemplo de sociedade simples: "[...] uma sociedade formada por um grupo de médicos, apoiados por enfermeiros, atendentes, nutricionistas etc., para o exercício de atividade profissional científica, tendo por objeto social a prestação do serviço de medicina [...]". Curso de direito civil brasileiro: teoria geral do direito civil, v. 1. 28.ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 293. 10 "No caso de sociedade simples ou limitada, a lei autoriza cláusula de distribuição de lucro não proporcional ao capital para qualquer atividade. Se todos os sócios forem pessoas físicas, a distribuição desproporcional ao capital, mesmo sem cláusula contratual, não há infração tributária federal". Hiromi Higuchi, Imposto de renda das empresas: interpretação e prática. 34. ed. São Paulo: IR Publicações, 2014. p. 529. 11 "Conduta consubstanciada em dar roupagem de verdade a uma situação inexiste [...]". Eduardo Jardim, Dicionário jurídico tributário: verbete "simulação". 6.ed. São Paulo: Dialética, 2008. p. 296. 12 Marcio Pestana, A prova no processo administrativo tributário: a teoria da comunicação. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. p. 114. 
A história clínica é o documento mais importante gerado na relação médico-paciente, como documento básico da informação assistencial. Em sua concepção mais ampla supõe a inclusão em um documento único de toda a informação relativa à saúde do paciente, suas alterações e evolução de toda a enfermidade ou vida do paciente. Pode-se então afirmar que documentos médicos são registros, escritos ou visuais, que contêm informações sobre a saúde de um paciente e serviços por ele utilizados. O CFM- Conselho Federal de Medicina , visando organizar e atualizar as normas sobre documentos médicos, publicou em 2 de julho de 2024, a resolução CFM n. 2.3811 que normatiza a emissão de documentos médicos, assim considerados todos aqueles emitidos por médicos. A norma conceitua os seguintes documentos (art. 4°): I- Atestado médico de afastamento: documento simplificado emitido por médico para determinados fins sobre atendimento prestado a um(a) paciente, no qual deve constar, além dos itens citados no art. 2º, a quantidade de dias concedidos de dispensa da atividade necessários para a recuperação do(a) paciente. II - Atestado de acompanhamento: documento pelo qual o médico confirma a presença de um indivíduo que acompanha paciente à consulta ou a um procedimento, e deve deixar consignada a data de comparecimento, bem como a quantidade de dias. III - Declaração de comparecimento: fornecida pelo setor administrativo de estabelecimento de saúde, assim como o atestado por médico, sem recomendação de afastamento do trabalho; pode ser um documento válido como justificativa perante o empregador, para fins de abono de falta no trabalho, desde que tenha a anuência deste. IV - Atestado de saúde: documento médico solicitado pelo(a) paciente, no qual o médico afirma a condição de saúde física e mental do(a) paciente. Trata-se de documento com múltiplas aplicações, cujo conteúdo deve observar sua respectiva finalidade. São considerados atestados de saúde: atestado de doença, atestado para licença-maternidade e casos de abortamento, atestado de aptidão física, atestado para gestantes em viagens aéreas e outros afins. V - Atestado de saúde ocupacional (ASO): documento emitido por médico e definido pela Norma Regulamentadora 7, em conformidade com o Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional, no qual se atesta a aptidão ou inaptidão do(a) trabalhador(a) para o desempenho de suas atividades laborativas, nos termos das normas vigentes expedidas pelo Ministério do Trabalho e Emprego. VI - Declaração de óbito: documento emitido por médico com valor médico-legal e sanitário, pois, por seu intermédio, são coletados dados acerca das doenças que acometem a população. Nas localidades onde existir apenas 1 médico, este será o responsável pelo fornecimento da declaração de óbito. VII - Relatório médico circunstanciado: documento exarado por médico que presta ou prestou atendimento ao(à) paciente, com data do início do acompanhamento; resumo do quadro evolutivo, remissão e/ou recidiva; terapêutica empregada e/ou indicada; diagnóstico (CID), quando expressamente autorizado pelo paciente, e prognóstico, não importando em majoração de honorários quando o paciente estiver em acompanhamento regular pelo médico por intervalo máximo de 6 meses, a partir do que poderá ser cobrado. VIII - Relatório médico especializado: solicitado por um(a) requerente que pode ser paciente assistido(a) ou não do médico, ou seu representante legal, para fins de perícia: a) O relatório médico especializado discorre sobre a enfermidade do requerente, descreve o diagnóstico, a terapêutica, a evolução clínica, o prognóstico, resultados de exames complementares, com acréscimos da discussão técnica da literatura científica e legislação quando aplicável, o que impõe estudo e pesquisa, e a conclusão sobre o fato que se quer comprovar; neste caso serão cobrados honorários pelo médico, quando em serviço privado. IX - Parecer técnico: documento expedido por médico especialista em área específica, de caráter opinativo, baseado na literatura científica, e quando na seara judicial fundamenta-se também nos autos do processo, em fatos, ou evidências, e na legislação aplicada; neste caso serão cobrados honorários pelo médico, quando em serviço privado. X - Laudo médico-pericial: documento técnico expedido por perito oficial e anexado ao processo para o qual foi designado, cujo roteiro se encontra na resolução CFM nº 2.153/2016. XI - Laudo médico: descrição e conclusão do médico sobre exame complementar realizado em um paciente, devendo constar, além dos itens dispostos no art. 2º, data da realização do exame e da emissão do laudo. XII - Solicitação de exames: documento emitido por médico para requisitar exames específicos com base na condição clínica do(a) paciente. Deve conter, além dos itens citados no art. 2º, descrição dos exames, indicação clínica e demais informações relevantes. XIII - Resumo ou sumário de alta: relatório clínico elaborado por médico quando o(a) paciente está pronto(a) para receber alta. XIV - Demais documentos médicos: documentos não listados acima, estabelecidos por instituições públicas e privadas e emitidos por médicos, que devem respeitar, em seu conteúdo, pelo menos o art. 2º e demais normativos existentes no CFM. O ato normativo afirma que os documentos médicos possuem presunção de veracidade, produzindo os efeitos legais para os quais se destinam, e devem obrigatoriamente conter a identificação do interessado (ou representante legal) em sua emissão, além das seguintes questões: identificação do médico: nome e CRM/UF; RQE - Registro de Qualificação de Especialista, quando houver; identificação do paciente: nome e número do CPF, quando houver; data de emissão; assinatura qualificada do médico, quando documento eletrônico; ou assinatura e carimbo ou número de registro no Conselho Regional de Medicina, quando manuscrito; dados de contato profissional (telefone e/ou e-mail); e VIII - endereço profissional ou residencial do médico (art. 2o.). Mais recentemente, em 6 de setembro de 2024, publicou-se a resolução CFM n. 2.382 (com vacatio de 60 dias) que dispõe sobre a emissão e o gerenciamento de atestados médicos físicos e digitais em todo território nacional por meio da plataforma 'Atesta CFM'2. Segundo a entidade, a plataforma visa modernizar e aumentar a segurança na emissão e verificação de atestados médicos, apresentando-se também como uma importante ferramenta para proteger médicos, empresas e cidadãos contra a emissão de atestados falsos e garantir a integridade do processo, tanto em ambientes on-line quanto offline. O atestado médico é parte integrante da consulta, o seu fornecimento constitui direito do paciente e, segundo a lei 12.842/13 (lei do Ato Médico)3, a "atestação médica de condições de saúde, doenças e possíveis sequelas" constitui ato privativo do médico4. O ato de atestar está regulamentado pela resolução CFM n. 1.851/085, que determina que na elaboração do atestado médico deve-se: especificar o tempo concedido de dispensa à atividade necessário para a recuperação do paciente; estabelecer o diagnóstico, indicando-o quando expressamente autorizado pelo paciente6; utilizar letra legível; identificar-se como emissor, utilizando assinatura e carimbo ou número de registro no Conselho Regional de Medicina7. Além disso, o Código de Ética Médica (resolução n. 2.217/19) traz as seguintes vedações no âmbito da emissão de atestado: fornecer atestado sem ter praticado o ato profissional que o justificou ou que não corresponda à verdade; utilizar o ato de atestar como forma de angariar clientela; deixar de atestar atos executados no exercício profissional; utilizar formulários de instituições públicas para atestar atos praticados em clínicas privadas (art. 110 a 113). Diante das recorrentes notícias de websites destinados à comercialização de atestados fora das hipóteses legalmente previstas, o Conselho Federal de Medicina, por meio da resolução CFM n. 2.382/24, determinou que no prazo de 180 dias contados da publicação, a utilização da plataforma Atesta CFM (ou sistemas integrados8) será obrigatória para emissão e gerenciamento de atestados médicos, inclusive de saúde ocupacional, em todo o território nacional. A ferramenta funcionará como um canal de validação, permitindo a verificação da autenticidade de atestados médicos, e notificando o usuário em caso de documento inválido ou fraudulento. Um dos diferenciais da Atesta CFM seria a automação no envio dos atestados emitidos, diretamente ao empregador, logo após sua confecção. Este processo traria, na visão do CFM, não apenas agilidade, mas também um nível elevado de segurança (embora o mecanismo de envio não esteja esclarecido) tanto para o médico quanto para o paciente. O serviço também oferecerá emissão, validação e chancela gratuita de atestados médicos (de qualquer natureza) emitidos em todo o país. Segundo a norma, os atestados emitidos ou verificados por meio da plataforma serão considerados válidos em todo território nacional e deverão conter: identificação do médico: nome e CRM/UF; tempo concedido de dispensa à atividade necessário para a recuperação do paciente; Registro de Qualificação de Especialista (RQE), quando houver; identificação do paciente: nome e número do CPF, quando houver; informação da CID (Classificação Internacional de Doenças) e sua apresentação no atestado mediante autorização do paciente ou de seu representante legal; data de emissão; assinatura qualificada do médico, quando documento eletrônico, ou assinatura e carimbo ou número de registro no Conselho Regional de Medicina, quando manuscrito; dados de contatos profissionais (telefone e/ou e-mail); endereço profissional ou residencial do médico (art. 7°). O ato prevê que os médicos poderão emitir atestados de duas formas: a) exclusivamente digital; ou b) em papel que contará com elementos de segurança gerados pela plataforma Atesta CFM. Em ambos os casos os documentos deverão atender às premissas de rastreabilidade, autenticidade e validação e serão fornecidos gratuitamente ao paciente ou seu representante legal. Para o uso de atestados em meio físico, os médicos deverão solicitar a emissão dos blocos diretamente na plataforma Atesta CFM. Cada página contará com um QRCode vinculado ao CRM/UF do médico. Após a emissão do atestado físico, o médico deve registrar na plataforma as informações obrigatórias a fim de garantir a integridade do documento. O profissional é considerado o responsável pela guarda e uso correto das folhas geradas. O extravio, perda ou comprometimento da integridade deve ser noticiado ao CFM por meio da plataforma. Em resumo, para a entidade, a plataforma Atesta CFM reúne os seguintes benefícios: Para médicos - a atesta CFM representaria um marco no combate à falsificação de atestados, proporcionando maior segurança jurídica. A ferramenta possibilitará a emissão de atestados de qualquer lugar, com controle sobre atestados físicos e digitais. Além disso, simplificará a emissão de atestados em áreas como saúde ocupacional e afastamento por acompanhamento médico, o que incluirá homologações vinculadas à medicina do trabalho. Para pacientes - os pacientes terão acesso a um portal exclusivo no qual poderão consultar o histórico de seus atestados. A digitalização do processo elimina a necessidade de apresentar o atestado físico ao empregador, facilitando a comunicação entre as partes envolvidas. A nova ferramenta também contribuiria para o aumento da confiança entre empregado e empregador, garantindo o sigilo sobre as condições de saúde do paciente. Para as empresas - a plataforma promete reduzir significativamente o absenteísmo ilegal, além de facilitar a gestão das ausências médicas com informações autenticadas pelo CFM. Isso impactaria diretamente na produtividade e nos custos associados a afastamentos fraudulentos, permitindo decisões mais estratégicas e baseadas em dados. leitura crítica: a digitalização e seus desafios Embora a Atesta CFM represente um avanço tecnológico, uma questão fundamental inicial a ser encarada é a seguinte: todos os médicos e pacientes estarão prontos para essa digitalização de documentos médicos como o atestado?  Muitos profissionais de saúde, em especial aqueles em regiões mais remotas ou em consultórios menores, podem enfrentar desafios com a transição para o novo sistema digital (vide, por exemplo, boa parte dos atendimentos realizados pelo sistema único de saúde). Além disso, a digitalização do processo não leva em consideração possíveis barreiras tecnológicas enfrentadas por pacientes idosos, de baixa renda, com deficiências ou com dificuldades no uso de plataforma s digitais. A obrigatoriedade do uso da plataforma , embora aparentemente vantajosa, pode criar obstáculos diversos, que deverão ser desde já enfrentados pela própria entidade. O CFM precisará garantir suporte técnico e educacional tanto para médicos quanto para pacientes, a fim de evitar exclusão digital e agravamento de iniquidades. Para além da capacitação para a utilização do novo ambiente, é também necessário assegurar a disponibilização de tecnologia assistiva9, definida como "produtos, equipamentos, dispositivos, recursos, metodologias, estratégias, práticas e serviços que objetivem promover a funcionalidade, relacionada à atividade e à participação da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida, visando à sua autonomia, independência, qualidade de vida e inclusão social" (lei 13.146/15). A discussão, portanto, passa a ser não apenas sobre o acesso à tecnologia em si e o treinamento para seu uso, mas também o dever de assegurar o pleno exercício da autonomia do paciente nestes novos ambientes informacionais de prestação de serviços de saúde. Um outro ponto crítico em debate é a questão da privacidade e do sigilo médico. A automação do envio de atestados diretamente ao empregador, embora eficiente, pode gerar preocupação quanto à exposição de informações sensíveis, até porque não está claro a que conteúdo o empregador terá acesso. Apesar das garantias de sigilo e controle da informação, quem supervisionará esse processo? Existe o risco de vazamentos de informações sobre o estado de saúde do paciente, especialmente em casos que envolvem condições médicas delicadas e estigmatizadas. E, apesar da natureza dos dados armazenados e dos riscos envolvidos, nada se falou sobre o sistema de segurança de informação. A garantia de sigilo é central no relacionamento médico-paciente. Uma plataforma que vincula diretamente as informações médicas a outros médicos ou ao empregador deve ser extremamente cautelosa, pois qualquer brecha na segurança pode causar danos irreparáveis ao paciente. Debate sobre o impacto nas empresas: redução do absenteísmo ou pressão sobre empregados? A nova plataforma , como anteriormente mencionado, também tem como um de seus pilares a redução do absenteísmo ilegal. Ao permitir que empresas tenham acesso imediato aos atestados validados pelo CFM, seria proporcionada uma gestão mais eficiente dos afastamentos. Todavia, a questão do controle de atestados médicos, embora positiva para a gestão empresarial, também pode ser vista sob uma ótica de vigilância excessiva, além de eventualmente caracterizar violação de privacidade do empregado, já que não está claro se a empresa terá acesso a todo o histórico de atestados do empregado ou apenas àqueles diretamente ligados à empresa consulente. A confiança entre empregador e empregado pode ser prejudicada se o sistema for utilizado para contestar atestados legítimos ou aumentar a pressão sobre funcionários que já estão em uma situação de vulnerabilidade, como afastamentos por problemas de saúde mental, por exemplo. Atesta CFM e LGPD Embora a entidade assegure que a plataforma Atesta CFM está em conformidade com as normas estabelecidas na lei Geral de Proteção de Dados (lei 13.709/18), os sistemas de segurança da informação adotados não foram apresentados, assim como não é precisa a descrição sobre um eventual compartilhamento de dados entre médicos diversos de um paciente ou empregadores. Também não foram esclarecidas pela resolução quais são as medidas adotadas para assegurar aos titulares dos dados (sensíveis por natureza) o exercício dos direitos enumerados no art. 18, LGPD Art. 18. O titular dos dados pessoais tem direito a obter do controlador, em relação aos dados do titular por ele tratados, a qualquer momento e mediante requisição: confirmação da existência de tratamento; acesso aos dados; correção de dados incompletos, inexatos ou desatualizados; anonimização, bloqueio ou eliminação de dados desnecessários, excessivos ou tratados em desconformidade com o disposto nesta lei; portabilidade dos dados a outro fornecedor de serviço ou produto, mediante requisição expressa, de acordo com a regulamentação da autoridade nacional, observados os segredos comercial e industrial; eliminação dos dados pessoais tratados com o consentimento do titular, exceto nas hipóteses previstas no art. 16 desta lei; informação das entidades públicas e privadas com as quais o controlador realizou uso compartilhado de dados; informação sobre a possibilidade de não fornecer consentimento e sobre as consequências da negativa; revogação do consentimento, nos termos do § 5º do art. 8º desta lei. Vale lembrar, que o tratamento de dados de saúde, qualquer que seja a causa, deverá ser sempre limitado pelo seu fim, que deve ser previamente esclarecido ao titular dos dados, informação que deverá ser realizada pelo médico ao inserir os dados do paciente no sistema. Além disso, o Conselho Federal de Medicina deverá oferecer gratuitamente ferramentas para atender às demandas dos titulares dos dados, em especial aquelas que visam à correção, revisão e eliminação dos atestados constantes na plataforma. Considerações finais A plataforma Atesta CFM surge como uma solução inovadora e necessária para os desafios enfrentados pelo sistema de saúde e pelas empresas em relação à falsificação de atestados. Ao mesmo tempo, levanta questões éticas e jurídicas sobre inclusão digital e proteção de dados que precisam ser abordadas de maneira cuidadosa e cujas soluções precisam ser apresentadas antes do início da obrigatoriedade de uso em março de 2025. O sucesso da implementação dessa nova ferramenta dependerá não apenas da sua eficácia técnica, mas também da sensibilidade com que o CFM e os stakeholders envolvidos conduzirão o tratamento de dados e seus reflexos sobre a privacidade. É essencial que a plataforma seja amplamente discutida e ajustada antes de sua adoção obrigatória, para garantir que os benefícios prometidos sejam acessíveis a todos os cidadãos, sem comprometer a relação de confiança entre médicos, pacientes e empregadores. ________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 O atestado de afastamento pode também ser emitido por odontólogo no âmbito da sua atuação (art. 5°, Resolução CFM n. 2.381/24). 5 Disponível aqui. 6 Atenção: no caso de solicitação de inclusão do diagnóstico (codificado pela CID ou não), a concordância sobre sua inclusão no atestado deve constar expressamente no documento. 7 Quando o atestado é solicitado para fins de perícia médica, deve conter, ainda: o diagnóstico; os resultados dos exames complementares; a conduta terapêutica; o prognóstico; as consequências à saúde do paciente; o provável tempo de repouso estimado necessário para a sua recuperação, que complementará o parecer fundamentado do médico perito, a quem cabe legalmente a decisão do benefício previdenciário. 8 Após 180 dias contados da publicação da Resolução, todos os atestados emitidos por outras plataformas digitais somente serão considerados válidos se integrados ao barramento do ecossistema Atesta CFM. 9 SCHAEFER, Fernanda; MEIRELLES, Jussara Maria Leal. Telemedicina e tecnologia assistiva. Revista de Bioética y Derecho, 2023, p. 53-66. Disponível aqui.
Ao passar em um vestibular de Medicina em uma Instituição de Ensino Superior Privada, muitos alunos e familiares contemplam sentimentos paradoxais: o entusiasmo pela aprovação e a angústia de como pagarão as mensalidades do curso. No Brasil, as mensalidades do curso de Medicina variam de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a mais de R$ 14.500,00 (quatorze mil e quinhentos reais)1. Como alternativa para aqueles que não foram aprovados em Universidades Federais ou Estaduais e não possuem capacidade econômica para arcar sozinhos com o custo do curso, o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) entra em cena, oferecendo uma oportunidade valiosa para aliviar essa carga. O FIES é uma política pública conduzida pelo Ministério da Educação e chancelada pela Lei nº 10.260/2001, com o objetivo de financiar a formação de alunos no ensino superior em instituições privadas. É um importante instrumento de democratização do acesso à educação superior, possibilitando que jovens talentos ingressem na faculdade de Medicina e realizem seus sonhos profissionais. O programa beneficia prioritariamente estudantes de baixa renda, oferecendo taxas de juros e encargos mais baixos do que o mercado2. Além disso, os estudantes pagam as mensalidades financiadas somente após a conclusão do curso. Neste cenário, o Ministério da Educação (MEC) divulgou o ranking dos cursos mais demandados no Fies 2023, com a Medicina liderando como a graduação com o maior número de alunos solicitando financiamentos, totalizando 104.136 inscritos3. Embora o FIES tenha sido instituído para ampliar as chances de alunos de baixa renda, ele pode também resultar em endividamento significativo para os recém-formados. Atualmente, existem mais de 1,2 milhões de estudantes e profissionais inadimplentes com o financiamento4. O Brasil conta com mais de 575 mil médicos5, um número que continua a crescer, em razão da existência de 3896 escolas médicas. Há, ainda, 294 pedidos para abertura de novas escolas de Medicina em andamento no Ministério da Educação (MEC)7. Contudo, muitos desses médicos ainda desconhecem os benefícios assegurados em lei para aqueles que se dedicaram à nobre missão de exercer a Medicina e aliviar sua dívida. O primeiro benefício diz respeito ao abatimento do saldo devedor do FIES para os médicos que atuam ou atuaram pelo SUS em regime de Estratégia Saúde da Família (ESF), por no mínimo 12 meses, bem como, enquanto o profissional estiver vinculado a uma unidade ESF haverá ainda o direito na suspensão no pagamento das parcelas mensais do FIES. Ou seja, o direito consiste no abatimento do saldo devedor consolidado do FIES relativo a 1,00% (um inteiro por cento) por mês trabalhado, conforme disposto no artigo 6º, inciso II, da Lei nº 12.202/2010, e também na suspensão do pagamento das parcelas enquanto permanecer vinculado na unidade ESF. O segundo e mais recente benefício é o abatimento para os profissionais da área da saúde que laboraram durante a pandemia da COVID-19 pelo SUS. Isso porque, em 2020, com o advento da pandemia, a Lei nº 14.024/2020 alterou diversos dispositivos da Lei n° 10.260/2001 (Lei do FIES), incluindo a benesse do abatimento mensal de 1% por mês trabalhado do saldo devedor do financiamento, também para os profissionais da área da saúde que trabalharam no âmbito do Sistema Único de Saúde, por no mínimo 6 meses, durante o período da pandemia da Covid-19. O último benefício é exclusivo para médicos residentes e tem previsão no art. 6°-B, inciso II, §3° da Lei 12.202/2010, que concede o direito à carência estendida do FIES, ou seja, de retomar o pagamento das mensalidades do financiamento após a conclusão da residência médica. Desta forma, o médico poderá solicitar a carência estendida até o final da residência médica, desde que: I) seja graduado em curso de Medicina que tenha avaliação positiva perante o Ministério da Educação (conceito maior ou igual a três); II) o médico residente esteja credenciado pela Comissão Nacional de Residência Médica com matrícula ativa no Programa de Residência Médica e instituição a que esteja vinculado, III) a especialidade cursada esteja dentro das 19 especialidades prioritárias para o SUS, conforme o Anexo II, da Portaria conjunta SGTES/SAS Nº 3, de 19 de fevereiro de 2013 do Ministério da Saúde. Além disso, há uma discussão sobre a necessidade de o médico estar em fase de carência para que tenha direito a este benefício, porém, os Tribunais Federais Brasileiros8 vêm entendendo que independente da fase contratual em que se encontra o médico, o direito à extensão da carência do FIES está resguardada por lei. Todavia, a concessão dos benefícios de abatimento previstos na legislação para médicos é um direito que, muitas vezes, é negado administrativamente. Seja por omissão na análise dos pedidos ou por negativas indevidas, razão pela qual muitos profissionais se veem obrigados a buscar o Poder Judiciário para assegurar seus direitos. Esses obstáculos administrativos não só causam frustração, mas também prolongam sua carga financeira e emocional. Ao recorrer ao Judiciário, os médicos não estão apenas reivindicando seus direitos, mas também buscando uma solução justa e eficaz para um problema que deveria ser resolvido administrativamente. No que concerne aos benefícios concedidos para os médicos residentes, o Judiciário tem reconhecido que possuem direito à extensão do período de carência do FIES durante a Residência Médica, mas apesar das previsões legais, a Portaria Normativa MEC nº 7/2013 tenta impedir a extensão da carência se o contrato do FIES já estiver na fase de amortização. Nesse sentido, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região - TRF1ª, tem permitido a extensão da carência se os requisitos legais forem cumpridos9. Também há posicionamento pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região - TRF4ª no sentido de que a Residência Médica em especialidades consideradas prioritárias pelo Ministério da Saúde, tais como: Clínica Médica, Cirurgia Geral, Ginecologia, Pediatria, Neonatologia, Medicina Intensiva, Medicina de Família e Comunidade, Medicina de Urgência, Psiquiatria, Anestesiologia, Nefrologia, Neurocirurgia, Ortopedia e Traumatologia, Cirurgia do Trauma, Cancerologia Clínica, Cancerologia Cirúrgica, Cancerologia Pediátrica, Radiologia e Diagnóstico por Imagem e Radioterapia, conferem ao residente o direito de extensão da carência do FIES10. Quanto ao benefício concedido aos médicos que atuam na estratégia saúde da família, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região - TRF1ª tem proferido acórdãos no sentido de que os médicos que trabalham em Equipes de Saúde da Família em áreas prioritárias têm direito ao abatimento de 1% do saldo devedor do FIES, incluindo os juros devidos no período, independentemente da data de contratação do financiamento, conforme o art. 6º-B da Lei 10.260/200111. Para tanto, o médico deve comprovar que está trabalhando em áreas com carência de profissionais de saúde, definidas como prioritárias pelo Ministério da Saúde12, conforme Portaria Conjunta nº. 2, de 25 de agosto de 2011. Para profissionais que trabalhem no SUS durante a vigência da emergência sanitária da Covid-19, sabe-se que a Portaria que regulamenta o benefício de Abatimento Covid ainda não foi publicada pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação - FNDE/MEC. Razão pela qual, a análise dos requerimentos não tem sido realizada de forma administrativa, pois o entendimento do FNDE é de que "a contagem é dentro do período de vigência da emergência sanitária decorrente da pandemia da Covid-19, conforme o Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e que o período de vigência deste Decreto é de 20 de março de 2020 até 31 de dezembro de 2020"13. Entretanto, o Judiciário posiciona-se de forma diversa, entende que a ausência de regulamentação específica não pode impedir os beneficiários de usufruir do direito ao abatimento concedido na legislação. Mesmo sem a regulamentação formal, a falta de regras não deve causar prejuízo financeiro aos beneficiários do FIES que atuaram durante a pandemia. No que se refere ao período de vigência do abatimento, o Judiciário tem realizado uma interpretação mais ampla ao reconhecer que a emergência sanitária foi definida pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, entretanto, foi encerrada pela Portaria GM/MS nº 913/2022 em 22 de abril de 2022, de modo que, deve ser levado em consideração todo o período de atuação dos profissionais durante a emergência sanitária para calcular o abatimento14. O que significa que o tempo de trabalho durante a pandemia estende o benefício proporcionalmente15. Diante de tudo que foi explicitado, é importante ressaltar que o Fundo de Financiamento Estudantil (FIES) oferece um suporte crucial para estudantes de Medicina, possibilitando que muitos realizem seus sonhos de cursar o ensino superior. No entanto, os desafios administrativos e as lacunas na regulamentação específica, especialmente em períodos de crise como a pandemia de COVID-19, por vezes complicam o acesso aos benefícios previstos. As decisões judiciais desempenham um papel fundamental em garantir que os direitos desses profissionais sejam respeitados, reconhecendo a extensão dos períodos de carência e abatimento mesmo na ausência de regulamentação formal. Assim, a busca pela justiça se mostra essencial para que médicos e até mesmo outros profissionais de saúde possam usufruir plenamente dos benefícios do FIES, mitigando o impacto financeiro e emocional de suas dívidas estudantis enquanto continuam a desempenhar suas funções essenciais para a sociedade.  ____________ 1 Disponível aqui. Acesso em: 25 jun. 2024. 2 Disponível aqui. Acesso em:  29 jun. 2024. 3 Disponível aqui. Acesso em: 25 jun. 2024. 4 Disponível aqui. Acesso em: 25 jun. 2024. 5 Disponível aqui. Acesso em 28 jun. 2024 6 Disponível aqui. Acesso em 28 jun. 2024 7 Disponível aqui. Acesso em 10 jul. 2024. 8 TRF-1 - REOMS: 10043816420224013600, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL JAMIL ROSA DE JESUS OLIVEIRA, Data de Julgamento: 17/04/2023, 6ª Turma, Data de Publicação: PJe 19/04/2023. 9 TRF-4 - APL: 50092256620224047201 SC, Relator: VÂNIA HACK DE ALMEIDA, Data de Julgamento: 07/03/2023, TERCEIRA TURMA. 10 TRF-1 - AC: 10347959520204013800, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL CARLOS AUGUSTO PIRES BRANDÃO, Data de Julgamento: 31/08/2022, 5ª Turma, Data de Publicação: PJe 31/08/2022. 11 TRF-1 - AC: 10286418120214013200, Relator: DESEMBARGADORA FEDERAL DANIELE MARANHÃO COSTA, Data de Julgamento: 12/04/2023, 5ª Turma, Data de Publicação: PJe 19/04/2023. 12 FIESMED. Abatimento - Carência estendida. Disponível aqui. Acesso em 11 jul 2024. 13 TRF-3 - AI: 50205702820224030000 SP, Relator: RENATA ANDRADE LOTUFO, Data de Julgamento: 10/08/2023, 2ª Turma, Data de Publicação: DJEN DATA: 16/08/2023. 14 TRF-3 - AI: 50205702820224030000 SP, Relator: RENATA ANDRADE LOTUFO, Data de Julgamento: 10/08/2023, 2ª Turma, Data de Publicação: DJEN DATA: 16/08/2023. 15 TRF-3 - AI: 50205702820224030000 SP, Relator: RENATA ANDRADE LOTUFO, Data de Julgamento: 10/08/2023, 2ª Turma, Data de Publicação: DJEN DATA: 16/08/2023. ____________ AGÊNCIA GOV. Renegociação do Fies para até 1,2 milhão de pessoas tem início nesta terça (7). Disponível aqui. Acesso em 16 jul. 2024. BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. TRF-1 - REOMS: 10043816420224013600, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL JAMIL ROSA DE JESUS OLIVEIRA, Data de Julgamento: 17/04/2023, 6ª Turma, Data de Publicação: PJe 19/04/2023. BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. TRF-1 - AC: 10347959520204013800, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL CARLOS AUGUSTO PIRES BRANDÃO, Data de Julgamento: 31/08/2022, 5ª Turma, Data de Publicação: PJe 31/08/2022. BRASIL. Tribunal Regional Federal da 1ª Região. TRF-1 - AC: 10286418120214013200, Relator: DESEMBARGADORA FEDERAL DANIELE MARANHÃO COSTA, Data de Julgamento: 12/04/2023, 5ª Turma, Data de Publicação: PJe 19/04/2023. BRASIL. Tribunal Regional Federal da 3ª Região. TRF-3 - AI: 50205702820224030000 SP, Relator: RENATA ANDRADE LOTUFO, Data de Julgamento: 10/08/2023, 2ª Turma, Data de Publicação: DJEN DATA: 16/08/2023. BRASIL. Tribunal Regional Federal da 4ª Região. TRF-4 - APL: 50092256620224047201 SC, Relator: VÂNIA HACK DE ALMEIDA, Data de Julgamento: 07/03/2023, TERCEIRA TURMA. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Aumento recorde no total de médicos no País pode ser cenário de risco para a assistência, avalia Conselho Federal de Medicina. Disponível aqui. Acesso em 16 jul. 2024. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Demografia Médica. Disponível aqui. Acesso em 16 jul. 2024. EDUCA MAIS BRASIL. Saiba quais são os cursos mais procurados no Fies 2023.1. Disponível aqui. Acesso em 25 jun. 2024. ESCOLAS MÉDICAS DO BRASIL. Valores das mensalidades dos cursos de medicina. Disponível aqui. Acesso em 25 jun. 2024. FIESMED. Abatimento - Carência estendida. Disponível aqui. Acesso em 11 jul. 2024. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. FIES. Disponível aqui. Acesso em 29 jun. 2024.
A proposta do presente texto é esclarecer os pontos mais relevantes sobre o fim do contrato de plano de saúde, seja coletivo ou individual, por iniciativa da operadora de planos de saúde ou do beneficiário e as mudanças da regulamentação da ANS - Agência Nacional de Saúde Suplementar aplicáveis para esse cenário. Por isso, diante da complexidade do mercado de planos de saúde, relevante abordar as nuances do encerramento da relação contratual considerando a modalidade do plano de saúde contratado e quem toma a iniciativa do pedido do encerramento do contrato. Iniciativa da Operadora Analisando as hipóteses de encerramento do plano de saúde, há uma variação relevante conforme a modalidade de contratação: Individual/familiar, coletivo empresarial ou por adesão. Os contratos individuais e familiares são aqueles aquele que oferecem cobertura da atenção prestada para a livre adesão de beneficiários, pessoas naturais, com ou sem o grupo familiar. Tais contratos poderão ser encerrados por iniciativa da operadora nos casos de fraude ou inadimplência do beneficiário, nos termos da lei de planos de saúde, lei 9.656/98, em seu artigo 13, parágrafo único, inciso II. "Art. 13. (...) Parágrafo único.  Os produtos de que trata o caput, contratados individualmente, terão vigência mínima de um ano, sendo vedadas: (...) II - a suspensão ou a rescisão unilateral do contrato, salvo por fraude ou não-pagamento da mensalidade por período superior a sessenta dias, consecutivos ou não, nos últimos doze meses de vigência do contrato, desde que o consumidor seja comprovadamente notificado até o quinquagésimo dia de inadimplência; e" A fraude, no sentido jurídico civilista, é uma ação contrária àquilo que é verdade, honesto e correto. Para Silvio de Salvo Venosa1 "A fraude é o mais grave ato ilícito, destruidor das relações sociais, responsável por danos de vulto e, na maioria das vezes, de difícil reparação. É um vício de muitas faces, presente em inúmeras situações da vida cotidiana do homem e no Direito". Já para Maria Helena Diniz2 "constitui fraude contra credores a prática maliciosa, pelo devedor, de atos que desfalcam o seu patrimônio, com o escopo de colocá-lo a salvo de uma execução por dívidas em detrimento dos direitos creditórios alheios". É indispensável dizer que os pressupostos exigidos para a fraude, encontram respaldo no dolo, na coação e na simulação. Preleciona Greco3, "o agente atua com dolo, quando quer diretamente o resultado ou assume o risco de produzi-lo". Desta forma, a simulação também se configura dentro da conduta fraudulenta, em que tenta se mascar a verdade dos fatos, e o agente assume o risco de causar danos com sua conduta. A fraude viola frontalmente a boa-fé nas relações contratuais. A professora Thathyana Weinfurter Assad exprime bem a necessidade de preservação da confiança no convívio social4: "A confiança que um ser humano deposita no outro é algo precioso para que se possa conviver em sociedade. Se todos desconfiassem de todos, o caos social estaria estabelecido. Imagine, por um momento, o que ocorreria caso os motoristas resolvessem frear diante de sinais verdes, na desconfiança que os que estão cruzando, no sinal vermelho, estariam "furando" o semáforo. Imagine se cada um desconfiasse, sempre, que um documento de identidade, uma Carteira Nacional de Habilitação, um contrato, fossem falsos. Ou, pior, imagine se todos resolvessem começar a usar documentos falsos, de uma só vez. O bem jurídico "fé pública" é, portanto, relevante". No Direito Penal brasileiro, o conceito de fraude fica mais evidente no art. 171: "Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento". Sobre o tema, recomendamos a leitura do material produzido pelo IESS - Instituto de Estudos de Saúde Suplementar sobre fraudes e desperdícios em Saúde Suplementar.5 Nesse estudo são demonstrados os exemplos mais corriqueiros de fraudes no setor, como ocultação de condição pré-existente, falsificação de informações/documentos; empréstimo de cartão de usuário para terceiros, fornecimento de dados de acesso para terceiros, pedido de reembolso duplicado, atendimento falso, entre outros. Assim, configurada a fraude, a operadora está autorizada a rescindir unilateralmente o contrato de plano de saúde individual/familiar. A outra hipótese de rescisão do contrato individual por iniciativa da operadora se dá no caso de inadimplência do beneficiário, quando deixa de quitar pontualmente as contraprestações mensais do plano de saúde individual contratado. O próprio art. 13 da lei de planos de saúde traz as regras para a rescisão nessas hipóteses, quais sejam: (a) inadimplência superior a sessenta dias, consecutivos ou não, nos últimos doze meses de vigência do contrato; e (b) notificação do beneficiário até o quinquagésimo dia da inadimplência. Note-se que, pela letra da lei, um atraso de 5 dias no pagamento da mensalidade todos os meses autoriza que ao final do período de 12 meses a operadora encerre o contrato unilateralmente por inadimplência, pois o período de inadimplência poderá ser não consecutivo. Um dos grandes temas em debate é a forma de notificação de inadimplência, que gera um atrito entre beneficiários e operadoras. A ANS normatizou a notificação por inadimplência por meio da súmula 28 e do entendimento DIFIS 13. A súmula trazia regras específicas sobre o conteúdo da notificação e a ciência do beneficiário. Por sua vez, o entendimento DIFIS trata das regras para utilização de ferramenta eletrônica de comunicação como forma de comprovação da notificação por inadimplemento, destacando as regras de ciência do beneficiário sobre o conteúdo da notificação. A partir de setembro de 2024, as regras da RN 593/23 entrarão nesse sistema, com novas formas de notificação da inadimplência. Falaremos ao final especificamente sobre a resolução que vai trazer novas nuances ao instituto do cancelamento por inadimplência - e não somente para os contratos individuais. Ainda sobre o encerramento da relação contratual por iniciativa da operadora, passemos a abordar os contratos coletivos. Os contratos coletivos poderão ser empresariais ou por adesão. O contrato coletivo empresarial oferece cobertura da atenção prestada à população delimitada e vinculada à pessoa jurídica por relação empregatícia ou estatutária, ou seja, a caracterização da modalidade se dá pelo tipo de vínculo entre o beneficiário e a pessoa jurídica contratante do plano de saúde. Por sua vez, os contratos coletivos por adesão oferecem cobertura da atenção prestada à população que mantenha vínculo com pessoas jurídicas de caráter profissional, classista ou setorial. Diferentemente dos planos empresariais, os planos coletivos por adesão se caracteriza pelo tipo da pessoa jurídica contratante, pois somente aquelas definidas no artigo 156 da RN 557/23 estão autorizadas a contratar plano em tal modalidade, ou como se define na norma, são pessoas jurídica legitimadas. Vale aqui diferenciar os institutos da elegibilidade e da legitimidade na contratação de planos coletivos. A legitimidade trata da regularidade da pessoa jurídica contratante, ou seja, quando a pessoa jurídica está apta a contratar o plano de saúde, preenchendo todos os requisitos para a modalidade eleita. Já a elegibilidade foca no beneficiário, quando são preenchidos todos os requisitos para aquele beneficiário se vincular ao plano coletivo oferecido pela pessoa jurídica contratante. Feitas tais considerações, para os contratos coletivos, as operadoras poderão encerrar o plano de saúde em relação à pessoa jurídica contratante e em relação ao beneficiário Em relação à pessoa jurídica contratante, a rescisão poderá ser motivada e imotivada. Em ambos os casos, deverá estar prevista no contrato firmado com a operadora. Em razão da anulação do parágrafo único do art. 17 da RN 195/09 pela Ação Civil Pública 0136265-83.2013.4.02.51.01 movida pelo Procon/RJ em face da ANS, foi afastada a vedação de cobrança de multa rescisória antes da vigência inicial do contrato. A redação atual determina que vale a previsão contratual e, havendo previsão de multa a qualquer tempo, ela poderá ser cobrada. Outro motivo para a rescisão por iniciativa da operadora é a ilegitimidade, quando a pessoa jurídica não cumpre os requisitos para contratar plano coletivo. Tanto operadora como administradora de benefícios têm dever de conferência da legitimidade das pessoas jurídicas contratantes. Identificada tal irregularidade, a operadora tem autorização para encerrar o contrato de planos de saúde coletivo. A operadora também poderá encerrar a relação contratual do plano coletivo somente em relação ao beneficiário, o que se denomina exclusão do contrato. O nome é bastante propício, pois o beneficiário é retirado da coletividade e o contrato em si continua inalterado. As hipóteses estão previstas na RN 557/22, em seu art. 24, que traz a questão da fraude (já abordada quando da tratativa para planos individuais) e a inelegibilidade, prevendo também a hipótese de pedido do beneficiário (a ser tratada adiante). A inelegibilidade ocorre quando o beneficiário não atende os pressupostos para estar no contrato coletivo, com autorização para exclusão pela operadora. Assim, um exemplo bastante corriqueiro é quando o dependente atinge o limite de idade para estar no plano de saúde ou quando o beneficiário é demitido por junta causa da empresa que lhe ofertava plano de saúde. A inadimplência também é uma hipótese de encerramento por iniciativa da operadora, nos casos em que o beneficiário arca com parte do pagamento da contraprestação no plano coletivo. As questões da notificação por inadimplência, como dito, serão alteradas pela RN 593/23. Dentre os contratos coletivos empresariais, é preciso destacar o contrato firmado por MEI - Microempresário Individual. Essa figura jurídica está prevista na lei complementar 123/06 e possui regras específicas para uma ficção jurídica, em que uma pessoa natural ganha caracteres de pessoa jurídica. E na condição de pessoa jurídica, a regulamentação autoriza que o MEI contrate plano coletivo empresarial. Para tanto, é preciso preencher os requisitos que serão comprovados na contratação e anualmente no aniversário: (a) documento que confirme a sua inscrição nos órgãos competentes; (b) regularidade cadastral junto à Receita Federal; e (c) inscrição pelo período mínimo de 6 meses, de acordo com sua forma de constituição. Todos os beneficiários vinculados deverão preencher os requisitos de elegibilidade. Identificada a ilegitimidade da contratação por MEI, a operadora poderá rescindir o contrato desde que realize a notificação com sessenta dias de antecedência. Nesse prazo, será dado ao MEI a possibilidade de regularização, devendo a operadora rescindir imediatamente ao final do prazo caso não regularizado. Iniciativa do Beneficiário O contrato de plano de saúde poderá também ser encerrado a pedido do beneficiário. A tratativa para tal cenário está prevista na RN 561/22. Os planos de saúde individuais poderão ser cancelados pelo beneficiário presencialmente, na sede da operadora, por meio de atendimento telefônico ou por meio da página da operadora na internet. Recebido o pedido do beneficiário, a operadora deve entregar o comprovante de recebimento. E para todas as hipóteses o fim da relação com a operadora é imediato. O pedido de cancelamento em contratos individuais não exime do pagamento da multa rescisória caso apresentado antes doze meses de vigência. Para os contratos coletivos, o beneficiário poderá encaminhar o pedido à pessoa jurídica contratante, à administradora de benefícios responsável pelo contrato ou à operadora. Caso o beneficiário opte por encaminhar o pedido de cancelamento para a pessoa jurídica contratante, esta contará com trinta dias para encaminhar o pedido para a operadora e somente então o pedido terá efeito. Nos demais casos - pedido direcionar para a operadora ou administradora -, o pedido terá efeito imediato. Em todos as hipóteses deve também ser entregue o comprovante de recebimento de pedido de exclusão. Regras para Notificação de Inadimplência Como exposto, em setembro de 2024 entrará em vigor a RN 593/23, alterando as regras para notificação por inadimplência. Pela normativa, a notificação prévia para cancelamento por inadimplência passa a ser obrigatória para planos coletivos (pelas regras da ANS, ela é obrigatória somente para contratos individuais). A regra para a notificação prévia será de envio da notificação ao beneficiário até o quinquagésimo dia da inadimplência, garantido dez dias para que seja efetuado o pagamento. A exclusão será autorizada quando identificadas duas mensalidades não pagas, consecutivas ou não, no prazo de doze meses. Ainda, a norma determina que a operadora comprove a efetivação da notificação, sob pena de não ter validade a medida. O novo texto traz também a possibilidade de o beneficiário questionar o valor do débito e solicitar negociação e parcelamento, que não é de aceitação obrigatória da operadora. E a rescisão do beneficiário por fraude deverá seguir as regras da normativa. Foram determinadas as formas de notificação, que deverão constar no contrato, quais sejam: Correio eletrônico (e-mail) com certificado digital e com confirmação de leitura; Mensagem de texto para telefones celulares (SMS); Mensagem em aplicativo de dispositivos móveis que permita a troca de mensagens criptografadas; Ligação telefônica gravada, de forma pessoal ou pelo sistema URA (unidade de resposta audível), com confirmação de dados pelo interlocutor; Carta, com aviso de recebimento (AR) dos correios, não sendo necessária a assinatura da pessoa natural a ser notificada; Preposto da operadora, com comprovante de recebimento assinado pela pessoa natural a ser notificada; ou Site ou aplicativo da operadora. Espera-se com tais previsões estabelecer uma relação com menos atritos entre beneficiário e operadora, quando se trata de cancelamento por inadimplência. Notadamente, um dos objetos mais demandados tanto nas instâncias administrativas como nas ações judiciais. Concluindo, espera-se com o presente texto destacar as nuances do encerramento da relação contratual de plano de saúde, esclarecendo os principais diferenciais e os resultados de cada tipo de encerramento, conforme a modalidade contratada e a iniciativa do pedido. Importante destacar que as normativas da ANS são constantemente alteradas, recomendando ao leitor a atualização constante das questões regulatórias em saúde suplementar. __________ 1 VENOSA, Silvio. Salvo. Direito Civil. 12ª ed. Saraiva, 2009. P. 433. 2 DINIZ, Maria Helena Curso de Direito Civil Brasileiro. 23ª ed. Saraiva, 2007. P. 97. 3 GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 4º ed. Niterói: Impetus. 2010. 1020 p. P. 151. 4 Disponível aqui. Acesso em 05.05.2023. 5 Disponível aqui. 6 Art. 15. Plano privado de assistência à saúde coletivo por adesão é aquele que oferece cobertura da atenção prestada à população que mantenha vínculo com as seguintes pessoas jurídicas de caráter profissional, classista ou setorial: I - conselhos profissionais e entidades de classe, nos quais seja necessário o registro para o exercício da profissão; II - sindicatos, centrais sindicais e respectivas federações e confederações; III - associações profissionais legalmente constituídas; IV - cooperativas que congreguem membros de categorias ou classes de profissões regulamentadas; V - caixas de assistência e fundações de direito privado que se enquadrem nas disposições desta resolução; e VI - entidades previstas na lei 7.395, de 31 de outubro de 1985, e na lei 7.398, de 4 de novembro de 1985.
As demandas de reparação de danos por responsabilidade civil médica e hospitalar tiveram um crescimento importante nos últimos anos. Conforme dados divulgados pelo CNJ, nos relatórios Justiça em Números, foram registrados cerca de 25 mil processos no ano de 2023, uma alta de 35% em relação ao volume apurado no ano de 2020.1 Os processos por "danos materiais ou morais decorrentes da prestação de serviços de saúde", conforme nova classificação adotada pelo CNJ desde janeiro de 2024, tratam-se de demandas complexas, que envolvem uma série de nuances para apurar a presença dos elementos, que configuram o dever de reparação de danos sofridos pelos pacientes. Além das questões técnicas da ciência médica que norteiam as investigações de eventuais falhas nos serviços médicos e hospitalares, a solução final dos processos depende também de outra questão, estritamente jurídica: O regime de responsabilidade civil aplicado no caso concreto. No presente artigo, analisam-se as principais orientações do STJ, a respeito da aplicação de três regimes distintos de responsabilidade civil, a partir da CF, do CDC e CC. Da Constituição Federal, emerge a responsabilidade pela chamada teoria do risco administrativo. Conforme o art. 37, § 6º, CF, as pessoas jurídicas de Direito Púbico, e as de Direito Privado que prestam serviços públicos, respondem pelos danos que seus agentes causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso nos casos de dolo ou culpa. A responsabilidade civil nesse caso é objetiva, configura-se pela presença de três elementos: Dano moral ou material sofrido por alguém; Ação ou omissão que possa ser caracterizada como ato ilícito; e Nexo de causalidade entre o dano e ação ou omissão estatal, independentemente da apuração de culpa do profissional da saúde para determinar o dever de reparação de danos. A responsabilidade civil do Estado pode ser excepcionada quando se constate: Culpa exclusiva da vítima ou de terceiro; Conduta do agente em exercício regular de direito; ou Excludentes de caso fortuito ou força maior. Nesse regime, a culpa da vítima afasta o dever de reparação quando o dano não decorrer de infração do dever de diligência do agente público, caso em que não haverá nexo de causalidade entre ação/omissão e dano. A hipótese de culpa concorrente da vítima não é suficiente para afastar a responsabilidade do Estado.2 Esse regime se aplica aos atendimentos prestados no âmbito do SUS, seja diretamente por hospitais públicos, seja por estabelecimentos conveniados que atendam os pacientes pelo SUS. Nesses casos, o STJ já reconheceu que "restando comprovado o fato, o dano causado e o nexo de causalidade entre os dois últimos, consideram-se satisfeitos os requisitos para a caracterização da responsabilidade objetiva do Estado", já que nessa hipótese "não se exige a comprovação de dolo ou culpa por parte do agente".3 A apuração de culpa ou dolo das pessoas físicas, profissionais da saúde, é relegada às ações de regresso, que podem ser ajuizadas pelos prestadores de serviços de saúde contra os agentes, que tenham atendido o paciente. Importante destacar a decisão proferida em 2019 pelo STF, sob o rito da repercussão geral, no julgamento do RE 1.027.633/SP (Tema 940), em que se definiu que os processos de responsabilidade civil devem ser ajuizados contra o Estado ou a pessoa jurídica prestadora de serviço público, e não contra a pessoa física do agente, que somente deve responder em ação de regresso nos casos de culpa ou dolo em sua conduta. Embora o julgado de origem não trate da hipótese de responsabilidade civil médica e hospitalar, a orientação fixada pelo STF já foi acolhida pelo STJ em caso posterior, para reconhecer a ilegitimidade passiva de médico, para responder diretamente junto ao paciente por danos causados em atendimento pelo SUS.4 Um segundo regime de responsabilidade objetiva decorre do CDC, que estabeleceu, dentre os direitos básicos do consumidor, a prevenção e reparação integral dos danos sofridos pelos serviços e produtos disponibilizados no mercado de consumo. Em se tratando de danos decorrentes de serviços na área da saúde, incide a chamada responsabilidade pelo fato do serviço, que é tratada no art. 14 do CDC, que traz duas modalidades de responsabilização: Uma responsabilidade objetiva, que independe de culpa, conforme caput do artigo; e A responsabilidade subjetiva pessoal dos profissionais liberais, tratada no § 4º, do mesmo artigo. Cumpre então compreender em que circustâncias pode-se aplicar um ou outro regime de responsabilidade. A responsabilidade objetiva é empresarial, pode ser aplicada aos hospitais, clínicas, laboratórios, etc., em duas hipóteses distintas. A primeira, é quando o dano causado para o paciente decorre diretamente de uma falha dos serviços hospitalares em si, e não de uma atuação culposa pessoal dos profissionais da saúde.5 São casos como de infecção hospitalar6, contaminações por transfusão saguínea dentro do período da janela imunológica7, resultados falsos positivos ou negativos em exames laboratoriais.8 A segunda hipótese é uma forma de responsabilidade solidária, em que a pessoa jurídica fornecedora de serviços de saúde responde de forma objetiva pela atuação culposa dos profissionais da saúde. Essa responsabilização se assemelha à regra prevista no art. 932, III, do Código Civil, de que o empregador ou comitente responde pelos danos causados por seus empregados, serviçais ou prepostos. Nesse ponto, é necessário então distinguir as situações em que o(a) médico(a) atua em nome próprio, dos casos em que atua como preposto(a) do hospital. No primeiro caso, a procura do paciente é pelo médico, que utiliza a estrutura do hospital sem agir com subordinação, já que é direito do médico internar seus pacientes em hospitais, mesmo que não faça parte de seu corpo clínico.9 É o que ocorre por exemplo em procedimentos eletivos, em que a realização de uma cirurgia é precedida de uma série de atendimentos, muitas das vezes em seu consultório particular, para então se utiilizar da estrutura do hospital no procedimento cirúrgico. Havendo uma eventual complicação na cirurgia, o hospital não responderá pelos danos, se restar demonstrado que o(a) médico(a) agiu em nome próprio e não como seu preposto.10 Situação distinta ocorre nos casos em que a procura do paciente é pela estrutura hospitalar, notadamente nos casos de atendimentos em urgência e emergência, ou mesmo em cirurgias eletivas em que fique claramente constatado que o(a) médico(a) atua de forma subordinada ao estabelecimento de saúde.11 Em situações como tais, uma vez demonstrada a atuação culposa do(a) profissional da saúde, estará configurada a responsabilidade objetiva e solidária do estabelecimento.12 Note-se que a responsabilidade civil dos profissionais da saúde, pessoas físicas que atuam no atendimento aos pacientes, é em regra subjetiva. Tanto no regime do CDC, quanto no do CC, sua responsabilização depende da demontração de culpa, nas modalidades de negligência, imprudência ou imperícia. A diferença crucial entre o regime de responsabilidade do CDC para o do CC reside quanto à noção de culpa concorrente. O Código Civil prevê, no art. 945, que se a vítima concorrer para o dano, o valor da indenização será fixado considerando a gravidade de sua culpa em confronto com a do autor do dano. Além disso, o art. 944 do diploma civil permite a redução equitativa da indenização, se houver desproporção excessiva entre a gravidade da culpa e do dano. No CDC, não há previsão de redução da reparação ante eventual culpa concorrente da vítima, já que o estatuto consumerista  estabelece a reparação integral dos danos como direito básico do consumidor. Somente a culpa exclusiva da vítima ou de terceiro é que é capaz de afastar o dever de reparação dos danos no CDC, como já observou o STJ, em caso de danos causados por uso indevido de medicamento.13 Em síntese, a definição do regime de responsabilidade civil médica e hospitalar depende: Se o atendimento foi prestado no âmbito do SUS; Se a relação é ou não de consumo; Se o(a) médico(a) atuou em nome próprio ou como preposto do hospital; e (iv) se o dano decorre de ato médico ou de falha na estrutura do serviço hospitalar. _________ 1 Disponível aqui. 26/02/2024, acesso em 28/07/2024. 2 JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 9 ed. rev., atual. e ampl. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 1304-1320. 3 STJ, AGRG no REsp. 403236/DF, Segunda Turma, Rel. Min. OG Fernandes, j. 5/12/2013. O caso analisado reconheceu o direito de um paciente à indenização, em razão de sequelas no aparelho fonatório após se submeter a uma traqueostomia. A investigação probatória afastou a hipótese de culpa do médico. 4 STJ. AgInt no Agravo em Resp 1448067/SC, Min. Herman Benjamin, Segunda Turma, j. 29/04/2020. 5 "O art. 14 do CDC, conforme melhor doutrina, não conflita com essa conclusão, dado que a responsabilidade objetiva, nele prevista para o prestador de serviços, no presente caso, o hospital, circunscreve-se apenas aos serviços única e exclusivamente relacionados com o estabelecimento empresarial propriamente dito, ou seja, aqueles que digam respeito à estadia do paciente (internação), instalações, equipamentos, serviços auxiliares (enfermagem, exames, radiologia), etc e não aos serviços técnicos-profissionais dos médicos que ali atuam, permanecendo estes na relação subjetiva de preposição (culpa)". STJ, RESp. 258.389/SP. Quarta Turma. Rel.Min. Fernando Gonçalves, j. 16/06/2005.  6 STJ. AgInt no ARESP 747.320/DF. Quarta Turma. Rel.  Min. Lázaro Guimarães. J. 14/08/2018. 7 STJ. RESp 1645786/PR.Terceira Turma. Rela. Min. Nancy Andrighi, j. 18/05/2017. 8 "O laboratório possui obrigação de resultado na realização de exame médico, de maneira que o fornecimento de diagnóstico incorreto configura defeito na prestação do serviço, a implicar responsabilidade objetiva, com base no art. 14, caput, do CDC". STJ. RESp. 1653134/SP. Terceira Turma. Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 17/10/2017. 9 Código de Ética Médica, Capítulo II, Direitos do médico. É direito do Médico: "Art. 25. Internar e assistir seus pacientes em hospitais privados, com ou sem caráter filantrópico, ainda que não faça parte do seu corpo clínico, respeitadas as normas técnicas da instituição". 10 "A doutrina tem afirmado que a responsabilidade médica empresarial, no caso de hospitais, é objetiva, indicando o parágrafo primeiro do artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor como a norma sustentadora de tal entendimento. Contudo, a responsabilidade do hospital somente tem espaço quando o dano decorrer de falha de serviços cuja atribuição é afeta única e exclusivamente ao hospital. Nas hipóteses de dano decorrente de falha técnica restrita ao profissional médico, mormente quando este não tem nenhum vínculo com o hospital - seja de emprego ou de mera preposição -, não cabe atribuir ao nosocômio a obrigação de indenizar". STJ, RESp 908.359/SC. Segunda Seção. Relator  p/ acórdão Min. João Otávio de Noronha. J. 27/08/2008.. 11 "Uma vez caracterizada a culpa do médico que atua em determinado serviço disponibilizado por estabelecimento de saúde (art. 14, § 4º, CDC), responde a clínica de forma objetiva e solidária pelos danos decorrentes do defeito no serviço prestado, nos termos do art. 14, § 1º, CDC". STJ. RESp. 605435/RJ. Quarta Turma. Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 22/09/2009. O caso é de paciente que sofreu sequelas após complicação anestésica em cirurgia plástica. Os médicos e a clínica foram condenados solidariamente na reparação de danos, entendendo-se que o anestesista, que agiu de forma negligente, era subordinado ao chefe da equipe médica e à clínica. 12 "O reconhecimento da responsabilidade solidária do hospital não transforma a obrigação de meio do médico, em obrigação de resultado, pois a responsabilidade do hospital somente se configura quando comprovada a culpa do médico integrante de seu corpo plantonista, conforme a teoria de responsabilidade subjetiva dos profissionais liberais abrigada pelo Código de Defesa do Consumidor."STJ. RESp. 1.579.954/ MG. Terceira Turma. Rela. Min. Nancy Andrighi, j. 08/05/2018. 13 STJ. RESp.971845/DF. Terceira Turma. Rel. p/ acórdão Min Nancy Andrighi, j. 21/08/2008.
No dia 14/12/23, o Ministério da Saúde, em reunião da CIT - Comissão Intergestores Tripartite deu seu aval para a criação da Política Nacional de Cuidados Paliativos, que foi lançada em 28/5/24, por meio da portaria GM/MS 3.681/2024.1 A medida deve garantir suporte a pacientes pediátricos e adultos que vivem com doenças graves e/ou incuráveis pelo SUS. A decisão deve colaborar para o estabelecimento de equipes multidisciplinares que irão implementar a política em todo o país, visando oferecer cuidados paliativos precocemente em casos de doenças ameaçadoras da vida, prevenindo sofrimento físico, psicológico, social e espiritual, estendendo os cuidados à fase de luto. A proposta dos cuidados paliativos é reduzir a dor e o sofrimento de pacientes com doenças graves em estágios avançados e/ou em terminalidade, incluindo seus familiares. A medicina paliativa é ofertada com suporte multidisciplinar abordando a morte como um processo natural. De acordo com a OMS, essa abordagem de cuidado é fundamental nos sistemas de saúde. No entanto, somente 14% das pessoas que precisam têm acesso a cuidados paliativos no mundo.2 Já no Brasil a realidade é bem pior: A despeito de um aumento considerável destes serviços de 2018 a 2023 (32,20%), este acréscimo é insuficiente para colocar o país dentre as nações com bom nível de cobertura na área.3 O sudeste conta com o maior número de serviços, totalizando 98. Em seguida, vem a região nordeste com 60 serviços; a região Sul com 40, Distrito Federal com 16, e após, o Norte que possui 7 serviços. Destes 7, apenas 1 é atribuído ao Amazonas, pela FCECON - Fundação Centro de Controle de Oncologia do Estado do Amazonas.4 Diante desta realidade, a criação da Política Nacional de Cuidados Paliativos representa um avanço, pois pretende formar ao todo 1.321 equipes de cuidados paliativos que terão investimento do Ministério da Saúde e cuja execução dependerá da adesão de estados e municípios.5 Em breve restrospecto histórico, noticia-se que os cuidados paliativos remontam à Europa medieval e o termo advêm de pallium, manto usado pelos cavaleiros para proteção contra tempestades ao longo do caminho. De pallium nasceu a palavra paliar, que significa proteger, aliviar. (MCCOUGHLAN, 2004). O movimento paliativista foi uma resposta ao exacerbado poder conferido à instituição médica, que produzia um fim de vida medicalizado (MENEZES, 2004). Na década de 70, o movimento pelos direitos dos pacientes, iniciado nos EUA, previa a defesa do direito de morrer com dignidade num novo modelo de prática médica que compreendia o processo de morrer não pela perspectiva médica, mas pela perspectiva do paciente (SCHAEFER, 2020). Hoje a IAHPC - International Association for Hospice & Palliative Care aduz que: Os cuidados paliativos são cuidados holísticos ativos, ofertados a pessoas de todas as idades que se encontram em intenso sofrimento relacionados à sua saúde, proveniente de doença grave, especialmente aquelas que estão no final da vida. O objetivo dos cuidados paliativos é, portanto, melhorar a qualidade de vida dos pacientes, de suas famílias e de seus cuidadores.6 A WHPCA - Worldwide Hospice Palliative Care Alliance juntamente com a Organização Mundial de Saúde, por meio de seu Global Atlas of Palliative Care at the End of Life, reconheceu o cuidado paliativo como um direito humano, cujo acesso possibilita alívio do sofrimento em variados contextos patológicos. No âmbito nacional, após a instituição de vários programas de assistência à dor e de diretrizes para organização dos cuidados paliativos no âmbito do SUS, 7-8-9 o Ministério da Saúde, como acima citado, lançou a Política Nacional de Cuidados Paliativos - portaria GM/MS 3.681/24. Também o Conselho Federal de Medicina, por meio da resolução 1.805/06, já consagrou a filosofia dos cuidados paliativo ressaltando que devem ser ministrados para o conforto físico, psíquico, social e espiritual do paciente.10 Diante das perspectivas postas, e descendo ao contexto institucional surgem as Procuradorias dos Estados qualificadas na Constituição Federal como essenciais à justiça e que têm por finalidade a defesa judicial e extrajudicial e a consultoria jurídica dos entes federados (art. 132).11 Passam, a partir daí, a integrar o sistema de democratização com dever de garantir a constitucionalidade e legalidade dos atos praticados pelo governo estadual. Essa atribuição constitucional é de extrema relevância, pois é exercida em situações concretas através da emissão de pareceres, propositura de ações judiciais, prestação de assessoria e consultoria jurídica, advocacia preventiva, entre outras, influindo diretamente na visão que construirá as ações estatais.  A lei 1.639/83 - lei orgânica da Procuradoria do Estado do Amazonas, em seu art. 2º, apresenta as suas competências, revelando que a Procuradoria Geral do Estado do Amazonas possui três principais funções: Judicial, de consultoria e de assessoramento, que juntas permitem a sua atuação na execução de medidas administrativas e judiciais para efetivação de políticas públicas, com destaque aqui, para àquelas voltadas aos cuidados paliativos. A implantação de homecare para pessoas com doenças crônicas, a ação judicial proposta para regularizar o fornecimento de medicamento (letrozol) e participação na Câmara de Resolução Extrajudicial de Litígios de Saúde são exemplos desta atuação significativa e decisiva da PGE/AM. O Governo Federal criou, em nível nacional, o programa "Melhor em casa", destinado a regular a atenção domiciliar pelo SUS, no ano de 2011. O programa é desenvolvido em nível municipal e estadual, a depender do grau de complexidade do paciente e o tipo de atenção que necessite. Conforme divulgação do Ministério da Saúde, a AD - atenção domiciliar é modalidade de atenção à saúde, sendo substitutiva ou complementar a internação hospitalar, caracterizada por um conjunto de ações de promoção à saúde, prevenção e tratamento de doenças e reabilitação prestadas em domicílio. Seguindo o legado da atenção domiciliar americana, o programa brasileiro busca reduzir a demanda por atendimento hospitalar e o período de permanência de usuários internados, aliado à humanização da atenção à saúde, ampliação da autonomia dos usuários e melhor aproveitamento de recursos financeiros e estrutura hospitalares. A defesa do modelo de atenção domiciliar vem sendo realizada pela Procuradoria do Estado do Amazonas, uma vez que a judicialização da saúde, por vezes, desvirtua o programa. Decisões judiciais que determinam o ingresso de pacientes no programa sem que tenham sido avaliados pela equipe multidisciplinar, acabam por determinar a má-prestação do serviço.12 Assim, a PGE atua na defesa do erário para a manutenção correta da política pública, impedindo desvirtuamento causado pela judicialização e/ou por interesses estranhos à prestação do serviço. Além da atuação segura, com medidas processuais adequadas, a PGE também realiza a defesa do programa de atenção domiciliar por meio de oferecimento de seminários sobre saúde pública, para sensibilizar magistrados e operadores da lei a seguirem diretrizes legais do SUS. Desde 2019, por determinação do Judiciário local, o serviço de atenção domiciliar integral é fornecido à paciente menor de idade que foi representado pelo Ministério Público Estadual em ação judicial com esse pedido. Em razão dessa decisão, o Estado foi obrigado a licitar e contratar empresa especializada para a prestação desse serviço de atendimento. Após a contratação, a prestação do serviço de home care não ocorreu de forma pacífica, tendo surgido atritos entre a equipe multidisciplinar e a responsável pelo paciente, levando a empresa a abandonar a assistência, causando prejuízo direto e real a quem não tem como sobreviver sem a prestação do serviço de cuidado paliativo. A Procuradoria Geral do Estado do Amazonas, acionada pela Secretaria de Saúde, ingressou com tutela de urgência em caráter antecedente para determinar à empresa a proibição de paralisar os serviços decorrentes do contrato, assim como cumprir todas as cláusulas ali encartadas, por se tratar de direito à saúde e risco de morte do paciente. E diante da atuação segura e precisa da Procuradoria do Estado, o Judiciário local concedeu a tutela de urgência nos autos do processo 0440046-72.2023.8.04.0001, determinando à contratada a proibição de paralisar o serviço, bem como o fiel cumprimento de todas as suas cláusulas, sob pena de multa diária de R$35.000,00. Na seara dos contratos em sede de cuidados paliativos, tem-se que o Estado, por meio de sua Fundação Pública de atenção oncológica, adquire insumos para tratamentos em hormonioterapia de pacientes com câncer metastático. Um destes insumos é o medicamento Letrozol, previsto na RENAME - Relação Nacional de Medicamentos Essenciais, para uso em cuidado paliativo. Em 2024, a Procuradoria do Estado, em atuação judicial, garantiu o estoque da Fundação CECON, que se encontrava zerado diante da inadimplência do contratado em fornecer o material adquirido (letrozol). Houve a determinação de que a empresa contratada entregasse o medicamento em 10 (dez) dias, sob pena de multa diária de R$50.000,00.13 A atuação da Procuradoria, como dito anteriormente, também visa à diminuição do tempo de espera ao paciente que necessita de cuidados paliativos, evitando a judicialização que tanto atrapalha a realização das políticas públicas previamente estabelecidas no SUS. Nesse aspecto, em 2023, foi instalada, mediante termo de cooperação entre a Defensoria Pública, a Procuradoria Geral do Estado do Amazonas e o TJ/AM, a Câmara de Resolução Extrajudicial de Litígios de Saúde, que se destina a solucionar questões relativas à fornecimento obrigatório de medicamentos e procedimentos padronizados no SUS em fase pré-processual. Assim, as medicações em cuidados paliativos, que estejam listadas na RENAME, com estoque escasso no Estado, podem ser fornecidas ao paciente sem que o mesmo precise levar a questão ao judiciário. A Câmara conta com a participação de representante da Secretaria de Saúde, da Procuradoria do Estado e do Judiciário, permitindo um encaminhamento mais célere para a dispensação do medicamento. As medidas acima relatadas demonstram a relevante missão da Procuradoria do Estado do Amazonas na promoção da dignidade humana como valor fundamental de nosso estado democrático, atuando de forma pronta nas políticas públicas em cuidados palitiavos, de observância e defesa obrigatória por parte do Estado brasileiro. __________ 1 Ministério da Saúde. Disponível aqui. Acesso em: 06 jun.2024 2 Disponível aqui. Acesso em: 05 mai.2024 3 Disponível aqui. Acesso em: 05 abr.2024 4 Atlas dos cuidados paliativos no Brasil [livro eletrônico] / Úrsula Bueno do Prado Guirro... [et al.]. 1. ed. São Paulo: Academia Nacional de Cuidados Paliativos, 2023. 5 Disponível aqui. Acesso em: 04 mai.2024 6 IAHPC - INTERNATIONAL ASSOCIATION FOR HOSPICE & PALLIATIVE CARE. Palliative Care definition. Tradução por Cristiane Terz, Danielle Soler, Fernando Kawai, Helloisa Brogiatto, João Batista Garcia, Luciana Messa e Morgana Matos. Hospicecare, 2018. Disponível em: Acesso em: 15 jun.2024. 7 Ministério da Saúde. Disponível aqui. Acesso em: 04 mar.2024 8 Ministério da Saúde. Política Nacional de Humanização - PNH. Disponível aqui. Acesso em: 05 jun.2024 9 Ministério da Saúde. Disponível aqui. Acesso em: 05 mai.2024 10 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução n. 1.805/2006. Disponível aqui. Acesso em: 12 mai.2024 11 Art. 132. Os Procuradores dos Estados e do Distrito  Federal,  organizados  em  carreira,  na  qual  o  ingresso dependerá de  concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases, exercerão a representação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades federadas. 12 Somente no primeiro semestre de 2024, a PGE/AM defendeu o estado em cinco ações judiciais com pedidos relacionados a home care ou ingresso no programa "Melhor em casa" sem a observância dos requisitos estabelecidos na Portaria do Ministério da Saúde. Vide ações de conhecimento n. 067156-86.2023.8.04.0001, 0401242-98.2024.8.04.0001, 0600055-43.2024.8.04.2500, 0600750-90.2024.8.04.4700, 0583494-06.2023.8.04.0001, todas em curso no primeiro grau da Justiça Comum do Amazonas. 13 Vide Processo n. 0480358-56.2024.8.04.0001, em curso na Justiça Comum amazonense.
Palavras iniciais Em 22 de janeiro de 1973, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu o caso Roe v. Wade e considerou inconstitucional leis estaduais que criminalizassem o aborto sem levar em conta o estágio da gravidez, por violação à cláusula do devido processo legal prevista na XIV emenda à Constituição, que protege o direito à privacidade dos cidadãos contra ações estatais. Essa conformação da questão constitucional sofreu alterações em anos seguintes até que, em 24 de junho de 2022, no caso Dobbs v. Jackson, a Suprema Corte revogou os precedentes, considerando que a Constituição dos Estados Unidos não conferia um direito ao aborto. Por consequência, relegou aos Estados a autoridade para regulamentar a questão. Mesmo com o reconhecimento, a partir de 1973, da proteção constitucional do direito ao aborto nos Estados Unidos, a questão nunca foi totalmente sedimentada na ambiência americana, como se constata a partir de diversas tentativas de revogar o precedente, empreitada bem-sucedida em 2022. Pode-se questionar: se Roe v. Wade foi revogado, qual a relevância de rememorá-lo? A reminiscência se faz pela importância do precedente na perspectiva constitucional. Havia, como até hoje há, uma divisão da opinião dos cidadãos americanos a respeito do aborto. Como destacou o justice Blackmun na redação da opinion of the court, no caso Roe v. Wade, as preferências filosóficas de cada um, suas experiências, a exposição individual às dificuldades da existência humana, as crenças religiosas, o posicionamento individual em relação à vida e à importância da família e seus valores, os standards morais que cada um estabelece para sua vida influenciam a tomada de posição acerca questão. Aspectos sociais também foram lembrados como tempo impacto complicador, tais como o crescimento populacional, poluição, pobreza, racismo. Ainda assim, sem a previsão expressa de permissão constitucional à prática do aborto, a Suprema Corte americana encontrou fundamento a legitimá-la. No Brasil, o cenário não é muito diferente. A divisão de opinião a respeito do assunto é evidente. O desacordo moral sobre o aborto está presente na sociedade brasileira e suscita debates mesmo em circunstâncias nas quais a legislação infraconstitucional autoriza a interrupção da gravidez. Recentemente, o Min. Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) que proíbe a utilização de uma técnica clínica (assistolia fetal) para a interrupção de gestações acima de 22 semanas decorrentes de estupro1. E em 08 de março de 2017, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) ajuizou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental autuada sob o nº. 442 e distribuída à Min. Rosa Weber (hoje aposentada), alegando a não recepção, pela Constituição brasileira de 1988, dos arts. 124 e 126, do Código Penal, os quais criminalizam o autoaborto e o aborto provocado por terceiro com consentimento da gestante. A indagação que se põe, então: será a ADPF 442 o Roe v. Wade brasileiro, com a descriminalização do aborto a partir de uma interpretação constitucional? O julgamento começou e conta com um voto favorável à descriminalização, o qual será aqui analisado. Aborto, STF, e o voto da Min. Rosa Weber na ADPF 442 A ADPF 442 não será a primeira vez que o STF brasileiro enfrentará o debate sobre o aborto ou sobre aspecto que se relacione com a questão, a saber, a proteção constitucional da vida humana em desenvolvimento. Na ADPF 542, o Tribunal declarou a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos arts. 124, 126, 128, I e II, todos do Código Penal. A ADI 35103 permitiu a pesquisa com células-tronco embrionárias e o descarte de embriões não implantados, registrando que nem todo estágio da vida humana recebe a mesma proteção. Por fim, no HC 124.3064, a 1ª Turma do STF, por maioria, deu interpretação conforme à Constituição aos arts. 124, 125 e 126, todos do Código Penal, e excluiu da sua incidência a interrupção voluntária da gravidez no primeiro trimestre da gestação. O voto da Min. Rosa Weber na ADPF 442, proferido no plenário virtual, julgou procedente em parte o pedido para declarar a não recepção parcial dos arts. 124 e 126 do Código Penal, de modo a excluir do seu âmbito de incidência a interrupção da gestação realizada nas primeiras doze semanas e se estrutura, quanto ao mérito, em quatro alicerces: (i) direito à vida e âmbito de proteção no constitucionalismo; (ii) direitos fundamentais das mulheres; (iii) direitos sexuais e reprodutivos como direitos fundamentais no desenho constitucional e (iv) justiça social reprodutiva como resposta institucional aos deveres fundamentais de proteção. O primeiro dos alicerces do voto (i), pode-se dizer, adota perspectiva ontológica de análise do direito à vida, performando um exame jurídico-dogmático desse direito. Desse modo, se desenvolve a partir da delimitação da titularidade do direito fundamental à vida à luz do texto constitucional e da refutação da tese de proteção absoluta desse direito frente aos demais direitos fundamentais, além de incorporar análise sob a perspectiva do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Resolvido o problema da titularidade, o voto afasta a possibilidade de conflito entre direitos fundamentais ante a desigualdade das posições jurídicas ocupadas pelo feto/embrião e pela mulher. A Min. Rosa Weber seguiu o raciocínio desenvolvido na ADI 3510 e na ADPF 54 ao assentar que a garantia da inviolabilidade do direito à vida se dá aos nascidos. A ausência de referência, em qualquer passagem do texto constitucional, aos não nascidos, induz à conclusão de que o constituinte não se comprometeu com a tese do direito à vida desde a concepção5. E a refutação da tese do caráter absoluto do direito à vida frente a outros direitos fundamentais dá-se sob os argumentos de que: a) o texto constitucional não definiu o conteúdo do direito à vida ou identificou explicitamente seu âmbito de proteção; b) a estrutura lógica da norma do direito fundamental à vida exige atividade interpretativa posterior de densificação do seu âmbito de proteção, sempre sujeita ao controle da proporcionalidade da justificação por meio da interpretação constitucional; c) o direito à vida apresenta caráter policêntrico, cujos conteúdos têm a dignidade da pessoa humana como vetor normativo. A partir do estudo do modo como a legislação infraconstitucional civil e penal tutela o direito à vida, a Ministra sustentou haver uma proteção incremental, uma gradação na importância da vida protegida como bem jurídico. Os distintos graus de reprovabilidade criminal aos atentados à vida intra e extra-uterina (evidenciados a partir das diferentes punições) e a existência de cláusulas excludentes de ilicitude tornam evidente, segundo o voto, que o Direito Penal não considera a vida como valor único e absoluto. Se absoluto fosse, qualquer interrupção da gravidez seria proibida6.   O feto ou o embrião, nessa linha de raciocínio, não são titulares do direito fundamental à vida. Em consequência, o argumento de que a discussão a respeito do aborto contrapõe dois direitos fundamentais (do embrião/feto vs. da gestante) baseia-se em premissa equivocada; somente a mulher é titular de direitos fundamentais. Isso não significa, registrou a Ministra, que o Estado careça de interesse legítimo em proteger a vida humana em todas suas formas. Há, pois, conflito de valores constitucionais de proteção. Todavia, o interesse do Estado cede quando em conflito com direitos fundamentais, avaliando-se a situação a partir da tutela incremental ou progressiva da vida como bem jurídico pelo que, a depender do estágio de desenvolvimento biológico do feto, diminui o interesse estatal em sua proteção, sobrepondo-se a tutela dos direitos da mulher. E os direitos da mulher constituem o seguinte alicerce (ii) do voto da Min. Rosa Weber, que procede à reconstrução histórica da luta pela afirmação de direitos e rememora a atuação do STF em corrigir e afastar estigmas históricos, sociais, culturais, profissionais e jurídicos em relação às mulheres. Centra o argumento na circunstância de que, se a gravidez é fenômeno biológico exclusivamente feminino e afeta de forma significativa o corpo da mulher, provocando mudanças fisiológicas e biológicas com a alteração hormonal (além dos aspectos psicológicos), afastar a histórica discriminação por questões de gênero exige reconhecer a autodeterminação feminina como elemento estruturante da dignidade das mulheres, viabilizando o exercício de sua autonomia e garantindo a saúde psico-físico-moral com a escolha da mulher pela maternidade, não sua imposição pelo Estado pela via da criminalização do aborto.   A imposição da continuidade da gravidez representa, segundo a Ministra, uma forma de violência institucional contra a integridade física, psíquica e moral da mulher, colocando-a como instrumento a serviço das decisões do Estado e da sociedade, mas não suas. Nesse contexto, ao Estado, por conduta negativa, compete respeitar as liberdades individuais da mulher, sua autonomia e as escolhas que faz para conformar livremente o desenvolvimento de sua personalidade. Prossegue o voto, então, para o alicerce seguinte (iii) ao tratar dos direitos sexuais e reprodutivos como direitos fundamentais de mesmo status constitucional que os direitos fundamentais individuais. Isso porque a Constituição relacionou o direito à saúde à dignidade da pessoa humana, de modo que o âmbito de proteção desse direito exige tanto prestação estatais positivas como abstenção de interferências na esfera privada dos indivíduos, preservando sua integridade física e e mental. No campo da saúde reprodutiva, o direito ao livre planejamento familiar previsto no art. 229, §7º, da Constituição, assegura a não coerção estatal na decisão acerca da maternidade, o que encontra respaldo também no direito internacional dos direitos humanos voltados à proteção das mulheres. Por fim, o último alicerce do voto (iv) reclama a face prestacional dos direitos reprodutivos e sexuais antes reconhecidos, uma via de promoção pela qual o Estado, na proteção do direito à saúde sexual e reprodutiva da mulher, viabilize um sistema que permita o exercício de sua autodeterminação na persecução do projeto de vida digna. Políticas públicas de prevenção à gravidez indesejada são insuficientes pois há grupos em situação de vulnerabilidade sem acesso a tais políticas ou ao planejamento familiar; e mesmo métodos contraceptivos podem falhar. Quando não se superam as barreiras de acessibilidade ou quando falham os métodos contraceptivos, o aborto clandestino revela-se como a única via efetiva para resolver a situação de gravidez indesejada, submetendo a mulher a riscos de complicações de saúde e ao peso da persecução penal. Os ônus de falhas estruturais ou de métodos contraceptivos recaem de forma excessiva e desmedida sobre a mulher. Por isso, a criminalização do aborto nas primeiras 12 semanas, na visão da Ministra, é contrária à constituição. O voto se encerra submetendo as normas de criminalização do aborto ao teste da proporcionalidade, ao qual falham, na visão da Ministra Rosa Weber, pois a tutela criminal não se mostrou adequada para diminuir a ocorrência do aborto na sociedade; a efetivação de políticas públicas preventivas da gravidez indesejada pela realização da justiça social reprodutiva se mostra como alternativa de mais eficácia à proteção tanto da vida da mulher como do feto, ao contrário da criminalização e não há proporcionalidade em sentido estrito pois a tutela penal atual dá prevalência absoluta à vida em potencial em detrimento dos direitos da mulher. Comentário e conclusão O voto da Min. Rosa Weber, complexo e abrangendo argumentos de diversos matizes, era esperado, em razão da posição assumida pela julgadora no HC 124.306. Sob o ponto de vista da justificação argumentativa, entretanto, seria prudente haver fundamentação explicita sobre a demarcação temporal eleita para a descriminalização do aborto - 12 primeiras semanas da gestação. É possível inferir a razão de ser a partir das referências que a Ministra fez a decisões de outras jurisdições em quadro sintético apresentado no voto mas, em questão controvertida como essa, recomenda-se a maior clareza possível. Note-se que no julgamento do HC 124.306, a Ministra destacou exatamente a justificação de Roe v. Wade, que adotou esse marco temporal para afastar qualquer possibilidade de intervenção estatal pois, até o fim do primeiro trimestre, a taxa de mortalidade das mulheres na prática do aborto é menor do que a taxa de mortalidade em um parto regular e a decisão deve ser apenas da mulher e seu médico. A partir desse ponto, o Estado poderia regular o aborto para salvaguardar a vida da gestante (mas não o proscrever por completo). E a partir do fim do segundo trimestre, o Estado teria legitimidade para proibir o aborto com vistas à proteção da vida em potencial pois o feto se torna viável, ou seja, potencialmente sobrevive fora do útero, ainda que com ajuda. Já quanto à defesa da autonomia das mulheres, dos direitos sexuais e reprodutivos e da análise da adequação à regra da proporcionalidade em muito encampa o raciocínio desenvolvido pelo Min. Roberto Barroso, precisamente ao relatar o HC 124.306. A Organização Mundial de Saúde destaca que 6 em cada 10 gravidezes indesejadas acabam em aborto induzido; embora o aborto seja um procedimento relativamente seguro se performado por pessoas com a habilidade necessária, aproximadamente 45% dão-se de forma insegura, o que pode causar mortes de mulheres, ou resultar em complicações físicas ou mentais, além de problemas sociais e econômicos tanto para a mulher, como para as comunidades e para os sistemas de saúde. Por isso, a OMS trata a falta de acesso ao aborto seguro como política pública de saúde e um problema de direitos humanos7, como menciona a Ministra em seu voto. No mundo, segundo o Center for Reproductive Rights, uma organização global de direitos humanos que defende os direitos reprodutivos (e, dentre eles, o aborto legal), 77 países atualmente permitem o aborto por decisão da mulher (com variação entre o limite da idade gestacional); 12 países permitem o aborto com base em justificativas de natureza econômica e social; 47 países permitem quando há risco à saúde da gestante; 44 países permitem quando há risco à vida da gestante e 21 países proíbem completamente a prática8. Parece, pois, haver uma tendência rumo à liberdade de decisão da gestante. O debate sobre o aborto envolve questões sensíveis como qual o papel do Estado na regulação de escolhas íntimas e pessoais dos cidadãos, especialmente quando o fundamento da intervenção pode ser atribuído a convicções morais e religiosas não compartilhadas por toda a coletividade e até que ponto a moralidade pode ou deve influenciar políticas públicas. Cabe ao STF responder aos difíceis questionamentos. Prever o posicionamento dos ministros é impossível, mas, ao menos se mantida a mesma linha de raciocínio, já se espera que se unam à Min. Rosa Weber, não apenas o Min. Roberto Barroso (que pediu destaque do julgamento virtual), como também o Min. Edson Fachin, que com eles formou a maioria no julgamento do HC antes mencionado. Aguardemos. __________ 1 STF, ADPF/MC 1141, Rel. Min. Alexandre de Moraes, j. 20/05/2024. 2 STF, ADPF 54, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 12/04/2012 3 STF, ADI 3510, Tribunal Pleno, Rel. Min. Ayres Britto, j. 29/05/2008 4 STF, Habeas Corpus 124.306/RJ, 1ª Turma, Rel. Min. Roberto Barroso, j. 09/08/2016. 5 Em Roe v. Wade, a Suprema Corte americana também se deparou a indefinição constitucional do termo pessoa. O justice Blackmun analisou as passagens da Constituição americana com referência ao termo para concluir que a menção na XIV Emenda não incluía os não-nascidos (SUPREME COURT OF THE UNITED STATES, Roe v. Wade. 410 U.S. 113 (1973), p. 159). 6 Essa linha de raciocínio, defendendo a ausência de proteção absoluta da vida, encontra respaldo na jusfilosofia de Ronald Dworkin, que identifica um fundamento derivado (derivative) e um fundamento independente (separado, detached) para a defesa da vida do feto. O primeiro considera que o feto teria interesses próprios; o segundo, que o aborto é errado por viola a santidade e o valor intrínseco da vida. Ao considerar que o feto não poderia dispor de interesses próprios, o fundamento para a proibição do aborto recairia, segundo o autor, em um fundamento independente (separado) de preservação do valor intrínseco da vida ou de sua santidade, porém, apesar de admitir que o Estado pode defender valores intrínsecos, Dworkin não visualiza essa possibilidade quando houver grande impacto sobre a vida de pessoas em particular, considerável desacordo sobre tal valor intrínseco ou quando a razão para a defesa do valor intrínseco se basear em algo pessoal ou religioso. E a defesa do valor intrínseco da vida, tal como formulada por críticos do aborto, tem fundamento religioso. Por consequência, o Estado não poderia adotá-lo para proibir a prática. A posição do autor, que é mais complexa do que a simples exposição supra, pode ser melhor compreendida em: DWORKIN, Ronald. Domínio da vida: aborto, eutanásia e liberdades individuais. 2. Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009 e DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade: a leitura moral a Constituição norte-americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006. Ver ainda, DUTRA, Delamar José Volpato. Moralidade política e bioética: os fundamentos liberais da legitimidade do controle de constitucionalidade. Veritas, Porto Alegre, v. 52, n. 1, p. 59-78, mar. 2007. A proteção do ordenamento brasileiro em relação ao valor da vida, como constata a Ministra, seria derivada e não independente. E sendo derivada, deve ser analisada a partir de sua relação com os demais interesses, como a autonomia da mulher, por exemplo. 7 WHO. Abortion. Key facts. 17 may 2024. Disponível aqui. 8 Disponível aqui.
segunda-feira, 8 de julho de 2024

Teoria da perda de uma chance em perspectiva

1. PRIMEIRO APONTAMENTO SOBRE A TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE As primeiras manifestações a respeito da utilização da teoria da perda de uma chance surgiram na França, mas, ao contrário do que muitos defendem, no final do século XIX esse país ainda era totalmente avesso à indenização das chances perdidas, uma vez que optava pela aplicação das normas mais estritas de reparação decorrentes da responsabilidade civil, impondo, necessariamente, a prova da certeza do dano.1 Por meio de pesquisas realizadas em decisões judiciais pelos irmãos Mazeaud, constatou-se que o primeiro julgado a abordar o tema foi um de 1896, da Corte de Apelação de Limoges, que cuidava do pedido de reparação elaborado por um dono de cavalos em face de uma empresa de transportes, em razão de o animal não ter chegado em tempo para participar de uma corrida. Porém, o pedido foi indeferido por não ser possível garantir que o animal venceria a corrida.2 A teoria é utilizada naquelas situações em que o lesado foi impedido de fazer uso de uma oportunidade de conquistar certo benefício ou deixar de sofrer um prejuízo, por culpa de um terceiro, contra o qual poderá exigir a indenização correspondente, a qual, contudo, jamais equivalerá ao resultado final, que será calculado com fundamento na probabilidade.3 A teoria surgiu diante da dificuldade do lesado provar o nexo causal e a extensão do dano, notadamente quando o fato danoso estava cercado por condições diversas, a exemplo dos casos de responsabilidade médica. Portanto, originou-se atrelada ao nexo causal, apesar de, na atualidade, a maior parte da doutrina vinculá-la à questão do dano.4 Foi a Corte de Grenoble (comuna francesa), conforme aponta o eminente jurista Miguel Kfouri Neto, a precursora na utilização de forma clara desta teoria à responsabilidade médica, a partir do caso de uma paciente com dores no punho que se submeteu a um exame radiográfico.5 O médico que analisou a radiografia não observou nenhuma fratura ou qualquer outra patologia, porém, 7 anos depois, apareceram fortes dores e o paciente moveu demanda judicial quando, então, analisando-se aquele primeiro exame, constatou-se a existência de uma fratura que não havia sido observada pelo médico. Diante do fato, a Corte deferiu uma reparação com supedâneo na teoria da perda de uma chance, em razão da não utilização, na primeira oportunidade, da terapia adequada.6 A perda de uma chance não guarda relação com um resultado certo, pois não existe certeza de que o evento se concretizará. Deve-se admiti-la como a perda de uma possibilidade de atingir um resultado ou de se impedir um dano. Não se exige a certeza do dano, mas certeza da probabilidade. A tarefa de analisar cada caso a fim de verificar se as possibilidades são concretas é do magistrado.7 A teoria da perda de uma chance não se trata nem de uma hipótese de dano emergente e nem de lucros cessantes, uma vez que, para caracterização destes últimos, é indispensável a certeza da obtenção do resultado, enquanto que, para verificação da primeira, basta a probabilidade de conquista do resultado almejado.8 No Brasil, as primeiras afirmações a respeito da teoria ocorrem no Rio Grande do Sul, em acórdãos prolatados pelo desembargador Ruy Rosado de Aguiar Júnior, o qual se inspirou numa palestra ministrada pelo professor François Chabas, em 23/5/90, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, denominada "La perte d'une chance en droit français. Tal pioneirismo foi endossado pelo destacado jurista brasileiro Dr. Miguel Kfouri Neto." 9 O processo originou-se do caso de uma paciente que se submeteu a uma cirurgia refrativa, em 21/3/87, para correção de miopia em grau 4.00 no olho direito, com o fim de evitar o uso de lentes corretivas. A autora perdeu em primeira instância, mas conseguiu reformar a decisão perante a 4a Câmara Cível de Porto Alegre, sob relatoria do desembargador Ruy Rosado de Aguiar Junior, o qual, após análise do laudo pericial entendeu que o médico não tomou as cautelas necessárias e foi responsável pela perda da chance que a paciente tinha de corrigir sua visão.10 No Brasil, a teoria da perda de uma chance sempre foi e continua sendo utilizada com o fim de justificar uma eventual reparação a título de danos morais pela oportunidade perdida pelo paciente ou lesado. Com base nessa noção de perda de chance, eu busquei dar uma nova roupagem para a Teoria da Perda de Uma Chance, fazendo uso da mesma de forma preventiva, antes que o dano se verifique, especificamente para os casos de tratamentos de saúde. Por isso nominei de Teoria da Perda de Uma Chance em Perspectiva, uma vez que o paciente pode estar diante de sua melhor chance de cura a ser perdida ou perante uma última chance de cura, caso não receba o tratamento adequado para sua patologia. 2. TEORIA DA PERDA DE UMA CHANCE EM PERSPECTIVA Defendo a aplicação da Teoria da Perda de Uma Chance em Perspectiva para os casos de pacientes que precisam com urgência iniciar tratamentos de saúde, mesmo que seja por meio de tratamentos experimentais ou com uso de medicamentos OFF LABEL. A finalidade é utilizar a teoria para fundamentar a concessão de medicamentos ou procedimentos médicos antes que a doença se agrave ou o paciente venha a óbito. Para lançar luzes ao tema imaginemos a seguinte situação: Determinada paciente, portadora de câncer de mama, já foi submetida às sessões de quimioterapia e radioterapia disponíveis no Sistema Único de Saúde Brasileiro, porém, sem alcançar remissão da doença. Então, sua médica oncologista toma ciência sobre uma nova medicação de alto custo, já reconhecida e aprovada em âmbito internacional, mas sem aprovação perante a ANVISA - Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Nessa hipótese, considerando o tempo que se leva para um medicamento ser aprovado e registrado perante ANVISA, bem como o risco de demora para a paciente, poderíamos fazer uso da Teoria da Perda de Uma Chance em Perspectiva para fundamentar o direito da paciente de fazer uso dessa medicação mesmo sem registro e aprovação da ANVISA, uma vez que ela pode estar diante de sua última chance de cura, qual seja, submeter-se ao uso dessa medicação ainda não registrada na ANVISA. A Teoria da Perda de Uma Chance em Perspectiva também pode ser aplicada nos casos de prescrição de medicamentos órfãos11 para pacientes com doenças raras. Para algumas doenças raras já existem medicamentos registrados perante a ANVISA, mas que ainda não foram incluídos na RENAME - Relação Nacional de Medicamentos Essenciais12, motivo pelo qual não são cobertos pela União ou pelo Estado. Igualmente, ainda não foram incluídos no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, relação que as operadoras de planos privados de assistência à saúde tomam como referência para oferecer cobertura aos seus beneficiários. Em relação aos medicamentos órfãos, tomemos como exemplo um dos medicamentos mais caros do mundo, chamado zolgensma (uma única doze pode custar mais de seis milhões de reais), indicado para AME - atrofia muscular espinhal tipo 1 com 2 cópias do gene SMN2, doença rara, degenerativa, passada de pais para filhos e que não tem cura. "O prognóstico para pacientes portadores de AME tipo 1 com 2 cópias do SMN2 é grave; esses pacientes mostram sinais da doença logo após o nascimento (6 meses de vida), nunca adquirem a capacidade de sentar-se e geralmente não sobrevivem aos últimos 2 anos sem suporte ventilatório e nutricional mecânico significativo. A maioria dos pacientes com AME de início infantil não sobrevive à primeira infância devido à insuficiência respiratória. AME é a causa monogênica mais comum de mortalidade infantil." 13 Esse medicamento é o que mais aumenta a chance de cura para AME. Apenas uma aplicação já surte efeito contra a doença, só que ela precisa ser feita até os dois primeiros anos de idade. Nesse caso, estamos diante de uma situação clara de última chance de cura ou da melhor chance. Se a criança com AME não tomar a medicação ela, certamente, virá a óbito, motivo pelo qual ela tem direito de fazer uso dessa que pode ser sua última ou única chance de cura. Nos casos de planos privados de assistência à saúde a teoria em discussão também pode ser aplicada, especialmente nos casos em que o tratamento prescrito ainda não foi incluído no Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde editado pela ANS. Se o paciente tiver que aguardar a inclusão de um determinado tratamento ou medicamento no ROL, inclusive medicamentos de uso OFF LABEL (fora da bula), o que pode levar meses e até anos, ele poderá perder sua chance de cura ou melhora do quadro clínico, razão pela qual ele também poderia fundamentar seu pedido na teoria da perda de uma chance em perspectiva. Em todas estas hipóteses os pacientes estão, em perspectiva, diante de uma clara probabilidade de perder uma última ou única chance de cura ou ainda uma chance de melhora do quadro clínico com ganho de sobrevida. Diante desses apontamentos, penso que seria razoável fazermos o seguinte questionamento: Os pacientes que fazem uso do SUS ou dos planos privados de assistência à saúde tem direito de fazer uso de todas as alternativas de tratamentos de saúde disponíveis, inclusive aqueles que ainda não foram aprovados e registrados perante a ANVISA ou incluídos no Rol da ANS? Tratamentos ainda considerados experimentais, inclusive medicamentos de uso OFF LABEL, mas que já possuam evidências de eficácia, os quais podem ser considerados como única ou última alternativa de cura, também devem ser cobertos pelo SUS e pelos planos de saúde? Penso que a resposta deveria ser positiva para essas duas perguntas, uma vez que estamos diante de direito fundamental albergado pela Constituição Federal Brasileira. Apesar disso, mesmo que você pense diferente, espero que esses apontamentos e questionamentos levem a uma profunda reflexão a respeito de um tema tão importante e que demanda urgência na criação de políticas públicas relacionadas, especialmente porque diretamente relacionado a pacientes com doenças raras e oncológicas. ____________ 1 HIGA, Flávio da Costa. Responsabilidade civil: a perda de uma chance no direito do trabalho. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 15. 2 HIGA, Flávio da Costa. Responsabilidade civil: a perda de uma chance no direito do trabalho. São Paulo: Saraiva, 2012, 15. 3 GUEDES, Gisele Sampaio da Cruz. Lucros cessantes: do bom-senso ao postulado normativo da razoabilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 105. 4 GUEDES, Gisele Sampaio da Cruz. Lucros cessantes: do bom-senso ao postulado normativo da razoabilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 106-107. 5 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil dos hospitais: código civil e código de defesa do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 246. 6 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil dos hospitais: código civil e código de defesa do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 246. 7 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2011, p. 99. 8 MELO, Raimundo Simão de. Direito ambiental do trabalho e a saúde do trabalhador: responsabilidades legais, dano material, dano moral, dano estético, indenização pela perda de uma chance, prescrição. 5. ed. São Paulo: LTR, 2013, p. 464. 9 SILVA, Rafael Peteffi da. Responsabilidade civil pela perda de uma chance. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 194. 10 HIGA, Flávio da Costa. Responsabilidade civil: a perda de uma chance no direito do trabalho. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 44-45. 11 Um medicamento órfão é um medicamento desenvolvido para o tratamento de uma doença rara. Uma doença rara é definida como uma condição que afeta uma porcentagem muito pequena da população e é fatal ou gravemente debilitante. [...] o número de pacientes é tão pequeno que uma doença rara muitas vezes não é "adotada" pela indústria farmacêutica (daí a expressão medicamento órfão). Disponível aqui. 12 A Relação Nacional de Medicamentos Essenciais - Rename é um importante instrumento orientador do uso de medicamentos e insumos no SUS. A Rename 2022 apresenta os medicamentos oferecidos em todos os níveis de atenção e nas linhas de cuidado do SUS, proporcionando transparência nas informações sobre o acesso aos medicamentos da rede. Disponível aqui. 13 Disponível aqui. 
Quando um paciente agenda uma consulta médica e vai ao encontro do profissional, ele espera um diagnóstico correto para iniciar o tratamento adequado para poder se recuperar da sua condição de saúde. A consulta na relação médico-paciente consiste na anamnese, no exame físico, hipótese ou conclusão diagnóstica, solicitação de exames complementares (laboratoriais ou de imagem) e a prescrição medicamentosa.1 Diagnosticar não é um ato simples, mas sim um processo complexo. Conforme Rizzardo (2013, p. 325), diagnosticar "constitui uma operação delicada, feita em vista dos sintomas apresentados, dos exames e verificações auscultadas em face de testes e de múltiplas reações". Complementando essa visão, Kfouri Neto (2018, p. 219) define "o diagnóstico como o conjunto de atos médicos com a finalidade de reconhecer, identificar e interpretar sinais característicos da doença, para estabelecer a terapêutica adequada e necessária à obtenção da cura." Muito além de correlacionar sintomas e doenças, o diagnóstico estabelece a conduta médica e o prognóstico. Um diagnóstico correto considera todos os sinais e sintomas do paciente, bem como a anamnese, sem influenciar a descrição da evolução da doença (SCHAEFER, 2012, p. 65-66). O erro de diagnóstico, por norma, não terá o condão indenizatório, desde que não tenha sido provocado por manifesta negligência (FRANÇA, 2014, p. 248). Porém, se um médico prudente não o cometesse, em iguais condições externas que o médico demandado, estaremos diante de um erro indenizável (KFOURI NETO, 2018, p.113). No mesmo sentido, Maldonado (2019, p. 46) afirma que "[...] o médico que, por erro grosseiro, venha causar dano ao paciente, tem o dever, como decorrência da responsabilidade civil, de indenizá-lo". Entretanto, se um erro de diagnóstico grosseiro não for identificado, qualquer demanda de indenização contra o médico não pode resultar em sua condenação. Como exemplo, tem-se o acórdão de apelação 0019735-58.2020.8.16.00142, proferido em 19/4/24, pela 10º Câmara Cível do TJ/PR, que se destaca por aplicar esta compreensão doutrinária, pois enfrentou diretamente a complexa questão do diagnóstico médico e decidiu pela ausência de responsabilidade civil do médico ao julgar ação de indenização por danos morais e patrimoniais em razão de suposta falha no atendimento médico e hospitalar dispensado ao filho da autora, que teve como diagnóstico primário adenite mesentérica, quando, na verdade, tratava-se de um quadro de apendicite aguda. Ao analisar e julgar a situação apresentada, o acórdão destacou que o médico utilizou todos os meios diagnósticos disponíveis (exames laboratoriais, físicos e de imagem), conforme o art. 323 do Código de Ética Médica, e que a conduta médica foi considerada adequada, pois os exames não indicaram claramente um quadro de apendicite aguda. Assim, não houve culpa dos médicos nem nexo de causalidade entre o atendimento e os danos alegados pelo paciente. Dada a avaliação técnica e a ausência de erro grosseiro, o acórdão foi categórico no sentido de que não há fundamento para responsabilizar os profissionais de saúde ou o hospital pelo diagnóstico e tratamento fornecidos. Partindo deste caso prático, evidencia-se que realizar um diagnóstico médico é um processo complexo que requer a integração de múltiplos dados clínicos e tecnológicos. A precisão depende da utilização adequada dos recursos diagnósticos e da análise minuciosa dos sintomas e exames. A atribuição de supostos erros de diagnóstico pode ocorrer devido à semelhança entre diferentes condições médicas e à evolução temporal dos sintomas. Inclusive, o acórdão destaca que, mesmo com alta competência técnica e diligência, o diagnóstico pode ser um desafio, sem que isso necessariamente implique culpa ou responsabilidade dos profissionais de saúde. Nesta linha de raciocínio, Kfouri Neto (2018, p. 220) enfatiza que: Existem sintomas inespecíficos, doenças assintomáticas, indícios claros de determinadas patologias que mascaram doenças mais graves, relatos inexatos dos próprios pacientes, males de evolução tão rápida - e, muitas vezes, letal - que torna impossível a efetivação de exames complementares, para auxiliar a fixação do correto diagnóstico. Diante dessa complexidade, é crucial que os médicos utilizem todas as ferramentas à sua disposição. Além da empatia, do zelo e do cuidado, o avanço tecnológico deve ser utilizado pelo médico como meio para corroborar para um diagnóstico ideal. Gonçalves (2013, p. 268) faz um importante alerta para casos nos quais os profissionais dispensam a utilização da tecnologia, vejamos: Diante do avanço médico-tecnológico de hoje, que permite ao médico apoiar- se em exames de laboratório, ultrassom, ressonância magnética, tomografia computadorizada e outros, maior rigor deve existir na análise da responsabilidade dos referidos profissionais quando não atacaram o verdadeiro mal e o paciente, em razão de diagnóstico equivocado, submeteu- se a tratamento inócuo e teve a sua situação agravada, principalmente se verificar que deveriam e poderiam ter sido submetido ao seu cliente a esses exames e não o fizeram, optando por um diagnóstico precipitado e impreciso. Ademais, o erro de diagnóstico divide-se em duas categorias: Erro de diagnóstico evitável e erro de diagnóstico inevitável. Schaefer (2012, p. 66) explica que inevitáveis são aqueles decorrentes da própria limitação da ciência médica (como doenças ainda não catalogadas) e por isso não constituem faltas graves e consequentemente não são puníveis. Por outro lado, erros de diagnóstico evitáveis podem gerar a responsabilidade do médico. A autora esclarece que "são erros que teriam sido evitados se todas as precauções necessárias (como realização de exames clínicos, laboratoriais, físicos, etc.) tivessem sido tomadas". Dessa forma, é essencial que os médicos façam uso das novas tecnologias disponíveis para embasar seus diagnósticos e realizem anamnese completa antes de levantar hipóteses diagnósticas. Isso não só melhora a precisão, mas também reduz a probabilidade de erros evitáveis que poderiam resultar em responsabilidade civil. Sobre a responsabilidade civil médica, convém esclarecer que o médico responde com base na teoria subjetiva, que se fundamenta na aferição de culpa stricto sensu (negligência, imprudência e imperícia), conforme estabelecido nos artigos 186 e 951 do Código Civil, cabendo, então, à vítima comprovar o nexo de causalidade entre o dano e o ato médico culposo. Neste contexto, Kfouri Neto (2018, p. 224), assevera que, para a identificação da culpa na conduta do médico ao efetuar um diagnóstico, é necessário considerar fatores "como açodamento, pressa e precipitação (imprudência), falta de exames imprescindíveis (negligência) ou desconhecimento da ciência médica (imperícia)." Diante de todo o exposto, conclui-se, que a arte de diagnosticar exige precisão, empatia e o uso adequado das tecnologias disponíveis. Erros de diagnóstico, embora muitas vezes inevitáveis, podem ser minimizados com práticas diligentes e uma abordagem criteriosa. E a responsabilidade civil médica se torna uma realidade quando o erro poderia ter sido evitado com a devida cautela, destacando a importância do contínuo aprimoramento e rigor na prática médica. ___________ CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA: Resolução CFM nº 2.217/2018, modificada pelas Resoluções CFM nº 2.222/2018 e 2.226/2019 - Brasília: Conselho Federal de Medicina, 2019. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM nº 1.958/2010. Disponível aqui. Acesso em 22 de maio de 2024. FRANÇA, Genival Veloso de. Direito médico. 12. ed. rev., atual. ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2014. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: responsabilidade civil. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. v. 4. KFOURI NETO, Migue. Responsabilidade civil dos hospitais: Código Civil e Código de Defesa do Consumidor. - 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2018. KFOURI NETO, Miguel. 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EXAME DE SANGUE QUE APONTOU INFECÇÃO. DIAGNÓSTICO DE ADENITE MESENTÉRICA. MENOR QUE FOI MEDICADO, COM ALTA POSTERIOR, SOB INDICAÇÃO DE RETORNO EM 24 HORAS NA PERSISTÊNCIA DOS SINTOMAS. RETORNO EM OUTRO NOSOCÔMIO, COM ATENDIMENTO DEPOIS DE MAIS DE 34 HORAS DA ALTA MÉDICA. FEITO EXAME DE TOMOGRAFIA, QUE APONTOU APENDICITE AGUDA COM SUPURAÇÃO. INTERVENÇÃO CIRÚRGICA E POSTERIOR RESTABELCIMENTO, SEM COMPLICAÇÕES. AUTORES QUE AFIRMAM QUE O ATRASO NO DIAGNÓSTICO CORRETO, CAUSOU A PERFURAÇÃO DO APÊNDICE, COLOCANDO A VIDA DO MENOR EM RISCO. APLICAÇÃO DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. RESPONSABILIDADE DO PROFISSIONAL MÉDICO SUBJETIVA. INTELIGÊNCIA DO ART. 14, §4º DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. RESPONSABILIDADE DO HOSPITAL OBJETIVA, MEDIANTE CARACTERIZAÇÃO DA RESPONSABILIDADE DO MÉDICO. INSTRUÇÃO DO PROCESSO COM PERÍCIA, COMPLEMENTADA EM SEGUNDO GRAU. AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE DOS MÉDICOS E, DE CONSEQUÊNCIA, DO HOSPITAL. INEXISTÊNCIA DE ERRO DE DIAGNÓSTICO GROSSEIRO. QUADRO DE ADENITE MESENTÉRICA QUE SE ASSEMELHA AO QUADRO DE APENDICITE. EXAME FÍSICO QUE NÃO APONTOU QUADRO DE DOR TRADICIONAL DA MOLÉSTIA. EXAMES DE IMAGEM QUE NÃO APONTARAM ALTERAÇÕES SUFICIENTES PARA O DIAGNÓSTICO DE APENDICITE AGUDA. EVOLUÇÃO NATURAL DO QUADRO. MÉDICOS QUE AGIRAM CONFORME PRÁXIS MÉDICA, SOLICITANDO EXAMES, MEDICANDO E INTERPRETANDO O ESTADO CLÍNICO CONFORME SE APRESENTOU NO MOMENTO. AUSÊNCIA DE RESPONSABILIDADE DOS REQUERIDOS. PEDIDO IMPROCEDENTE. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. (TJPR - 10ª Câmara Cível - 0019735-58.2020.8.16.0014 - Londrina -  Rel.: DESEMBARGADORA ANGELA KHURY -  J. 22.04.2024) 3 Art. 32. [É vedado ao médico:] Deixar de usar todos os meios disponíveis de promoção de saúde e de prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente.
Durante longa data, houve intensos debates no âmbito judicial em nosso país acerca do caráter exemplificativo ou taxativo do rol de procedimentos e eventos em saúde da ANS. Tal discussão foi encerrada com um backlash normativo com origem no Congresso brasileiro: em 21 de setembro de 2022, foi sancionada a Lei 14.454/2022, que previu que o rol da ANS constitui apenas referência básica e que procedimentos e eventos fora dele deverão ser cobertos pelos planos de saúde contanto que haja recomendação por órgão técnico, nacional ou estrangeiro, OU que haja comprovação da eficácia científica, "à luz das ciências da saúde". Caberá, então, ao magistrado, a partir da análise dos métodos utilizados pelo estudo científico apresentado para respaldar a prescrição do tratamento/medicamento, avaliar efetivamente a sua eficácia superior quando comparado com outro método consolidado ou mais tradicional. Isso porque, caso se esteja diante de pseudoestudos (junk science), a avaliação judicial deverá ser a de que não houve comprovação científica e, portanto, não foram cumpridos os requisitos legais para prescrição do tratamento/medicamento fora do rol da ANS. Essa avaliação tende a ser complexa, vez que o magistrado não possui conhecimento técnico suficiente para avaliar estudos clínicos. A definição a respeito do caráter do rol da ANS possui implicações profundas: se, por um lado, a medicina é uma ciência em constante e rápida evolução, e por óbvio o Poder Executivo, por meio da competência delegada à ANS, não tem a capacidade de manter o rol de procedimentos e eventos em saúde atualizado de acordo com os últimos avanços científicos, por outro, também parece salutar que se busque preservar o paciente de tratamentos experimentais. Portanto, inexistem razões para compelir os planos de saúde a custear alternativas sem eficácia científica comprovada. A lei 14.454/2022 foi aprovada pelo Congresso e, em, 21 de setembro de 2022, entrou em vigor com a sanção presidencial. A partir dela, não seria mais cabível negativa de cobertura de tratamento com base na ausência de previsão no rol da ANS. Foi alterada, assim, a Lei 9.656/1998, que passou a prever, em seu art. 10, §12, que "O rol de procedimentos e eventos em saúde suplementar, atualizado pela ANS a cada nova incorporação, constitui a referência básica para os planos privados de assistência à saúde (...)". A mesma Lei 9.656/1998, no parágrafo seguinte, prevê as condições para que a cobertura seja autorizada pela operadora de planos de saúde, sendo os requisitos alternativos, e não cumulativos. Assim, se o procedimento previsto pelo médico assistente não estiver previsto no rol da ANS, a cobertura DEVERÁ ser autorizada contanto que:  I - exista comprovação da eficácia, à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico; ou II - existam recomendações pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), ou exista recomendação de, no mínimo, 1 (um) órgão de avaliação de tecnologias em saúde que tenha renome internacional, desde que sejam aprovadas também para seus nacionais.  O inciso I, ao estipular a necessidade de que o medicamento/tratamento possua eficácia "baseada em evidências científicas", outorga ao juiz a necessidade de avaliação até mesmo dos métodos utilizados em estudo que suporte eventual prescrição médica cuja cobertura não esteja prevista no rol da ANS. O inciso II, por sua vez, não deixa margem para interpretação: se houver recomendação do Conitec ou de órgãos internacionais renomados - e, aqui, podemos mencionar a Food and Drug Administration (FDA), no âmbito dos Estados Unidos, ou a Agência Europeia de Medicamentos - o tratamento prescrito pelo médico deverá ser coberto. Diante disso, é necessário que a parte que judicializa uma negativa de tratamento que não se encontra previsto no rol da ANS traga ao menos algum estudo que demonstre a sua eficácia. O paciente deverá contar com o auxílio próximo do médico assistente, que deverá fornecer o embasamento teórico que levou à prescrição de um determinado tratamento/medicamento em detrimento de outro que porventura esteja expressamente previsto no rol da ANS, acompanhado de uma justificativa técnica indicando de maneira pormenorizada por que a prescrição seria imprescindível àquele paciente, enaltecendo os benefícios específicos e sua superioridade. Embora aplicável à prova pericial/técnica, faz-se necessária a análise de precedentes dos Estados Unidos, os quais já enfrentaram a discussão sobre a avaliação judicial do que se entenderia por junk science, estabelecendo critérios objetivos que podem auxiliar o julgador brasileiro a buscar elementos que evidenciem a pseudociência quando estiver em discussão a eficácia científica de procedimentos e eventos em saúde. Inicialmente, devemos abordar o contexto de tais precedentes: todos dizem respeito à avaliação sobre a fiabilidade da prova técnica, não necessariamente em matéria de saúde. Os padrões para aferição da confiabilidade da prova técnica foram estabelecidos primeiramente em casos criminais. Em 1923, o emblemático caso Frye v. United States estabeleceu que o depoimento pericial deve ser baseado em "métodos científicos que sejam suficientemente estabelecidos e aceitos"1, passando a ser conhecido como Frye standard enquanto teste de admissibilidade geral de provas científicas. Em resumo, James Alphonzo Frye foi condenado por homicídio. Durante a instrução, o advogado da defesa arrolou uma expert witness para corroborar os resultados de um detector de mentiras aplicado sobre o réu - sustentava-se que a pressão sanguínea sofre alterações a partir de mudanças no humor da testemunha, com a demonstração de que sentimentos como raiva e dor produzem um aumento na pressão sistólica, aplicando-se a mesma conclusão caso a testemunha minta ou oculte fatos, diante do receio de detecção, o que não ocorreria se o relato fosse o retrato da verdade. O réu foi submetido ao teste previamente ao julgamento, conduzido justamente pela testemunha técnica, que pretendia afirmar os resultados obtidos diante do júri. A acusação impugnou a prova, que foi acolhida pela instrução. A defesa, então, pleiteou de forma alternativa a submissão do réu ao detector de mentiras perante o júri, o que também foi negado. A Corte do Circuito do Distrito de Columbia2 decidiu pela manutenção do indeferimento, tendo em vista que a conclusão apresentada pelo depoimento científico, para que seja admissível, deve "estar suficientemente estabelecida a ponto de ter aceitação geral no campo particular a que pertence" - tal hipótese ainda não teria ocorrido com a apresentação das alterações da pressão sanguínea sistólica como prova de que uma afirmação seria verdadeira ou falsa, ao menos não a ponto de ser admitida como prova em juízo. Trata-se de um critério objetivo que não abre muita margem interpretativa: há aceitação geral na comunidade científica? Se a resposta for negativa, o depoimento técnico não será admitido. Quando a decisão foi proferida, em 1923, talvez a ciência não caminhasse a passos tão largos como ocorre atualmente. Assim, a aplicabilidade de tal critério poderia ser suficiente como critério epistêmico de fiabilidade naquela época. Em 1993, o emblemático precedente da Suprema Corte Estadunidense Daubert v. Merrell Dow Pharmac. Inc.3 instituiu relevantes parâmetros sobre a confiabilidade do depoimento técnico, ao reconhecer que as Federal Rules of Evidence (normas processuais e de admissibilidade que vigoram nas Cortes Federais) teriam substituído o standard Frye como padrão de admissibilidade da prova testemunhal técnica. Em resumo, a senhora Daubert fez uso de um medicamento para enjoo durante a gravidez chamado de Benedectin. Seu filho, Jason Daubert, nasceu com malformações (especificamente, a ausência de três dedos em sua mão direita, além de não ter um dos ossos no antebraço, sem contar outros problemas secundários), atribuídas, supostamente, ao uso do fármaco durante a gestação, o que motivou a família a ajuizar uma demanda indenizatória em face da indústria farmacêutica. A família Daubert deveria provar, portanto, que o medicamento que causava defeitos de nascença e, para tanto, contratou peritos científicos para testemunhar em seu favor. Todos os estudos científicos preliminares não haviam demonstrado que o Benedictin aumentava os riscos de malformação se ministrado durante a gravidez, então foram utilizados estudos laboratoriais, sobretudo com testes em animais e análises químicas. Na primeira instância, as testemunhas técnicas foram excluídas, tendo em vista a inexistência de consenso na comunidade científica quanto aos malefícios causados pelo fármaco em análise. O tribunal confirmou o julgamento. Finalmente, ao chegar na Suprema Corte, entendeu-se que as Federal Rules of Evidence, aplicáveis às cortes federais, preveem expressamente os parâmetros para admissibilidade do testemunho científico na Rule 702, superando (overruling) o entendimento de Frye. Segundo a Corte, o rígido parâmetro de "aceitação geral" estabelecido por Frye não encontraria suporte nas FRE, estando em descompasso com o espírito liberal das regras, já que impediria que o júri tivesse acesso a inovações científicas de grande credibilidade (good science4), mas que ainda não gozam de aceitação geral entre a comunidade científica. Foi determinado que o juiz deve atuar como um guardião (gatekeeper), impedindo que junk science seja utilizada como fundamento decisório pelo júri. Remetendo à Rule 702, a Corte afirma que é imprescindível que o depoimento do perito pertença "ao 'conhecimento científico', vez que o adjetivo 'científico' implica no embasamento em métodos e procedimentos da ciência, enquanto a palavra 'conhecimento' denota um corpo de fatos conhecidos [...] aceitos como verdade". Estabeleceu-se, portanto, cinco fatores (não necessariamente cumulativos e apenas exemplificativos) para aferir a fiabilidade da metodologia utilizada pelo perito:  1) A teoria ou técnica empregada pelo especialista é geralmente aceita na comunidade científica? 2) Foi submetida à publicação e revisão pelos pares? 3) Pode ser e foi testada? 4) A taxa de erro conhecida ou potencial é aceitável?; e 5) A pesquisa foi realizada independentemente do litígio específico ou na intenção de fornecer a conclusão apresentada?5 Na mesma década do julgamento de Daubert, a Suprema Corte decidiu em outros casos a possibilidade de que o juiz examine, de forma discricionária, a conclusão da prova pericial - segundo Rachel Herdy, migrou-se de um entendimento de deferência6 do juiz sobre a prova técnica produzida para um modelo de educação7. O mesmo raciocínio se aplicaria na avaliação sobre a existência de comprovação da eficácia, "à luz das ciências da saúde, baseada em evidências científicas e plano terapêutico" de um determinado tratamento prescrito que não esteja previsto no rol da ANS. Posteriormente, em 1999, outro precedente relevante do ponto de vista epistemológico foi decidido pela Suprema Corte dos Estados Unidos. Em Kumho Tire Co. v. Carmichael8, Patrick Carmichael dirigia seu automóvel quando o pneu traseiro direito explodiu, levando um dos passageiros a óbito e causando ferimentos severos nos demais. Em vista disso, ajuizou demanda indenizatória em face do fabricante, Kumho Tire. O expert arrolado pelos autores da ação atribuiu a explosão do pneu a falhas do fabricante - o que concluiu a partir de uma "inspeção visual e tátil no pneu". A empresa, por evidente, discordou, questionando a (falta de) metodologia aplicada pelo perito, pleiteando sua exclusão com base na Rule 702. A Corte Distrital, invocando o precedente Daubert, decidiu que os métodos aplicados pelo perito não eram cientificamente válidos, determinando a sua exclusão. Ao apelar, o décimo primeiro circuito, cassou a decisão, aplicando a técnica de distinguishing para concluir que o precedente Daubert não seria aplicável, tendo em vista que o depoimento em Kumho Tire diria respeito não a um depoimento técnico-científico, mas a uma observação empírica baseada na experiência. Kumho Tire recorreu, então, à Suprema Corte, para que esta decidisse se o precedente Daubert seria aplicável apenas às provas científicas ou também àquelas baseadas em observação da realidade, a partir da experiência. A decisão foi convergente com a da Corte Distrital, ou seja, no sentido da exclusão da prova técnica por não resistir aos parâmetros de admissibilidade estabelecidos em Daubert, haja vista que a Rule 702 não aplica distinções entre o conhecimento científico ou técnico, com a ressalva de que não há uma fórmula para aplicação em todos os casos se a prova técnica é admissível ou não: a aplicabilidade dos critérios estabelecidos em Daubert dependeria das "circunstâncias particulares do caso particular em questão". Em suma, a decisão sobre a admissibilidade das provas técnicas é casuística: "a decisão de Kumho Tire por fim reconhece que o que realmente importa não é saber se o testemunho pericial possui base científica, e sim se é confiável - mas parece deixar todas as questões delicadas à discrição dos tribunais"9, o que se configura em "um importante avanço epistemológico"10. O relevante aqui é que houve uma ampliação dos casos em que, potencialmente, os critérios estabelecidos pelo precedente Daubert seriam aplicáveis, vez que não ficariam restritos às provas científicas, mas igualmente em técnicas ou "observações baseadas na experiência". Isso não significa que os fatores para avaliação metodológica em Daubert tenham perdido relevância, mas apenas que deve ser feita uma maior reflexão quanto à sua aplicabilidade ou não: "os tribunais podem usar qualquer um, todos ou nenhum dos fatores de Daubert, e/ou outros fatores mais apropriados à tarefa do momento - confirma que esse assunto delicado deve ser deixado ao arbítrio dos tribunais"11. O mesmo raciocínio se aplicará quando da avaliação de estudo utilizado para suportar pedido judicial de concessão de tratamento / medicamento. O próprio Código de Processo Civil brasileiro, no art. 479, dispõe que o juiz deve levar em consideração o método empregado pelo perito, quando da produção de prova pericial: "O juiz apreciará a prova pericial de acordo com o disposto no art. 371, indicando na sentença os motivos que o levaram a considerar ou a deixar de considerar as conclusões do laudo, levando em conta o método utilizado pelo perito ". Portanto, a exemplo dos precedentes estrangeiros, nossa legislação chancela a importância da análise do método em provas mais complexas, para além das conclusões finais do estudo, cuja avaliação é deveras difícil a qualquer pessoa que não pertença àquela esfera do conhecimento. Entretanto, como pode o juiz avaliar, sobretudo em sede de cognição sumária, um estudo científico utilizado para respaldar o pedido de fornecimento de tratamento/medicamento, se não possui formação médica? Nesta senda, critérios estabelecidos por precedentes americanos podem ser aplicados individualmente ou cumulados na avaliação: 1) A teoria ou técnica empregada pelo especialista é geralmente aceita na comunidade científica? Aqui, temos o critério Frye aplicado - caso haja consenso científico, ao menos relativo, há bons indícios acerca da cientificidade do tratamento/medicamento cuja concessão é pleiteada. 2) Foi submetida à publicação e revisão pelos pares? Responder a essa pergunta significa avaliar se o critério de submissão de um determinado artigo científico a um periódico ou revista passou, previamente, por uma revisão isenta e com rigor metodológico por parte do corpo editorial (pares do autor do estudo). 3) Pode ser e foi testada? Especificamente em casos médicos, o teste já deve ter sido realizado preferencialmente em seres humanos (o que, aliás, é imprescindível para aprovação de um novo medicamento). A experiência obtida do precedente Robert K. Joiner contra a Monsanto, General Electric e Westinghouse Electric indica que testes laboratoriais muitas vezes não resistem a indagações mais aprofundadas, já que, neste caso, ratos foram expostos a concentrações extraordinárias e concentradas de uma substância efetivamente capaz de causar câncer, o que não ocorreria na proporção experimentada pelo demandante no caso concreto. 4) A taxa de erro conhecida ou potencial é aceitável? Os estudos trazem em seu bojo margens de erro inerentes ao método científico, uma vez que analisam, em regra, apenas amostras do universo de pessoas que potencialmente pode ser exposto ao tratamento/medicamento - quanto maior a amostra, menor será a taxa de erro, o que aumentará a chance de que o tratamento / medicamento seja eficaz. 5) A pesquisa foi realizada independentemente do litígio específico ou na intenção de fornecer a conclusão apresentada? "Estudos" encomendados unicamente para demonstrar um ponto de vista são epistemicamente suspeitos, pois seus condutores atuam com um viés confirmatório (confirmation bias), havendo alguns indícios como o interesse econômico de um eventual financiador do estudo na confirmação da eficácia de seu medicamento ou técnica.12 O que pretendemos, no presente artigo, foi fornecer elementos mínimos para avaliação de estudos científicos apresentados para suportar tratamentos/medicamentos que não estejam previstos no rol da ANS. Como o dilema já foi enfrentado pela jurisprudência da Suprema Corte norte-americana, achamos por bem buscar inspiração na case law estrangeira a fim de evitar ao máximo que junk science contamine o Judiciário com pedidos de custeio de tratamentos / medicamentos que careçam de qualquer elemento científico que demonstre a sua eficácia, quando então poderiam ser legitimamente negados.  Referências:  ABELLÁN, Marina Gascón. 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Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Estado do Paraná, Curitiba, n. 9, p. 11-30, 2018. p. 23. 6 Neste contexto específico, afirmar que o magistrado adota uma postura de deferência em relação à prova pericial produzida equivale a afirmar que o julgador se abstém de avaliar a conclusão da prova pericial, delegando a um terceiro (o perito) a decisão. 7 HERDY, Rachel. Ni educación, ni deferencia ciega. Hacia un modelo crítico para la valoración de la prueba pericial. Revista Discusiones, v. 24, n. 1, p. 87-112, 2020. 8 UNITED STATES. US Supreme Court. Kumho Tire Co. v. Carmichael, 526 U.S. 137 (1999). Disponível aqui. Acesso em: 15 abr. 2023. 9 HAACK, Susan. Perspectivas Pragmatistas da Filosofia do Direito. Tradução de André de Godoy Vieira e Nélio Schneider. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2015. p. 180 (grifo no original). 10 Ibidem, p. 214. 11 Ibidem, p. 242 (grifo no original). 12 SILVA, Fernando Quadros da. O juiz e a análise da prova pericial. Revista Jurídica da Procuradoria-Geral do Estado do Paraná, Curitiba, n. 9, p. 11-30, 2018. p. 23.
A experiência na prática forense revela que muitas ações de indenização por patrimoniais ou extrapatrimoniais propostas em face de médicos e profissionais da saúde se devem não necessariamente a um erro médico (imprudência, negligência ou imperícia), mas pela inobservância de algumas cautelas necessárias no atendimento de saúde.1 No contexto da telemedicina, da telessaúde2 e da telemática em saúde3, o dever de informar ganha especial relevância. A sociedade se encontra em constante transformação, e para que o Direito possa cumprir seu papel e regular as novas situações decorrentes dessas mudanças, é necessário que ele também se atualize. Os procedimentos mais utilizados pelas redes de Telemedicina são: Teleconsulta ou consulta em conexão direta; teleatendimento; telepatologia; telerradiologia (Resolução 2.107/14 do Conselho Federal de Medicina); telemonitoramento ou televigilância (homecare); telediagnóstico; teleconferência; telecirurgia; teleterapia; sistemas de apoio à decisão; aplicativos de atendimento para smartphones. Os procedimentos mais utilizados pelas redes de Telessaúde são: teledidática; telefonia social; comunidades; bibliotecas virtuais e videoconferências; aplicativos didáticos para smartphones; e mais recente inteligência artificial (machine learning). Durante pandemia do COVID-19, houve um crescimento exponencial na utilização da telemedicina pela comunidade médica, possibilitando um atendimento imediato e seguro, evitando o deslocamento desnecessário do paciente até clínicas médicas e hospitais, reduzindo a sua exposição aos agentes nocivos causadores da infecção viral. Atento a esse cenário, o CFM - Conselho Federal de Medicina editou a resolução 2.314/22, com a finalidade de definir e regulamentar a telemedicina, como forma de serviços médicos mediados por tecnologias de comunicação. Além disso, foi também promulgada a lei 14.510/22, que alterou a lei orgânica de saúde (lei 8.080/90) para autorizar e disciplinar a prática da telessaúde em todo o território nacional. A implementação da telessaúde, por si só, se mostra como um grande desafio a ser superado. Conforme se verifica de estudo publicado no Journal of Medical Internet Research, as principais barreiras relatadas pelos pacientes são: Conexão lenta; Dificuldades de navegação ou instalação do sistema de consulta;  Distrações com o ambiente doméstico ou pela presença de membros da família, inclusive desencadeando preocupações com privacidade;  Dificuldades em se comunicar e se expressar.4 Em que pese o atendimento médico à distância proporcione agilidade e facilidade de acesso, as vulnerabilidades e individualidades do paciente merecem especial atenção. As relatadas dificuldades de se expressar se mostram preocupantes, na medida em que a comunicação transparente e eficaz entre médico e paciente é elemento indispensável, pois estabelece confiança no compartilhamento de informações, auxiliando sobremaneira a assertividade do diagnóstico.  Nas relações de consumo, um dos mais relevantes deveres impostos ao prestador de serviços é o dever de informação adequada e clara ao consumidor (CDC, art. 6º, III). Considerando a vulnerabilidade agravada5 do paciente diante da enfermidade que o acomete, manifestam-se também sentimentos de impaciência e ansiedade intensificados pela grande quantidade de informações inadequadas ou equivocadas compartilhadas na internet. A ausência de conhecimento técnico e o excesso de divulgação de informações imprecisas podem ocasionar ao paciente um entendimento desacertado sobre seu real estado clínico. Nesse contexto, cabe ao profissional a adoção de medidas que tornem possível a concretização efetiva do dever de informar, de modo que estejam claros os riscos naturais do procedimento e, adicionalmente, os riscos tecnológicos inerentes ao uso da telessaúde.6 O direito de ser ouvido exsurge com força nesse contexto7 e o emprego de técnicas telemáticas, se igualmente adequada ao caso concreto, deve ser comunicada, juntamente com seus riscos, custos e eventuais benefícios para o paciente. A informação é uma das técnicas de enfrentamento do desequilíbrio de conhecimento entre os contratantes, constituindo uma manifestação autônoma da obrigação de segurança8. A violação do direito à informação adequada e clara retira do consumidor a possibilidade de autodeterminação na sua decisão e consentimento. Com isso, se houver a exposição do paciente a um risco conhecido, mas do qual ele não foi previamente informado, tal omissão pode caracterizar um defeito do serviço.9 Isso porque o art. 14 do CDC expressamente atribui responsabilidade ao fornecedor de serviços "por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos." Assim, para prevenir litígios, é necessária uma especial atenção ao conteúdo dos termos de consentimento informado, para que descrevam, além de riscos inerentes ao procedimento ou tratamento ministrado, possíveis riscos resultantes do uso de ferramentas tecnológicas, de acordo com o caso concreto. As informações prestadas pelo fornecedor por qualquer meio, além de integrar o contrato (CDC, art. 30), geram uma legítima expectativa no consumidor que deverá ser atendida. Nesse cenário, propiciar uma relação, ainda que por intermédio de meios digitais, que seja acolhedora e transmita confiança ao paciente para estabelecer um diálogo aberto e franco, ainda é o melhor método para mitigar os riscos de litígios entre médicos e pacientes. _________ 1 DOTTI, René; BERGSTEIN, Lais. O direito de o paciente ser ouvido: a responsabilidade civil e criminal do médico. Revista de Direito do Consumidor, v. 111,  p. 75-97, Maio/Jun., 2017. 2 BRASIL. Lei nº 14.510, de 27 de dezembro de 2022, altera a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para autorizar e disciplinar a prática da telessaúde em todo o território nacional, e a Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015; e revoga a Lei nº 13.989, de 15 de abril de 2020. 3 RIVABEM, Fernanda Schaefer. Telemática em saúde e sigilo profissional: a busca pelo equilíbrio entre privacidade e interesse social. Tese (Doutorado em Direito) - Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2010. 241f. 4 ALMATHAMI, H. K. Y., WIN, K. T., & VLAHU-GJORGIEVSKA, E. (2020). Barriers and Facilitators That Influence Telemedicine-Based, Real-Time, Online Consultation at Patients' Homes: Systematic Literature Review. Journal of medical Internet research, 22(2), e16407. 5 Expressão inicialmente adotada por Bruno Miragem (Curso de Direito do Consumidor. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016), para referir-se aos consumidores hipervulneráveis, que foi empregada na atualização do Código de Defesa do Consumidor pela Lei 14.181/2021. O art. 54-C, IV, do CDC confere uma proteção mais acentuada ao "consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada". Sobre o tema, veja: Claudia Lima Marques (Estudo sobre a vulnerabilidade dos analfabetos na sociedade de consumo: o caso do crédito consignado a consumidores analfabetos. São Paulo, Revista dos Tribunais, Revista de Direito do Consumidor, v. 95, set.-out., 2014. p. 145.), Antônio Carlos Efing (Fundamentos do Direito das Relações de Consumo: Consumo e Sustentabilidade. 3. ed. rev. e atual. Curitiba: Juruá, 2011. p. 110.), Maurilio Casas Maia (O paciente hipervulnerável e o princípio da confiança informada na relação médica de consumo. Revista de Direito do Consumidor, ano 22. vol. 86, São Paulo, mar.-abr. 2013. p. 203-232), Adolfo Mamoru Nishiyama e Roberta Densa (A proteção dos consumidores hipervulneráveis: os portadores de deficiência, os idosos, as crianças e os adolescentes. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 76, p. 13, out. 2010.), para citar apenas alguns pesquisadores. 6 Sobre o tema, veja: SCHAEFER, Fernanda; GLITZ, Frederico. Telemedicina: desafios éticos e regulatórios. 2. ed. Indaiatuba/SP: Foco. 2024. Também: LIMA, Taisa Maria Macena de; SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. As transformações da relação médico-paciente em razão da telemedicina. Revista dos Tribunais, v. 1033, p. 197-216, Nov. 2021, p. 197-216. 7 DOTTI, René; BERGSTEIN, Lais. O direito de o paciente ser ouvido: a responsabilidade civil e criminal do médico. Revista de Direito do Consumidor, v. 111,  p. 75-97, Maio/Jun., 2017. 8 Sobre o direito e o dever à informação, veja: KRETZMANN, Renata Pozzi. Informação nas relações de consumo: o dever de informar do fornecedor e suas repercussões jurídicas. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2019. A autora diferencia a falha da informação sobre uso (vício de informação) da falha de informação sobre riscos (defeito de informação). p. 179-208. 9 Cavalieri Filho destaca que "embora médicos e hospitais, em princípio, não respondam pelos riscos inerentes da atividade que exercem, podem eventualmente responder se deixarem de informar aos pacientes as consequências possíveis do tratamento a que serão submetidos. Só o consentimento informado pode afastar a responsabilidade médica pelos riscos inerentes à sua atividade. O ônus da prova quanto ao cumprimento do dever de informar caberá sempre ao médico ou hospital." (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 9. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 393.
A história do Cavalo de Troia e a questão dos neurodireitos em implantes cerebrais têm uma ligação fascinante que merece ser explorada mais profundamente, sobretudo à luz dos atuais avanços e promessas tecnológicas da IA aliada à neurociência, bem como das recentes notícias sobre eventos adversos ocorridos e potenciais riscos neste contexto. Na antiga cidade de Troia, um presente enigmático foi deixado às suas portas: Um enorme cavalo de madeira, oferecido pelos gregos como símbolo de rendição e paz. Os troianos, acreditando que era um presente divino, trouxeram o cavalo para dentro de suas muralhas, apenas para descobrir tarde demais que guerreiros estavam escondidos dentro dele, prontos para abrir os portões e permitir a invasão. Uma citação clássica que menciona o Cavalo de Troia é de Virgílio, o poeta romano, em sua obra 'Eneida': "Timeo Danaos et dona ferentes" (em tradução livre: "Temo os gregos, mesmo quando trazem presentes"). Esta frase é dita por Laocoonte, um sacerdote troiano, alertando sobre os gregos e seu presente enganoso, o Cavalo de Troia. A narrativa lendária, que faz parte da mitologia grega, é também mencionada na obra 'Odisseia' de Homero. Esses textos clássicos descrevem a engenhosidade dos gregos e a tragédia que se abateu sobre Troia, fornecendo uma rica narrativa que tem sido reinterpretada ao longo dos séculos em várias formas de arte e literatura. Contemporaneamente, há referência ao Cavalo de Troia em um cenário que envolve tecnologias computacionais, de autoria atribuída à Ken Thompson, um dos pioneiros da computação e criador da linguagem de programação B e do sistema operacional Unix. Em seu discurso de aceitação do Prêmio Turing em 1984, intitulado Reflections on Trusting Trust, ele afirmou: "nenhuma quantidade de verificação de fonte ou escrutínio irá proteger você de usar um código mal-intencionado. (...) Eu tenho pensado no instalador como uma espécie de Cavalo de Troia. (...) você não pode confiar em um código que você não criou inteiramente." i Thompson alertou sobre os riscos de confiar em softwares desenvolvidos por terceiros e levantou a possibilidade de que até mesmo os desenvolvedores dessas tecnologias podem ser pressionados por suas empresas a incluir portas traseiras (backdoors) ocultas no software. Em outras palavras, mesmo que o desenvolvedor não tenha previamente a intenção, ele acaba sendo compelido a incluir essas vulnerabilidades devido a exigências corporativas. Este discurso destaca a importância de uma reflexão crítica sobre o desenvolvimento tecnológico. Analogamente, na era digital da medicina, recebemos um presente tecnológico: Sistemas de IA. Assim como o Cavalo de Troia, a IA chega ao setor de saúde prometendo inovação, oferecendo cuidados mais eficientes, com diagnósticos antecipados e mais precisos, além de tratamentos personalizados revolucionários. Médicos e pacientes, fascinados pelas possibilidades, aceitam determinada tecnologia confiando que ela trará apenas benefícios. Contudo, dentro dessa maravilha tecnológica, podem estar ocultos desafios e riscos, bem como o verdadeiro objetivo por trás do seu desenvolvimento. Usos mal intencionados das tecnologias emergem como guerreiros escondidos que precisamos observar atentamente. No campo das decisões clínicas apoiadas em IA, há o risco significativo de os algoritmos não serem devidamente validados, resultando em incorretos diagnósticos e propostas de tratamento. Além disso, a IA pode perpetuar vieses existentes nos dados, resultando em disparidades de tratamento entre diferentes grupos de pacientes. Destaca-se, ainda, o risco de dependência excessiva na tecnologia, que pode levar à desvalorização do julgamento clínico humano, comprometendo a qualidade do atendimento ao paciente.ii Stephen Hawking fez uma importante declaração em entrevista ao jornal BBC News em dezembro de 2014, discutindo as implicações do desenvolvimento da IA e expressando suas preocupações sobre o potencial de alcançarmos a 'superinteligência artificial' - e isso representar um risco existencial para a humanidade: "O desenvolvimento da inteligência artificial poderia significar o fim da raça humana. (...) ela [IA] decolará sozinha e se redesenhará em um ritmo cada vez maior. Os humanos, que são limitados pela lenta evolução biológica, não poderiam competir e seriam suplantados." iii De modo similar, tecnologias neurológicas baseadas em IA (Brain-Computer Interface - BCI), que prometem conectar nossos cérebros diretamente a computadores ou a outro dispositivo fora do corpo humano, levantam preocupações significativas sobre invasão de privacidade e controle mental. Se não formos cuidadosos, o que parece ser uma dádiva pode se transformar em uma enorme ameaça. Recentemente, Elon Musk anunciou a implantação de um chip cerebral em uma pessoa, prometendo revolucionar a interface entre o cérebro e a tecnologia. O objetivo anunciado para neurotecnologias, como a mencionada, abrange diversos benefícios potenciais: Reabilitação de paralisias limitantes, danos cerebrais, distúrbios neurológicos e mentais, com comprometimento do sistema motor e/ou linguístico: As neurotecnologias ajudariam a restaurar a função motora em pessoas que sofreram lesões na coluna vertebral ou tiveram acidentes vasculares cerebrais. Esses implantes transmitiriam sinais do cérebro diretamente para dispositivos que auxiliam no movimento, permitindo aos indivíduos paralisados recuperarem a capacidade de andar ou usar as mãos. Além disso, poderiam ajudar na recuperação da fala em pacientes com distúrbios neurológicos que afetam a comunicação.iv Tratamento da dor e da epilepsia: Os implantes cerebrais seriam usados para controlar crises epilépticas em pacientes que não respondem a medicamentos tradicionais, monitorando e modulando a atividade elétrica no cérebro.v Além disso, funcionariam para o tratamento de dores crônicas, bloqueando os sinais de dor antes que cheguem ao cérebro.vi A capacidade de ajustar e otimizar a atividade cerebral levaria também a melhorias cognitivas, potencialmente ajudando em condições como Alzheimer e outras formas de demência. Restabelecimento da audição e visão: As neurotecnologias ofereceriam soluções inovadoras para pessoas com deficiências sensoriais. No caso da audição, implantes cocleares seriam conectados diretamente ao cérebro, melhorando a capacidade auditiva em pessoas surdas ou com perda auditiva severa. Para a visão, chips implantados na retina ou diretamente no córtex visual auxiliariam a restaurar a visão parcial ou completamente, em indivíduos com deficiências visuais, permitindo-lhes perceber luzes, formas e até mesmo cores.vii Além dos benefícios supracitados, estudos desenvolvidos nas últimas décadas revelam o potencial dos neurodispositivos expandirem as capacidades humanas, proporcionando novas formas de interação com aparelhos eletrônicos e possivelmente melhorando a qualidade de vida de muitas pessoas. Esse avanço na integração entre neurociência e tecnologia abre portas para inovações significativas, transformando não apenas a medicina, mas também a forma como nos comunicamos e nos divertimos. A aplicação de neurotecnologias pode revolucionar, inclusive, a indústria do entretenimento, oferecendo experiências imersivas e personalizadas em jogos, filmes e outras formas de mídia. Recentemente, noticiou-se o caso de Noland Arbaugh, atualmente com 30 anos, que é tetraplégico e perdeu o movimento abaixo do pescoço após um acidente, inscrevendo-se para participar em 2023 dos primeiros testes em humanos da Neuralink, que desenvolve implantes cerebrais. O paciente afirma que resolveu participar do experimento porque sente que Musk impulsiona o progresso dessa tecnologia e "tudo que ele toca se transforma em ouro". viii Neurotecnologias, como a desenvolvida pela startup supracitada, geralmente utilizam algoritmos de IA em várias etapas do seu funcionamento, a exemplo do processamento de sinais. Isto é, a IA pode ajudar a interpretar os sinais neurais captados pelos eletrodos implantados no cérebro. Esses sinais são extremamente complexos e variam de pessoa para pessoa, razão pela qual a IA pode aprender a decodificar os sinais para entender as intenções e comandos do usuário. Observe-se, portanto, que os algoritmos de IA podem ser utilizados para personalizar o funcionamento do dispositivo para cada indivíduo, ajustando-se automaticamente às mudanças nos padrões de sinal ao longo do tempo. No caso de Arbaugh, que se tornou a primeira pessoa a participar do ensaio clínico em humanos, testando o dispositivo da Neuralink, o seu progresso inicial foi recebido com bastante entusiasmo, sendo possível mover o cursor do mouse por meio de programas de computador traduzindo os disparos dos neurônios em seu cérebro. A ideia proposta foi a de que o cérebro formasse um tecido cicatricial ao redor dos fios na base do cérebro para segurá-lo. A tecnologia neural descrita envolve a utilização de interfaces cérebro-computador, permitindo a comunicação direta entre o cérebro da pessoa e um dispositivo externo, como um braço robótico ou computador, tal como no caso narrado. No entanto, passados quatro meses da implantação do chip, em maio de 2024, a startup de Musk enfrentou severas críticas após 85% dos fios dos implantes se soltarem do cérebro do paciente. A Neuralink ainda enfrenta obstáculos no desenvolvimento de um dispositivo durável. A falha já havia sido revelada no início de maio, mas foi detalhada pela startup no final do referido mês em reportagem no jornal The New York Times.ix Ademais, noticiou-se que foi corrigido o sistema do chip para o paciente em questão e a FDA - Food and Drug Administration autorizou a realização do teste da tecnologia neurológica com um segundo paciente.x Tais questões destacam a necessidade urgente de regulamentos de segurança e proteção dos direitos dos indivíduos em relação à sua atividade neural. Ademais, em qualquer contexto, é essencial avaliar criticamente questões relacionadas aos deveres de informação e vigilância dos profissionais utilizadores da tecnologia, ressignificados frente ao novo arcabouço tecnológico. Como qualquer implante médico, há o risco de rejeição pelo corpo ou infecção no local do implante, o que pode levar a complicações sérias de saúde. A longo prazo, os efeitos completos de implantes cerebrais ainda são desconhecidos. Pode haver riscos de efeitos adversos que não foram previstos ou detectados nos estudos científicos iniciais. Frise-se, ainda, que os dados neurais do paciente - memórias, pensamentos e emoções - formam a identidade humana e restam expostos pela tecnologia, o que revela a necessidade de proteção, dada sua natureza personalíssima. Por isso, esses dispositivos levantam várias questões relacionadas à proteção dos direitos das pessoas em relação ao seu cérebro e suas atividades neurais, os denominados neurodireitos. Vale consignar que, para alguns autores, os neurodireitos são uma nova categoria de direitos humanos que surgem em resposta aos avanços em neurociência e tecnologia, especialmente relacionados ao acesso e à manipulação do cérebro humano. Visam proteger a integridade mental e cognitiva dos indivíduos frente a essas inovações tecnológicas. Os principais neurodireitos incluem:xi Direito à privacidade mental: Proteger pessoas contra a leitura de pensamentos ou acesso não autorizado às suas atividades cerebrais; Direito à identidade pessoal: Assegurar que as intervenções neurotecnológicas não alterem a identidade pessoal de alguém sem consentimento; Direito ao livre arbítrio: Garantir que as tecnologias não interfiram na capacidade de tomar decisões de forma autônoma; Direito ao acesso equitativo às tecnologias de melhoria neurocognitiva: Promover a distribuição justa e acessível de tecnologias que melhoram as capacidades cognitivas; Direito à proteção contra viés e discriminação neurotecnológica: Evitar que as tecnologias neurocognitivas sejam usadas para discriminar indivíduos com base em suas capacidades mentais ou neuroperfis. O respeito aos neurodireitos é fundamental para assegurar que o progresso tecnológico não comprometa a dignidade, a autonomia e a privacidade dos indivíduos. Ademais, é essencial relembrarmos da narrativa sobre o Cavalo de Troia e, assim, ponderar se a promessa fascinante de uma neurotecnologia não vem acompanhada do risco oculto de atitudes ilícitas - como o desvirtuamento de finalidade do seu uso para exploração lucrativaxii - por parte dos desenvolvedores do dispositivo, especialmente levando-se em consideração os problemas regulatórios envolvidos, conforme ponderam Fernanda Schaefer e Gisele Machado Figueiredo:xiii "No caso específico das neurotecnologias ora analisadas, é possível inferir que os riscos ou o potencial de dano delas decorrentes, ainda não foram corretamente compreendidos pela sociedade e pelos entes reguladores, o que tem levado a uma classificação errônea, permitindo a sua venda sem restrições, quando eventualmente muitos deles deveriam ser classificados como dispositivos médicos e regulados pela agência sanitária. (...) De forma distinta, os produtos que não têm essencialmente finalidade médica, ainda que destinados ao uso em seres humanos, não se submetem à legislação sanitária, sendo isentos de registro prévio na Anvisa. Inseridos nessa condição encontram-se os equipamentos dotados de neurotecnologias, como EEG - eletroencefalograma, cujo intuito declarado é recreacional, a promoção da saúde e do bem-estar. Essa nova conjuntura merece maior atenção do legislador, uma vez que tais dispositivos "não médicos" acessam indiscriminadamente os dados neurais de seus usuários e os utilizam de forma ampla, desviando-se do propósito para o qual foram contratados. (...) identifica-se uma outra vulnerabilidade, relacionada ao acesso aos dados neurais de um indivíduo, com consequências ainda imprevisíveis. (...) Em um estudo feito pela Fundação Kamanau, verificou-se que as companhias neurotecnológicas apropriam-se dos dados neurais obtidos e que grande parte dos usuários autoriza a cessão dos dados a terceiros. (...) Resta evidente que dados neurais de pessoas naturais têm potencial para fomentar um banco de dados específico, promovendo o aprimoramento de um algoritmo de inteligência artificial e gerando valor ao dispositivo digital. Verifica-se, portanto, um alto risco de desvirtuamento de finalidade do seu uso, que pode repercutir em exploração lucrativa. (...) A atitude ilícita, no caso, decorre tanto do uso dos dados neurais para fins diversos do que pressupõe o seu titular, bem como da intenção em obter lucro com sua exploração sem o consentimento devido". Ao aceitarmos o advento da IA e neurotecnologias no setor da saúde, devemos fazê-lo com sabedoria e precaução, garantindo que estamos preparados para enfrentar qualquer desafio que possa estar oculto em avançadas tecnologias. É crucial que regulamentações éticas e legais sejam estabelecidas e que haja um debate público e político sobre aprovação e fiscalização, além dos limites e responsabilidades no uso de todo o novo arcabouço tecnológico. Só assim poderemos aproveitar os benefícios revolucionários sem cair nas armadilhas que podem estar à espreita. Yuval Noah Harari, um dos mais proeminentes pensadores contemporâneos, oferece reflexões que se alinham bem com essas preocupações. Sustenta a possibilidade de sermos uma das últimas gerações de Homo Sapiens, pois inovações tecnológicas levarão à evolução para super-humanos.xiv Explica que a "Inteligência Artificial e a Biotecnologia estão dando à humanidade o poder de reformulação e reengenharia da vida".xv Por consequência, pode-se mudar a natureza fundamental do que significa ser humano. Isto porque, nas próximas gerações, aprenderemos a remoldar corpos, cérebros e mentes. Em paralelo, Harari alerta que, à medida que a tecnologia avança, será cada vez mais fácil para os governos e corporações monitorarem cada um de nós o tempo todo: "Neste exato momento os algoritmos estão observando você. Estão observando aonde você vai, o que compra, com quem se encontra. Logo vão monitorar todos os seus passos, todas as suas respirações, todas as batidas de seu coração. Estão se baseando em Big Data e no aprendizado de máquina para conhecer você cada vez melhor. E, assim que esses algoritmos o conhecerem melhor do que você se conhece, serão capazes de controlar e manipular você, e não haverá muito que fazer. Você estará vivendo na Matrix, ou no Show de Truman. Afinal, é uma simples questão empírica: se os algoritmos realmente compreenderem melhor que você o que está acontecendo dentro de você, a autoridade passará para eles".xvi Abraçar a inovação é um passo essencial para o progresso, mas fazê-lo de maneira crítica e com sabedoria é vital para garantir que essa jornada tecnológica enriqueça nossas vidas sem sacrificar direitos e liberdades fundamentais. Precisamos navegar cuidadosamente entre as promessas do futuro e as lições do passado, garantindo que cada avanço brilhe como uma estrela guia, iluminando o caminho para um mundo melhor, sem que sombras de descuido obscureçam nossos direitos e valores mais preciosos. Assim como os troianos, que ao aceitarem o Cavalo de Troia permitiram a entrada de um inimigo disfarçado em seu refúgio, devemos ter cautela e discernimento ao integrar novas tecnologias no setor da Saúde, assegurando que, por trás de seus benefícios aparentes, não se escondam perigos que possam comprometer a integridade e a segurança de todos, a exemplo dos riscos de violação aos neurodireitos apresentados nestas breves reflexões. ___________ i THOMPSON, Ken. Communications of the ACM, v. 27, n.8, p. 761-763, ago. 1984. Disponível aqui. Acesso em 25 maio 2024. ii Para aprofundamento das reflexões sobre aspectos ético-jurídicos de inovações tecnológicas, tais como sistemas decisionais automatizados (IA), remeta-se a NOGAROLI, Rafaella.  Responsabilidade civil médica e inteligência artificial: culpa médica e deveres de conduta no século XXI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023. iii CELLAN-JONES, Rory. Stephen Hawking warns artificial intelligence could end mankind. BBC News, 2 dez. 2014. Disponível aqui. Acesso em 27 maio 2024. iv DRAAISMA, Laurijn R., WESSEL, Maximilian J., FRIEDHELM, C. Hummel.  Neurotechnologies as tools for cognitive rehabilitation in stroke patients, Expert Review Of Neurotherapeutics, v. 20, n. 12, p. 1249-1261, dez. 2020. (Este artigo aborda os avanços recentes nas neurotecnologias voltadas para a reabilitação de paralisias e danos cerebrais, destacando o potencial para a reabilitação cognitiva em pacientes que sofreram sequelas de AVC). v COOK, Mark J. Prediction of seizure likelihood with a long-term, implanted seizure advisory system in patients with drug-resistant epilepsy: a first-in-man study. The Lancet Neurology, v. 12, n. 6, p. 563-571, jun. 2013. (Este estudo aborda o uso de implantes cerebrais para monitorar e controlar crises epilépticas em pacientes que não respondem a medicamentos tradicionais). vi TRACEY, Irene; MANTYH, Patrick W. The cerebral signature for pain perception and its modulation. Neuron, v. 55, n. 3, p. 377-391, ago. 2007. (Este artigo explora como as neurotecnologias podem modular a percepção da dor no cérebro, oferecendo novas abordagens para o tratamento de dores crônicas. A modulação da atividade cerebral é destacada como uma estratégia promissora para bloquear sinais de dor antes que eles atinjam a consciência.) vii ZRENNER, Eberhart. Fighting Blindness with Microelectronics. Science Translational Medicine, v. 5, n. 210, p.210-216, nov. 2013. (Este estudo apresenta o potencial de implantes de retina e outros dispositivos eletrônicos destinados a restaurar a visão em indivíduos com deficiência visual. Discute como chips implantados podem ajudar os pacientes a recuperar a percepção de luzes, formas e cores, além de abordar o potencial dos implantes cocleares para melhorar a audição em pessoas surdas.) viii JEWETT, Christina. Despite Setback, Neuralink's First Brain-Implant Patient Stays Upbeat. The New York Times, 22 maio 2024. Disponível aqui. Acesso em 27 maio 2024. ix JEWETT, Christina. Despite Setback, Neuralink's First Brain-Implant Patient Stays Upbeat. The New York Times, 22 maio 2024. Disponível aqui. Acesso em 27 maio 2024. x WINKLER, Rolfe. Elon Musk's Neuralink Gets FDA Green Light for Second Patient, as First Describes His Emotional Journey. Wall Street Journal, 20 maio 2024. Disponível aqui. Acesso em 27 maio 2024. xi IENCA, Marcello; ADORNO, Roberto. Towards new human rights in the age of neuroscience and neurotechnology. Life Sciences, Society and Policy, n.13, v. 5, p. 1-27, abr. 2017. xii A respeito do enriquecimento ilícito em ambiente digital, que pode assumir diversas formas, como a obtenção de dados pessoais e a exploração de ativos intangíveis, remeta-se a FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Enriquecimento sem causa e sua aplicação aos bens digitais. Indaiatuba: Foco, 2024. xiii FIGUEIREDO, Gisele Machado; SCHAEFER, Fernanda. Dados neurais: explorando os desafios da regulação dos neurodispositivos de saúde. [No Prelo] xiv HARARI, Yuval Noah. Homo Deus: uma breve história do amanhã. Versão eletrônica. Trad. Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. xv  HARARI, Yuval Noah. 21 Lições para o Século 21. Versão eletrônica. Trad. Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. xvi HARARI, Yuval Noah. 21 Lições para o Século 21. Versão eletrônica. Trad. Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
A doação de órgãos, tecidos e partes do corpo humano é um dos gestos mais altruístas conhecidos, mas também o que enfrenta uma série de resistências motivadas por diferentes razões, que acabaram refletindo na lei 9.434, de 4 de fevereiro de 1997. Em 2001 o legislador alterou a norma para determinar que nos casos de retirada post mortem (após a morte) de tecidos, órgãos e partes do corpo humano não bastaria a declaração prévia do morto, seria também necessária a consulta à família que pode simplesmente desconsiderar a vontade declarada pelo falecido e negar a remoção. Trata-se de intervenção desarrazoada na autodeterminação sobre o corpo. Desde então, muito se avançou nas técnicas de transplantes e nas discussões sobre as doações. Parte significativa da população compreende a importância do ato e se declara doadora, embora não tenha por hábito registrar essa vontade. Poucas pessoas sabem, mas a declaração de doador tem forma livre. O que significa que o registro  pode ser feito por diversos meios: diretivas antecipadas de vontade; escritura pública; instrumento particular; gravação em vídeo; declaração à equipe médica e até por manifestações em redes sociais. Até pouco tempo, podia-se, inclusive, declarar a opção pela doação em documentos como a Carteira de Habilitação, opção que infelizmente já não existe mais. Paradoxalmente, na mesma medida que a aceitação do ato aumenta, crescem as propostas de burocratização das declarações. Em abril passado comemoramos o lançamento da Campanha Um Só Coração: Seja Vida na Vida de Alguém. Doe Órgãos, idealizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Colégio Notarial do Brasil e Ministério da Saúde. A iniciativa marcou a regulamentação do Sistema de Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos1 (AEDO - Provimento n. 164/2024, CNJ), que prevê a autorização eletrônica gratuita por meio da Central Nacional de Doadores de Órgãos. Segundo a campanha, para ser doador bastaria formalizar a vontade por meio de um formulário digital. Mas não é bem assim... A iniciativa que deveria facilitar o acesso à formalização da declaração, na verdade a dificulta: 1- porque adota o sistema e-notariado (Certificado Digital Notarizado ou Certificado ICP-Brasil), sistema que para liberar a assinatura digital exige que a pessoa compareça a um Cartório para coletar sua ficha de assinatura (se já não a tem); 2- após conseguir gerar a assinatura pelo e-notariado a pessoa ainda tem que agendar um horário com um Cartório para gravar a declaração em videoconferência, confirmando ser doadora de órgãos, tecidos e partes do corpo humano. Só após e com a assinatura digital de um notário, a AEDO ficaria disponível para consulta no Sistema Nacional de Transplantes. Não foram poucos os relatos recebidos. Os próprios autores que este texto subscrevem tiveram percepções distintas do sistema. Enquanto um facilmente conseguiu produzir o documento, por já ter assinatura (em cartão físico) em cartório, o outro desistiu do processo por todas as dificuldades antes narradas, optando por manter sua declaração (já existente) em diretivas antecipadas de vontade. Em resumo, o sistema não é intuitivo, exige conhecimentos informáticos que boa parte da população não tem; é restritivo; dificulta o acesso para pessoas que residem distantes de Cartórios; dificulta a finalização da declaração para pessoas que têm dificuldade com equipamentos eletrônicos; impede a declaração por quem não tem meios eletrônicos. Trata-se, portanto, de sistema que não voltou seus olhos à facilitação do acesso à declaração de doador, mas que a burocratiza em prol de uma desnecessária suposta segurança jurídica que, no final das contas, sequer servirá para dispensar a consulta à família para a remoção dos órgãos, de acordo com a legislação atual. Infelizmente, da maneira proposta, é um sistema que tende ao desuso e que não alcançará as finalidades almejadas. Por fim, apenas para registrar opções viáveis, se considerada necessária a assinatura digital, o banco de dados poderia usar a assinatura eletrônica fornecida pelo sistema gov.br, mais acessível (embora também possa restringir o acesso em razão das dificuldades de uso de sistemas eletrônicos e inexistência de tecnologia assistiva), tão segura quanto a utilizada pelo e-notariado, mas que não exige nenhum tipo deslocamento presencial. A gravação em vídeo poderia ser uma ação facultativa do declarante e não obrigatória. Se a família pretende questionar capacidade no momento da confecção da declaração, não é a existência de um vídeo que evitará a discussão, daí a importância de também de se pensar na (necessária) mudança da legislação, para retirar o protagonismo da família em uma decisão tão íntima, que por certo deve (ou deveria) ser unicamente do indivíduo em consulta à sua própria consciência. Em temas que apresentam dilemas complexos, burocratizar a manifestação de vontade é deslocar o foco da discussão para noções idealizadas de suposta segurança jurídica. Dificulta-se a declaração, em vez de se promover ampla adesão e a realização da autonomia decisória. __________ 1 Disponível aqui.
1. A colocação da questão para seu perfeito entendimento Iniciando a Parte III e final dos nossos estudos em Direito Penal Médico, tem vez aqui a seguinte questão: o médico se depara com o atendimento de uma paciente que precisa de cuidados com sua saúde e, em meio à consulta, o profissional passa a suspeitar que ela tentou praticar o aborto; por hipótese, imagine-se que o médico, ante essa suspeita de abortamento promovido pela paciente, comunica a autoridade policial acerca dos fatos. A pergunta que se põe é a seguinte: havia justa causa para que o médico promovesse essa comunicação da suspeita de aborto para a autoridade policial? Em outras palavras, a quebra do sigilo médico profissional nessa situação foi justificada pela suspeita da prática do aborto? Ou não, mesmo diante dessa suspeita abortiva por parte da paciente, o Médico ainda assim estaria obrigado a guardar o sigilo profissional? Importante frisar que a hipótese trata da suspeita de que a própria paciente realizou a tentativa de aborto por si mesma, e não que ela tenha sido vítima da prática de manobras abortivas pelas mãos de terceira pessoa - caso em que não se tem a menor dúvida de que, sim, o médico deve imediatamente acionar os órgãos diretivos da unidade de saúde para que o fato seja levado à autoridade policial. Mas, voltando à hipótese ora em análise: e se a própria paciente é suspeita da realização da manobra de abortamento, o médico teria ou não justa causa para quebrar o sigilo profissional e comunicar o fato à autoridade policial para os fins legais? Esta é a questão que aportou no Superior Tribunal de Justiça nos últimos anos, em cada uma de suas duas Turmas de Direito Criminal da 3.ª Seção de Direito Penal (5.ª e 6.ª Turmas Julgadoras), formando-se duas posições absolutamente antagônicas dentro da Corte até hoje. Nesse cenário, como já visto, tentaremos responder às perguntas acima, ingressando-se agora na Parte III final da série de artigos tratando do Direito Penal Médico, recordando que o conteúdo abaixo foi extraído do capítulo "CRIMES MÉDICOS" do livro recém-lançado "O ERRO MÉDICO NOS TRIBUNAIS"1. 2. A disciplina normativa do sigilo médico Vamos aos artigos da legislação brasileira que disciplinam a questão, bem como ao disposto no Código de Ética Médica a teor do ponto controvertido. O Sigilo Médico no Código Penal é tratado sob a rubrica da "Violação do Segredo Profissional": Art. 154. Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem: Pena - detenção, de três meses a um ano, ou multa. O Código de Processo Penal traz a seguinte hipótese de impedimento legal para que o profissional preste seu testemunho em juízo: Art. 207. São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar o seu testemunho. Já no Código de Ética Médica, o Sigilo Médico vem tratado no Capítulo IX, sob o título "Sigilo Profissional" - É vedado ao médico: Art. 73. Revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente. Parágrafo único. Permanece essa proibição: a) mesmo que o fato seja de conhecimento público ou o paciente tenha falecido; b) quando de seu depoimento como testemunha. Nessa hipótese, o médico comparecerá perante a autoridade e declarará seu impedimento; c) na investigação de suspeita de crime o médico estará impedido de revelar segredo que possa expor o paciente a processo penal. Pois bem, sendo essa a regulamentação da questão na lei e no CEM, vejamos como a questão se comporta no Poder Judiciário brasileiro, a seguir. 3. A questão no Superior Tribunal de Justiça 3.1 Decisão da 5ª Turma do ano de 2019 - não há quebra do sigilo médico O STJ, por orientação de sua 5.ª Turma em 2019, decidiu no sentido de que a suspeita de aborto nesse caso é justa causa suficiente para autorizar a quebra do sigilo médico: PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS SUBSTITUTIVO. INADEQUAÇÃO. ABORTO PROVOCADO PELA GESTANTE. TRANCAMENTO. DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 124 DO CP. CONTROLE DIFUSO. MEIO INADEQUADO. TEMA OBJETO DE CONTROLE CONCENTRADO PERANTE O STF NA APDF 442/DF. ILICITUDE DAS PROVAS. QUEBRA DO DEVER DE SIGILO PROFISSIONAL DO MÉDICO. NÃO ACOLHIMENTO DAS TESES DEFENSIVAS. INOCORRÊNCIA DE ILEGALIDADE. WRIT NÃO CONHECIDO. [...] 5. Sabe-se que o sigilo profissional é norma cogente e que, em verdade, impõe o dever legal de que certas pessoas, em razão de sua qualidade e de seu ofício, não prestem depoimento e/ou declarações, em nome de interesses maiores, também preservados pelo ordenamento jurídico, como o caso do direito à intimidade (art. 154 do Código Penal e art. 207 do Código de Processo Penal). A vedação, porém, não é absoluta, eis que não há que se conceber o sigilo profissional de prática criminosa. 6. A exemplo do sigilo profissional do advogado, já asseverou esta Quinta Turma que "o ordenamento jurídico tutela o sigilo profissional do advogado, que, como detentor de função essencial à Justiça, goza de prerrogativa para o adequado exercício profissional. Entretanto, referida prerrogativa não pode servir de esteio para impunidade de condutas ilícitas"(RHC 22.200/SP, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, DJe 5/4/2010, grifou-se). 7. Na hipótese, a princípio, a conduta do médico em informar à autoridade policial acerca da prática de fato, que até o presente momento configura crime capitulado nos delitos contra a vida, não violou o sigilo profissional, pois amparado em causa excepcional de justa causa, motivo pela qual não se vislumbra, de pronto, ilicitude das provas presentes nos autos, como sustenta a defesa. 8. A situação posta no RE 91.218-5/SP, citado pela defesa, não se aplica ao caso em exame, na medida em que a controvérsia discutida nestes autos cinge-se na declaração ou não de ilicitude de todos os elementos de provas produzidos, oriundos da informação repassada pelo médico à autoridade policial acerca do cometimento em tese de um delito, que perpassa pelo óbito premeditado de um feto de 24 semanas, nascido com vida. 9. Writ não conhecido.2 (grifei) Essa decisão do STJ, reconhecendo a justa causa na quebra do sigilo médico nessa hipótese, levou a que alguns Tribunais Estaduais se conduzissem da mesma maneira, como nos casos de decisões dos Tribunais de Justiça de Santa Catarina3 e de São Paulo4, quando tudo caminhava nesse sentido. 3.2 Decisões da 6ª Turma do ano de 2023 - há quebra de sigilo médico Ocorre que, em duas reiteradas e recentes decisões do mesmo STJ, agora por sua 6.ª Turma em 2023, a questão ganhou novos contornos na jurisprudência brasileira, editando-se orientação em sentido oposto ao anteriormente decidido pela 5.ª Turma, dessa vez declarando-se que não há justa causa para a quebra do sigilo médico profissional no caso da suspeita de aborto por parte da paciente, sendo vedado ao médico a comunicação à autoridade policial. Quanto à primeira decisão nesse sentido no mês de abril de 2023, segue apenas a notícia oficial extraída do site do STJ, uma vez que o processo não tem seu número e informações divulgadas pelo segredo de justiça:                SEXTA TURMA TRANCA AÇÃO PENAL POR ABORTO AO VER QUEBRA DE SIGILO PROFISSIONAL ENTRE MÉDICO E PACIENTE. A constatação de quebra do sigilo profissional entre médico e paciente levou a Sexta Turma do STJ a trancar, nesta terça-feira (14), uma ação pena que apurava o crime de aborto provocado pela própria gestante (artigo 124 do Código Penal - CP). Além de ter acionado a polícia por suspeitar da prática do delito, o médico foi arrolado como testemunha no processo - situações que, para o colegiado, violaram o artigo 207 do Código de Processo Penal (CPP) e geraram nulidade das provas reunidas nos autos. Ao trancar a ação penal, a Sexta Turma determinou a remessa dos autos ao Ministério Público e ao Conselho Regional de Medicina ao qual o médico está vinculado, para que os órgãos tomem as medidas que entenderem pertinentes. De acordo com o processo, a paciente teria aproximadamente 16 semanas de gravidez quando passou mal e procurou o hospital. Durante o atendimento, o médico suspeitou que o quadro fosse provocado pela ingestão de remédio abortivo e, por isso, decidiu acionar a Polícia Militar. Após a instauração do inquérito, o médico ainda teria encaminhado à autoridade policial o prontuário da paciente para comprovação de suas afirmações, além de ter sido arrolado como testemunha. Com base nessas informações, o Ministério Público propôs a ação pena e, após a primeira fase do procedimento do tribunal do júri, a mulher foi pronunciada pelo crime do artigo 124 do CP. CPP proíbe médico de revelar segredo profissional obtido durante atendimento. O relator lembrou que, segundo o artigo 207 do CPP, são proibidas de depor as pessoas que, em razão de suas atividades profissionais, devam guardar segredo - salvo se, autorizadas pela parte interessada, queiram dar o seu testemunho.5 Já com relação à segunda decisão da mesma 6ª T. do STJ, que reiterou o mesmo posicionamento pela ausência de justa causa para a quebra do sigilo médico nessa hipótese, segue a íntegra da ementa do HC julgado no mês de outubro de 2023 nesse sentido: PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. ART. 124 DO CÓDIGO PENAL. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. FALTA DE JUSTA CAUSA. PEDIDO DE DECLARAÇÃO INCIDENTAL DA NÃO RECEPÇÃO DO INDIGITADO PRECEITO DE REGÊNCIA PELA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. IMPOSSIBILIDADE DA VIA ELEITA. PENDÊNCIA DE JULGAMENTO DE ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. NULIDADE. ILICITUDE DA PROVA ANTE A SUPOSTA QUEBRA DO SIGILO PROFISSIONAL PELA MÉDICA QUE REALIZOU O ATENDIMENTO DA PACIENTE. OCORRÊNCIA. VIOLAÇÃO DO SIGILO PROFISSIONAL. ORDEM CONCEDIDA. 1. O trancamento da ação penal por ausência de justa causa exige comprovação, de plano, da atipicidade da conduta, da ocorrência de causa de extinção da punibilidade, da ausência de lastro probatório mínimo de autoria ou de materialidade, o que se verifica na presente hipótese. 2. Inicialmente, quanto ao pedido defensivo de reconhecimento, incidenter tantum, no âmbito deste writ, da não recepção do art. 124 do Código Penal, esta Corte já teve a oportunidade, em diversas ocasiões, de sedimentar o entendimento de que se revela "[...] inviável a apreciação de matéria por esse Superior Tribunal de Justiça, em sede de controle difuso, diante de afetação do tema em sede de controle concentrado de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal" (HC n. 514.617/SP, relator Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 10/9/2019, DJe 16/9/2019). 3. Como cediço, esta Sexta Turma, recentemente, por ocasião do julgamento do Habeas Corpus n. 783927/MG, de relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior, reconheceu a ilicitude da prova e trancou ação penal também relativa a crime de autoaborto, supostamente cometido por paciente que se encontrava em situação similar a dos presentes autos, cuja investigação fora deflagrada a partir da provocação das autoridades competentes pelo próprio médico que realizara o atendimento da paciente. 4. Como bem consignado no parecer ministerial, "trata-se, tal garantia, de proteção jurídica ao direito à saúde, porquanto não deve o paciente se sentir tolhido ou ameaçado ao procurar ajuda médica; ao contrário, deve se sentir seguro e acolhido, para que sua saúde seja resguardada, ao contrário do que ocorreria se, por exemplo, as mulheres que optam pela prática do abortamento ilegal e, ato contínuo, enfrentam complicações que colocam em risco sua saúde e sua própria vida, não pudessem procurar socorro junto aos profissionais de saúde com receio de serem presas ou processadas criminalmente". 5. Ordem parcialmente conhecida e, nessa extensão, concedida, para reconhecer a ilicitude da prova e trancar a ação penal em relação a ora paciente quanto ao crime previsto no art. 124 do CP (HC 448.260/SP, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, 6ª Turma, j. em 3/10/23, DJe de 6/10/23.) 4. A questão no STF: uma decisão muito antiga e uma recente inaplicável ao caso Colhe-se o posicionamento do Supremo Tribunal Federal na questão por meio de uma decisão já bastante antiga, do início da década de 1980, que assim trata da matéria: SEGREDO PROFISSIONAL. A OBRIGATORIEDADE DO SIGILO PROFISSIONAL DO MÉDICO NÃO TEM CARÁTER ABSOLUTO. A MATÉRIA, PELA SUA DELICADEZA, RECLAMA DIVERSIDADE DE TRATAMENTO DIANTE DAS PARTICULARIDADES DE CADA CASO. A REVELAÇÃO DO SEGREDO MÉDICO EM CASO DE INVESTIGAÇÃO DE POSSÍVEL ABORTAMENTO CRIMINOSO FAZ-SE NECESSÁRIA EM TERMOS, COM RESSALVAS DO INTERESSE DO CLIENTE. Na espécie o hospital pôs a ficha clínica à disposição de perito médico, que "não estará preso ao segredo profissional, devendo, entretanto, guardar sigilo pericial" (art-87 do código de ética médica). Por que se exigir a requisição da ficha clínica? Nas circunstâncias do caso o nosocômio, de modo cauteloso, procurou resguardar o segredo profissional. Outrossim, a concessão do "writ", anulando o ato da autoridade coatora, não impede o prosseguimento regular da apuração da responsabilidade criminal de quem se achar em culpa. Recurso extraordinário conhecido, em face da divergência jurisprudencial, e provido. Decisão tomada por maioria de votos. (grifei) Veja-se que a decisão, além de ser antiga, s.m.j., não se posiciona de maneira franca sobre a questão, deixando a ideia de que a revelação "faz-se necessária em termos, com ressalvas do interesse do cliente", o que não permite uma conclusão certeira a meu ver. Há uma decisão mais recente no STF em que a questão também tratava da comunicação da suspeita de aborto, mas a "denunciante" nesse caso foi uma enfermeira. Nesse caso, a paciente, contra quem pesava a suspeita do aborto e consequentemente estava sendo processada criminalmente por isso, impetrou um habeas corpus arguindo a nulidade da prova dos autos em virtude da ilícita quebra do sigilo profissional por parte da enfermeira, HC que acabou sendo denegado por 3x2, mas sem que se adentrasse no âmago da questão sobre o reconhecimento da justa causa ou não para a quebra do sigilo médico nesse caso7. Nesse quadro, o que se tem no STF sobre a questão é o seguinte: 1) esta última decisão, muito embora trate da questão da comunicação sobre a suspeita de aborto da paciente, acabou não tenho o HC julgado no seu mérito e não se tratou de uma conduta de um Médico - portanto, não creio que pode ser usada como paradigma para a emissão de uma orientação segura para as futuras ações dos Médicos; 2) a outra decisão do STF, além de ser muito antiga, não é cabal em seus termos sobre se a situação é ou não considerada como quebra de sigilo médico profissional, também não podendo servir de base segura para uma orientação firme quanto à futura atuação dos Médicos, afastando-os de complicações jurídicas.  5. Nossa orientação final e cabal Há alguns pressupostos que foram contruidos ao longo dessa série de artigos no Direito Penal Médico para que possamos entregar qual a nossa orientação acerca da questão colocada e qual deve ser a postura do Médico ao se deparar com uma suspeita de aborto tentado pela própria paciente - se deve ou não promover a comunicação à autoriade policial da situação. Primeiro que não se está aqui discutindo acerca da criminalização ou não da prática do aborto, o que, como vimos, é objeto de disciplina legal expressa no Código Penal, cuja constitucionalidade encontra-se em pleno julgamento pelo STF, que tem a palavra final. Em outras palavras, o debate aqui cinge-se em definir se o Médico pode ou não comunicar o fato e se isso representa ou não quebra do sigilo médico, com as consequências penais a partir daí. Segundo, como vimos, ao menos segundo meu ponto de vista, as decisões proferidas pelo STF sobre a questão, no início da década de 80 e no ano passado, não são suficientes para a definição cabal da questão, seja porque uma delas é redigida em termos menos assertivos e é muito antiga, seja porque a outra não se refere especificamente ao Médico e não teve julgado o mérito da controversia em si, mas apenas aspectos formais foram considerados. Já a decisão da 5ª Turma do STJ, que não reconheceu quebra do sigilo médico, ainda que acompanhada pelos Tribunais de Santa Catarina e de São Paulo, já é do distante ano de 2019, contando com aproximados 5 anos de prolação, de maneira que o cenário pode ter se modificado naqueles Tribunais nesse longo período, o que é próprio da jurisprudência. De outro lado, o que se tem na 6ª Turma do STJ são duas decisões extremamente recentes e proferidas em dois momentos bem distintos do mesmo ano de 2023, o que conduz à convicção de que o pocionamento de abril certamente foi refletido e sedimentado no julgamento de outubro do ano passado, não só afirmando que houve quebra do sigilo médico por ausência de justa causa, como também foi determinada a instauração de procedimento criminal e ético-profissional contra o Médico. Trata-se essa última da orientação mais assertiva e recente da Justiça brasileira sobre a questão que se tem notícia até aqui e se coaduna com a excepcional doutrina do Mestre Genival Veloso de França, para quem: "Um dos casos mais comuns em nossa atividade é a constatação de prática criminosa de aborto, e, pelo visto, não se pode denunciar a paciente, pois ela está sujeita a procedimento processual"8. Tudo isso considerado e tomando-se em conta que a tarefa de fornecer orientação jurídica deve sempre ser a mais conservadora possível, visando que o seguimento dessa orientação jamais possa conduzir a uma situação de prejuízo ao Profissional de Medicina que aceita e confia no aconselhamento jurídico, minha firme posição, seguindo os passos do art. 73 do Código de Ética Médica, é no sentido de que o Médico não deve promover a comunicação da suspeita de tentativa de abortamento por parte da paciente se esta conduta partiu dela mesma, sob pena de, realizando a comunicação à autoridade policial, estar sujeito a um processo criminal, uma representação ético-profissional e ainda uma ação civil indenizatória por danos materiais e morais, tudo em seu prejuízo profissional e pessoal. É como me posiciono, respeitosamente! __________ 1 SOUZA, Wendell Lopes Barbosa de. O Erro Médico nos Tribunais. Editora Foco, abril de 2024, cap. 12: Crimes Médicos. 2 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus 514617/SP, Quinta Turma, Relator Ministro Ribeiro Dantas, Votação Unanime, Julgamento: 10/09/2019. 3 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, RSE: 50346546720208240038, Primeira Câmara Criminal, Relator Desembargador Paulo Roberto Sartorato, Julgamento: 03/03/2022. 4 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Processo n.º 2188894-33.2017.8.26.0000, 3.ª Câmara de Direito Criminal, Relator Desembargador Airton Vieira, Julgamento: 24/10/2017. 5 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Sexta Turma tranca ação penal por aborto ao ver quebra de sigilo profissional entre médico e paciente. Brasília, 14.03.2023. Disponível aqui. Acesso em: 10/05/2023. 6 BRASIL. Supremo Tribunal Federal, Recurso extraordinário 91.218 SP, Relator Ministro Djaci Falcão, Julgamento: 10/11/1981. 7 MIGALHAS, Redação. STF mantém ação penal contra mulher acusada de aborto por enfermeira. São Paulo, 14.04.2023. Disponível aqui. Acesso em: 10 jun. 2023. 8 VELOSO, Genival. Direito Médico. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 161.
1. Introdução aos delitos em espécie Como visto na Parte I, na esfera penal, a mesma conduta médica objeto de uma ação civil indenizatória será agora analisada à vista da legislação penal do país, para a verificação se a ação ou omissão adotada pelo profissional de saúde se enquadra em alguma das hipóteses criminais previstas como delito. Assim, a responsabilização será penal se a conduta médica for prevista como crime na lei penal brasileira, e a sanção será a imposição de uma pena criminal que pode ser desde uma multa até a reclusão do médico que atuou com culpa ou, excepcionalmente, na modalidade dolo eventual, tudo como já visto. Como já dito, não se cogita sobre a prática de um ato criminal na prestação de serviços médicos movido por dolo direto, que é a vontade livre e consciente de realização da ação delituosa com a lesão da vítima ou provocação de sua morte, uma vez que a Medicina tem como base a busca pela promoção/recuperação da saúde e preservação da vida das pessoas. As figuras penais passíveis de cometimento na prática da Medicina são, no mais das vezes, culposas (ausência do dever de cuidado na modalidade negligência, imprudência ou imperícia) e excepcionalmente dolosas, estas na modalidade dolo eventual (assunção do risco de produção do dano), como prevê o Código Penal brasileiro: Art. 18 - Diz-se o crime: Crime doloso I - Doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo; Crime culposo II - Culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia.  Nesse cenário, como já visto, o Médico pode incidir em algum dos crimes abaixo estudados, ingressando-se agora na Parte II da série de artigos tratando do Direito Penal Médico, recordando que o conteúdo abaixo tem como fonte o capítulo "CRIMES MÉDICOS" do livro recém-lançado: "O ERRO MÉDICO NOS TRIBUNAIS"1. 2. Crimes contra a vida e a integridade física                                                                    2.1 Homicídio                                                                                                                         Vamos começar pela mais grave potencialidade dos crimes médicos - o homicídio doloso (com dolo eventual - do caput) e o culposo (§3º), segundo o Código Penal brasileiro: Art. 121. Matar alguém: Pena - reclusão, de seis a vinte anos. Homicídio culposo § 3.º - Se o homicídio é culposo: Pena - detenção, de um a três anos. Como prometido, de início temos dois casos de homicídio na área médica relatados pelo Eminente Desembargador Miguel Kfouri Neto do Tribunal de Justiça do Paraná: HOMICÍDIO COM DOLO EVENTUAL: ERRO MÉDICO. PRONÚNCIA DO ACUSADO MARCOS POR HOMICÍDIO SIMPLES, COM DOLO EVENTUAL (ART. 121, CAPUT, CP), FALSIDADE IDEOLÓGICA (ART. 299, CP) E USO DE DOCUMENTO FALSO (ART. 304, CP). E IMPRONÚNCIA DO CORRÉU MÁRCIO EM RELAÇÃO AO DELITO DE HOMICÍDIO SIMPLES, COM DOLO EVENTUAL (ART. 121, CAPUT, CP). APELAÇÃO AJUIZADA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO E RECURSO EM SENTIDO ESTRITO INTERPOSTO PELA DEFESA DE MARCOS. 1) almejada pronúncia de márcio, formulada pelo promotor de Justiça. Desacolhimento. Inexistência de indícios suficientes de que ele participou do 1.º fato descrito na denúncia (homicídio simples). Manutenção da decisão de impronúncia. 2) pretensão, formulada pela defesa de marcos, de despronúncia, bem como de desclassificação do delito de homicídio simples, com dolo eventual, para a modalidade culposa. Inviabilidade. Indícios suficientes de que o recorrente assumiu o risco de produzir a morte da ofendida. Realização de cirurgia de colocação de prótese de silicone nos seios, sem a presença de médico anestesiologista. Indicativos, ademais, de utilização de excessiva dose de anestésico local (lidocaína), que supostamente contribuiu para a morte da vítima. Hipótese de hipertermia maligna, em princípio, afastada. Indícios, também, de que marcos praticou os delitos conexos de falsidade ideológica (art. 299, CP) e de uso de documento falso (art. 304, CP) indicados na denúncia. Questão a ser dirimida pelo Tribunal do Júri, competente para o julgamento da causa. Recursos desprovidos.2 (grifei) HOMICÍDIO CULPOSO: ERRO MÉDICO. HOMICÍDIO CULPOSO (ART. 121, §§ 3.º E 4.º, CP). CONDENAÇÃO À PENA DE DOIS (2) ANOS DE DETENÇÃO, EM REGIME ABERTO. RECURSO DA DEFESA. 1) Pretensão de absolvição. Alegação de que o acusado estava impossibilitado de prestar atendimento à vítima, por ser o único médico plantonista no pronto-socorro do hospital santa casa de londrina e, ainda, por estar atendendo outros pacientes em estado grave. Desacolhimento. Paciente tabagista, com doença pulmonar obstrutiva crônica, e que, durante o internamento, apresentou esforço respiratório, com rebaixamento do nível de consciência. Comprovação de que o réu deixou de prestar atendimento à ofendida, mesmo tendo sido solicitado atendimento pela enfermeira em três ocasiões distintas ("às 21h30 do dia 22/05/2015, às 00h e às 03h do dia 23/05/2015"). Conduta omissiva que contribuiu para o óbito da paciente, diante da significativa piora de seu estado de saúde. Tese de inexigibilidade de conduta diversa. Rejeição. Comprovação de que os familiares da vítima que a acompanhavam no dia dos fatos somente ficaram exaltados após aguardarem por horas, sem sucesso, que ela recebesse atendimento médico, que deveria ser prestado pelo acusado. Piora do estado de saúde da vítima, que inclusive agonizava por falta de ar, que torna compreensível a apontada conduta dos familiares. Fato, ademais, que decorreu da própria omissão do acusado. Condenação mantida. 2) Dosimetria da pena. Redução. Parcial acolhimento. Circunstâncias do crime corretamente valoradas negativamente. Adequação, porém, do quantum de aumento da pena-base. Aplicação da fração de um oitavo (1/8) sobre o intervalo da pena. Precedentes desta câmara. Pretensão de exclusão da causa especial de aumento de pena prevista no art. 121, § 4.º, do código penal. Acolhimento. Imputação com base na mesma circunstância fática descrita para tipificar a negligência. Bis in idem configurado. Redução da pena definitiva para um (1) ano e três (3) meses de detenção, em regime aberto. 3) Pleito de substituição da pena privativa de liberdade por uma restritiva de direitos, consistente em prestação pecuniária. Impossibilidade. Substituição da pena por duas restritivas de direitos corretamente operadas (art. 44, § 2.º, segunda parte, CP). Alegação de dificuldade no cumprimento das penas restritivas impostas, todavia, cuja análise compete ao juízo da execução. Apelo não conhecido nesta parte. Recurso parcialmente conhecido e, na parte conhecida, parcialmente provido.3 (grifei) 2.2 Aborto                                                                                                                              O aborto é outro dos crimes contra a vida, também sujeito a julgamento pelo Tribunal do Júri, seja provocado pela própria gestante ou com seu consentimento (art. 124 do CP), seja o provocado por terceiro (artigos 125 e 126 do CP). Obviamente que os limites desse trabalho não permitem adentrar de maneira aprofundada acerca de todas as questões em torno do aborto que estão em pleno debate no Brasil e em boa parte dos países do planeta há muito tempo e ainda presentes hodiernamente, de maneira que trataremos de sua atual conformação na lei brasileira e do recente voto da Ministra Rosa Weber do Supremo Tribunal Federal proferido no julgamento que cuida da análise da constitucionalidade da criminalização do aborto. Iniciemos pela previsão dos delitos tais quais previstos no Código Penal4: Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque: Pena - detenção, de um a três anos. Aborto provocado por terceiro Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de três a dez anos. Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante: Pena - reclusão, de um a quatro anos. A seguir, as hipóteses legais de não punição do aborto: Art. 128 - Não se pune o aborto praticado por médico: Aborto necessário I - Se não há outro meio de salvar a vida da gestante; Aborto no caso de gravidez resultante de estupro II - Se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal. Na ADPF nº. 442 do STF, questiona-se a constitucionalidade da criminalização do aborto, distribuída à Min. Rosa Weber, que, antes de sua aposentadoria, votou pela descriminalização até o período de 12 semanas da gestação, conforme o dispositivo que segue: A questão da criminalização da decisão, portanto, da liberdade e da autonomia da mulher, em sua mais ampla expressão, pela interrupção da gravidez perdura por mais de setenta anos em nosso país. À época, enquanto titular da sujeição da incidência da tutela penal, a face coercitiva e interventiva mais extrema do Estado, nós mulheres não tivemos como expressar nossa voz na arena democrática. Fomos silenciadas! Não tivemos como participar ativamente da deliberação sobre questão que nos é particular, que diz respeito ao fato comum da vida reprodutiva da mulher, mais que isso, que fala sobre o aspecto nuclear da conformação da sua autodeterminação, que é o projeto da maternidade e sua conciliação com todos as outras dimensões do projeto de vida digna. A vida digna e aceita como correta, do ponto de vista da moralidade majoritária social da década de 1940, excluía as mulheres da condição de sujeito de direito, seja ele de perfil político-democrático, seja de perfil de autonomia cívica. A ausência de representação política, a condição normativa atribuída, a cidadania de segunda classe a qual estavam categorizadas, permitiram sua fala por meio de representação da família, estrutura hierárquica e fundada no pater família. A maternidade e os cuidados domésticos compunham o projeto de vida da mulher, qualquer escolha fora desse padrão era inaceitável e o estigma social, certeiro. Transcorridas mais de oito décadas, impõe-se a colocação desse quadro discriminatório na arena democrática para uma deliberação entre iguais, com consideração e respeito. Agora a mulher como sujeito e titular de direito. Aí uma das razões pela qual convoquei a audiência pública. Oportunizar o procedimento democrático do debate público, com pluralidade de vozes, ante o caráter complexo e policêntrico do problema. A dignidade da pessoa humana, a autodeterminação pessoal, a liberdade, a intimidade, os direitos reprodutivos e a igualdade como reconhecimento, transcorridas as sete décadas, impõem-se como parâmetros normativos de controle da validade constitucional da resposta estatal penal. 187. Ante as razões expostas, julgo procedente, em parte, o pedido, para declarar a não recepção parcial dos art. 124 e 126 do Código Penal, em ordem a excluir do seu âmbito de incidência a interrupção da gestação realizada nas primeiras doze semanas.5 O Ministro Luís Roberto Barroso fez pedido de destaque da questão e o julgamento será retomado em ocasião oportuna em sessão plenária física. 2.3 Lesão corporal                                                                                                                 O próximo delito passível de cometimento na prestação do serviço médico é a lesão corporal, que também pode ser dolosa (com dolo eventual) ou culposa, com a seguinte conformação legislativa: Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem (dolosa): Pena - detenção, de três meses a um ano. Lesão corporal de natureza grave § 1.º Se resulta: I - Incapacidade p/ ocupações habituais p/ mais de 30 dias; II - Perigo de vida; III - debilidade permanente de membro, sentido ou função; IV - Aceleração de parto: Pena - reclusão, de um a cinco anos. § 2.º Se resulta: I - Incapacidade permanente para o trabalho; II - Enfermidade incurável; III perda ou inutilização do membro, sentido ou função; IV - Deformidade permanente; V - Aborto: Pena - reclusão, de dois a oito anos. [...] Lesão corporal culposa § 6.º - Se a lesão é culposa: Pena - detenção, de dois meses a um ano. São inúmeros os casos de lesões corporais na seara médica, mas o espaço disponível neste momento permite apenas, daqui em diante, a indicação dos delitos e sua previsão legal. 3. Demais Crimes Médicos no Código Penal                                                                      3.1 Atestado falso                                                                                                                  Por vezes, sem nenhuma má intenção e apenas pensando em ajudar, o Médico, de maneira inocente, pode cometer esse ato e incidir na previsão de um crime do Código Penal: Art. 302 - Dar o médico, no exercício da sua profissão, atestado falso: Pena - detenção, de um mês a um ano. 3.2 Falsa perícia        Aqui estamos tratando da responsabilidade criminal do Médico Perito, dentre outros:  Falsa Perícia Art. 342 do CP. Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa.  3.3 Omissão de socorro                                                                                                         Quando há o dever legal e a assistência médica não é prestada, incorre-se na denominada omissão de socorro: Art. 135 do CP. Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública. Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa. Parágrafo único - A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte. 3.4 Omissão de notificação de doenças compulsórias                                                        Aqui a omissão é quanto à obrigação de notificação de doença compulsória: Art. 269 - Deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória: Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa. Sendo assim, o Médico, no exercício da profissão, quando se deparar com paciente portador de quaisquer das doenças listadas para notificação compulsória, como, por exemplo, Coronavírus (COVID-19), tem o dever de notificar às Autoridades Sanitárias. 4. Crimes previstos na legislação penal médica especial                                                   Ainda, temos os crimes médicos previstos fora do Código Penal, em importantes leis que regulamentam relevantes aspectos do serviço de saúde do país, que também vamos apenas noticiar pela indicação da legislação vigente para conhecimento. 4.1 Lei de Esterilização Cirúrgica Ilícita (Lei n.º 9.263/96)                                              A esterilização cirúrgica é regida pelo art. 10 da Lei n. 9.263/96, alterada pela Lei n. 14.443/22. Já os crimes médicos previstos nos artigos 15 a 18 dessa mesma lei constituem-se exatamente quando o ato médico é realizado sem o atendimento aos requisitos legais para a execução da esterilização cirúrgica, iniciando-se a lista delituosa pelo artigo 15: Art. 15. Realizar esterilização cirúrgica em desacordo com o estabelecido no art. 10 desta Lei. Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, se a prática não constitui crime mais grave. Parágrafo único - A pena é aumentada de um terço se a esterilização for praticada: I - Durante os períodos de parto ou aborto, salvo o disposto no inciso II do art. 10 desta Lei. II - Com manifestação da vontade do esterilizado expressa durante a ocorrência de alterações na capacidade de discernimento por influência de álcool, drogas, estados emocionais alterados ou incapacidade mental temporária ou permanente; III - através de histerectomia e ooforectomia; IV - Em pessoa absolutamente incapaz, sem autorização judicial; V - Através de cesárea indicada para fim exclusivo de esterilização.  4.2 Lei de Biossegurança: as células-tronco (Lei n.º 11.105/05) Aqui, da mesma forma, os crimes médicos são condutas que afrontam os próprios requisitos criados pela lei para o manejo do material genético humano, especialmente as células-tronco embrionárias, prevendo o art. 5.º da Lei de Biossegurança6 que: Art. 5.º - É permitida, para fins de pesquisa e terapia, a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, atendidas as seguintes condições: I - Sejam embriões inviáveis; ou II - Sejam embriões congelados há 3 (três) anos ou mais, na data da publicação desta Lei, ou que, já congelados na data da publicação desta Lei, depois de completarem 3 (três) anos, contados a partir da data de congelamento. § 1.º Em qualquer caso, é necessário o consentimento dos genitores. Já os crimes médicos previstos nessa mesma lei, nos seus artigos 24 a 29, também se caracterizam por alguma conduta dos profissionais de saúde que descumprem os requisitos legais para o manejo do material genético humano, iniciando-se pelo artigo 24: Art. 24. Utilizar embrião humano em desacordo com o que dispõe o art. 5.º desta Lei: Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. 4.3 Lei de Transplantes de Órgãos e de Tecidos (Lei n.º 9.434/97) Ainda e de igual maneira, os crimes médicos previstos nos artigos 14 a 20 da Lei de Transplantes de Órgãos e Tecidos (Lei n.º 9.434/97) são a exata descrição de condutas que infringem as normas legais vigentes para a realização dos transplantes, iniciando-se pelo 14: Art. 14. Remover tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa ou cadáver, em desacordo com esta Lei. Pena - reclusão, de dois a seis anos, e multa, de 100 a 360 dias-multa. § 1.º Se o crime é cometido mediante paga ou promessa de recompensa ou por outro motivo torpe: Pena - reclusão, de três a oito anos, e multa, de 100 a 150 dias-multa. § 2.º Se o crime é praticado em pessoa viva, e resulta para o ofendido: I - Incapacidade para as ocupações habituais, por mais de trinta dias;  II - Perigo de vida;  III - debilidade permanente de membro, sentido ou função;  IV - Aceleração de parto. Pena - reclusão, de três a dez anos, e multa, de 100 a 200 dias-multa. § 3.º Se o crime é praticado em pessoa viva e resulta para o ofendido: I - Incapacidade para o trabalho;  II - Enfermidade incurável; III - perda ou inutilização de membro, sentido ou função;  IV - Deformidade permanente;  V - Aborto Pena - reclusão, de quatro a doze anos, e multa, de 150 a 300 dias-multa. § 4.º Se o crime é praticado em pessoa viva e resulta morte: Pena - reclusão, de oito a vinte anos, e multa de 200 a 360 dias-multa. 5. Exercício ilegal da Medicina                                                                                            Por fim, quanto aos delitos relacionados de alguma maneira à área médica, temos o exercício ilegal da Medicina: Art. 282 - Exercer, ainda que a título gratuito, a profissão de médico, dentista ou farmacêutico, sem autorização legal ou excedendo-lhe os limites: Pena - detenção, de seis meses a dois anos. Parágrafo único - Se o crime é praticado com o fim de lucro, aplica-se também multa. Essa é uma questão primordial sobretudo para os atuais Estudantes da Ciência Médica, a fim de evitar situações como a seguinte, em que o aluno foi desligado do curso universitário pelo exercício irregular da Medicina: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. ENSINO SUPERIOR. EXERCÍCIO IRREGULAR DA MEDICINA. PENA DE DESLIGAMENTO DO CURSO IMPOSTA APÓS PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO DISCIPLINAR. POSSIBILIDADE. OFENSA AOS PRINCÍPIOS DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E DA ISONOMIA. INOCORRÊNCIA. IMPROVIMENTO. [...] 6. Deve ser ressaltado que a aplicação de pena de desligamento do impetrante se mostra razoável, vez que a Instituição de Ensino possui autonomia para exigir dos seus alunos uma conduta de retidão moral, de forma a preservar a imagem da Instituição e de inibir ações desonestas pelos seus alunos, como o exercício irregular da Medicina. 7. Apelação improvida.7 Dessa forma, apresentados os crimes médicos em espécie, na Parte III dessa série de Direito Penal Médico veremos a questão central colocada para exame acerca do sigilo médico na hipótese de suspeita de aborto pela paciente e qual deve ser a postura do Médico, segundo minha visão frente à legislação, à jurisprudência e à doutrina nacionais mais atualizadas. __________ 1 SOUZA, Wendell Lopes Barbosa de. O Erro Médico nos Tribunais. Editora Foco, abril de 2024, cap. 12: Crimes Médicos. 2 BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. RSE 1525527-3/Curitiba, 1.ª Câm. Criminal, Rel. Juiz Benjamim A. de Moura e Costa, Rel. Designado p/ o acórdão Des. Miguel Kfouri Neto, por maioria de votos. j. 04.05.2017. 3 BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação Criminal 0058533-59.2018.8.16.0014, Relator Desembargador Miguel Kfouri Neto, Julgamento 28/05/2022. 4 Consultar ainda a ADPF 54: permissão de aborto no caso de fetos anencéfalos. 5 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental 442/DF. Voto da Ministra Rosa Weber. Disponível aqui. Acesso em: 09 out. 2023. 6 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3510, Rel. Min. Ayres Brito. Improcedente por maioria (6x5). 7 BRASIL. Tribunal Regional Federal da 5.ª Região. Apelação cível 534143/PB, Relator Desembargador Federal Francisco Wildo. Julgamento 07/02/2012.
1. Introdução Na situação de suspeita de aborto praticado pela própria paciente, o Médico não deve promover a comunicação do fato à Autoridade Policial, sob pena de incidir na quebra do sigilo médico profissional e responder na esfera criminal e ético-profissional, de acordo com as mais recentes decisões do c. STJ do ano de 2023. Pois bem, essa é a ideia básica que pretendo deixar registrada ao final dessa tríade de textos de ingresso na Coluna Migalhas de Direito Médico e Bioética, agora na qualidade de um dos Coordenadores. Brevemente, portanto, registro meus cumprimentos e agradecimentos ao Migalhas, ao IMKN - Instituto Miguel Kfouri Neto, na pessoa do Mestre Kfouri e de sua Presidente Dra. Rafaella Nogaroli, aos Coordenadores Dra. Fernanda Schaefer e Dr. Igor Mascarenhas, aos Caros Amigos do Instituto MKN e aos prezados leitores desta valorosa coluna, razão última de nossos trabalhos por aqui. Importantíssimo, mas subestimado - essa a atual condição de estudo científico do Direito Penal Médico no Brasil. Realmente, não há necessidade de grandes incursões para se chegar a essa notória conclusão, bastando fazer uma verificação do número de livros, aulas, lives e seminários em geral tendo como objeto a Responsabilidade Civil Médica, comparando com os trabalhos acadêmicos desenvolvidos na temática da Responsabilidade Penal Médica. A impressão que tenho, sinceramente, é que a velha tripartição das esferas de Responsabilidade Médica (Responsabilidade Civil, Responsabilidade Penal e Responsabilidade Ética) está praticamente lacunosa, quase que esquecido um de seus pilares: o Direito Penal Médico. Nesse cenário, não custa reiterar que nós - os Juristas Especialistas no Direito Médico - não podemos descurar do Direito Penal Médico, já que o eventual cometimento do Erro Médico vai acarretar, em termos de responsabilidade jurídica, duas vertentes imediatas de responsabilização: a civil e a penal - ambas com intersecções muito próximas. Em outros termos de formulação, o Advogado que se proponha a atuar no consultivo e contencioso do Direito Médico na defesa dos direitos do Médico, para que possa assessorar o Profissional de Saúde de maneira integral sob o ponto de vista de sua proteção jurídica, deve conhecer, além da Responsabilidade Civil e Ética Médica, o próprio Direito Penal Médico. A modesta recomendação nesse sentido seria muito confortável de minha parte, se não fosse para fornecer na sequência um conteúdo que considero mínimo para introduzir o Jurista na temática com uma visão panorâmica do Direito Penal Médico, pinçando, a seguir, uma de suas questões mais polêmicas e de vanguarda que tem gerado graves consequências profissionais e jurídicas, inclusive penais, aos Médicos: a questão da quebra do sigilo médico na suspeita de aborto praticado pela própria paciente. Dessa forma, procurando fornecer um material de mero início de estudos no Direito Penal Médico, segue uma série de 3 artigos jurídicos com a seguinte cronologia: Parte I - Uma Breve Teoria Geral da Responsabilidade Penal Médica; Parte II - Crimes em Espécie Passíveis de Cometimento na Medicina; Parte III - A Questão do Sigilo Médico na Suspeita de Aborto pela Paciente. Os objetivos centrais que impulsionam essa série de artigos sobre o Direito Penal Médico são os seguintes: 1) demonstrar aos Profissionais de Medicina que a prática anterior de determinadas condutas acabou resultando na instauração de inquéritos policiais e mesmo processos criminais, alguns deles culminando na aplicação de sanções penais contra os Médicos; 2) que, portanto, tais condutas devem ser evitadas para que os Médicos não suportem futuramente as mesmas consequências legais e prejudiciais no exercício de sua profissão; 3) preparar o Advogado Especialista no Direito Médico a prestar escorreita consultoria preventiva ao Profissional de Medicina, para que não incida nas mesmas condutas potencialmente passíveis de tipificação criminal e defendê-lo criminalmente no caso de já ter sido instaurado o contencioso procedimento penal - seja o inquérito ou o processo criminal. Visando o alcance dos 3 objetivos acima e concluindo essa introdução, ressalto que essa percepção acerca da importância do fomento do estudo do Direito Penal Médico decorre da minha própria trajetória pela Jurisdição Criminal há mais de 20 anos, inclusive como Juiz Titular de Vara Criminal no Foro Central da Capital de São Paulo e hoje como Juiz Presidente do Tribunal do Júri, onde questões como a distinção entre dolo eventual e culpa consciente - com consequências tão importantes na seara dos delitos médicos, como veremos - sempre estão em evidência. Essa mesma trajetória de carreira profissional, quando transportada para os trabalhos no âmbito científico-acadêmico de pesquisa, sempre me impulsionou a incluir o Direito Penal Médico nos cursos sob minha coordenação, e agora o seu conteúdo vem devidamente sistematizado no capítulo denominado "CRIMES MÉDICOS" no livro recém-lançado: "O ERRO MÉDICO NOS TRIBUNAIS"1. O livro é fruto da tese de pós-doutorado pelo POSCOHR da Universidade de Coimbra, na linha de pesquisa "Direitos Humanos, Saúde e Justiça", contando com o prefácio de Sua Excelência o Ministro Paulo Dias de Moura Ribeiro do STJ, obra e capítulo dos quais retiramos as fontes para a construção desse breve panorama do Direito Penal Médico, que passo a oferecer com plena satisfação e vivo agradecimento pela sua leitura! 2. Afinal, o que é um crime na área médica? É importante notar, desde logo, que a diferenciação que se estabelece entre o erro médico e a iatrogenia, assim como suas consequências para a responsabilidade civil médica, tem a mesma importância para a responsabilidade penal do Médico. Com efeito, da mesma maneira, só poderá haver a responsabilização penal do Médico se ficar demonstrado que o dano suportado pelo paciente tem nexo causal com uma conduta médica culposa por negligência, imprudência ou imperícia - ou, excepcionalmente, por dolo eventual, como veremos. De outro lado, se ficar demonstrado que o dano suportado pelo paciente tem como causa um fator iatrogênico, isto é, não ligado ao erro médico, o profissional não deverá responder criminalmente pelo prejuízo suportado pelo paciente. Dessa forma, temos o seguinte quadro para que um Médico possa ser condenado criminalmente por uma conduta sua: o dano suportado pelo paciente deve guardar nexo causal com uma ação culposa ou dolosa (por dolo eventual) do Médico; e mais, diferentemente lá da responsabilidade civil, aqui na responsabilidade penal deve haver uma previsão expressa na lei penal de que esse fato - exatamente como ocorrido em todas as suas circunstâncias - configura um crime e possui uma pena previamente cominada no ordenamento jurídico. Na esfera da responsabilidade penal, portanto, a mesma conduta médica objeto de uma ação civil indenizatória poderá ser analisada à vista da legislação penal do país, para a verificação se a ação ou omissão praticada pelo profissional de saúde se enquadra em alguma das hipóteses legais previstas como delito. Terá vez a responsabilização penal se a conduta médica for prevista como crime na lei penal brasileira e a sanção será a imposição de uma pena criminal, que pode ser desde uma multa até a reclusão de quem atuou com culpa ou, excepcionalmente, impulsionado em sua conduta pelo denominado dolo eventual - que é o fato de assumir o risco de produzir um dano. Vale dizer que não se cogita, na prestação de serviços médicos, da prática de um ato criminal lastreado no dolo direto, que é a vontade livre e consciente da realização da ação delituosa voltada para a lesão da vítima ou provocação de sua morte - como, por exemplo, no totalmente excepcional e trágico Caso Pavesi - que nem prefiro tratar como um caso médico. 3. Crimes por ação e omissão do Médico   No mais das vezes, como estudamos na responsabilidade civil médica, a conduta do Médico causadora do dano se dá por meio de uma ação, isto é, de um fazer, de uma conduta positiva. Se essa ação for culposa e causar um dano previsto na lei penal como crime, teremos um crime médico por ação médica. Mas, o mesmo resultado danoso ao paciente previsto como crime pode decorrer de uma omissão médica, quando o profissional tinha o dever legal de agir e não o fez, concluindo-se, então, que houve crime médico por omissão médica. Veja-se como se dá a relação de causalidade na ação e na omissão nos crimes médicos de acordo com a previsão do Código Penal brasileiro: Art. 13 - O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. Relevância da omissão § 2.º - A omissão é penalmente relevante quando o omitente devia e podia agir para evitar o resultado. O dever de agir incumbe a quem: a) tenha por lei obrigação de cuidado, proteção ou vigilância;  b) de outra forma, assumiu a responsabilidade de impedir o resultado;  c) com seu comportamento anterior, criou o risco da ocorrência do resultado. Como exemplo, temos abaixo a hipótese de uma verdadeira tragédia provocada por uma ação médica considerada como delituosa que ceifou a vida de vários pacientes: Apelação cível. Ação de indenização. Erro médico. Sentença de parcial procedência. Recurso da parte ré. Alegada ausência de nexo de causalidade entre a conduta do médico réu e o óbito da filha dos autores. Rejeição. Responsabilidade do profissional que já foi apreciada pelo juízo da vara criminal. Culpabilidade do réu que foi reconhecida em relação ao delito de homicídio culposo decorrente de erro médico. Impossibilidade de rediscussão. Parte que desrespeitou as orientações emitidas pela anvisa para exames semelhantes ao realizado pela filha dos autores (endoscopia). Uso da substância lidocaína na forma contraindicada pelas autoridades competentes. Conduta que levou a óbito a filha dos autores, além de outros pacientes que compareceram à clínica no dia dos fatos. Responsabilidade solidária dos apelantes configurada. Dever de indenizar inconteste. Dano moral. Pretendida a redução do quantum arbitrado. Impossibilidade. Perda prematura de um filho. Valor que não se mostra exorbitante quando ponderada a dor incomensurável dos autores. Manutenção que se impõe. Pensão mensal vitalícia. Dependência financeira presumida. Família de baixa renda. Parte ré que ainda objetiva limitar o encargo para a data em que a filha dos autores completaria 25 (vinte e cinco) anos. Não acolhimento. Teto de percepção da verba estipulado pelo juízo a quo em 60 (sessenta) anos de idade. Entendimento do superior tribunal de justiça no sentido de perpetuar a verba até o momento em que a de cujus faria 65 (sessenta e cinco) anos de idade. Reforma da sentença que, contudo, é inviável, ante a ausência de recurso dos autores no tópico. Fixação de honorários recursais. Recurso conhecido e desprovido.2 (grifei) De outro lado, segue uma outra hipótese de homicídio, essa agora por omissão médica: REVISÃO CRIMINAL. Homicídio culposo. Artigo 121, §§ 3.º e 4.º, do CP. Erro médico. Condenação por culpa decorrente de negligência e imperícia. Conduta omissiva imputada a cirurgião plantonista em hospital. Atendimento a vítima com quadro de "abdômen agudo cirúrgico". Inação por não analisar as imagens da tomografia solicitada pelo próprio peticionário no dia da entrada da paciente no pronto socorro e também por não ter passado o caso a outro colega para avaliação do quadro com a necessária celeridade. Contribuição da conduta do corréu para a ocorrência do resultado típico. Comprovação de avaliação tardia e incorreta dos exames efetuados pelo médico cirurgião que sucedeu o peticionário no atendimento da ofendida. Nexo causal entre a omissão e o resultado morte, advindo de quadro infeccioso generalizado oriundo de "apendicite aguda". Condutas sucessivas e concorrentes para agravamento do quadro clínico e consequente óbito. Pretendida rescisão do julgado com base em nova prova de inocência constituída por laudo pericial produzido na demanda indenizatória em trâmite no juízo cível. Pleito fundado no artigo 621, inciso III, do CPP. Elemento inapto à desconstituição do julgado. Condenação fundada em laudo do IMESC e nos elementos colhidos no procedimento ético profissional do CREMESP. Condenação mantida. PENA. Acréscimo de 2/3 fundado na gravidade da culpa. Consideração de aspectos que não extrapolam as elementares do próprio tipo culposo. Ausência de circunstância extraordinária a justificar maior reprovabilidade da conduta. Afastamento. Causa de aumento da inobservância de regra técnica de profissão (§ 4.º). Manutenção. Reprimenda concretizada em 1 ano e 4 meses de detenção no regime aberto. Substituição da privativa de liberdade por duas restritivas de direitos. Pedido rescisório indeferido. Concessão, no entanto, de habeas corpus de ofício para efetuar a sobredita redução da pena.3 (grifei) 4. Excludentes de ilicitude médica - não há crime nessas hipóteses      Trata-se de situações nas quais, muito embora seja provocado um dano ao paciente, a conduta de quem causou o prejuízo está justificada e amparada pela legislação brasileira. As excludentes de ilicitude penal médica são as mesmas do art. 23 do Código Penal: Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato: I - Em estado de necessidade; II - Em legítima defesa; III - Em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. No Direito Médico em específico, não vislumbramos a hipótese de legítima defesa, mas vamos trazer dois exemplos das duas outras causas excludentes de ilicitude médica. a) Estado de necessidade, que vem detalhado no art. 24 do Código Penal: Art. 24 - Considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se. Exemplo: aborto praticado por médico quando não há outro meio de salvar a vida da gestante (art. 128, I, do CP). b) Estrito cumprimento do dever legal ou exercício regular de um direito como previsto no artigo 23 do CP, ocorrendo nas situações em que o médico pratica uma ação no exercício legal e regulamentar de sua profissão, sem possibilidade de ser punido por isso. Exemplo: o aborto com o consentimento da gestante, quando a gravidez resulte de estupro (art. 128, II, do CP). 5. A suspensão do exercício da Medicina imposta como pena alternativa criminal As chamadas penas restritivas de direitos ou alternativas substituem a pena privativa de liberdade (reclusão ou detenção) quando a lei permite. Segundo o art. 43 do Código Penal, são as seguintes: I - prestação pecuniária; II - perda de bens e valores; III - limitação de fim de semana; IV - prestação de serviço a comunidade ou a entidades públicas; V - interdição temporária de direitos. A questão que se coloca é se o juiz criminal, ao reconhecer a existência de um crime e fixar uma sanção criminal, pode substituir a pena privativa de liberdade pela pena alternativa prevista no inciso V do art. 43 acima: a interdição temporária de direitos na modalidade suspensão do exercício da Medicina.      Por mais que não se concorde com essa solução, verifica-se que o Superior Tribunal de Justiça ratificou a decisão das instâncias inferiores num caso em que a pena privativa de liberdade do médico foi substituída pela suspensão do exercício de sua profissão: Trata-se de habeas corpus com pedido liminar impetrado em favor de MARCELO FIGUEIREDO SOUZA COSTA, apontando como autoridade coatora o TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE MINAS GERAIS (Apelação n. 1.0343.11.000949-9/001). Depreende-se dos autos que o réu foi condenado às penas de 1 ano e 8 meses de reclusão e 4 meses de detenção, em regime aberto, e ao pagamento de 20 dias-multa, pela prática dos delitos inscritos nos arts. 121, §§ 3.º e 4.º, e 319, c/c o art. 69, todos do Código Penal (homicídio culposo circunstanciado e prevaricação). A sanção corporal foi substituída por prestação de serviços à comunidade e interdição temporária de direitos, consistente na proibição do exercício da Medicina pelo tempo da pena privativa de liberdade aplicada. Ante o exposto, denego a ordem. Outrossim, julgo prejudicado o pedido de reconsideração de e-STJ de fls. 229/234.4 (grifei) Guardado o devido respeito, segundo meu entendimento, a decisão nesse sentido acaba por subtrair do Médico a garantia fundamental ao exercício do seu ofício ou profissão e não pode ser aplicada como sanção de natureza criminal, mas sim deve ser reservada à analise da responsabilização ético-profissional pelo órgão de classe competente. 6. Relativa independência entre as esferas criminal e cível Sabemos que, pelo princípio da independência das instâncias, em tese, a violação de um só dever, por parte do Médico, caracterizando-se eventualmente ilícito penal e civil numa só conduta médica, pode desencadear, em princípio, responsabilização nas duas instâncias concomitantemente e de modo independente. Isto é, o Médico pode ser absolvido em uma instância e vir a ser condenado em outra, pois, em regra e em princípio, as esferas de responsabilidade são autônomas entre si - penal e civil. É a norma estabelecida na primeira parte do art. 935 do Código Civil, fixando, em princípio, uma certa independência entre as instâncias cível e criminal de apuração da responsabilidade médico-jurídica, conforme abaixo: Art. 935 - A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal. Porém, veja-se que, na segunda parte do mesmo art. 935 do CC, a regra da independência absoluta entre as instâncias é mitigada, criando-se uma causa de vinculação da Justiça Cível na hipótese de a Justiça Criminal fixar de maneira cabal acerca da existência e da autoria de um fato criminal médico. Em outras palavras, uma vez declarado definitivamente pela Justiça Criminal que houve um crime médico e que determinado profissional é autor deste mesmo fato, essas questões não podem mais ser objeto de discussão na Justiça Cível - aqui caberá apenas a fixação da quantia da indenização médica e sua execução patrimonial: Apelação cível. Erro médico. Indenização. Falecimento do filho da autora. Erro de diagnóstico, que culminou no óbito do filho da autora. Ação julgada improcedente. Responsabilidade solidária (art. 7.º do CDC). Preliminar de ilegitimidade passiva da corré, previna rejeitada. Inconformismo da autora. Reconhecimento da culpa dos apelantes no âmbito penal. Acórdão que condenou os réus por homicídio culposo. Aplicação do artigo 935 do cc. Impossibilidade de discussão sobre a existência do fato ou sobre quem seja o autor. Questões já decididas na esfera criminal. Extinção da punibilidade que não afasta a responsabilidade civil - dever de indenizar. Art. 67, II, do CPP). Precedentes do STJ. Sentença penal condenatória considerada título executivo judicial (art. 515, VI, do CPC). Dano material restrito às despesas com sepultamento. Reparação devida. Honorários contratuais e despesas extrajudiciais que não comportam reparação. Dano moral evidente. Indenização arbitrada em R$50.000,00. Dado provimento parcial ao recurso5 (grifei) De outro lado, se o Médico foi beneficiado com uma absolvição no juízo criminal, mas essa absolvição decorreu de uma dúvida na formação da culpa, por exemplo, por insuficiência de provas, o paciente, ainda assim, continua com a oportunidade de ajuizar uma ação civil indenizatória contra o profissional para a obtenção de uma indenização. 7. Dolo eventual x culpa consciente e as principais diferenças legais práticas dessa distinção no cometimento de um crime na área médica - o caso do homicídio Há uma diferenciação muito sofisticada e técnica que merece uma breve menção, no que tange à distinção entre dolo eventual x culpa consciente. Na culpa consciente, o agente, confiando em suas habilidades, pratica o ato prevendo que seja possível a ocorrência de algum resultado adverso, mas confia firmemente que isso não ocorrerá. No dolo eventual, o agente também prevê a possibilidade da ocorrência de um resultado adverso, embora não o deseje diretamente, mas acaba assumindo o risco de produzir o dano por força de sua conduta. As diferenças básicas entre o reconhecimento de um homicídio na modalidade culposa e na modalidade de dolo eventual são de duas vertentes: uma - de conteúdo - sob o ponto de vista da própria intensidade da sanção criminal; e outra - de forma - sob o ponto de vista do procedimento criminal a ser adotado em cada uma das situações. Explico.           No caso de homicídio culposo, o processo será julgado por um Juiz de Direito monocrático e a pena é bem mais branda (detenção de 1 a 3 anos). No caso de homicídio com dolo eventual, a pena é bem mais elevada (reclusão de 6 a 20 anos), com o seguinte "detalhe" que muda todo o panorama de exposição do profissional: o julgamento final é feito pelo Tribunal do Júri Popular da Comarca onde o serviço médico foi prestado. Dito isso, na Parte II dessa série de Direito Penal Médico, veremos dois casos relatados pelo Eminente Desembargador Miguel Kfouri Neto do Tribunal de Justiça do Paraná, cada qual num sentido - um homicídio culposo e um homicídio com dolo eventual, ambos na área médica. __________ 1 SOUZA, Wendell Lopes Barbosa de. O Erro Médico nos Tribunais. Editora Foco, abril de 2024, cap. 12: Crimes Médicos. 2 BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação 0000045-30.2012.8.24.0037/SC, Relator Desembargador Sérgio Izidoro Heil, Julgamento: 07/03/2023. 3 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Processo 2132292-17.2020.8.26.0000, 8.º Grupo de Direito Criminal, Relator Desembargador Otávio de Almeida Toledo, Julgamento: 08/04/2021, Publicação: 08/04/2021. 4 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas corpus 684954 MG 2021/0248166-0, Relator Ministro Antônio Saldanha Palheiro, Julgamento: 05.10.2021. 5 BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Processo 0050906-85.2012.8.26.0547, 8.ª Câmara de Direito Privado, Relator Desembargador Silvério da Silva, Julgamento: 18/11/2020, Publicação: 01/12/2020.
No início de abril de 2024, foi publicada, no Diário Oficial da União, norma editada pelo Conselho Federal de Medicina - Resolução 2.378/2024 -, que prevê a proibição do procedimento de assistolia fetal em gestações decorrentes de estupro. O texto normativo, em artigo único a tematizar a questão, especifica o seguinte:  É vedado ao médico a realização do procedimento de assistolia fetal, ato médico que ocasiona o feticídio, previamente aos procedimentos de interrupção da gravidez nos casos de aborto previsto em lei, ou seja, feto oriundo de estupro, quando houver probabilidade de sobrevida do feto em idade gestacional acima de 22 semanas. Poucos dias depois, órgãos do sistema de justiça, da classe médica e da sociedade civil iniciaram uma série de manifestações contra a referida resolução. O Ministério Público Federal, a Sociedade Brasileira de Bioética e o Centro Brasileiro de Estudos de Saúde ajuizaram Ação Civil Pública com pedido de tutela de urgência (ACP 5015960-59.2024.4.04.7100) em face do CFM, objetivando a declaração de nulidade do ato normativo, por restringir indevidamente direito fundamental de mulheres, em especial o direito de acesso ao melhor atendimento de profissionais de saúde para a realização de aborto legal, o que cria ilegalmente mais "uma barreira à integridade dos cuidados de saúde". Em 18 de abril, a 8ª Vara Federal de Porto Alegre, Seção Judiciária do Rio Grande do Sul, deferiu o pedido liminar no bojo da ACP para suspender os efeitos da Resolução n. 2.378/24, vedando a utilização do ato normativo para obstar o procedimento ou impor punição disciplinar aos médicos que o realizarem. Em sede constitucional, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), com suporte técnico do ANIS - Instituto de Bioética, CRAVINAS - Clínica de Direitos Humanos e Reprodutivos da Universidade de Brasília e do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, também questionou a constitucionalidade da resolução ao ajuizar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 11411 pedindo a  suspensão da eficácia da norma impugnada até o julgamento final da ação. Em 26 de abril, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região conferiu efeito suspensivo ao agravo de instrumento interposto pelo Conselho Federal de Medicina e reformou a decisão recorrida afirmando que a ADPF 989 e a ADPF 1.141 discutem o tema, por isso não seria adequada, no momento, a prolação de decisões singulares com eficácia e abrangência nacional determinando a suspensão do ato normativo atacado. Como se pode ver, a discussão está longe de terminar. Enquanto isso, a insegurança jurídica só aumenta e, com ela, o risco persecutório de profissionais da Medicina. Isso porque a Resolução 2.378/2024, ao estabelecer vedações não dispostas em lei, repercute não somente discussões já antigas sobre os limites da competência do CFM para regulamentar determinadas matérias, como também intensifica o cenário de obstáculos à interrupção da gravidez nas hipóteses permitidas pelo ordenamento jurídico.2 São elas: i) quando a gestação é decorrente de estupro/violência sexual; ii) quando há risco de vida para a pessoa gestante (art. 128, I e II, Código Penal) e; iii) desde 2012, o STF estendeu a excludente de ilicitude para a gestação de anencéfalos, por meio da ADPF 54. Embora a ementa da Resolução 2.378/2024 a sintetize como normativa que "regulamenta o ato médico de assistolia fetal", a literalidade da redação expressa patente proibição aos profissionais da Medicina quanto à realização do procedimento, o qual é descrito como "ato médico que ocasiona o feticídio"3. Além de a autarquia federal violar o princípio da legalidade e apropriar-se inadequadamente da competência do Congresso Nacional de legislar sobre o tema, extrapolando o seu poder regulamentar, ao produzir alteração normativa de caráter primário por tipificar a conduta de profissionais médicos, pode-se afirmar que diversos outros preceitos fundamentais são ofendidos pela resolução do CFM. Há uma série de evidências científicas sobre a utilização terapêutica da assistolia fetal em gestações avançadas. De acordo com a Organização Mundial da Saúde4, recomenda-se a indução da assistolia fetal como um procedimento pré-abortamento5, isto é, antes do esvaziamento uterino nas gestações acima de 20 semanas.6 O Ministério da Saúde, no âmbito da Nota Técnica Conjunta 37/2023 SAPS/SAES/MS, também sinaliza que a indução de assistolia fetal, ao preceder as induções medicamentosas nos casos de abortamento, trata-se de técnica que produz cuidados em saúde, "por trazer benefícios emocionais, legais e éticos relacionados ao impedimento da expulsão fetal com sinais transitórios de vida".7 Sendo assim, ao preconizar que os profissionais não poderão se valer do procedimento nos casos de aborto decorrente de estupro, o CFM impede que a melhor técnica disponível na saúde seja aplicada, o que é atentatório á liberdade científica (artigo 5º, IX, da Constituição Federal) e contraria o próprio Código de Ética Médica, o qual estipula, em seu artigo 32, que é vedado ao profissional "deixar de usar todos os meios disponíveis de promoção de saúde e de prevenção, diagnóstico e tratamento de doenças, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente". Adicionalmente, o CFM impõe uma restrição de forma discriminatória ao limitar a proibição do uso da técnica aos casos de gravidez resultante de estupro, sem qualquer respaldo jurídico, científico e ético para tanto. Da mesma forma, a norma viola a liberdade do exercício da profissão prevista no artigo 5°, inciso XIII, da Constituição Federal, pois impede que a(o) profissional da Medicina escolha técnica segura e eficaz na condução do abortamento. Tal proibição, ademais, agrava a insegurança jurídica que já paira nos serviços de atendimento ao aborto, especialmente nos casos oriundos de violência sexual, questão que vem sendo denunciada no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 989. Todas essas violações potencializam a vulnerabilidade de meninas, mulheres e demais pessoas com capacidade de gestar que buscam o aborto nas hipóteses autorizadas8, principalmente nas situações decorrentes de estupro. Isso porque, segundo o IPEA, a cada minuto, praticamente duas pessoas são estupradas9 e, dentre as consequências sofridas pelas vítimas do estupro, a terceira maior prevalência diz respeito à gravidez (7,1%). Na faixa etária entre 14 e 17 anos, a proporção de vítimas que ficam grávidas cresce para 15%.10 Portanto, impossibilitar a interrupção da gestação em casos de estupro - em caráter seletivo e discriminatório, como a Resolução do CFM o faz - caracteriza patente violação ao direito à saúde, o que, por sua vez, também pode acarretar danos ao projeto de vida de quem tem frustrado o acesso aos melhores cuidados em saúde ao buscar o aborto legal.   Por sinal, o fundamento apresentado na Resolução 2.378/2024, CFM para se proibir o procedimento de assistolia, de que "toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida, direito esse que deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção", em alusão ao artigo 4.1. da Convenção Americana de Direitos Humanos, não se sustenta.  Na decisão do caso Artavia Murillo vs. Costa Rica (2012)11, a Corte Interamericana de Direitos Humanos interpretou aquele dispositivo e esclareceu que, devido à expressão "em geral" presente no artigo, a proteção do direito à vida não pode ser absoluta nem incondicional: ela deve ser gradual e progressiva, de acordo com o seu desenvolvimento. Além disso, na mesma decisão, a CorteIDH consignou que o objeto de proteção do direito à vida é principalmente a mulher grávida, pois é ela que carrega a potencialidade da existência de vida, afirmando-se o direito à integridade pessoal em relação à autonomia e à saúde sexual e reprodutiva. Como se vê, trata-se de precedente instaurado há mais de uma década, amplamente difundido na literatura especializada12, que reflete a interpretação evolutiva e sistemática adotada pela CorteIDH no que tange à Convenção Americana de Direitos Humanos, de modo que a resolução do CFM, ao ignorá-lo, também esbarra no crivo da convencionalidade.  A propósito, este entendimento se alinha à Recomendação Geral n° 35 do Comitê para a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres (CEDAW), que preconiza que as violações dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, como a recusa ou atraso no acesso ao aborto seguro e aos cuidados pós-aborto, a imposição forçada de gravidez, o abuso e maus-tratos a mulheres e meninas que buscam informações, produtos e serviços relacionados à saúde sexual e reprodutiva, são consideradas formas de violência de gênero. Ainda, dependendo das circunstâncias, essas violações podem ser equiparadas à tortura ou a tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.  Estes argumentos parecem encontrar reflexo no posicionamento de diversas entidades e organizações que se manifestaram publicamente em relação à Resolução 2.378/2024, incluindo a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo)13 e Rede Médica pelo Direito de Decidir (Global Doctors for Choice - Brasil)14, que contam com representantes da classe médica.  O contexto apresentado nos mostra, portanto, a necessidade de um debate pautado em evidências científicas, tanto da saúde quanto do direito, sobre a regulamentação da interrupção da gravidez e dos atos realizados pelos sistemas de saúde a fim de garantir acesso ao abortamento seguro e fortalecer as políticas de planejamento reprodutivo. A atenção humanizada às mulheres, meninas e demais pessoas com capacidade de gestar em abortamento pressupõe atenção à gestante prioritariamente e o respeito a direitos fundamentais que não podem ser solapados por normas ético-profissionais. __________ 1 A ADPF 1141 apresenta pedido de medida cautelar e distribuição por prevenção por conexão com a ADPF 989/DF, ação na qual se objetiva o reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucional em relação ao aborto legal. Disponível aqui. 2 LIMA, Francielle Elisabet Nogueira; SCHIOCCHET, Taysa; NUNES, Mariana. Além da lei: os desafios do aborto legal no Brasil. Migalhas de Direito Médico e Bioética, 04 de dez 2023. Disponível aqui. Acesso em: 23 de abril de 2024. 3 Termo que não leva em consideração a diferenciação biológica entre embrião (até a 8ª semana de gestação e feto (a partir da 8ª semana de gestação até seu termo) e sequer tem previsão no ordenamento jurídico penal brasileiro. 4 Segundo as Orientações Técnicas da Organização Mundial de Saúde1 (OMS) o abortamento pode ser: a) farmacológico (ou medicamentoso), no qual se utilizam fármacos para finalizar a gravidez (método médico); b) cirúrgico, no qual se utilizam procedimentos transcervicais para finalizar a gravidez (método cirúrgico) (ORGANIZAÇÃO Mundial da Saúde. Abortamento   seguro: orientação técnica de políticas para sistemas de saúde. 2.ed. OMS, 2013). 5 Abortamento é "a expulsão do feto antes de sua viabilidade" (BLAKISTON. Dicionário médico. 2a. ed. São Paulo: Andrei, 1997. p. 18). O aborto, segundo a OMS, "é uma intervenção de saúde segura e não complexa que pode ser eficazmente gerida usando medicamentos ou um procedimento cirúrgico em vários contextos. As complicações são raras tanto com o aborto farmacológico como no cirúrgico. (ORGANIZAÇÃO Mundial da Saúde. Diretrizes sobre cuidados no aborto, 2022. Disponível em: Disponível aqui. Acesso em 16 fev. 2023).          6 WORLD HEALTH ORGANIZATION. Clinical practice handbook for quality abortion care, 2023. Disponível aqui. Acesso em: 11 de abril de 2024. 7 MINISTÉRIO DA SAÚDE. Nota Técnica Conjunta nº 37/2023-SAPS/SAES/MS. Disponível aqui. Acesso em: 11 de abril de 2024. 8 As restrições legais ao abortamento não ajudam a diminuir sua ocorrência nem a assegurar o aumento de taxas de natalidade, isso porque "o estatuto jurídico do aborto não altera a necessidade de aborto de uma mulher, mas afeta significativamente o seu acesso ao aborto seguro" (ORGANIZAÇÃO Mundial da Saúde. Diretrizes sobre cuidados no aborto, op. cit.). 9 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (Ipea). Elucidando a Prevalência de Estupro no Brasil a Partir de Diferentes Bases de Dados, 2023, p. 22. Disponível aqui. Acesso em 11 de abril de 2024. 10 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (Ipea). Estupro no Brasil: Uma radiografia segundo os dados da Saúde, 2014, p. 15-16. Disponível aqui. Acesso em 11 de abril de 2024. 11 "(...) Por outro lado, em relação à controvérsia sobre quando começa a vida humana, a Corte considera que se trata de uma questão apreciada de diversas formas sob uma perspectiva biológica, médica, ética, moral, filosófica e religiosa, e coincide com tribunais internacionais e nacionais, no sentido de que não existe uma definição consensual sobre o início da vida. (...) A expressão "toda pessoa" é utilizada em vários artigos da Convenção Americana e da Declaração Americana. Ao analisar todos estes artigos não é factível argumentar que um embrião seja titular e exerça os direitos consagrados em cada um destes artigos. Além disso, tendo em consideração o já argumentado no sentido que a concepção somente ocorre dentro do corpo da mulher (pars. 186 e 187 supra), pode se concluir em relação ao artigo 4.1 da Convenção que o objeto direto de proteção é, fundamentalmente, a mulher grávida, em vista de que a defesa do não nascido se realiza essencialmente através da proteção da mulher, como se observa no artigo 15.3.a) do Protocolo de San Salvador, que obriga os Estados Parte a "conceder atendimento e ajuda especiais à mãe antes e durante um período razoável depois do parto", e do artigo VII da Declaração Americana, que consagra o direito de uma mulher em estado de gravidez a proteção, cuidados e ajudas especiais. Portanto, a Corte conclui que a interpretação histórica e sistemática dos antecedentes existentes no Sistema Interamericano confirma que não é procedente conceder o status de pessoa ao embrião", grifado (OEA. Corte IDH. Sentença. Caso Artavia Murillo y otros (Fecundación in vitro) Vs. Costa Rica, 28 de novembro de 2012. Disponível aqui. Acesso em 12 de abril de 2024). 12 LEGALE, Siddharta; RIBEIRO, Raissa; FONSECA, Priscila Silva. O aborto no sistema interamericano de direitos humanos: contribuições feministas. Rev. Investig. Const., Curitiba, vol. 9, n. 1, p. 103-135, jan./abr. 2022. 13 FEBRASGO. Nota sobre a Resolução do CFM 2378. Disponível aqui. Acesso em: 13 de abril de 2024. 14 DOCTORS FOR CHOICE BRASIL (@doctorsforchoicebr). "Na mídia", 5 de abril de 2024. Disponível aqui. Acesso em: 13 de abril de 2024.
Em que pese o preceito constitucional de que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações (art. 5º, I, da Constituição Federal), bem como que a partir da promulgação da Declaração Universal de direitos humanos de 1948 o direito de homens e mulheres passa a ser universalmente reconhecido, ainda há a necessidade de efetivação da igualdade, positivamente prevista, de modo que passe a ser realidade e não apenas "letra de lei". Após a Convenção da ONU pela eliminação de toda forma de discriminação contra a mulher em 1979, também chamada de "Carta Internacional dos Direitos da Mulher" (CEDAW), que foi ratificada por 189 Estados até setembro de 2019, tendo entrado em vigor desde 3 de setembro de 1981, consagrou-se a obrigação dos Estados de eliminar a discriminação contra a mulher e zelar pela sua igualdade relativamente aos homens. Nela, também restou determinado que os Estados Partes devem suprimir a discriminação contra a mulher em todos os assuntos relativos ao casamento e às relações familiares, deste modo, observa-se que a discriminação de gênero é um assunto que está intimamente ligado é a proteção aos direitos sexuais e reprodutivos, uma vez que, diante do processo histórico, no qual as mulheres foram subjugadas de diversas formas, dentre elas no que concerne a prática sexual, envolvendo também as relações familiares e casamento e, consequentemente, a reprodução. Ainda hoje, muitos assuntos relacionados aos direitos sexuais e domínio do próprio corpo da mulher são questões controvertidas na sociedade, à título de exemplo o aborto, o uso de anticoncepcional e da "pílula do dia seguinte", a realização do procedimento de laqueadura quando a mulher ainda não teve filhos ou é muito jovem, bem como o a própria decisão de se ter ou não filhos. Mesmo diante de questões ainda muito controversas acerca de direitos sexuais e reprodutivos, que levantam embates morais, o parto sempre foi visto como um momento de importância, na medida que mantém viva a própria existência da raça humana. Todavia, diante do avanço científico e da popularização, se não obrigatoriedade, do parto institucionalizado, emergiu o conceito de violência obstétrica, que diz respeito aos atos praticados sem o consentimento da gestante/mãe, tanto nela quanto no recém-nascido, tornando também o próprio parto âmbito de discussão sobre direitos. No presente artigo busca-se relacionar a violência obstétrica com a violação aos direitos humanos, especificamente direitos sexuais e reprodutivos, bem como verificar se há relação com a violência de gênero. Não obstante o foco ser a pessoa da mulher no presente estudo, não se olvida que o nascituro também pode ser vítima da violência obstétrica, sendo, igualmente, sujeito de direitos. Outrossim, é relevante mencionar que a violência obstétrica possui um recorte ainda mais acentuado quando analisadas vítimas mulheres que são vulneráveis socialmente em decorrência de outros fatores além do gênero, como a cor de pele, nível de instrução e renda, devendo reconhecer a existência de interseccionalidades. Todavia, o enfoque desta pesquisa é uma relação geral entre a violência obstétrica, vítima mulheres e a violação de direitos humanos, essencialmente no que tange os direitos sexuais e reprodutivos e direito à igualdade de gênero. Salienta- se, porém, que essa temática também pode ser atrelada a outros direitos humanos, como o direito à integridade física e/ou psíquica, à saúde, à liberdade, à vida, direito de não ser submetido a tortura e tratamento cruel ou degradante, de não ser submetido à discriminação, entre outros mais.  Direitos reprodutivos e direitos humanos Mister inicialmente diferenciar os direitos sexuais dos direitos reprodutivos, enquanto aqueles dizem respeito exercício e a vivência sexual dos seres humanos, estes "[...] consistem no conjunto de direitos relacionados ao exercício da capacidade reprodutiva do ser humano"1. Malgrado haja esta distinção, de modo que os direitos sexuais são mais amplos e não estão sempre atrelados à procriação, ambas categorias são complementares. À luz de tais conceitos, pode-se dizer que são direitos derivados dos direitos reprodutivos os seguintes: a) o direito de escolha, de forma livre e informada, sobre ter ou não ter filhos, sobre o intervalo entre eles, sobre o número de filhos e em que momento de suas vidas; b) o direito de acesso a receber informações e o acesso a meios, métodos e técnicas para ter ou não ter filhos; c) o direito de exercer a reprodução, sem sofrer discriminação, temor ou violência2. Os movimentos sociais que influenciaram a positivação e proteção de tais direitos também são distintos, a luta pelos direitos reprodutivos está associada ao movimento feminista, já na busca por direitos sexuais, soma-se a contribuição do movimento LGBTQI+.3 No contexto internacional, após a Convenção da ONU pela eliminação de toda forma de discriminação contra a mulher em 1979 e a promulgação da CEDAW, foi assegurado às mulheres (em regime de igualdade com os homens) decidir livre e responsavelmente sobre o número de filhos, sobre o intervalo entre os nascimentos e a ter acesso à informação, à educação e aos meios que lhes permitam exercer esses direitos. Por meio desse documento, inicia-se a proteção aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres na sua dimensão positiva. Apenas, em 1993, na II Conferência Mundial sobre os Direitos Humanos da ONU, é que os direitos sexuais das mulheres foram tratados expressamente em dimensão negativa, ou seja, direitos que se referem às vedações de violência e discriminação com base na sexualidade, orientação sexual e identidade de gênero. Após, houve outras conferências que trataram sobre a temática (Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento em Cairo, em 1994; IV Conferência Mundial da Mulher das Nações Unidas, em Pequim, em 1995) e no ano 2000, a ONU publicou as metas de desenvolvimento do milênio, dentre as quais há a redução da mortalidade neonatal e melhorar a saúde materna. Nesse aspecto, deve ser ressaltado o papel do Estado na proteção às vítimas de violação de direitos reprodutivos, que deve ser atinente às duas dimensões anteriormente mencionadas (positiva e negativa). Venezuela, Argentina e Uruguai criaram leis para definir do que seria a violência obstétrica, indicando com uma forma de violência contra a mulher4. Na legislação argentina (Lei 26.485/2009, Artigo 6º), violência obstétrica é definida como aquela exercida pelos profissionais da saúde e caracterizada pela apropriação do corpo e dos processos reprodutivos da mulher, através de um tratamento desumanizado, abuso da medicação e patologização dos processos naturais5. Já na Venezuela, considerou-se que a violência obstétrica é uma forma de violência de gênero e assim conceituou-se, no artigo 15 (13), da lei 38668: [.] 13. Violência obstétrica: a violência obstétrica é entendida como a apropriação do corpo e os processos reprodutivos das mulheres pelo profissional de saúde, que é expresso em um tratamento desumano, no abuso de medicalização e patologização dos processos naturais, levando a perda de autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e sexualidade, afetando negativamente a qualidade de vida das mulheres6. No âmbito interno, o Brasil ratificou a Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979 (Decreto 4.377/2022), bem como a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, de 1994. Válido mencionar que a Constituição Federal de 1988 não traz de maneira expressa os direitos reprodutivos em seu rol de direitos fundamentais (exemplificativo), no artigo 5º, todavia, no §2º deste dispositivo, é asseverado que o disposto não exclui outros direitos decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Ademais, no Brasil, não há lei federal que trate especificamente sobre o tema violência obstétrica, apenas leis estaduais e algumas leis municipais. Contudo, há exemplos de leis federais que trazem direitos reprodutivos em seu teor, como é caso da lei do acompanhante (lei 14.737/23), que foi promulgada muito recentemente, demonstrando preocupação, ainda que ínfima perto do que necessário, em proteger às mulheres gestantes. Isso é demonstrado pelas pesquisas, Souza7 aponta que dos partos ocorridos na rede pública, o parto vaginal ocorre em 65% dos casos, enquanto há 35% de cesarianas, por outro lado, nas redes particulares a cesariana é esperada em 83% dos partos e 17% de partos vaginais. Tais números são alarmantes pois, conforme a OMS, a cesariana deve ocorrer em apenas 15% dos partos8. Também pode ser mencionado o levantamento realizado pela ouvidoria da Rede Cegonha no ano de 2012, que mostrou que, nos hospitais do SUS, das 83.574 mil mulheres entrevistadas, 65,2% relataram que não tiveram direito ao acompanhante durante o período de trabalho de parto, parto e pós-parto imediato9. Conforme pesquisa que analisou o perfil e a experiência de parto de 555 mulheres, entre o grupo de mulheres que teve parto vaginal, 46,4% ficaram na posição litotômica no momento do parto, em 23,7% foi realizada a manobra de Kristeller, em 30,4% foi realizada a episiotomia e a realização desse procedimento não foi informada para 35,6% das mulheres10. Tais procedimentos deveriam ser excepcionais e podem ser considerados como violência obstétrica. Destarte, há uma falta de efetividade, tanto formal quanto material, na proteção dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher, resultando em uma facilitação da ocorrência da violência obstétrica. Violência obstétrica Percebendo que os direitos reprodutivos são enquadrados como direitos humanos, resguardado em cenário internacional, deve-se pensar na situação de violação a esse direito, especificamente a violência obstétrica, e também o impacto do gênero nesse contexto. A violência obstétrica pode ocorrer em três momentos distintos: pré-parto, durante o parto e pós-parto. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a violência obstétrica é: Apropriação do corpo da mulher e dos processos reprodutivos por profissionais de saúde, na forma de um tratamento desumanizado, medicação abusiva ou patologização dos processos naturais, reduzindo a autonomia da paciente e a capacidade de tomar suas próprias decisões livremente sobre seu corpo e sua sexualidade, o que tem consequências negativas em sua qualidade de vida11. A vítima desse ato ilícito pode ser tanto a gestante quanto o feto ou o recém-nascido. Já em relação a quem pratica, a legislação brasileira sobre o assunto imputa o ato aos membros da equipe médica que prestarem atendimento à mulher, todavia, por ser, em latu sensu praticada no âmbito hospitalar (institucional), bem como em uma situação específica (antes, após e durante o parto), qualquer funcionário do nosocômio, como secretária, equipe de limpeza e segurança, pode praticar a agressão12. Dessa forma, o objetivo principal do enfrentamento desse tipo de violência é impedir dor, dano ou sofrimento desnecessário à mulher (durante o período gestacional e puerpério), possibilitando o exercício da autonomia da mulher para as tomadas de decisões sobre seu parto. Assim, a violência obstétrica restringe à autonomia da mulher, ou seja, a liberdade de exprimir o desejo e concordância com o procedimento médico que será realizado, tendo a paciente (como qualquer outro paciente) direito à informação13. Ademais, a violência obstétrica pode ser física, verbal ou moral/ psicológica. A violência verbal consiste em ofensa verbal proferida pelo profissional da instituição de saúde durante o atendimento à parturiente ou puérpera, diminuindo-a. Muitas vezes, essas ofensas são proferidas em tom de "brincadeiras", passando muitas vezes despercebidas.  A título de exemplo, frases em tom de ameaças como "se você não parar de gritar, não poderei te ajudar" ou "na hora de fazer, não gritou". Já a violência moral é aquela que atinge o emocional da paciente, concretizando- se por ameaças veladas ou expressa. Como exemplo a indução de vontade para que a mulher realize cesariana, não sendo caracterizada apenas por uma ação verbal, pode ser também uma ação comportamental, como exemplo, o hospital negligenciar ou negar atendimento à mulher, não oferecer métodos de alívio da dor ou impor dificuldades para tal. Por fim, a violência física ocorre quando há ação de membro da equipe médica que cause danos à integridade física da paciente, sendo exemplo comum, no parto vaginal, a episiotomia, que, na maioria dos casos, é realizada sem o consentimento da paciente ou até mesmo sem a transmissão de informação. O Ministério da Saúde estabeleceu em 2018 novas Diretrizes Nacionais de Assistência ao Parto Normal, recomendando a restrição do uso da episiotomia para partos vaginais espontâneos, devendo ser utilizada apenas em casos excepcionais14. Outra prática comum que se caracteriza como violência física é a Manobra de Kristeller que "consiste em um profissional se colocar sobre a barriga da parturiente durante o trabalho expulsivo do parto e pressionar a barriga com movimentos que acarretem a expulsão do feto pelo canal vaginal"15. Esses são alguns exemplos de violências caracterizadas como violências obstétricas, as quais podem ser caracterizadas, como manifestação da violência de gênero. Deve-se destacar que no campo do Judiciário Brasileiro existem diversas demandas discutindo a ocorrência desses atos e as possíveis responsabilizações16. Nesse aspecto, destaca-se a pesquisa realizada por Taysa Schiocchet e Suéllyn Mattos de Aragão17 do que analisaram decisões judicias do sul do país e constataram diversas limitações na argumentação jurídica e na racionalidade, o que implica em uma insegurança e instabilidade ao sistema jurídica. Nesse cenário, percebe-se uma afetação negativa aos direitos das pacientes gestantes.  Violência de gênero  Segundo Silvia Pimentel, Ana Lúcia P. Schritzmeyer e Valéria Pandjiarjian18 "as relações de gênero ou relações sociais entre os sexos devem ser, pois, analisadas dentro de um complexo contexto de poder e violência, no qual se encontram inseridas". Para Fidalgo (2020, p. 11) a violência de gênero: [...] enquadra-se da mesma forma que toda e qualquer conduta que tem por base o gênero, que concorra para provocar, ou seja passível de, causar morte, dano ou sofrimento nos âmbitos: físico, sexual ou psicológico da mulher, tanto na esfera pública quanto na privada19.  Outrossim, Saffioti aponta que tal conceito "[...] pode ser compreendido como uma relação de poder e de dominação do homem e de submissão da mulher, refletindo a ordem patriarcal de gênero"20. Assim, diante de tais apontamentos sobre gênero, no que concerne à violência obstétrica, a prima facie aparenta que esta violência apenas atinge as mulheres, por serem aquelas que passam pelo processo gestacional, todavia, conforme anteriormente dito, também pode ser vítima o feto ou nascituro, contudo, o que busca-se evidenciar é em como os pais de gênero na sociedade e relações de poder, em vista de um passado histórico  patriarcal, influencial no tratamento dispensado às mulheres dentro do sistema de saúde, quando do período gestacional e puerpério. Garcia21 aponta que o feminino foi historicamente construído como sinônimo de submissão e docilidade, assim, ainda hoje essa ideologia ressoa no que é esperado das mulheres posturas ativas e protagonistas são rechaçadas com violência. No mais, é válido salientar que no momento do parto a mulher encontra-se totalmente vulnerável, diante de suas condições físicas. Garcia22 também ressalta que além da questão do feminino, por outro lado, os dados sobre o tema demonstram outros aspectos que influem na condição de vulnerabilidade e acabam por facilitar a violência, como a cor e a condição socioeconômica, sendo mais suscetíveis à violência obstétrica mulheres pretas, pardas e pobres. Outrossim, muitas vezes, a gestante se submete à vontade imposta pelo profissional da saúde, pelas razões histórico-sociais já exposta, mas também por haver, ali no ambiente institucional, uma relação hierárquica de poder, a qual não é desvinculada ao contexto já mencionado. [...] é possível verificar que no topo da relação hierárquica está o médico, o detentor de conhecimento técnico-científico, a maior autoridade sobre o corpo, a saúde, o cuidado e o tratamento do paciente. Na base, como representante hierárquico inferior, temos a gestante, cuja função única é a de seguir o que lhe é transmitido23.  Um dos pontos primordiais que se deve ter em mente quando se está relacionando a violência de gênero com a violência obstétrica é a questão da autonomia da mulher em relação ao seu próprio corpo. Siqueira24 (2021) entende que a autonomia, enquanto direito que permite a intervenção médica no corpo do paciente, depende da obtenção prévia do consentimento livre e informado, para que seja possível afastar o injusto. Ainda, a autora explica que não basta mera anuência para que a conduta médica seja regular, mas sim que a regularidade depende de uma série de pressupostos que visam garantir que a tomada de decisão da paciente seja livre. Deste modo, além de requisitos específicos que podem ser aplicados à situação, podemos verificar o consentimento por meio do conceito jurídico de autonomia da vontade, que deve ser livre de vícios como o erro, engano e coação. [...] especialmente no caso das intervenções médicas, do cumprimento do dever de esclarecimento, que impõe ao médico a obrigação de informar ao paciente todos os aspectos referentes ao diagnóstico, às alternativas, à evolução e aos riscos do tratamento. Nas hipóteses em que não houver condições fáticas para colher o consentimento ou informar suficientemente o paciente, poderá o médico recorrer ao consentimento presumido para legitimar sua atuação, sempre orientando-se pela vontade presumida do paciente25. (Siqueira, 2021).  Ressalva-se que, em que pese existência dessa autonomia, ela pode ser barrada em casos que houver um risco iminente de morte ou de lesão com potencial de afetar gravemente a qualidade de vida extrauterina do feto (como exemplo, uma lesão cerebral grave). Nessas condições, é e dever ser permitida a sobreposição da decisão médica sobre a da mulher, todavia, essa sobreposição deve ser justificada. Para não haver dúvidas acerca da manifestação de vontade da mulher, Assis e Camargo26 (2022, p. 436) asseveram que é recomendada a elaboração de um plano de parto, que se trata de "[...] um documento elaborado pela gestante e o seu médico desde o início do pré-natal, sendo complementado ao longo do período gestacional". Segundo Juvenal Borrielo, "é uma forma de comunicação entre a mulher, ou o casal, e os profissionais de saúde, incluindo obstetrizes e médicos que darão assistência durante o trabalho de parto"27. Entretanto, destaca-se que apesar do plano de parte ser uma ferramenta fundamental para o exercício da autonomia da gestante, não deve ser um obstáculo para impedir o obstetra a realizar procedimentos necessários e urgentes que sejam exigidos para a manutenção da vida dos envolvidos. O que se verifica é que o plano de parto é uma alternativa de facilitação da comunicação entre a paciente e o médico, bem como uma forma de consolidação da verdadeira manifestação de vontade, mas ainda assim, não é uma garantia de que não haverá a sobreposição arbitrária de interesses médicos e institucionais sobre as decisões da mulher, consolidado uma violência que é manifestadamente de gênero, visto que a principal vítima é a mulher. Conclusão Em conclusão a violência obstétrica representa uma violação flagrante dos direitos humanos, destacando-se especialmente como uma afronta aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Foi visto que, em que pese uma evolução histórica dos direitos sexuais e reprodutivos no âmbito internacional, no âmbito interno, ainda é corriqueira a violência obstétrica, não havendo normas federais que tratam sobre o assunto, de modo que há carência de um direito formal e material, bem como a carência de efetividade destes. Essa violência é institucionalizada e perpetuada por uma cultura que desvaloriza a autonomia e dignidade das gestantes e parturientes, sobrepondo-se à autonomia da mulher, sendo-lhe, muitas vezes, negado o consentimento informado e perpetrados procedimentos invasivos. O que se observa após o estudo, é que a violência obstétrica não apenas viola os direitos das mulheres, mas também perpetua desigualdades de gênero e contribui para a manutenção de um sistema de saúde que falha em garantir cuidados humanizados e respeitosos. Para enfrentar efetivamente esse problema, é crucial que sejam implementadas políticas e práticas que promovam o respeito à autonomia das mulheres, reconheçam sua capacidade de tomar decisões informadas, bem como uma mudança legislativa, através da criação de leis federais. No mais, para que de fato haja proteção, deve haver uma fiscalização dos ambientes hospitalares, haja vista o fato dessa violência ser institucionalizada. __________ 1 RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 9. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2022. E-book. ISBN 9786553622456. Disponível aqui. Acesso em: 12 mar. 2024, P. 571. 2 RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 9. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2022. E-book. ISBN 9786553622456. Disponível aqui. Acesso em: 12 mar. 2024, P. 571. 3 RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. 9. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2022. E-book. ISBN 9786553622456. Disponível aqui. Acesso em: 12 mar. 2024, P. 571. 4 SIQUEIRA, Flávia. Violência na assistência ao parto e (des)respeito à autonomia da mulher: o tratamento penal das intervenções médicas arbitrárias em gestantes e parturientes. Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 184. ano 29. p. 55-99. São Paulo: Revista dos Tribunais, outubro 2021. Disponível aqui. Acesso em: 12 mar. 2024. 5 OLIVEIRA, Luaralica Gomes Souto Maior de. Violência obstétrica e direitos humanos dos pacientes. Monografia (Graduação). Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais, Centro Universitário de Brasília, Brasília, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 12 mar. 2024. 6 VENEZUELA. Ley organica sobre el derecho de las mujeres a una vida libre de violencia, n° 38668. Venezuela. 23 abr. 2007. Disponível aqui. Acesso em: 12 mar. 2024. Tradução nossa. 7 SOUZA, Alessandra Varrone de Almeida Prado. Direito Médico. 2. ed. Rio de Janeiro: Método, 2022. E-book. ISBN 9786559645565. Disponível aqui. Acesso em: 12 mar. 2024. 8 SOUZA, op. Cit. 9 OLIVEIRA, Op.cit., p. 24 10 LANSKY, Sônia et al. Violência obstétrica: influência da Exposição Sentidos do Nascer na vivência das gestantes. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 24, n. 8, p. 2811-2824, ago. 2019. Disponível aqui. Acesso em: 12 mar. 2024, p. 2815. 11 Apud ASSIS, Ana Elisa Spaolonzi Queiroz; CAMARGO, Sarah Silveira. A humanização do parto e a conduta do obstetra. Direitos Fundamentais & Justiça, Belo Horizonte, ano 16, n. 46, p. 425-446, jan./jun. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 12 mar. 2024, p. 430. 12 SOUZA, op. Cit., p.248. 13 SOUZA, op. Cit., p.238. 14 SOUZA, op. Cit., p. 242 15 SOUZA, op. Cit., p. 242. 16 Como exemplo, vide a matéria do Portal Migalhas. 17 SCHIOCCHET, Taysa; ARAGÃO, Suéllyn Mattos de. Panorama jurisprudencial da violência obstétrica e análise discursiva das decisões judiciais do sul do Brasil. Revista Direito GV, v. 19, p. e2321, 2023. 18 KNIPPEL, Edson Luz; DIAS, Isabella de Antonio. O enquadramento da violência obstétrica como espécie de violência de gênero. Revista de Direito e Medicina. vol. 3. jul./set. 2019. Disponível aqui. Acesso em: 12 mar. 2024. 19 FIDALGO, Amanda Cabral. Violência contra a mulher x violência de gênero e os mecanismos internacionais de proteção aos direitos das mulheres. Revista Fórum de Ciências Criminais - RFCC, Belo Horizonte, ano 7, n. 14, p. 9-22, jul./dez. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 12 mar. 2024, p. 11 20 KNIPPEL; DIAS, op. Cit. 21 GARCIA, Anna Marcella Mendes. Violência obstétrica: uma barreira na efetivação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. In: MENDES, Denise Pinheiro Santos; MENDES, Giussepp; BACELAR, Jeferson Antonio Fernandes (Coords.). Magníficas mulheres: lutando e conquistando direitos. Belo Horizonte: Fórum, 2023. p. 65-72. ISBN 978-65-5518-488-4. Disponível aqui. Acesso em: 12 mar. 2024. 22 GARCIA, op. Cit. 23 KNIPPEL; DIAS, op. Cit. 24 SIQUEIRA, op. Cit. 25 SIQUEIRA, op. Cit. 26 ASSIS, Ana Elisa Spaolonzi Queiroz; CAMARGO, Sarah Silveira. A humanização do parto e a conduta do obstetra. Direitos Fundamentais & Justiça, Belo Horizonte, ano 16, n. 46, p. 425-446, jan./jun. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 12 mar. 2024. 27 Apud ASSIS; CAMARGO, op. Cit.
Em sua descrição de um laboratório fictício, Huxley já antevia, em meados da primeira metade do século XX, a realidade científica que o mundo se encontrava e suas perspectivas futuras. Tudo isso graças a todos os avanços e descobertas que ocorreram num curto intervalo de tempo, mais expressivamente no campo da Engenharia Genética.1 A verdade é que nos últimos anos a sociedade se deparou com avanços científicos pelas quais não se encontrava preparada para lidar com as possíveis consequências decorrentes de inovações tão futuristas, como a fecundação in vitro, a pesquisa com células-troncos embrionárias,2 os alimentos transgênicos (geneticamente modificados), a clonagem humana, além de tantas outras novas possibilidades e avanços científicos capazes de mudar a sociedade. No que se refere ao caso dos fetos anencéfalos, assunto polêmico que é inserido em um quadro de dúvidas e incertezas que nos remete a uma necessidade de um posicionamento jurídico. Num passado não muito distante era impossível sequer saber o sexo de um feto no estado intrauterino, porém com todos os estudos e os avanços no ramo da Fetologia (parte da Medicina que estuda a vida dos fetos). O diagnóstico da anencefalia é feito ainda na fase de desenvolvimento intrauterino no ventre materno. Caberá ao Direito, depois de uma análise criteriosa com o axuílio de ciências como a medicina e a biologia, estabelecer critérios que possibilitem abreviar o sofrimento da mãe que gestou uma criança, criando toda a expectativa da maternidade, que logo se transformará em tristeza e morte. Há, contudo, quem defenda a possibilidade e o direito à vida do feto anencéfalo,  assegurando assim o seu direito à vida conforme o posicionamento de Jutta Limbach, magistrada alemã que já ocupou o cargo de Presidente do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha: A ciência do Direito não é competente para responder a questão de quando começa a vida humana, as ciências naturais, em virtude de seu conhecimento, não estão em condições de responder a questão sobre a partir de quando a vida humana deve ser colocada sob a proteção da Constituição.3 Ao longo dos séculos a luta pelos direitos humanos sempre foi ensejadora de grandes conflitos e causou bastante instabilidade nas sociedades na História da humanidade travadas ao longo dos séculos. As barbáries cometidas pelas sociedades nazistas e fascistas durante a segunda grande guerra, que assistiu inerte o massacre de milhões de civis nos campos de concentração em nomes das ideologias que dominavam determinados segmentos da sociedade alemã. Para Bobbio a Declaração Universal dos Direitos Humanos representa um reconhecimento de um sistemas de valores positivados em virtude do consenso geral que se estabelece acerca da sua validade, assim expõe: A declaração universal representa um fato novo na história, na medida em que pela primeira vez, um sistema de princípios fundamentais da conduta humana foi livre e expressamente aceito, através de seus respectivos governos, pela maioria dos homens que vive na terra.4 Contudo, o processo de universalização dos direitos do homem não começa com a Declaração de 1948. Bobbio esclarece que há pelo menos três fases que marcaram a conquista pelo universalismo: a primeira delas se caracteriza pelo surgimento de teorias filosóficas, de acordo com as quais o homem é detentor de direitos pela simples natureza humana que possui tida como ideia própria do jusnaturalismo; a segunda fase consiste no momento em que o direito se mostra mais concreto, positivando-se; enquanto que a terceira fase está marcada pela constituição da Declaração de 1948.5 Ao analisar a ideia de Direito Natural, enquanto produto da racionalidade humana, Bobbio entende que "este critério liga-se a uma concepção racionalista da ética, segundo a qual os deveres morais podem ser reconhecidos racionalmente, de um modo mais geral por uma concepção racionalista da filosofia".6 Um dos grandes precursores do Direito Natural na era moderna foi Hugo Grócio. Conhecido como o criador do Direito Internacional, Grócio entendia o Direito Natural como o depositário da justa razão, que um ato seria julgado moralmente bom ou ruim pela "natureza racional" do homem.7 No entanto, Bobbio apresenta John Locke como o precursor do jusnaturalismo moderno, para quem o estado civil não passa de uma criação a fim de convalidar os direitos de liberdade e igualdade que fazem parte dos direitos naturais do homem. A segunda fase caracteriza-se pela Era das Revoluções, principalmente a Revolução Francesa. A partir delas, os Estados passam a reconhecer os direitos dos homens, e então os subscrevem em documentos oficiais. Assim, tem-se a formação do sistema positivista de Direito.8 Norberto Bobbio entende que o Positivismo Jurídico pode apresentar duas teorias, quais sejam, o Juspositivismo em sentido estrito e o Juspositivismo em sentido amplo e se filia à segunda jurídica e a teoria da interpretação lógica ou mecanicista do Direito.9 Finalmente, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, inaugura-se a terceira fase, na qual os direitos são afirmados enquanto um sistema universal e positivo. A concepção universal se aplica ao fato de que os princípios por ela estabelecidos valem para todos os homens e não apenas aos pertencentes a uma nação específica, tampouco a um determinado credo religioso ou etnia.10 A partir de então, os direitos humanos em caráter universal não são somente reconhecidos, mas também efetivamente garantidos e protegidos , inclusive contra o próprio Estado que não cumprir. A luta pelo reconhecimento de direitos, continua e tem como um dos fundamentos a saúde da mulher que ganhou mais notoriedade com o movimento feminista em meados da década de 1970. Havia a necessidade da igualdade de gênero, visto que, culturalmente a mulher tinha sido rebaixada em todas as camadas das sociedades civilizadas à condição de cuidadora do lar, sendo incumbida a ela obrigação de perpetuar a prole. O marco inicial do movimento feminista foi pelos direitos a contracepção e ao aborto em países desenvolvidos. Somente em meados dos anos 1980 é que o governo brasileiro incluiu como metas de políticas públicas os movimentos sociais que vislumbravam direitos que anteriormente eram tidos como de esfera privada, passando assim a fazer parte da discussão pública. O Brasil como país signatário da ONU ratifica a Declaração Universal dos Direitos do Homem que dispõe em seu art.8 que: toda pessoa tem direito a receber dos tributos nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.11 De forma bem genérica os direitos sexuais abrangem muito mais que a simples igualdade de gêneros, como também a causa dos grupos formados por homoafetivos, buscando uma maior tolerância e aceitação pela sociedade, a fim de romper com antigos paradigmas obsoletos, que não mais tem na sociedade subsídios argumentativos que os sustentem; visto que a própria CF/88 em seu art. 5º caput e incisos subsequentes que: "todos são iguais perante a lei, sem distinção de de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros(...)". O direito como decorrência das primeiras garantias sexuais implicam agora a necessidade de políticas públicas que assegurem a saúde sexual e reprodutiva. Torna-se assim indispensável a necessidade do acesso à informação e a garantia a meios e recursos seguros de contracepção, bem como o direito a o acompanhamento da gestante em pré-natal seguro e o direito à educação. Apesar de não tão recente, os direitos reprodutivos só foram reconhecidos como direitos humanos em 1994 com a Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, no Cairo, ratificada por 184 países. Porém, foi no ano seguinte, em 1995, a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, Desenvolvimento e Paz realizada em Beijing, reafirma o mesmo posicionamento.12 Na Conferência de Beijing o problema do aborto é lembrado como questão de saúde pública a ser observada pelos governos. O Brasil  regulamenta o planejamento familiar na lei 9.263 de 12/1/96 e o Ministério da Saúde que propõe campanhas educativas de promoção à saúde da mulher. Nesse sentido, a legislação pátria incorpora os padrões internacionais no cuidado à saúde da sexual e reprodutiva tanto da mulher com do homem. Contudo, o aborto é a última consequência em um conglomerado de fatos aqui dispostos, sendo um problema de saúde pública no Brasil. A legislação pátria incorpora as determinações internacionais de cuidado à saúde reprodutiva e sexual da mulher e do homem. Isso porque, o governo se compromete mediante políticas sanitárias, disponibilizar métodos e acompanhar adequadamente a gravidez e o parto. Entende-se também como meio de acompanhamento a disponibilização de toda uma aparelhagem que venha a auxiliar o profissional de saúde para um melhor atendimento à saúde da gestante. O aborto é um problema mundial de saúde pública, cabendo ao poder público a instituição de medidas educativas que venham, a permitir que liberdade e autonomia reprodutiva de mulher sejam efetivamente assegurada, uma vez que esta compreende o planejamento de uma gravidez saudável e com o devido planejamento familiar que é assegurado pela Constituição do Brasil em seu art. 226, inciso VII que: Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por partes de instituições oficiais ou privadas. Dessa maneira mais abrangente percebe-se que os objetivo maior da tutela de tais direitos visam assegurar uma dupla vertente. Ou seja, os direitos sexuais e reprodutivos implicam na necessidade de políticas públicas que assegurem a saúde sexual e reprodutiva. Torna-se assim essencial o direito à educação e o acesso à informação. Simone de Beavoir, um dos maiores ícones do movimento feminista, analisada por Wayne Morrison, para quem a filósofa está presa a aos critérios existencialistas de controle da própria existência, para ela, as mulheres vivem num estado de escravidão aos fatos biológicos da gravidez, do parto e da amamentação que não podem dar sentido a sua sua existência.13 Não há de se confundir ética com moral, isto porque a moral tem caráter prescritivo e normativo, uma vez que estabelece o conjunto de regras as quais um determinado grupo social deve seguir. A ética pode ser entendida também como a reflexão acerca do código definido pelas normas morais, compreendendo a relação do homem com os preceitos de conduta. A ética pode assim ser definida como Estudo filosófico dos valores morais e dos princípios ideais do comportamento humano.14 A ética discursiva tem por princípio básico a universalização, este princípio seria criado pormeio de um diálogo objetivo que todos podem reconhecer como norma moral universal. A ética da reciprocidade, por outro lado, é construída pela relação de dois sujeitos que buscam uma convivência digna, reconhecendo como norma moral universal. A ética da reciprocidade, é construída pela relação de dois sujeitos que buscam uma convivência digna, reconhecendo-a como duas existências de igual valor moral. A ética da justiça, assim como a discursiva surge de um consenso, a justiça pode ser entendida como princípio fundamental das estruturas sociais de uma sociedade bem ordenada.15 Na relação médico-paciente, aplicam-se os princípios básicos delimitados pela Bioética são os da autonomia do paciente, da não maleficência e da beneficência para o paciente. Portanto, cabe ao médico condutas que não  causem, mas, pelo contrário, promovam benefícios à sua saúde. Dispõe o art.37, do Código de Ética Médica que: é vedado ao médico desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de risco iminente de morte. 19 O princípio da beneficência (bonu facere) como a obrigatoriedade que tem o profissional de saúde em promover o bem ao paciente, baseado na relação de confiança que se estabelece. O princípio da não maleficência, por sua vez, também advindo da relação de confiabilidade implica em não infringir qualquer tipo de dano ao enfermo. Já o princípio da autonomia diz respeito à capacidade que tem a racionalidade humana de autogovernar-se.16 A Constituição Federal não reconhece nem exclui a titularidade de direitos fundamentais17. Esse silêncio normativo significa que deixou a critério do legislador ordinário a competência de decidir se e em qual medida o nascituro terá direitos fundamentais e como ocorrerá seu exercício. O exemplo mais relevante diz respeito à existência de um direito à vida. O aborto viola um direito fundamental do nascituro? A Constituição silencia sobre o assunto e esse silêncio é proposital. Diante das controvérsias políticas sobre a oportunidade de incluir no texto constitucional norma sobre o tema e havendo grupos que insistam na proibição. A interrupção da gravidez nos casos de fetos anencefálicos, analisada sob a ótica dos direitos humanos fundamentais, da Bioética e, sobretudo, do Biodireito,  conforme estabelecido na CF/88, ainda representa um significativo desafio para a efetivação dos direitos reprodutivos femininos. Embora o Judiciário pareça ter resolvido essa questão desde o ano de 2012 com o julgamento da ADPF 54, para milhares de mulheres brasileiras, a situação continua sendo uma experiência extremamente árdua. De fato, o mais importante é compreender os Direitos Humanos  Fundamentais de uma forma mais abrangente sem hierarquia. Isso porque todos os direitos estão de certa maneira consolidados e consagrados a todos os seres humanos. Não se pode esquecer que os direitos fundamentais não são imutáveis e que variam de acordo com a sociedade que os aplicam. Nos casos de gestação de fetos anencéfalos, não há de se falar em conflito de bens jurídicos a ser tutelados, pois existem duas situações distintas que ensejam a mesma conclusão: o feto que possui malformação grave do sistema nervoso central, falecendo no curso da gestação, ou ainda, em casos extremos de número ínfimo, pode vir a nascer com vida, perecendo em algumas horas ou dias depois. Pode se falar no direito à vida (quando há vida), questão polêmica que gera os mais calorosos debates, havendo diversas teorias sobre quando de fato começa a vida humana. Acredita-se contudo, no conceito de vida desenvolvido pela Medicina que assegura que, a vida humana começa por volta da 12 semana de gestação, período em que há a formação do sistema nervoso central, que é o grande responsável por todas as funções básicas do corpo humano, que vão desde a locomoção até a interação do homem com o próprio meio e com seus semelhantes. Se de fato e de direito a morte da pessoa natural é declarada com o fechamento do diagnóstico de morte encefálica22 , pode-se compreender também que a vida começa com o surgimento do sistema nervoso central.A Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) n. 2.378, aprovada em 21/3/24 e publicada em 3/4/24 limita a atuação de médicos a 22 semanas na prática do aborto legal, sendo assim, constatada mais uma grande violação aos Direitos Humanos, e ao Código Penal vigente no Brasil que não estabelece limite de tempo para a prática do aborto legal. Há um grave conflito legal uma vez que a lei não estabelece limites, não podendo uma resolução administrativa contrariar texto de lei, sendo uma clara violação de direitos travestida de legalidade. A Comissão Nacional Especializada de Violência Sexual e Interrupção Gestacional Prevista em Lei (CNE-VS) da Febrasgo, Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia também publicou manifestação contrária ao conteúdo da resolução por violar regras internacionais de Direitos Humanos e o Código Penal vigente, sendo uma clara tentativa de inviabilizar o acesso aos meios legais do aborto a mulheres de mulheres brasileiras, incluindo os anencefálicos. Cabe aqui salientar que incubir ou, até mesmo obrigar uma gestante a terminar uma gestação de um feto anencefálico, cujo destino final é a morte, ou manter gravidez cuja prerrogativa é exclusiva da mulher induz a acreditar que o direito desconhece o instinto humano de conservação em todos os seus aspectos sejam eles ético, sociais, morais e até mesmo jurídicos. É preciso ficar bem claro que o que é proposto e defendido por este trabalho é o direito de escolha da mulher em decidir se quer ou não levar adiante uma gravidez de um feto anencefálico. É uma escolha que deve ser própria da mulher, e não da sociedade. Importante ressaltar que este trabalho não faz apologia ao aborto indiscriminadamente, mas sim ao direito que a mulher tem de escolher e de se privar de um sofrimento desnecessário para ela e para o feto, além de todos os riscos fisiológicos que a mulher sofre com a gravidez de um anencefálico. O Estado precisa ser cada vez mais laico e menos ideológico no que diz respeito às decisões e legislações sobre questões dessa natureza, é certo que não pode ser levado em consideração posicionamento isolados, de forma que a laicidade do Estado seja uma característica de uma sociedade livre e democrática e não mera função governamental. __________ 1 HUXLEY, Aldous, apud MARQUES FREITAS, Patrícia. Os fetos anencéfalos e a Constituição Federal de 1988. 1 ed. São Paulo: Ícone, 2011.p.05. 2 BRASIL.Adin. 3510 / DF - DISTRITO FEDERAL AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Relator (a): Min. AYRES BRITTO Julgamento: 29/05/2008 Órgão Julgador: Tribunal Pleno. 3 LIMBACH JUTTA, apud MARQUES FREITAS, Patrícia. Os Fetos Anencéfalos e a Constituição Federal de 1988. 1/ed. São Paulo: Ícone: 2011.p 21. 4 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 6 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.p. 27. 5 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 6 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.p. 28. 6 BOBBIO, Norberto. O Positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006.p.23. 7 Idem.,p.20. 8 Idem.,p.65. 9 Idem.,pp.237- 238. 10 BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. 6ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.p.30. 11 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS NO BRASIL. Declaração de Direitos do Homem. Disponível em:Declaração Universal dos Direitos Humanos - UNESCO Digital Library. Acessado em 25/03/2024 às 00h31. 12 PIOVESAN, Flávia, apud MARQUES FREITAS, Patrícia. Os fetos anencéfalos e a Constituição Federal de 1988. 1 ed. São Paulo: Ícone: 2011.p 36. 13 BEAVOIR, Simone de. The Second Sex, apud, MORRISON, Wayne, Ano.2002.p. 591 -592. 14 DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2005.p 509. 15 PEGORARO, Olinto, apud KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70, 2007.p. 11- 12. 16 SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. Equilíbrio do Pêndulo- a Bioética e a Lei: implicações médico-legais. São Paulo: Ícone Editora, 1998, p. 42 -43. 17 O contrário é afirmado muitas vezes na doutrina. Cfr.Nunes jr. Em Araújo e Nunes jr, 2003, p.104 apud Teoria geral dos direitos fundamentais /Dimitri Dimoulis, Leonardo Martins. - 2. Ed. Rev.atual. e ampl.-São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,2009. p .54.
Nas ações judiciais em Direito Médico e da Saúde, o esclarecimento dos fatos depende de conhecimentos científicos que o juízo não possui. Entra em cena, então, a ciência como meio de prova judicial, a prova científica. Na prática, isso significa a necessidade de produção de uma prova pericial, no mais das vezes, uma perícia médica judicial. O resultado dessa prova pericial, expresso no laudo pericial, pode influenciar diretamente na decisão. Existe uma certa deferência do juiz ao laudo, ele se utiliza dos conhecimentos apresentados pelo perito para decidir. Portanto, o laudo médico pericial desempenha um papel importante na formação do livre convencimento motivado do juiz. Frequentemente, a sentença reflete as conclusões científicas nele apresentadas. De tal forma que o êxito nessas ações está intimamente ligado ao resultado favorável da prova pericial, o qual, por sua vez, depende do convencimento do perito médico do juízo. As partes da ação buscam, por meio de argumentos científicos, persuadir o perito para que ele forme determinada convicção sobre os fatos. Nesse contexto, a elaboração de quesitos periciais desempenha um papel estratégico. Quesitos são perguntas direcionadas ao perito que ajudam a esclarecer os pontos controvertidos do caso e a delimitar o escopo da perícia. Eles são essenciais porque direcionam a análise do perito para os pontos-chaves do caso, facilitando, assim, a compreensão e a avaliação do juízo. Neste texto examino a importância estratégica dos quesitos periciais e aponto algumas práticas que podem auxiliar advogados a aprimorar suas técnicas de quesitação e a extrair o máximo desse instrumento processual. Faço um recorte para tratar dos quesitos periciais no processo civil. Conforme estabelecido no art. 473 do CPC, o laudo pericial deve incluir resposta conclusiva a todos os quesitos apresentados pelo juiz e pelas partes, sejam quesitos iniciais, suplementares (artigo 469) ou de esclarecimento (artigo 477). Essa regra processual, no entanto, não consegue evitar um problema prático enfrentado pelas partes: a resposta "prejudicado". Esta resposta, além de não ser conclusiva, não oferece pistas que auxiliem na interpretação do seu significado dentro do contexto fático específico, o que, evidentemente, prejudica a capacidade de argumentação das partes. Quando o perito médico utiliza as expressões "prejudicado" ou "não se aplica" como resposta a um quesito pericial isso significa que ele não conseguiu oferecer uma resposta direta a esse quesito. Essa situação pode ocorrer por diversas razões. Destacarei aqui algumas que estão sob controle de quem formula o quesito: Ausência de informações essenciais para a análise: ocorre quando a resposta ao quesito depende de dados que não constam nos autos (problema de instrução), não existem na ciência médica (Medicina Baseada em Evidências) ou que só poderiam ser conhecidos caso o perito tivesse presenciado os fatos. Falta de clareza ou coerência textual (quesitos confusos): ocorre quando o quesito não é claro e sua mensagem se torna incompreensível. Ou seja, quando o perito sequer consegue entender o que lhe foi perguntado. Limitações da perícia: ocorre quando o quesito ultrapassa os limites de designação do perito ou refoge ao escopo da perícia. Por exemplo, quando o quesito adentra o campo do Direito, que está fora da área de expertise do perito médico. Impossibilidade fática de conclusões definitivas: ocorre quando o perito não consegue chegar a conclusões definitivas sobre determinados pontos controversos do caso devido à falta de evidências conclusivas, à limitações da ciência médica ou à dependência de interpretação subjetiva de evidências contraditórias. Para tratar da função estratégica dos quesitos periciais, parto de duas premissas. Em primeiro lugar, os quesitos asseguram que o perito analise as principais teses e evidências do caso. De modo geral, não há mecanismo para assegurar que determinada tese ou evidência foi localizada, examinada e valorada pelo perito. Mas se essa tese ou evidência é inserida nos quesitos, cria-se uma garantia, tendo em vista que a resposta aos quesitos é obrigatória por força de lei. Os quesitos funcionam, portanto, como um controle poderoso sobre a atividade pericial. Em segundo lugar, os quesitos representam o desfecho de um encadeamento de atos processuais de interesse médico-legal. Para ilustrar, utilizo um exemplo concreto. Em uma ação de responsabilidade médica há, inicialmente, uma instrução técnica pré-processual. Em seguida, há uma Análise Técnica de Viabilidade para verificar se as teses aventadas possuem base científica. Na sequência, as teses de maior nível de evidência são selecionadas e inseridas na ação. Somente após esses atos é que as partes indicam médico assistente técnico e apresentam os quesitos periciais. Ou seja, muito antes de apresentar os quesitos as partes precisam ter em mãos teses científicas fortes. São essas teses que darão sustentação aos quesitos. Figura 1: Etapas que precedem a apresentação dos quesitos periciais. Os quesitos desempenham funções fundamentais na ação judicial, incluindo: Simplificar e objetivar teses longas e complexas. Esclarecer se as partes estão ou não embasadas em evidências científicas. Organizar as linhas argumentativas das partes, sobretudo em casos em que as peças anteriores não são claras. Destacar as controvérsias técnico-científicas do caso. Destacar as principais teses e evidências apresentadas pelas partes. Proporcionar às partes a última oportunidade de convencer o perito antes que ele forme sua primeira convicção sobre o caso. Veja esse exemplo. Quesito genérico: Os protocolos médicos foram observados? Quesito estratégico: Conforme estudos científicos de elevado nível de evidência (Medicina Baseada em Evidências), os protocolos médicos aplicáveis ao caso são X e Y? Em caso positivo ou negativo, explicar. Conforme os registros das fichas de descrição cirúrgica dos prontuários médicos do caso, os protocolos X e Y foram observados pelos profissionais que prestaram os atendimentos? Em caso positivo ou negativo, explicar. Note-se que, ao reformular o quesito de maneira técnica e específica, a parte consegue direcionar a atenção do perito para as suas teses, influenciar sua análise e fortalecer seus argumentos. Isso implica em mudança de uma abordagem passiva para uma abordagem ativa no processo pericial. Essas alterações transmitem uma mensagem clara ao perito: a parte que apresenta esse quesito possui um conhecimento detalhado dos fatos, está familiarizada com as normas técnicas pertinentes e conhece o resultado da comparação entre ambos (fatos x padrões aceitos pela ciência médica). Além disso, quesitos sofisticados reduzem a necessidade de formulação de quesitos de esclarecimento e de impugnação ao laudo pericial. De que forma, então, as partes podem formular quesitos periciais que reduzam a incidência de respostas "prejudicadas" e sejam capazes de convencer o perito médico nas ações em Direito Médico e da Saúde? 1. Tenha clareza sobre as suas teses científicas É crucial compreender que, na perícia médica judicial, o foco está nas teses científicas, não nas teses jurídicas. O perito quer saber quais teses científicas estão dando sustentação às teses jurídicas. É impossível formular quesitos periciais que convencem se você não possui teses científicas fortes. 2. Não apresente quesitos genéricos Os quesitos genéricos, comumente utilizados de forma repetida em diferentes ações, representam um grande risco para as partes. Além de não contribuírem para comprovar as teses defendidas, podem direcionar o debate para pontos que são contrários a elas. 3. Não apresente quesitos que não se conectam com as suas teses Quesitos como "qual o diagnóstico?" ou "qual o tratamento?" não ajudam as partes a provarem as suas teses. Do ponto de vista estratégico, os quesitos não são o melhor instrumento para se esclarecer dúvidas que poderiam ser facilmente esclarecidas de outra forma, com uma consulta aos documentos médicos do caso, por exemplo. Os quesitos devem guiar o perito para que ele percorra as linhas argumentativas das partes, passando pelas principais teses e evidências. Após tomar ciência dessas linhas, o perito determina qual tem maior probabilidade de ser verdadeira e estar em conformidade com a ciência médica (verossimilhança e correspondência). 4. Não pergunte a opinião do perito, pergunte a "opinião" da Medicina Baseada em Evidências O perito é nomeado pelo juízo como um preposto da ciência médica, está incumbido de apresentar, de forma acessível ao juízo e às partes, o entendimento da ciência médica sobre os fatos controversos em questão. A partir da utilização da pirâmide de evidências as partes conseguem reduzir a subjetividade e a discricionariedade nas respostas dos quesitos.  5. Seja claro e direto Se o texto do quesito é confuso, há uma grande probabilidade de ele não ser compreendido. E se não é compreendido, dificilmente será respondido de forma satisfatória. Quanto mais longo é o quesito, maior a chance de ele se tornar truncado. Caso a questão aborde um assunto complexo e impossível de ser tratado de forma concisa, é preferível dividir quesitos extensos em dois ou mais quesitos menores para garantir clareza na comunicação. 6. Quesite comparando e contrastando Nas ações judiciais envolvendo Direito Médico e da Saúde a análise médico pericial crucial baseia-se na comparação dos fatos (registros dos prontuários médicos e demais documentos de interesse médico-legal) com os padrões técnicos estabelecidos pela ciência médica (Medicina Baseada em Evidências). Esse é o quebra-cabeça que será montado pelo perito. Quando as partes apresentam essa análise comparativa nos quesitos, ou seja, quando apresentam o quebra-cabeça já montado, isso gera um efeito de persuasão no perito, pois ele consegue rapidamente compreender a estrutura do caso. 7. Utilize elementos visuais para destacar as suas principais evidências Os quesitos são uma ferramenta valiosa para as partes destacarem de forma objetiva os elementos essenciais de sua argumentação: suas teses científicas e suas evidências científicas. Ao ancorar os quesitos nesses pontos e ao empregar recursos visuais para apresentá-los, as partes favorecem a compreensão dos fatos pelo perito, tornando-a rápida e acessível. 8. Inclua a frase "em caso de resposta prejudicada, esclareça o motivo" Se todas as estratégias anteriores não surtirem efeito, as partes podem assegurar que a resposta "prejudicada" venha acompanhada de explicações sobre a sua causa. Isso permitirá reformular o quesito para uma nova apresentação (quesitos de esclarecimento), recuperando assim as chances de provar as teses e de convencer o perito. Investir tempo e esforço na elaboração de quesitos periciais sofisticados pode ser crucial para determinar se um laudo pericial será favorável ou desfavorável. Quando as partes são representadas por advogados que dominam técnicas de quesitação estratégica, elas possuem maior capacidade de influenciar o resultado da perícia por meio da apresentação de subsídios científicos ao perito médico. O êxito nas ações em Direito Médico e da Saúde passa pelo êxito na perícia médica judicial. E a utilização de quesitos que convencem e convertem emerge como uma ferramenta fundamental para as partes alcançarem esse objetivo.