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Migalhas de Direito Médico e Bioética

Temas do Direito de Saúde e Bioética.

Wendell Lopes Barbosa de Souza, Miguel Kfouri Neto, Fernanda Schaefer, Rafaella Nogaroli e Igor Mascarenhas
Com grande satisfação, inauguramos a coluna "Migalhas de Direito Médico e Bioética" de 2024, marcando a primeira edição sob a coordenação de membros da Diretoria do Instituto Miguel Kfouri Neto (IMKN) - Direito Médico e da Saúde, Miguel Kfouri Neto, Rafaella Nogaroli, Fernanda Schaefer, Igor Mascarenhas e Wendell Lopes. Entrando no nosso terceiro ano de publicações, permanecemos firmes em nossa missão de oferecer estudos aprofundados e reflexões criteriosas sobre os temas mais prementes e relevantes no campo do Direito Médico e da Bioética. Comprometemo-nos a trazer análises, discussões atuais sobre legislação, inovações no setor da saúde, além das mais recentes decisões judiciais que impactam a prática médica e os direitos dos pacientes. Esperamos que nossos leitores encontrem valor e insights significativos em cada artigo, contribuindo, assim, para a evolução do conhecimento jurídico neste campo vital. Dito isso, passamos a tratar da temática proposta para este artigo. Quando ocorre um evento adverso em saúde, a fim de aferir a culpa médica, há um ecossistema de responsabilidade civil na atividade médica, que precisa ser especialmente ponderado. A causa eficiente do dano sofrido pelo paciente deve ser analisada sob três perspectivas: serviços essencialmente médicos, paramédicos ou extra médicos. Todavia, nota-se frequente divergência e confusão na doutrina e jurisprudência pátrias quanto à compreensão destes aspectos e de que maneira repercutem sobre a natureza da responsabilidade civil objetiva ou subjetiva. Exemplo desse embate jurídico é o Enunciado n. 460 da V Jornada de Direito Civil: "a responsabilidade subjetiva do profissional da área da saúde, nos termos do art. 951 do Código Civil e do art. 14, §4º, do Código de Defesa do Consumidor, não afasta a sua responsabilidade objetiva pelo fato da coisa da qual tem a guarda, em caso de uso de aparelhos ou instrumentos que, por eventual disfunção, venham a causar danos a pacientes, sem prejuízo do direito regressivo do profissional em relação ao fornecedor do aparelho e sem prejuízo da ação direta do paciente, na condição de consumidor, contra tal fornecedor". Contudo, qualquer extensão do escopo de responsabilidade do médico na direção da responsabilidade do produto não leva em consideração a divisão legal entre responsabilidade de segurança relacionada ao produto em si, por um lado, e responsabilidade médica relacionada ao tratamento. Não se pode perder de vista a natureza sui generis da atividade médica, que é essencialmente pautada na álea terapêutica e qualquer tentativa de objetivação da responsabilidade do profissional da Medicina desvirtuaria - e até inviabilizaria - os seus pilares de atuação. Por isso, discordamos sobre a possibilidade de atribuir natureza objetiva à responsabilidade do médico que utiliza um equipamento de saúde, nos termos a seguir ponderados. Partindo-se da hipótese de uma relação de consumo entre médico e paciente, com o atendimento/tratamento realizado de modo particular e em hospital privado, deve-se verificar, antes de mais, a gênese do dano, ou seja, se este decorreu de: "a) serviço essencialmente médico: ocorre quando o dano sofrido está ligado, em nexo causal, a uma conduta médica; o evento danoso decorre diretamente de atos praticados exclusivamente pelos profissionais da Medicina, implicando formação e conhecimentos médicos, isto é, domínio das leges artis da profissão. A responsabilidade médica é subjetiva, calcada na culpa (negligência, imprudência e imperícia), nos termos dos artigos 927 e 951, ambos do CC, e do art. 14, §4º, do CDC. A culpa médica consiste no desvio do padrão de conduta compatível com os códigos e protocolos prescritos para a atividade médica. b) serviço paramédico: ocorre quando o dano advém da falha na atuação da enfermagem e outros profissionais da saúde, auxiliares ou colaboradores, sob as ordens do médico. Por exemplo, há dano ocasionado por um serviço paramédico quando o evento lesivo decorre de questões relacionadas à esterilização de equipamentos médicos, colocação de gesso em membro fraturado, administração de medicamentos, aplicação de injeções, exames radiológicos, curativos, controle de pressão arterial e temperatura etc. Eventuais lesões sofridas pelos pacientes, advindas da má prestação desses serviços, subordinam-se às regras do CDC. Assim, incide a responsabilidade objetiva do hospital, pelos atos da equipe de enfermagem, nos termos do art. 14 do CDC. c) serviço extramédico: ocorre quando o dano resulta de serviços de alojamento, alimentação, conforto das instalações, deslocamento do doente nas dependências do hospital, manutenção e funcionamento regular dos equipamentos. Estes serviços são desempenhados por pessoal auxiliar, sob as ordens da administração do hospital. Nesses casos, também responderá o hospital, de forma objetiva, nos termos do art. 14 do CDC.  Além disso, quando for reconhecida a culpa do médico, responde solidariamente o hospital (artigos 932, inc. III, 933 e art. 942, parágrafo único, todos do CC), desde que haja vínculo de emprego ou preposição. Trata-se da chamada "Teoria da Responsabilidade Objetiva Mitigada"1, 2pois o nosocômio responde objetivamente pelos danos causados ao paciente desde que previamente seja demonstrada a culpa profissional"3. Dessa forma, na hipótese de uma cirurgia robótica realizada em hospital particular, o dano pode ser relacionado tanto à culpa médica (imperícia pela falta de treinamento adequado com o robô, por ex), quanto à falha do serviço de apoio e de enfermagem (incorreta regulagem do robô, por ex.) ou, ainda, deficiência do serviço de hotelaria hospitalar (manutenção do equipamento em desconformidade com indicações do fabricante, por ex.). Na primeira hipótese, a responsabilidade médica é subjetiva; nas outras duas, a responsabilidade hospitalar é objetiva. O cenário jurídico brasileiro aponta que há bastante confusão no correto trato sobre a maneira pela qual deve ser avaliada a responsabilidade do hospital em caso de um ato essencialmente médico. Nem sempre fica clara a necessidade de uma fase prévia de aferição da culpa médica, para só então determinar a responsabilidade da entidade nosocomial. Além disso, com o implemento cada vez mais frequente de sistemas decisionais baseados em inteligência artificial e equipamentos de saúde de alta tecnologia, a determinação da causa eficiente do dano se torna uma tarefa ainda mais complexa, tendo em vista a possibilidade de falta de transparência algorítmica nos processos decisórios, além dos diversos agentes envolvidos: médicos, enfermeiros, entidade hospitalar, fabricante e distribuidor do produto. Nesse cenário, em boa hora chega a proposta de reforma do Código Civil (Lei 10.406/2022), resultante do trabalho da Comissão de Juristas instituída pelo Senado Federal, presidida pelo Min. Luis Felipe Salomão (STJ). Para o propósito do presente estudo, destaca-se a atualização do art. 951 do CC, por meio da inserção de três parágrafos (vide quadro comparativo em nota de fim)4. Esse acréscimo esclarece pontos importantes a respeito do ecossistema da responsabilidade civil em eventos adversos de saúde (elucidação quanto à aplicação da responsabilidade objetiva do profissional da área da saúde; responsabilidade objetiva da entidade detentora de vínculo empregatício com o profissional que tenha culpa reconhecida; aplicação da legislação em caso de lesão ou morte resultante de uso ou falha de equipamento de saúde; responsabilidade solidária entre fabricantes e demais instituições envolvidas na administração dos aparelhos). O §1º discorre sobre a maneira de aplicação da Teoria da Responsabilidade Objetiva Mitigada no contexto de um dano resultante de ato essencialmente médico: "§1º Reconhecida a culpa do profissional, a entidade com a qual possua algum vínculo de emprego ou de preposição, responde objetivamente pelos danos por ele causados". Já o §2º aborda a responsabilidade civil decorrente da falha em um serviço extra médico: "§2º Nos casos em que a lesão ou morte resultar de falha de equipamentos de manuseio médico-hospitalar, a responsabilidade civil será regida pela legislação específica, para que fabricantes, distribuidores e instituições de saúde envolvidas na adoção, utilização ou administração desses aparelhos respondam objetiva e solidariamente pelos danos causados". Observa-se que a Relatoria-Geral da Comissão de Juristas realizou uma supressão da redação final do §2º, que tinha constava no texto proposto pela Subcomissão de Responsabilidade Civil: "(...) excluída a responsabilidade do profissional liberal, desde que respeitados os princípios de boas práticas e da segurança do paciente". Optou-se por inserir um último parágrafo ao artigo 951, para tratar especificamente da exclusão da responsabilidade médica quando o dano decorre de um serviço extra médico, tal como uma falha em equipamentos de manuseio médico-hospitalar: "§3º./ Nas hipóteses do parágrafo anterior, fica excluída a responsabilidade do profissional liberal, quando chamado em regresso pelo responsável e não ficar demonstrada a sua culpa por lesão ou morte". O grande problema na supressão da redação final do §2º - exclusão da responsabilidade médica desde que "respeitados os princípios de boas práticas e da segurança do paciente" - é a possibilidade de abrir margem interpretativa no sentido de que o profissional não pode ser responsabilizado quando há falha em um equipamento - salvo se provada a culpa direta pelo dano -, mesmo quando neste cenário ele tiver violado algum dever de conduta. É essencial compreender que, em paralelo ao dever de o médico seguir uma conduta diligente, de acordo com a leges artis da profissão, há deveres de conduta decorrentes da boa-fé - ex.: informação e esclarecimento, lealdade e cooperação, proteção, cuidado e vigilância, atualização etc. - que permeiam a relação médico-paciente e são especialmente relevantes quando envolvidos sistemas decisionais e equipamentos médicos. O médico não deve ser responsabilizado se um sistema decisional automatizado ou equipamento de saúde causa danos porque possui um defeito ou é impróprio para o uso, quando isto é impossível de ser verificado pelo próprio profissional ou outro membro da equipe médica. Contudo, o profissional pode eventualmente violar um dever de vigilância se, dentro da sua concreta possibilidade, perceber que um dispositivo médico, com o passar do tempo, passou a apresentar alguma falha e reiteradamente ocasiona danos aos seus pacientes. Como exemplo, há o famoso episódio com os equipamentos de radioterapia com Cobalto-60, ocorrido entre 2000 e 2001 no Instituto Oncológico Nacional do Panamá. Cerca de 20 pacientes foram lesionados e 5 morreram após receber excesso de radiação, que não possuía manutenção e supervisão clínica adequadas - e mesmo cientes disso, alguns médicos permaneceram por alguns meses utilizando o equipamento. No caso de sistemas de inteligência artificial, há estudos que atestam elevado grau de falibilidade em algumas tecnologias utilizadas na área médica, além dos problemas de opacidade ou falta de transparência na tomada de decisões automatizadas. Em 2018, noticiou-se o problema de que o sistema decisional automatizado Watson for Oncology, utilizado para apoiar as decisões clínicas em oncologia, estava frequentemente indicando tratamentos inseguros e flagrantemente incorretos para pacientes oncológicos. O médico, agindo com boa-fé, tem uma espécie de dever de vigilância quanto ao acompanhamento do quadro clínico do enfermo e, dentro das suas concretas possibilidades, também em relação ao arcabouço tecnológico que utiliza nos cuidados de saúde5 .Isto advém da relação da natureza existencial do contrato e da especial confiança que há entre o médico e o paciente, buscando zelar por sua saúde com dignidade e prudência. Em tais situações, o equipamento médico não substitui o profissional, de modo que eventual falha no processo decisional é, na verdade, do próprio profissional, na medida em que a tecnologia serve como um suporte, jamais como um elemento de supressão da autonomia médica. Inclusive, toda essa lógica se alinha à nova sistemática proposta com a reforma do CC, para que às regras de responsabilidade civil se apliquem as funções preventiva, punitiva, e reparatória de danos (art. 926-A). Nessa linha, destaca-se, ainda, a previsão do artigo 926-B: "toda pessoa tem o dever de adotar, de boa-fé e de acordo com as circunstâncias, medidas ao seu alcance para evitar a ocorrência de danos previsíveis que lhe seriam imputáveis, mitigar a sua extensão e não agravar o dano, caso este já tenha ocorrido." Vale ressaltar que o padrão de diligência na conduta do profissional sofre modulação, por meio da aplicação da já mencionada "Teoria da Alteração das Circunstâncias" no contexto sanitário: "as circunstâncias da atividade médica têm sido sensivelmente modificadas com o implemento de sistemas decisionais automatizados, razão pela qual os deveres de conduta profissional decorrentes da boa-fé objetiva devem ser ressignificados periodicamente, a partir da nova realidade posta à prática médica com o novo arcabouço tecnológico"6. Além disso, alguns expoentes na doutrina pátria, como Faleiros Júnior e Rosenvald, que defendem uma função promocional da responsabilidade civil7 e, nessa linha, quando ocorre um evento adverso envolvendo IA, deve-se constatar, por exemplo, se o médico e/ou hospital investiu em compliance e regras de boas práticas - seguindo princípios éticos e deveres de conduta decorrentes da boa-fé, com monitoramento constante da tecnologia - razão pela qual poder-se-ia cogitar a possibilidade de redução equitativa da indenização, a partir da incidência do art. 944, parágrafo único, do CC ("se houver excessiva desproporção entre a gravidade da culpa e o dano, poderá o juiz reduzir, equitativamente, a indenização"). Ou seja, essa "sanção premial" reflete-se na função promocional da responsabilidade civil, no intuito de encorajar comportamento meritórios. Inclusive, a respeito dessa exceção ao princípio da reparação integral, no relatório da Subcomissão de Responsabilidade Civil para reforma do CC, sugeriu-se a modificação desse dispositivo legal, estendendo a possibilidade de redução equitativa por parte do magistrado para hipóteses nas quais a responsabilidade seja objetiva - entendimento que já vinha sendo adotado por parte da doutrina. Confira-se: "§1º Se houver excessiva desproporção entre a conduta praticada pelo agente e a extensão do dano dela decorrente, segundo os ditames da boa-fé, ou se a indenização prevista neste artigo privar do necessário o ofensor ou as pessoa/s que dele dependem, poderá o juiz reduzir equitativamente a indenização, inclusive em casos de responsabilidade objetiva." Seguindo o entendimento dos juristas responsáveis por essa proposta de atualização - e aqui destacamos Nelson Rosenvald -, a responsabilidade civil no século XXI deve expandir os seus limites, pois além de oferecer compensação, impor punições e prevenir danos, ela também precisa ficar estrategicamente orientada a premiar atitudes e ações positivas de indivíduos e organizações. Caberá ao agente que agiu de maneira culposa, ou desempenhou uma função com riscos inatos, provar que o seu agir foi diligente, em conformidade com a boa-fé. Atualmente, o papel do Direito transcende a simples proteção de interesses mediante a supressão de atos proibidos, fortalecendo, em vez disso, a criação de um ambiente jurídico que não só tutela, mas também incentiva a adoção de determinados valores. Nesse novo horizonte, o Direito Médico deve se posicionar como uma ponte para o encontro entre a rigidez das normas e a fluidez das transformações sociais. __________ 1 Sobre a Teoria da Responsabilidade Objetiva Mitigada, destaca a doutrina: "(...) Diante das demandas ajuizadas em face de erros médicos, em que figurarem no polo passivo o médico e o hospital, para que possa se exigir a responsabilização do último será necessário antes comprovar a culpa do profissional médico. Continua a existir a responsabilidade subjetiva para os médicos e objetiva para os nosocômios, contudo, em relação à última, trata-se de uma responsabilidade objetiva diferenciada, haja vista não ser suficiente a existência de um ato, comprovação do dano e do nexo causal" (BARBOSA, Ana Beatriz Nóbrega; MASCARENHAS, Igor de Lucena. Responsabilidade hospitalar por erro médico: a necessidade da comprovação da culpa em razão da aplicação da Teoria da Responsabilidade Objetiva Mitigada. In: ROSENVALD, Nelson; MENEZES, Joyceane Bezerra, DADALTO, Luciana (coord.). Responsabilidade civil e medicina. 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2020, p. 147-158.). 2 Segundo a jurisprudência majoritária do STJ, quanto aos atos técnicos praticados de forma defeituosa pelos profissionais da saúde vinculados de alguma forma ao hospital, respondem solidariamente a instituição hospitalar e o profissional responsável, apurada a sua culpa profissional; nesse caso, o hospital é responsabilizado indiretamente por ato de terceiro, cuja culpa deve ser comprovada pela vítima de modo a fazer emergir o dever de indenizar da instituição, de natureza absoluta (artigos 932 e 933 do Código Civil. Neste sentido, cf.: STJ, 3ª Turma, REsp nº 1.832.371/MG, rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 22 jun. 2021). 3 Trechos retirados (com adaptações) da obra NOGAROLI, Rafaella.  Responsabilidade civil médica e inteligência artificial: culpa médica e deveres de conduta no século XXI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023, p. 136-145. 4  Redação Atual CC/02 Redação Proposta pela Subcomissão de Resp. Civil Redação da Relatoria-Geral Art. 951. O disposto nos arts. 948, 949 e 950 aplica-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho. Art. 955. O disposto nos arts. 952, 953 e 954 aplica-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, a partir dos protocolos ou técnicas reconhecidas ou adotadas, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho. §1º Reconhecida a culpa do profissional, a entidade na qual possua alguma forma de vínculo empregatício ou de preposição responde objetivamente pelos danos causados em decorrência do ato profissional. §2º Nos casos em que a lesão ou morte resultar de uso ou falha de equipamento de saúde, a responsabilidade civil será regida pela legislação específica, estabelecendo que fabricantes, distribuidores e instituições de saúde envolvidas na prescrição, utilização ou administração desses aparelhos responderão solidariamente pelos danos causados, excluída a responsabilidade do profissional liberal, desde que respeitados os princípios de boas práticas e da segurança do paciente. Art. 951. O disposto nos artigos 948, 949 e 950 aplica-se ainda no caso de indenização devida por aquele que, no exercício de atividade profissional, em conformidade com protocolos, técnicas reconhecidas ou adotadas pela profissão, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão ou inabilitá-lo para o trabalho. §1º Reconhecida a culpa do profissional, a entidade com a qual possua algum vínculo de emprego ou de preposição, responde objetivamente pelos danos por ele causados. §2º Nos casos em que a lesão ou morte resultar de falha de equipamentos de manuseio médico-hospitalar, a responsabilidade civil será regida pela legislação específica, para que fabricantes, distribuidores e instituições de saúde envolvidas na adoção, utilização ou administração desses aparelhos respondam objetiva e solidariamente pelos danos causados. §3º. Nas hipóteses do parágrafo anterior, fica excluída a responsabilidade do profissional liberal, quando chamado em regresso pelo responsável e não ficar demonstrada a sua culpa por lesão ou morte. 5 Para maiores reflexões sobre todos os deveres de conduta médica em sistemas decisionais automatizados e equipamentos de saúde, remeta-se a NOGAROLI, Rafaella.  Responsabilidade civil médica e inteligência artificial: culpa médica e deveres de conduta no século XXI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023, passim. 6 NOGAROLI, Rafaella.  Responsabilidade civil médica e inteligência artificial: culpa médica e deveres de conduta no século XXI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2023, p. 126-127; 262-263; 282-289. 7 Trata-se de ideia defendida por Rosenvald e Faleiros Jr. no contexto da Lei Geral de Proteção de Dados (ROSENVALD, Nelson; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Accountability e mitigação da responsabilidade civil na Lei Geral de Proteção de Dados. In: FRAZÃO, Ana; CUEVA, Ricardo Villas Bôas. Compliance e políticas de proteção de dados. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 771-807).
segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Adeus 2023! Novas tecnologias e equidade em saúde

2023 está chegando ao fim e quantas novidades acompanhamos ao longo deste ano! Se entre 2020 e 2022 muito discutimos sobre os desafios da pandemia (Covid-19), 2023 foi um ano de retomada da diversidade de assuntos, muitos marcados pelo alto grau de incertezas e tantos outros identificados pelas renovadas esperanças em tratamentos e cuidados de saúde. No campo da reprodução humana assistida continuamos sendo desafiados agora com a divulgação dos primeiros embriões sintéticos não humanos (embrioides) que se desenvolveram em um útero artificial; a criação de embriões humanos a partir de células-tronco; pelo nascimento do primeiro bebê gerado em um útero transplantado (em cirurgia robótica e fora de um ensaio clínico); pelo nascimento do bebê com DNA de três pessoas (a partir do uso da técnica de Tratamento de Doação Mitocondrial); pelo nascimento de bebê gestado por duas mulheres. Chegamos à marca mundial de 10 milhões de pessoas nascidas em 45 anos de fertilização in vitro (sem contar a enorme quantidade de embriões congelados); o turismo do parto e da reprodução assistida (em especial a busca pela maternidade de substituição) se intensificou; empresas já acenam a possibilidade de fertilizar embriões no espaço. Enquanto as técnicas avançam, o Brasil não consegue tirar do papel nenhum projeto de lei sobre o tema, permanecendo regulado por softs laws que não dão minimamente conta da complexidade jurídica da matéria. Mas não é só o início de vida que apresenta novidades. Os questionamentos também se manifestam nas questões referentes à terminalidade de vida. Culturalmente, brasileiros se recusam a reconhecer a finitude humana como algo indissociável da vida e acabam criando grandes expectativas quando acompanham notícias como a do bilionário americano que gasta milhões de dólares em tratamentos que visam o rejuvenescimento; ou quando bilionários (como Elon Musk, Jeff Bezos e Peter Thiel) investem verdadeiras fortunas em empresas de biotecnologia que têm como principal objetivo a busca da imortalidade. A Neuralink (de Musk) obteve autorização da FDA para testar seus chips neurais em seres humanos, que com os implantes seriam capazes de controlar dispositivos externos com o pensamento. Já a Altos Labs (de Bezos) está desenvolvendo técnicas de reprogramação celular para combater doenças e expandir expectativa de vida. Thiel vem investindo em pesquisas e serviços de criogenia que apresentam como promessas salvar e prolongar a vida, o que desafiaria, juridicamente, o próprio conceito biológico de morte. Se não bastassem os altos investimentos na busca da perpetuação da vida, outros debates importantes ganham novos espaços. Discute-se se a obstinação terapêutica seria um direito do paciente (ou dos pais, quando se refere de crianças como no recente caso da bebê inglesa Indi Gregory), ou se deve haver limites às intervenções médicas, consideradas inúteis ou fúteis. Se de fato não é possível afirmar a obstinação terapêutica como direito, com os cuidados paliativos não há dúvidas: são direitos do paciente (tanto no setor público, quanto no privado). No entanto, assim como nas questões referentes ao início da vida, o legislador brasileiro nega-se a avançar em atos normativos referentes à terminalidade. O conceito de morte biológica para fins de tipos penais (como homicídio) distancia-se do conceito de saúde (adotado pela OMS) e, portanto, das novas concepções a respeito do fim da vida. A legislação ainda se prende ao enterro como regra, aceitando a cremação com normas restritivas e desconhecendo outras formas de dar fim ao corpo humano que talvez atendam mais aos valores do morto e, até mesmo, a importantes questões ambientais. A Inteligência Artificial ganha cada vez mais espaços na Medicina. Anunciou-se uma nova mão biônica que se funde aos ossos, nervos e músculos do usuário e é capaz de entender comandos, permitindo gestos mais precisos, o que com certeza amplia as fronteiras do transumanismo. No entanto, com a popularização de softwares como o ChatGPT intensificaram-se os debates sobre a utilização da Inteligência Artificial na Medicina; a necessidade do uso de tecnologias assistivas na adoção e uso de dispositivos médicos; a proteção de dados de saúde coletados por esses sistemas. A Medicina de Precisão avança, não só no que se refere à personalização de medicamentos, mas também quanto ao tratamento certo e ao momento oportuno de acesso (o que continua sendo uma grande barreira, em especial para os pacientes oncológicos e com doenças raras e ultrarraras). A genômica avança, ao ponto do Reino Unido autorizar o primeiro tratamento com edição genética (uso da CRISPR) para a Doença Falciforme e a Beta-Talassemia. A genômica também está por trás da pesquisa que resultou em cinco pacientes com HIV curados a partir de transplantes com células-tronco geneticamente modificadas para resistir ao vírus. Anunciou-se o fim do sequenciamento genético completo do cromossomo Y, o que pode levar a novas descobertas sobre suas funções. Pela primeira vez cientistas anunciaram sucesso no cultivo de células de rim humano em um embrião de outro animal, o que intensifica as promessas de xenotransplantes. Mas é claro que nem tudo são flores. As tecnologias, sem dúvida, fascinam e trazem esperanças renovadas à Medicina. É nesse cenário de promessas e esperanças, de transformações profundas, de busca pela realização do direito à saúde que para além do princípio da responsabilidade, precisamos falar também no princípio da precaução que não se preocupa em apenas evitar danos conhecidos e esperados (prevenção), mas busca impedir ou limitar comportamentos que, em razão do atual estado do conhecimento e da ciência, representam mais uma possibilidade de dano, do que uma certeza benéfica. No entanto, para além dos desafios trazidos pelas tecnologias em si, com elas alguns dilemas parecem se aprofundar e, talvez, o principal deles, seja como garantir o acesso e a equidade em saúde. Os medicamentos e tratamentos cada vez mais caros provocam discussões não só sobre qual deve ser o custo de um fármaco ou dispositivo, mas também o que deve ser custeado pelo Estado e por operadoras de saúde (podemos colocar preço na vida?). Transtornos de saúde mental se agravam e as políticas públicas não parecem avançar. A assistência básica à saúde ainda possui gargalos importantes que acabam levando ao agravamento de saúde e, por consequência, à busca da assistência especializada (muito mais cara e nem sempre eficaz). Mesmo com tantas tecnologias, acabamos nos esquecendo do básico! Não investimos em letramento em saúde! Importante abordagem para a boa saúde e bem-estar, que auxilia na informação e torna as comunidades aptas a adotar um estilo de vida mais equilibrado (de acordo com as suas próprias realidades), a tomar decisões autônomas e, principalmente, a questionar as diferentes notícias sobre ações e serviços de saúde que nem sempre possuem conteúdo verdadeiro ou útil. A alfabetização em saúde é instrumento que auxilia a capacitar as pessoas para cuidar e se responsabilizar pela própria saúde e pela saúde coletiva, prevenindo doenças, impedindo agravamentos e fazendo escolhas mais saudáveis. É também ferramenta que permite que usuários conheçam seus direitos, o sistema de saúde e as ações e serviços que estão à sua disposição. Por tudo isso, talvez possamos afirmar que a crise dos sistemas de saúde (público e privado) evidenciam-se pelo seu alto custo, baixa resolutividade e insignificante impacto social, devendo se agravar nos próximos anos não só pela pressão das novas e caras tecnologias, mas especialmente porque a expectativa de vida aumentou substancialmente e, com ela, estão sendo alteradas as principais causas de adoecimento e morte. De fato, o que aqui quero registrar, é que por mais fascinantes que sejam as novas tecnologias, é preciso antes delas (ou com elas) se lançe um olhar mais cuidadoso para as determinantes de saúde, porque essas sim impactam substancialmente os sistemas de saúde. A ideia de igualdade, constante no art. 196, da Constituição Federal e no art. 7º., IV, da Lei Orgânica da Saúde (Lei n. 8.080/90), revela que o sistema de saúde não se realiza apenas na ideia de assistência, mas sim, no conjunto de condicionantes e determinantes de saúde que têm reflexo imediato na qualidade de vida. É de equidade que estamos tratando, que pensada a partir de seus múltiplos conceitos, garante que todas as pessoas tenham oportunidades justas para atingir seu potencial de saúde e isso, por óbvio, não vai ser atingido se a opção for investir fortunas em tecnologias que se distanciam de realidades sociais. Por isso, é preciso que o discurso utilitarista do preço da vida seja mitigado por outros fatores que devem ser primeiramente levados em consideração como eficiência real da tecnologia pretendida e as realidades sociais em que serão inseridas ou disponibilizadas. Nesse contexto, o princípio da equidade, mostra-se intimamente relacionado ao princípio bioético da justiça considerado, ao lado do princípio da beneficência, prevalente em razão da sua necessariedade à convivência social. Quando se fala em equidade na saúde se está a tratar de compatibilizar o ideal constitucionalmente prometido com o real possível (não confundir com reserva do possível), sem que se justifiquem as impossibilidades simplesmente nos discursos utilitaristas. Trata-se de buscar a melhor distribuição possível de recursos que são naturalmente escassos, de modo que possam beneficiar o maior número possível de pessoas de forma isonômica e equânime. O problema está, então, na priorização das escolhas e como justificá-las. Foi com esse olhar que ao longo de 2023, nesta coluna, discutimos as tecnologias digitais emergentes e o Direito Civil e Médico no prelúdio de um admirável mundo novo (com Felipe Braga Netto e Rafaella Nogaroli); conversamos sobre os danos que alguns médicos causam nas redes sociais (com Luciana Dadalto); descobrimos a hermenêutica médica (com Clenio Jair Schulze); ficamos chocados com a mistanásia social e o genocídio do povo yanomami (com Cláudia Regina de Oliveira Magalhães da Sila Loureiro); refletimos sobre a Slow Medicine (com Livia Callegari); enfrentamos as questões sobre a técnica de controle de constitucionalidade das normas dos Conselhos profissionais de saúde (com Silvio Guidi); surpreendemo-nos com os organismos geneticamente modificados e como o princípio da precaução nos auxilia com a regulação (com Daniela Guarita Jambor); enfrentamos a polêmica aplicação da teoria da perda de uma chance pelo STJ (com Glenda Gonçalves Gondim); analisamos cirurgias estéticas, uso de PMMA em excesso e morte do paciente (com Mariana de Arco e Flexa Nogueira); encaramos o difícil tema da mistanásia de pessoas idosas no Brasil (com Hideliza Lacerda Tinoco Boechat Cabral); investigamos se descendentes têm direito de conhecer a sua origem biológica (com Flaviana Rampazzo); estudamos o consentimento do paciente e as novas tecnologias (com Juliano Ralo); discutimos o cado Indi Gregory (com Renata Oliveira Almeida Menezes e com Alexandro de Oliveira); analisamos os desafios do aborto legal no Brasil (com Francielle Elisabet Nogueira Lima; Taysa Schiocchet e Mariana Martins Nunes). Como podem notar, a diversidade de temas revela a complexidade dos estudos realizados no Grupo de Pesquisas Direito da Saúde e Empresas Médicas, coordenado por Miguel Kfouri Neto, agora transformado em Instituto Miguel Kfouri Neto. As tecnologias avançam cada vez mais rapidamente e o Direito, como o pensamos hoje, mostra-se incapaz não só de acompanhar tantas transformações, mas também, de dar boas respostas às novas perguntas, especialmente quando respostas utilitaristas são mais fáceis e tentadoras do que as respostas personalistas. Se 2023 ficou conhecido como o ano da retomada (pós-pandemia) e já nos surpreendeu com tantas novidades, imagine o que podemos esperar de 2024! Encerramos as publicações deste ano desejando que nos próximos 365 dias possamos dar continuidade aos nossos estudos e, quem sabe, apresentar algumas respostas em um ambiente de tantas incertezas.
segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

Além da lei: os desafios do aborto legal no Brasil

Aos fins de setembro de 2023, um conceito ainda pouco explorado juridicamente ganhou maior visibilidade a partir do voto da Ministra Rosa Weber no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442: o de justiça social reprodutiva. Apontado no voto como uma forma de resposta aos deveres fundamentais de proteção aos direitos sexuais e reprodutivos, derivados do desenho constitucional brasileiro, a Ministra se posicionou pela não recepção parcial dos art. 124 e 126 do Código Penal, a fim de descriminalizar o aborto até a 12ª semana de gestação. O julgamento da ADPF, contudo, foi interrompido, ante o pedido de destaque feito pelo Ministro Luís Roberto Barroso, retirando a ação do Plenário Virtual e encaminhando-a para ser julgada no ambiente físico. Os debates pela descriminalização da interrupção voluntária da gestação têm se mostrado centrais em articulações dos movimentos feministas na América Latina e no Caribe, onde há países em que a legislação sobre o tema é bastante restritiva, como o Brasil. Entretanto, ainda que o aborto permaneça tipificado no ordenamento jurídico brasileiro, fato é que, desde a década de 1940, ele  é permitido quando a gravidez é decorrente de estupro/violência sexual e há risco de vida para a gestante (art. 128, I e II, Código Penal). Em 2012, o STF estendeu a excludente para a gestação de anencéfalos, por meio da ADPF 54. Em que pese o longo período de estagnação regulatória (entre 1940 e 1990), os procedimentos para acesso ao aborto legal possuem regulamentação - não somente pelos marcos normativos já mencionados, mas também por outras leis, guidelines internacionais - como o recente "Guia sobre cuidados no aborto", da Organização Mundial da Saúde1, lançado em 2022 -, além da existência de normas infralegais (denominadas soft law interna, como resoluções, portarias, normas técnicas e protocolos) e de jurisprudência. Como exemplo, citam-se a lei 12.845/2013 ("Lei do Minuto Seguinte") e o decreto 7.958, de 13 de março de 2013, que estabelecem o atendimento às vítimas de violência sexual; na esfera infralegal, destacam-se a Portaria do Ministério da Saúde n° 1.508, de 1º de setembro de 2005, que estabelece o Procedimento de Justificação e Autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), determinando os fluxos a serem seguidos por profissionais de saúde no atendimento de situações que se enquadram nas hipóteses legais, bem como as Normas Técnicas do Ministério da Saúde (MS) "Atenção Humanizada ao Abortamento" (2011), "Aspectos jurídicos do atendimento às vítimas de violência sexual - perguntas e respostas para profissionais de saúde (2011)", "Prevenção e Tratamento dos Agravos à Saúde de Mulheres e Adolescentes Vítimas de Violência Sexual" (2012), e "Atenção às mulheres com gestação de Anencéfalos" (2014). Além disso, a realização do aborto nos casos de outras malformações fetais incompatíveis com a vida foi chancelada pelo Superior Tribunal de Justiça (REsp 1.467.888/GO), que também se manifestou recentemente (março de 2023) reiterando o dever legal de sigilo médico, inclusive em casos de suspeita de crime de aborto provocado pela própria gestante. Apesar de as  hipóteses permissivas do aborto estarem inseridas em um quadro de legalidade bastante robusto, o acesso a esse direito vem sendo obstaculizado por diversas razões, como: i) a falta de divulgação, estrutura e acesso aos serviços de referência que realizam o procedimento; ii) a imposição de medidas restritivas, como objeção de consciência, exigência de Boletim de Ocorrência ou alvará judicial; iii) a restrição em razão da idade gestacional, dentre outros problemas. Alguns casos emblemáticos são representativos da problemática desenhada por esses obstáculos. Em 2020, no estado do Espírito Santo, ganhou notoriedade o incidente envolvendo uma criança que, após ser vítima de repetidos abusos sexuais, ficou grávida aos dez anos2. A menina precisou viajar entre estados para realizar o procedimento de aborto legal, uma vez que tal intervenção foi negada em sua cidade natal. Já em 2022, em Santa Catarina, uma investigação conduzida pelos veículos "The Intercept" e Portal Catarinas3 revelou a história de outra criança, de 11 anos, que enfrentou repetidos abusos institucionais, particularmente durante uma audiência presidida por uma juíza, com a participação de uma promotora de justiça, pressionando a criança a prosseguir com a gravidez com frases como: "suportaria ficar mais um pouquinho?", "queres escolher um nome?" e "você acha que o pai concordaria?". No mesmo ano, no estado do Piauí, a imprensa divulgou o caso de uma menina de 12 anos, grávida pela segunda vez, expondo os detalhes dos abusos institucionais sofridos, incluindo a designação de um curador especial para o feto4. Quem trabalha ou pesquisa esse tema sabe que não se tratam de casos isolados. Muito pelo contrário. No documentário intitulado "Além da lei - o aborto legal no Brasil", lançado em 2018 pela Clínica de Direitos Humanos da Universidade Federal do Paraná (UFPR), relatam-se outras histórias nas quais se constatam as dificuldades de acessar o aborto legal por mulheres vítimas de violência sexual, assim como a visão de profissionais da saúde, juristas e ativistas sobre a questão5. As sistemáticas ações e omissões por parte do Poder Público relacionadas acima provocaram, inclusive, o ajuizamento, em 2022, da ADPF 989, que objetiva o reconhecimento do Estado de Coisas Inconsticional relativamente ao aborto legal. Importante destacar que, à época da proposição da ação, vigorava a Portaria GM/MS nº 2.561, de 23 de setembro de 2020, que previa a necessidade de o(a) profissional médico(a) comunicar o aborto à autoridade policial responsável. Ademais, naquele ano, havia sido publicada a Nota Técnica "Atenção Técnica para Prevenção, Avaliação e Conduta nos Casos de Abortamento" - atualmente retirada da plataforma virtual do Ministério da Saúde -, na qual se indicam procedimentos obsoletos para se realizar o abortamento, como a curetagem, além de orientar a utilização de critérios não respaldados em guias internacionais de melhores práticas atuais, como o "Abortion Care Guideline", da OMS (2022), como peso fetal e tempo de gestação em casos de aborto induzido, agravando ainda mais o quadro de inefetividade do aborto legal. Não menos relevantes são os impactos causados pelas intersecções entre marcadores sociais como gênero, raça e classe no tocante a esse cenário.  De acordo com a Pesquisa Nacional do Aborto (2021), 74% das mulheres que já realizaram um aborto em sua vida eram negras. Em estudo realizado em Minas Gerais sobre as causalidades de mortalidade materna relacionada ao aborto6, apontou-se que 70% das mulheres que vieram a óbito por aborto eram negras. O cotejamento entre esses dados pode indicar maior dificuldade de acesso aos serviços de aborto nos casos permitidos por lei, levando mulheres negras que teriam direito à interrupção a se submeterem a procedimentos inseguros que culminam em sua morte. Mais recentemente, já em novembro deste ano, no estado do Paraná, uma mulher indígena, vítima de violência sexual, morreu em decorrência do parto após ter o aborto legal negado em virtude da idade gestacional em que se encontrava quando buscou realizar o procedimento (26 semanas). Embora a atual gestão do Ministério da Saúde já tenha se manifestado no âmbito da ADPF 989 no sentido de que "não existe um prazo gestacional fixo para a realização do aborto decorrente de estupro ou qualquer outra circunstância legalmente prevista", diretrizes e orientações contrárias a esse entendimento continuam a guiar a atuação de gestores e  profissionais da saúde no país. Como se vê, a carência de normativas e mecanismos positivos que reforcem o dever de implementação e assistência ao aborto legal com base nas melhoras práticas e evidências científicas tem ocasionado múltiplas violações aos direitos fundamentais de meninas, mulheres e demais pessoas com capacidade de gestar, incluindo o direito à vida. Se buscamos um horizonte de descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação, sem a necessidade de qualquer outra condicionante, é imperativo que o Poder Público e todos os profissionais envolvidos atendam ao dever jurídico de assegurar o acesso ao aborto previsto em lei. Para tanto,  mostra-se necessária a cooperação dos órgãos administrativos competentes, removendo-se os entraves ilegais de ordem regulatória e sanitária que se opõem à concretização do sistema constitucional de justiça social reprodutiva outrora afirmado pela Ministra Rosa Weber em seu voto. __________ 1 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Abortion care guideline. Genebra: World Health Organization. 2022. 2 JIMENEZ, Carla. Menina de 10 anos violentada faz aborto legal, sob alarde de conservadores à porta do hospital. 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-08-16/menina-de-10-anos-violentada-fara-aborto-legal-sob-alarde-de-conservadores-a-porta-do-hospital.html. Acesso em: 01 de dez. 2023. 3 GUIMARÃES, Paula et al. Em audiência, juíza de SC induz menina de 11 anos grávida após estupro a desistir de aborto. Portal Catarinas; The Intercept. 20 de jun 2022. Disponível aqui. Acesso em: 01 dez 2023. 4 SENA, Yala. Justiça nomeia defensora para atuar em favor do feto de menina estuprada no Piauí. Folha de S. Paulo. 2 fev. 2023. Disponível aqui. Acesso em 01 dez 2023. 5 O documentário está disponível na plataforma YouTube. 6 Martins, E. F, Almeida, P. F. B, Paixão, C. O, Bicalho, P. G, Errico, L. S. P. Causas múltiplas de mortalidade materna relacionada ao aborto no Estado de Minas Gerais, Brasil, 2000-2011. Cadernos de Saúde Pública, 2017; v. 33, n. 1. Disponível aqui.
(...) Além dessa portaHá paz, eu tenho certezaE eu sei que não haverá maisLágrimas no Paraíso O presente artigo tem como ponto de recorte, a análise judicial do caso de Indi Gregory, uma bebê britânica acometida de uma doença rara, patologia mitocondrial incurável, teve por, decisão judicial, ordem de desligamentos dos aparelhos em decorrência do flagrante processo de distanásia no qual era submetida. A música que encabeça o presente artigo, "Tears in Heaven", é uma canção composta por Eric Clapton, onde personifica a dor e a perda do compositor após o falecimento de seu filho de 4 anos de idade. A morte já é difícil de aceitar quando envolve (...) Além dessa porta Há paz, eu tenho certeza E eu sei que não haverá mais Lágrimas no Paraíso O presente artigo tem como ponto de recorte, a análise judicial do caso de Indi Gregory, uma bebê britânica acometida de uma doença rara, patologia mitocondrial incurável, que teve por decisão judicial, ordem de desligamentos dos aparelhos em decorrência do flagrante processo de distanásia no qual era submetida. A música que encabeça o presente artigo, "Tears in Heaven", é uma canção composta por Eric Clapton, onde personifica a dor e a perda do compositor após o falecimento de seu filho de 4 anos de idade1. A morte já é difícil de aceitar quando envolve um adulto, mas quando o tema é a morte de uma criança, a perspectiva é dramaticamente alterada. A morte de uma criança, especialmente quando resulta da não iniciação ou suspensão de tratamento, pode ser vista como injusta, prematura e, até mesmo, cruel.2 Não é possível começar esse debate sem recordar a advertência da Profa. Heloisa Helena Barboza, na abertura do VII Congresso Brasileiro de Direito Civil, realizado no Rio de Janeiro, em 2018, em que destaca o "Direito e biotecnologia: Vivendo o futuro", levando-se a inúmeras reflexões. A premissa ventilada pela Ilustríssima Professora pavimenta a velocidade das mudanças sociais, jurídicas, enfatizando em seu artigo, os progressos biotecnológicos que afetam diretamente as etapas do nascimento até a sua finitude. A provocação destaca que a "recepção do futuro não se confunde com um rompimento do passado, ao contrário, é tido como a compreensão de que é faz necessário ir adiante, oferecer novas respostas, e apresentar novas indagações"3. E, diante desse novo cenário, é necessário repensar os instrumentos, normas e ferramentas de proteção da pessoa humana, inclusive sobre pontos imaculados e sagrados4, inclusive pelas lentes da filosofia, não apenas no Direito, em especial de Michael Foucault5, a partir dos conceitos de biopolítica e biopoder. Antes de abordar a proposta, é importante registrar a dificuldade de sintetizar inúmeras decisões judiciais proferidas, com contornos tão peculiares e informações complexas, em breves linhas desse diminuto artigo, mas seguiremos na desafiadora proposta, em especial, pela necessidade de luzes sobre este caso e o tema embrionário em cenário nacional. Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 Disponível aqui. Acesso feito em 22.11.2023. 2 PETER A Clark. Medical futility in pediatrics: is it time for a public policy? Disponível aqui. Acesso feito em 22.11.2023. 3 SCHULMAN, Gustavo. A Capacidade Civil lida do Avesso: A construção do futuro e seus desafios Jurídicos. Trajetória do direito civil, estudos em homenagem à professora Heloísa Helena Barboza/coordenação por Gustavo Tepedino, Vitor Almeida. Editora Indaiatuba. Editora Foco. 2023. p. 74. 4 Ensina Heloisa Helena Barboza. "sob o império da biopolítica, a força do poder se encontra na manutenção da vida, e, para tanto, é preciso pô-la em ordem, sustentá-la, assegurá-la. Mas isso não pode ser feito à custa da autonomia e da dignidade do ser humano". BARBOZA, Heloisa Helena. A pessoa na Era da Biopolítica: autonomia, corpo e subjetividade. Caderno IHU ideias (UNISINOS). v. 194, p.3-20, 2013, p.18. 5 "Atendo-se a uma análise nominalista, Foucault recusa-se a pensar o poder enquanto coisa ou substância, as quais seriam possuídas por uns e extorquidas de outros. O poder opera de modo difuso, capilar, espalhando-se por uma rede social que inclui instituições diversas como a família, a escola, o hospital, a clínica. Ele é, por assim dizer, um conjunto de relações de força multilaterais." FURTADO, Rafael Nogueira  e  CAMILO, Juliana Aparecida de Oliveira. O conceito de biopoder no pensamento de Michel Foucault.  Rev. Subj. [online]. 2016, vol.16, n.3, pp. 34-44. ISSN 2359-0769. Disponível aqui. Acesso feito 22.11.2023.
A delimitação teórica necessária, particularmente no Direito, tem sua relevância sublinhada quando a realidade social apresenta casos concretos que demandam uma reflexão mais aprofundada, já que a aproximação entre possíveis conceitos aplicáveis tem a capacidade de gerar consequências totalmente discrepantes entre si. O caso de Indi Gregory, uma bebê britânica acometida de uma doença rara, patologia mitocondrial incurável, capaz de impedir que as células do corpo produzam energia1, apresentou aproximações dos conceitos de eutanásia, ortotanásia e distanásia. Igualmente no âmbito das Ciências Biológicas e Médicas, a imprecisão técnica gera repercussões plurais e, para o caso específico, as dificuldades em delimitar marcos para o fim de vida causam consequências no âmbito social e jurídico;  além disso, resulta no questionamento central que tem lugar no caso ora analisado: o prolongamento artificial da vida deve ser mantido, no caso de um bebê com doença incurável e progressiva? Indi Gregory teve sobrevida artificial até menos de 9 meses, e conforme a equipe clínica do Queen's Medical Center, não haveria possibilidade de restabelecimento da sua saúde, logo, as tentativas clínicas nesse sentido a causavam dor e eram inúteis em relação à cura. A conclusão da equipe do Queen's Medical Center é condizente com os preceitos da bioética, já que refutam a distanásia e buscam a promoção da ortotanásia.  Formado a partir da junção do prefixo grego orthos (reto) e de thanatos (morte), o termo ortotanásia, elaborado por Jacques Roskam2, remete à ideia de terminalidade da vida de forma digna, justa, respeito pelo momento da morte natural e não prolongamento fútil da vida de modo artificial. A ortotanásia nem antecipa a morte, tampouco prolonga artificialmente a vida, apenas possibilita que a morte natural tenha o seu curso normal, do modo mais confortável e indolor possível, por meio da suspensão de medicamentos e de meios artificiais de prolongamento de vida3, substitutindo-os gradativamente por cuidados paliativos. São requisitos para configurar a ortotanásia o diagnóstico de uma doença mortal específica e irreversível, com exatidão e firmeza sobre o quadro clínico; a enfermidade ser progressiva; a morte ser iminente ou ameaçadora; o paciente estar frágil, com forças diminuídas; ser incapaz de exercer as funções humanas básicas, ou exercê-las com considerável dificuldade4. Todos os critérios estavam presentes no caso da Indi Gregory. De outra sorte, a distanásia seria esse prolongamento artificial da vida, de uma sobrevida que já teria sido findada se não fossem os aparatos biotecnológicos e a evolução farmacêutica, tomando como imperativa a manutenção da vida, independentemente da sua qualidade, sujeitando o paciente a sofrimento desproporcional, prolongando o seu processo de morte5, negando-lhe os cuidados paliativos no auge da sua vulnerabilidade. Os atos de distanásia sacrificam o paciente por motivos alheios vários, e prolongam o processo de morte da pessoa em fim de vida hospitalizada. Essas motivações podem ser de ordem religiosa; de ordem particular dos genitores - como fases de elaboração do processo de luto; de ordem científico-paternalista - com adoção de lógica utilitarista com vistas ao progresso da Medicina para benfeciar terceiros; entre outras. Há que elucidar que a ortotanásia, preconizada pela equipe do Queen's Medical Center, não pode ser confundida com eutanásia. Embora não seja um conceito uníssono, majoritariamente a eutanásia é considerada como a eliminação de uma pessoa que padece de enfermidade terminal, com a finalidade de findar as suas dores ou sofrimentos, realizado por outra pessoa, movida por sentimento de compaixão ou piedade. Sem o elemento subjetivo de compaixão com o próximo, configuraria homicídio.6 7 Os genitores de Indi Gregory discordavam da opinião da equipe clínica do   Queen's Medical Center, e requereram  judicialmente a manutenção artificial da vida. Após as negativas em primeira e segunda instância, foi decidido que não deveria investir mais em suporte vital, mas que Indi Gregory deveria continuar sendo cuidada em hospital ou em hospice - unidade de cuidados paliativos,8 9 ou seja, a decisão estabeleceu que deveria ser providenciada a ortotanásia, para garantia do conforto e preservação da dignidade da paciente. Urge ressaltar que a decisão, conforme o relato da imprensa a respeito, não previu a antecipação do processo de morte; caso contrário, configuraria eutanásia. Deixar de investir artificialmente para prolongamento de sobrevida sem perspectiva de cura ou de restabelecimento de funções básicas,em hipótese de doença devidamente diagnosticada, e investir em manejo químico e mecânico da dor, não configura eutanásia - em qualquer modalidade que seja -, trata-se de ortotanásia. Para o caso, a classificação da eutanásia conforme o tipo de ação, em que na modalidade ativa há uma ação direta para encurtar a vida, e passiva a morte é antecipada pela omissão de intervenção,10 deve ser afastada pois dar ênfase à eutanásia é já adotar um viés argumentativo, para tentar defender a distanásia, ou seja, leva à  perspectiva de que a preocupação central sobre sobrevida artificial deve ser quantitativa e não qualitativa, e desconsidera que, no caso concreto, não se antecipou o processo de morte, apenas permitiu que a sobrevida retomasse o seu curso natural. A obstinação terapêutica resulta em prolongamento precário e penoso da vida,11 deve ser rechaçada, especialmente por contrariar dois princípios básicos, pilares da bioética principiológica: o da beneficência e não-maleficência. Na análise do bem possível a ser proporcionado à Indi Gregory com o prolongamento artificial da sua sobrevida, sopesando com o quão doloroso era o tratamento, restou claro para a equipe clínica que a assistia que deveriam ser usados os fármacos e os aparatos decorrentes da Revolução Biotecnológica para paliar, para cuidar mesmo ante a incurabilidade da doença - em conformidade com o Juramento de Hipócrates. A imprecisão técnica sobre quando termina o processo de morte não deve servir de subterfúgio para prolongamento artificial do sofrimento. _____________ 1 HALLIDAY, Josh. Indi Gregory: critically ill baby girl removed from life support, The Guardian, UK News, 12 nov. 2023. 2 ROSKAM, Jacques. Survie Purement Végétative dans La cérébrosclérose. Euthanasie, Dysthanasie, Orthothanasie. Revue Médicale de Liège. Liège: Faculdade de Medicina de Liège vol. V. nº 20. pp. 709 - 713, 15 out. 1950. 3 MENEZES, Renata Oliveira Almeida. Ortotanásia: o direito à morte digna. Curitiba: Juruá, 2015. 4 MENEZES, Renata Oliveira Almeida. Ortotanásia: o direito à morte digna. Curitiba: Juruá, 2015. 5 MENEZES, Renata Oliveira Almeida. Paciente terminal e o direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Curitiba: Juruá, 2017. 6 SAMBRIZZI, Eduardo. Derecho y eutanásia. Buenos Aires: La Ley, 2005. 7 LOPES, Antonio; LIMA, Carolina; SANTORO, Luciano. Eutanásia, ortotanásia e distanásia. São Paulo: Atheneu, 2011. 8 HALLIDAY, Josh. Indi Gregory: critically ill baby girl removed from life support, The Guardian, UK News, 12 nov. 2023. 9 PHIPPIS, Amy; FARMES, Brian. Indi Gregory: Life-support withdrawn from critically ill baby. BBC. News, 12 nov. 2023. 10 FARIAS, Gisela. Muerte voluntaria. Buenos Aires, Astrea, 2007. 11 PESSINI, Leo. Eutanásia: por que abreviar a vida? São Paulo: Edições Loyola, 2004.
terça-feira, 21 de novembro de 2023

Consentimento do paciente e novas tecnologias

As reflexões aqui expostas foram apresentadas quando da minha participação no Simpósio de lançamento dos livros da Dra. Rafaella Nogaroli, intitulado "Responsabilidade Civil Médica e inteligência artificial: culpa médica e deveres de conduta no século XXI" e dos Dr. Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto, denominado "Responsabilidade Civil: Teoria Geral", ocorrido na UniCuritiba-PR em outubro de 2023. O referido evento tinha como tema a "Inovação no Poder Judiciário: dilemas da responsabilidade civil para os próximos 30 anos". Minha contribuição centrou-se na questão do "consentimento do paciente e as novas tecnologias". Neste artigo, exploramos a intersecção desses temas e discutimos as implicações legais e éticas que emergem à medida que as tecnologias avançam, particularmente ao longo dos próximos 30 anos: Imagine estar em 06 de outubro 2053 e experimentar a "medicina do futuro". Você acorda às 05h58min com uma sensação desconfortável no peito e verifica seu sistema de monitoramento vital em seu pulso. Ele detecta uma anomalia em seu ritmo cardíaco e imediatamente aciona um sistema de saúde avançado. Em questão de minutos, um drone equipado com desfibriladores externos automáticos chega e fornece tratamento de desfibrilação rápida, salvando sua vida. Após a estabilização, wearables (dispositivos vestíveis inteligentes que permitem o monitoramento remoto dos pacientes) encaminham informações para uma central médica que encaminha até sua residência um robô cuidador. Ele injeta nanorrobôs em seu corpo, que viajam até o seu coração, localizam bloqueios nas artérias e os eliminam as anomalias ali presentes de forma precisa e eficaz. Em poucas horas, você se recupera completamente, sem a necessidade de cirurgia invasiva. A central de atendimento médico recebe todas essas informações, em segundos analisa esses dados com algoritmos de Inteligência Artificial e propõe um tratamento imediato. Este é apenas um exemplo do que se projeta como avanço para a medicina em 2050, onde a integração da tecnologia, nanotecnologia e telemedicina proporciona tratamentos mais rápidos, precisos e menos invasivos, garantindo uma qualidade de vida e de sobrevida, incomparáveis com os dias atuais. Para compreendermos como será o consentimento do paciente do futuro se faz necessário conhecer um pouco mais sobre a respeito do cenário que se projeta acerca das tendências e dos avanços tecnológicos na medicina no ano de 2050 e de que maneira isso impactará as mudanças em relação ao consentimento do paciente nesse porvir. Não obstante o exemplo acima, o tradicional jornal britânico Pulse1 publicou recentemente uma reportagem denominada "Dez maneiras pelas quais a medicina mudará até 2050", listando as principais mudanças que deveremos testemunhar na área da saúde nos próximos 30 anos: I) Medicina Personalizada: a genômica e a análise de Big Data permitirão tratamentos mais personalizados. Isso significa que os tratamentos serão ajustados às características genéticas e biomoleculares individuais e ambientais; II) Impressão 3D de Órgãos: a bioimpressão, ou impressão 3D de tecidos e órgãos, poderá se tornar uma realidade. Isso revolucionará os transplantes, reduzindo listas de espera e problemas de rejeição; III) Tecnologias Vestíveis e Implantes: dispositivos que monitoram constantemente a saúde do usuário, prevendo problemas antes que se tornem graves; IV) Robótica: robôs serão cada vez mais comuns em cirurgias, permitindo procedimentos mais precisos e menos invasivos; V) Terapias Genéticas: tratamentos que visam modificar ou substituir genes defeituosos podem se tornar mais comuns, tratando doenças antes consideradas incuráveis; VI) Realidade Aumentada e Virtual: estas tecnologias poderão ser usadas em treinamento médico, planejamento cirúrgico e até em algumas terapias; VII) Nanotecnologia: poderá ser usada para administrar medicamentos de maneira mais precisa, visando apenas células doentes e reduzindo efeitos colaterais; VIII) Inteligência Artificial (IA): A IA poderá ser usada em diagnósticos, análise de imagens médicas, e até na previsão de surtos e epidemias; IX) Telemedicina: Consultas e monitoramento à distância serão aprimoradas, com o uso de holograma, e dispositivos caseiros de monitoramento, se tornarão ainda mais comuns, especialmente em áreas remotas; X) Novas Vacinas e Terapias: Com as lições aprendidas com a pandemia da COVID-19, investimentos em pesquisa de vacinas e terapias antivirais provavelmente continuarão crescendo. A essa lista ainda se acrescentam terapias com Células-Tronco; interfaces brain-computer; biotecnologia CRISPR; smart drugs; novos métodos de monitoramento contínuo; imuno-oncologia, entre diversas outras promessas que reforçarão a esperança de dias melhores, mas também a importância preservarmos à autodeterminação dos pacientes face às novas tecnologias em saúde. Do exposto, pode se extrair que a medicina do futuro será cada vez mais multifuncional, caracterizada pelos quatro "P's" fundamentais: preventiva, preditiva, personalizada e proativa. Isso significa que a medicina se concentrará no descobrimento antecipado de doenças, na previsão de riscos individuais, na adaptação dos tratamentos às características individuais e na promoção do bem-estar geral. Entraremos em uma era onde a robótica e a IA não serão apenas ferramentas, mas assumirão um papel de maior relevância nas decisões em saúde, com as quais interagiremos diariamente. Assistentes virtuais, robôs de cuidado e algoritmos de recomendação moldarão nossas experiências e as decisões médicas. O grande dilema será ético. Ao consideramos que os algoritmos de machine learning, tomarão cada vez mais decisões autônomas cada vez mais baseadas em seus "aprendizados", de forma que surgirão questionamentos como: "quem será o responsável por essa decisão?" Será o fabricante, programador ou o usuário? E como garantiremos que os usuários realmente consintam e compreendam como essas tecnologias funcionam, especialmente quando os algoritmos são tão complexos que até mesmo os especialistas têm dificuldade em interpretá-los? Será correto uma máquina substituir a expertise médica? Quem assumirá os riscos dessa intervenção? Até que ponto os pacientes entenderão a extensão e o uso desses dados? De fato, o consentimento do paciente, de forma clara, livre e esclarecida, está longe de ser um direito aperfeiçoado pela doutrina e jurisprudência nacionais e estrangeiras, mas ainda será indispensável e considerado como um "porto-seguro" para a autodeterminação do paciente. Trata-se de um instituto que está em constante evolução, que será aprimorado com as mudanças proporcionadas pelo avanço da relação médico-paciente e, em especial, pelas que surgirão como resultado do uso de Big Data. Nesse sentido, será ainda mais essencial compreender o consentimento informado em relação às novas tecnologias médicas nas próximas décadas, uma vez que a medicina continuará a evoluir e a incorporar novidades cada vez mais sofisticadas. Nesse cenário e contexto, abaixo são propostas algumas reflexões que devem ser consideradas para garantir um consentimento informado, transparente e ético, capaz de garantir a autodeterminação do paciente perante os avanços da medicina: I. Transparência e Compreensão: o consentimento informado deverá ser um processo dialógico, transparente e compreensível para os pacientes. Isso implicará em fornecer informações detalhadas sobre as tecnologias envolvidas, seus objetivos, benefícios esperados, comprovações científicas, limitações, riscos médicos e possíveis alternativas. Os profissionais de saúde deverão garantir que os pacientes tenham um entendimento claro do que estão consentindo. II. Autonomia e livre escolha do paciente: o princípio da autonomia do paciente continuará sendo fundamental. Os pacientes deverão ter o direito de tomar decisões informadas e livres sobre seu próprio tratamento, sem estar influenciados por algoritmos. Em outras palavras, eles deverão ser informados sobre as opções disponíveis e ter a liberdade de aceitar ou recusar um tratamento ou procedimento, mantendo-se as diretrizes atuais. III. Uso responsável de dados: as tecnologias médicas muitas vezes envolvem o uso de dados pessoais dos pacientes. Os pacientes deverão ser informados sobre como seus dados serão usados, protegidos e compartilhados, para evitar problemas como o caso Cambridge Analytica (2018), YouTube, que foi multado em US$ 170 milhões (Singer e Conger 2019) por ter extratificado dados para direcionar propaganda para o público infantil ou, ainda, do clube britânico, Bounty, que foi multado em £ 400.000 (2019) por compartilhar dados de mais de 14 milhões de seus usuários com terceiros para fins de marketing.  Como se vê desde já, a privacidade e a segurança dos dados do paciente são preocupações críticas, ainda mais tratando-se da saúde e bem-estar da população. Com efeito, sobre os itens acima, em 2021, a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou o pioneiro relatório global "Ética e Governança da Inteligência Artificial na Saúde" (Ethics and Governance of Artificial Intelligence for Health)[2]. Após extenso processo de pesquisa e consultas com a participação de especialistas de todo o mundo, o referido relatório forneceu orientações abrangentes para todos os relacionados no desenvolvimento, uso e impacto da IA na área da saúde, listando a autonomia, a transparência e a privacidade de dados como seus pilares fundamentais. IV. Inteligibilidade e explicabilidade das tecnologias: Devido à complexidade das tecnologias médicas avançadas, será importante que os profissionais de saúde se esforcem para explicar de maneira compreensível como essas tecnologias funcionarão e como poderão afetar o tratamento do paciente, seus riscos e benefícios, incluindo a possibilidade de erros ou resultados inesperados. V. Responsabilidade e prestação de contas: Deverá haver mecanismos claros de responsabilidade civil e criminal para lidar com erros ou decisões incorretas da IA. VI. Registro e documentação: Continuará a ser fundamental documentar todo o processo de obtenção do consentimento informado, incluindo as informações fornecidas ao paciente, as perguntas feitas pelo paciente e as decisões tomadas, em especial em prontuários eletrônicos que conterão todas as informações de saúde do paciente. Isso será importante em caso de disputas legais ou éticas no futuro. VII. Aprimoramento do consentimento informado: Em um ambiente em constante evolução, os profissionais de saúde devem estar dispostos a se manterem atualizados sobre as mais recentes tecnologias e práticas éticas relacionadas ao consentimento informado. Isso inclui participar de treinamentos e educação continuada. Podemos incluir aí um consentimento livre e esclarecido digital, pois será provável que o consentimento seja obtido de forma mais eficaz e segura através de meios eletrônicos. Ademais, novos recursos como o design thinking deverão ser usados para facilitar o processo comunicativo.  VIII. Envolvimento do paciente nas decisões: mais do que nunca, os pacientes deverão ser incentivados a fazer perguntas, expressar preocupações e participar ativamente das decisões sobre seu tratamento. Apesar da constante demanda e falta de tempo, os profissionais de saúde continuarão a criar um ambiente de comunicação aberta e colaborativa.   IX. Regulamentação e ética: Os Conselhos de Medicina, as organizações médicas e demais autoridades de saúde deverão continuar a desenvolver diretrizes e regulamentos que orientem a obtenção do consentimento informado em um cenário tecnológico em constante mudança. A ética médica deverá ser central a todas as práticas relacionadas ao consentimento informado. X. Responsabilidade compartilhada: O consentimento informado não deverá ser apenas uma formalidade, mas um compromisso mútuo entre o paciente e o profissional de saúde, para garantir o melhor atendimento possível. Ambos têm responsabilidades na tomada de decisões informada e na busca do melhor resultado para a saúde do paciente. Em conclusão podemos compreender que o consentimento informado para os próximos 30 anos deverá continuar sendo um processo dinâmico e colaborativo que levará em consideração a evolução constante da medicina e das tecnologias de saúde. A transparência da relação médico, a autonomia do paciente e o uso ético das tecnologias seguirão como elementos essenciais para garantir o cuidado adequado e o respeito pelos direitos dos pacientes. Conforme reportagem: "Ten ways medicine will change by 2050". Disponível em: https://www.pulsetoday.co.uk/views/practice-personal-finance/ten-ways-medicine-will-change-by-2050/. Acesso em 01 de outubro de 2023. Para maiores informações: https://www.who.int/publications/i/item/9789240029200.
Antes da revolução das técnicas de reprodução assistida (RA), a revelação da paternidade dependia da vontade e da "memória", da disposição e do conhecimento da mãe ou de terceiros. Atualmente, pesquisas e exames de DNA são capazes de abreviar esse caminho e de dispensar tais atributos ou vontades. Assim, cabe perguntar se o doador de material biológico reprodutivo tem direito ao anonimato, se o conhecimento da ascendência genética seria um direito da pessoa gerada por técnica de RA e se seria possível haver conformação entre um e outro. E, sendo admissível que haja a informação, convém investigar a quem competiria o dever de prestá-la à pessoa que quisesse conhecer a sua origem biológica. No âmbito normativo, o tema da confidencialidade dos dados de doador de material reprodutivo é objeto da Declaração Universal sobre o genoma humano e os direitos humanos (arts. 7º e 9º) e da Declaração Internacional sobre os dados genéticos humanos (art. 14, a) da UNESCO, as quais estabelecem a confidencialidade dos dados biológicos e especificam que a identificação do doador é medida excepcional, a depender da regulamentação do país onde o material for tratado. No Brasil, não há lei tratando especificamente a respeito do assunto. Há, no entanto, projetos em tramitação na Câmara dos Deputados que tratam do tema da RA. O mais importante para o objeto deste texto é o PL 4892/12, o qual institui o Estatuto da Reprodução Assistida, para regular a aplicação e utilização das técnicas de reprodução humana assistida e seus efeitos no âmbito das relações civis sociais. No art. 6º, o PL proíbe a mistura de material genético de um dos pretensos genitores e o material genético de doador para evitar dúvida quanto à origem biológica do concebido. No art. 7º, o PL trata dos princípios aplicáveis às técnicas de RA, dentre os quais estão "o superior interesse do menor" e a "transparência". No art. 13 do PL consta que todas as informações relativas a doadores e receptores devem ser coletadas, tratadas e guardadas em sigilo, não podendo ser facilitada, nem divulgada informação que permita a identificação civil do doador ou receptor. Consta ainda que o médico deverá escolher o doador e assegurar, sempre que possível, a semelhança fenotípica, imunológica e a máxima compatibilidade entre doador e receptores (art. 16). No PL consta utilização do material genético de doador para uma única gestação "no Estado da localização da unidade", além de determinar a criação de um Banco de Células embrionárias para impedir reprodução assistida (RA) com o mesmo material no Estado em que já foi utilizado. O texto proíbe que médicos, funcionários e integrantes da equipe multidisciplinar sejam doadores de material biológico reprodutivo. O art. 19 prevê a garantia de sigilo ao doador de gametas, "salvaguardado o direito da pessoa nascida com utilização de material genético de doador de conhecer sua origem biológica, mediante autorização judicial, em caso de interesse relevante para garantir a preservação de sua vida, manutenção de sua saúde física ou higidez psicológica e em outros casos graves que, a critério do juiz, assim o sejam reconhecidos por sentença judicial", sendo que o mesmo direito é assegurado ao doador, "em caso de risco para sua vida, saúde ou, a critério do juiz, por outro motivo relevante". No âmbito do Conselho Federal de Medicina, a resolução 2.320/22, estabelecida com contornos de soft law, prevê o sigilo das informações sobre a identidade de doadores de gametas e de embriões, assim como dos receptores, e proíbe que doadores e receptores conheçam a identidade um do outro, "exceto na doação de gametas ou embriões para parentesco de até quarto grau, de um dos receptores (primeiro grau: pais e filhos; segundo grau: avós e irmãos; terceiro grau: tios e sobrinhos; quarto grau: primos), desde que não incorra em consanguinidade". Ademais prevê como excepcional o fornecimento de informações, desde que estas sejam dirigidas exclusivamente aos médicos e com motivação de saúde, conforme o texto do Capítulo IV, ns. 2 e 4. As Clínicas, centros ou serviços onde são feitas as doações devem manter o registro permanente dos dados clínicos de caráter geral, de características fenotípicas e, na região de localização da unidade, evitar-se-á que um doador tenha produzido mais de dois nascimentos de crianças de sexos diferentes em uma área de 1 milhão de habitantes, embora um doador possa contribuir para várias gestações em uma mesma família receptora (Capítulo IV, ns. 5 e 6). O consentimento deve ser obtido por termo, contendo todos os aspectos médicos da técnica, com os resultados obtidos na unidade de tratamento, com a técnica proposta, além de dados de caráter biológico, jurídico e ético. Tanto o processo informativo decisório quanto o de consentimento abrange o doador e os receptores, cada um com as suas peculiaridades informacionais e decisórias. Nesse contexto em que se vislumbra uma nítida tendência de sigilo, não se pode perder de vista a prioridade dos direitos da criança e do adolescente prevista no art. 227 da CF e a Convenção Internacional dos Direitos da Criança da ONU (art. 3.1), que estabelece que as ações relativas às crianças e adolescentes devem considerar o "interesse maior" destes. Além disso, há possibilidade de emprego, por analogia, do art. 48 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), segundo o qual "o adotado tem direito de conhecer sua origem biológica, bem como de obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes". Seguindo esse raciocínio, se o adotado tem o direito de conhecer a sua origem biológica, qual seria a razão para a criança gerada por técnica de RA ser privada desse direito? Não se está aqui tratando do direito da filiação ou do estado de filiação (paternidade jurídica), porque este está radicado no Direito de Família e abrange fatores mais amplos que os meramente biológicos. É dizer: o reconhecimento da filiação jurídica do direito de família admite tanto a filiação biológica quanto a não biológica, conquanto possa prescindir de fatores biológicos. O conhecimento da origem genética é distinto, constitui objeto do estudo do biodireito e diz respeito aos direitos de personalidade e não trata da constituição de parentesco legal. Assim, com base no direito geral da personalidade, entende-se que deve ser assegurado ao indivíduo o direito de ter informações sobre a sua origem genética tanto quanto da sua ascendência. A legitimidade dessa pretensão está assentada no direito geral de personalidade e ao seu livre desenvolvimento, além do direito à saúde e a prevalência do direito da criança e do adolescente, quando for o caso. Ademais, assume relevância o critério finalístico avindo do texto das normas antes referidas, do qual é extraída a necessidade de preservar o  sigilo dos dados do doador, que (ao menos em princípio) realiza o ato de doação de material genético com finalidade altruísta, desinteressada e não remunerada: quando a função informacional diz respeito ao atendimento de necessidades relevantes e juridicamente suficientes e justificáveis daquele cuja informação seja necessária. Tais necessidades (interesses jurídicos relevantes) em geral são ligadas à saúde física ou psíquica daquele que quer conhecer a sua origem genética. Quando houver essa fundamentação relevante e juridicamente aceitável, será justificável a postulação de obtenção das informações quanto a origem genética. Os destinatários da pretensão processual a ser exercida são, conforme o caso, dos pais, caso eles tenham sido responsáveis pelos atos de concepção (situação de inseminação caseira, por exemplo) ou a clínica de fertilização ou profissional que realizou o procedimento, caso a concepção tenha decorrido do emprego de técnicas de RA. Com isso, fica claro que, caso a informação seja postulada judicialmente, não o será por ação investigatória de paternidade. Há, inclusive, a possibilidade de uso de habeas data para a obtenção de informações (para dados constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público), conforme as circunstâncias concretas, lembrando-se que tais dados são qualificados como sensíveis pela LGPD e, portanto, recebem elevado grau de proteção. A questão a tratar brevemente agora é saber se o filho que não recebe essa informação a que teria direito poderia ser indenizado ao deixar de ser informado. A resposta dependerá das circunstâncias de cada caso concretamente considerado. Hipoteticamente, na situação de um filho com problema de saúde cujo tratamento seja mais eficaz se houver a informação sobre a origem genética, a falha informativa poderá ensejar a ocorrência de danos patrimoniais, caso esse filho-paciente tenha despesas de tratamentos de saúde que não incidiriam se a informação sobre a origem genética fosse relevante e não tivesse sido ocultada. Quanto aos danos extrapatrimoniais no exemplo acima, podem estar presentes se, v.g., o filho tivesse que conviver com uma doença que pudesse ser eliminada ou mitigada com a possibilidade de identificação e de disposição de auxílio por parte das pessoas a ele vinculadas geneticamente. A pretensão para ser atendida, no entanto, depende de prova e deve ser dirigida aos pais, caso a ocultação ocorra em razão de ato a eles imputável (situação de inseminação caseira, por exemplo) ou à clínica de fertilização ou profissional que realizou o procedimento, caso deixe de fornecer os dados do doador ou doadora do material genético.
"Não se pode esquecer de que a vida não deixa de ser uma passagem constante de uma vulnerabilidade para outra vulnerabilidade. O sentido profundo do ser humano é o acolhimento e a proteção de sua vulnerabilidade" (Pessini, 2017, p. 80). Sinopse  A mistanásia é um fenômeno que inquieta a Bioética contemporânea, pois a morte indigna, decorrente de fome, miséria e abandono de pessoas vulneradas, cresce de forma exponencial. O presente artigo se propõe a analisar a mistanásia no âmbito das pessoas idosas, neste momento em que o envelhecimento, como fenômeno global, também se constitui preocupação da Bioética. O fato é que a vulnerabilidade das pessoas idosas, expõe-nas a riscos, vitimando-as de forma frequente e cruel, pois a sociedade, os hospitais e estabelecimentos similares e até mesmo as famílias praticam atos contra essas pessoas, levando-as a experimentarem a vida miserável e morte mistanásica. A população brasileira se encontra em franco processo de envelhecimento e as famílias seguem a mesma linha, têm envelhecido de forma progressiva e, nessa ambiência, filhos idosos (com mais de 60 anos) estão cuidando de seus pais muito mais idosos (às vezes com 80 a 95 anos), sem que houvesse tempo para se organizarem e se capacitarem para essa realidade. Então, quando as famílias não conseguem administrar as consequências advindas dessa transformação demográfica, praticam condutas criminosas contra as pessoas idosas, em razão de vários fatores, dentre os quais se destaca os óbices para exercerem suas atividades laborativas de forma plena. As práticas mais comuns são abandono afetivo, moral e material, dentro das próprias residências e ainda abandono hospitais e nas ruas para ser recolhida em abrigos. Todas essas hipóteses se tornam rotineiras, no Brasil e no mundo, e têm acarretado a morte mistanásica das pessoas idosas em grande proporção,  tornando-se necessária a adoção de urgentes políticas públicas, a fim de minimizar as mortes miseráveis e promover saúde e dignidade a essa população que já caminha para a última fase da existência humana.  Introdução  A mistanásia é um lamentável fenômeno da Bioética contemporânea, pois a morte indigna de pessoas vulneradas tem crescido de forma assustadora no Brasil e em outros países da América Latina. Trata-se da morte miserável, precoce e evitável de pessoas expostas a riscos dos quais elas não conseguem se proteger por si sós, necessitando buscar mecanismos estatais de defesa, aos quais, elas nem sempre têm acesso. São diversas situações de miséria, abandono social, desigualdade e até de homicídios, nos casos mais graves, concorrendo para a morte em condições precárias e indignas. A mistanásia se apresenta em muitas hipóteses decorrentes da precarização da saúde pública, da violência dos grandes centros urbanos, do abandono de pessoas necessitadas pelo Poder Público, em vários outros matizes e se manifesta até mesmo no âmbito das famílias que não cuidam de seus idosos, em especial, quando doentes, deixando-os desassistidos ou até mesmo abandonados à própria sorte. Antes de se tratar da mistanásia no contexto das pessoas idosas, impende situá-las no contexto da legislação nacional, apresentando-se o art. 1º do Estatuto da Pessoa Idosa, que é a lei de tutela da parte frágil com a função de regulamentar os direitos dessa classe de pessoas: "[...] destinado a regular os direitos assegurados às pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos" (Brasil. Lei n. 10. 741, 2003). O envelhecimento no Brasil e no mundo, passa a se constituir preocupação como fenômeno global e objeto de estudo da Bioética, pois a população composta por pessoas idosas cresce de forma desproporcional, na medida em que, por um lado, as pessoas estão se cuidando melhor, cultivando hábitos saudáveis, adotando atividades físicas, além da evolução da ciência, que encontra solução para várias enfermidades antes fatais, incuráveis e que agora se tornam crônicas, por outro lado, decresce a taxa de natalidade, em razão da opção por famílias cada vez menores. Em razão desses fatores, as famílias estão envelhecendo e não raro nos deparamos com pessoas idosas cuidando de outras muito mais idosas: filho de mais de sessenta anos cuidando de seu ascendente octogenário ou nonagenário, ambos com suas limitações, às vezes ouvindo mal e com reais dificuldades de locomoção. Descortina-se então uma realidade à vista desta transformação demográfica: a sociedade não está preparada para cuidar dessas pessoas, não opera pequenas adaptações no interior das residências que podem fazer grande diferença para a segura locomoção, como assentar barras de apoio nos boxes e sanitários e corrimãos nas escadas, por exemplo. Tem-se assistido a muitos acidentes domiciliares com grandes consequências como sérias fraturas, fato que demonstra a necessidade de precaução, de medidas preventivas às quedas. Esse é apenas um dos vários aspectos a serem observados na conjuntura do cuidado às pessoas idosas, pois "as quedas lideram as internações", somaram 48.940, segundo estudo realizado em 2000 acerca das causas externas de mortes de pessoas idosas (Gawryszewski; Jorge; Koizumi, RAMB, 2004). É preciso se compreender que nenhuma dessas justificativas pode ser considerada como razoável para levar a família ao abandono de seus ascendentes, de várias formas. No caso do abandono material, falta alimentação adequada, condições de higiene e mínimo conforto, sabendo-se que tais situações ensejam a prática de mistanásia e que a consequência natural da vida indigna é a morte igualmente indigna e miserável de pessoas que não dispõem de mecanismos de defesa capazes de se colocarem a salvo dos riscos. Ante esses fatos, o presente artigo se propõe a despertar a comunidade cientifica para a cruel realidade de saúde pública e interesse social que é o aumento de casos de banalização da vida das pessoas idosas e a consequente morte mistanásica delas. E, lançando um olhar prospectivo, realiza um breve exame de algumas medidas preventivas ou políticas públicas a serem adotadas no sentido de minimizar as mortes mistanásicas dessa faixa composta por pessoas que já deram sua contribuição à sociedade, criaram suas famílias e agora dependem de serem acolhidas em sua vulnerabilidade a fim de oferecer dignidade para dar cumprimento e completude à sua existência nos seus derradeiros dias. Clique aqui e confira a íntegra da coluna.
Brasil no ranking dos países que mais realizam cirurgias plásticas estéticas do mundo e substâncias arriscadas sendo utilizadas cotidianamente. Se a paciente morre depois da cirurgia, denuncia-se o médico por culpa ou dolo eventual? No Brasil, o mercado da estética, hoje, é altamente rentável e lucrativo, sobretudo porque, além de médicos, diversos outros profissionais atuantes na área da saúde estão fazendo tais procedimentos1, principalmente em razão deste contexto social que dita padrões de beleza ideais em relação à imagem das pessoas, o que afeta principalmente mulheres e meninas, que vêm buscando intervenções estéticas desde a adolescência. O Brasil, inclusive, é o segundo país do mundo em que mais são realizadas cirurgias plásticas embelezadoras, ficando atrás somente dos EUA. Dito isso, o profissional da Medicina é quem, de fato, possui autorização legal e normativa2 para realização destes procedimentos estéticos eletivos, escolhidos e refletidos pelo paciente, relacionados à Medicina do aprimoramento3 e que têm relação com o desejo subjetivo de cada paciente em termos de sentir-se belo e melhor consigo mesmo, ainda mais porque o conceito de beleza é relacional e depende de cada indivíduo e de sua concepção própria. Logo, caso o paciente pretenda, queira, entenda os riscos depois de informado e consinta com a intervenção, o médico poderá atuar. Ou seja, de acordo com o paradigma da autonomia, é o consentimento livre, informado e esclarecido do paciente que legitima e autoriza a intervenção do médico em sua esfera corporal, sob pena de caracterização dos delitos de constrangimento ilegal e/ou lesão corporal4. Neste caso das cirurgias plásticas estéticas, procedimentos invasivos e arriscados por si só, como a Medicina é um ambiente extremamente complexo, normatizado e técnico em âmbito ético-administrativo, há diversas normas setoriais que regulamentam a profissão, que visam a conferir uma parametrização e standards de conduta para que ocorra um ato médico seguro, o que vai depender, logicamente, da especialidade do médico e do contexto em que atendeu o paciente. Ao seguir tais normas técnicas, chamadas de lex artis, presume-se que a atividade do profissional está dentro de um limite de risco permitido, aceitável e tolerado. Porém, em caso de restar violado esse limite de risco-base5 ao qual o médico deve obediência para manter sua atividade lícita, a depender da eventual incorreção de sua conduta, pode o profissional ser responsabilizado nas esferas ético-disciplinar (perante o Conselho Regional de Medicina onde possui inscrição), cível (ao pagamento de indenização) e criminal (caso haja a prática de um delito). Dito isso, tragamos um caso ilustrativo, inspirado em fatos reais. Paciente A, com 30 anos de idade, capaz, decide colocar silicone nos glúteos, para dar um aspecto mais tonificado à região, e procura um médico famoso e conhecido nas redes sociais, com mais de meio milhão de seguidores, agora denominado B, que faz o procedimento, inclusive divulgando fotos de "antes e depois" e anunciando descontos e parcelamentos imperdíveis às suas potenciais pacientes-clientes (ou então leads convertidas?). Ambos combinam o valor dos honorários médicos, há assinatura de termo de consentimento, de contrato de prestação de serviços e, finalmente, chega o dia do procedimento. No dia do ato médico, em um hospital, o profissional B realiza a intervenção estética e opta por utilizar a substância polimetilmetacrilato, vulgo PMMA, na paciente, aplicando duas vezes mais o volume autorizado pela ANVISA6 para fins estéticos. Não obstante, o profissional não informa à paciente qual substância será utilizada, tampouco os riscos básicos a ela relacionados. Após a cirurgia, a paciente tem alta e vai para sua casa. No entanto, depois de dois dias, é acometida por infecção generalizada e falece em decorrência de embolia pulmonar decorrente dos efeitos do PMMA em seu organismo. A família acha estranha a morte repentina, consulta um médico assistente técnico e registra boletim de ocorrência. A polícia passa a investigar o profissional da Medicina por conta da prática do crime de homicídio, devido ao fato de a conduta médica ter sido a causa eficiente da morte da paciente A, havendo relação causal entre o ato médico e o óbito. Após realização de perícia, tem-se que a causa mortis é realmente o uso da substância PMMA em excesso. Depois disso, Ministério Público denuncia o médico com fundamento em dolo eventual, vez que agiu de modo indiferente quanto ao resultado morte da paciente que confiou em seus serviços. Além disso, família da vítima aciona o CRM e, concomitantemente, ajuíza ação civil de reparação de danos devido à morte da paciente com fundamento "erro médico". Dito isso, partindo da hipótese de que a morte se deu, de fato, em razão do uso da substância PMMA em excesso, há dolo eventual ou culpa frente à conduta do médico? Devido à independência relativa entre as esferas jurídicas, a suposta incorreção do ato médico pode ser apurada em ramos distintos do Direito. Caso ocorra infração ao Código de Ética Médica, o médico pode ser investigado em sindicância e eventualmente responder a processo ético-profissional. Além disso, é possível analisar a responsabilização civil do médico se restar comprovada conduta culposa, que pode se manifestar via negligência, imprudência e/ou imperícia, nexo causal e danos - das mais variadas espécies, v.g., material, moral, estético e desvio produtivo - sofrido pelo paciente, ou, então, em caso de negligência informacional, caso o profissional não informe e esclareça o paciente sobre os riscos inerentes a determinado procedimento antes da intervenção, violando deveres anexos. Ademais, a depender da gravidade da ilicitude da conduta do profissional, nada impede que sua conduta também seja apurada na esfera jurídico-criminal, caso estejamos diante dos juízos político-criminais de merecimento de pena (dignidade de pena) ou necessidade de pena (carência de tutela penal)7. Isso porque o Direito Penal é a última ratio e somente deve ser chamado a atuar para resolver problemas sociais nos casos de afetação grave de bens jurídicos, quando os outros ramos jurídicos se mostrarem insuficientes e inadequados para tanto. A seara jurídico-penal possui caráter fragmentário e subsidiário, podendo agir nos limites do necessário, sobretudo porque é a liberdade da pessoa eventualmente acusada e processada que está em jogo. Com efeito, o primeiro passo para analisarmos a possibilidade de imputação de crime e posterior responsabilização criminal ao médico B do exemplo é compreender se houve conduta que violou a norma jurídico-criminal proibitiva ou mandamental. Ademais, como houve resultado morte de paciente, deve-se analisar se há relação causal e normativa entre a conduta e este resultado. O crime de homicídio, previsto no artigo 121 do Código Penal, significa a conduta de matar alguém, ou melhor, eliminar vida humana alheia. No caso do médico B, a nosso ver, sua conduta ultrapassou um limite de risco até então permitido - que seria realizar cirurgias plásticas estéticas de modo seguro, dentro dos protocolos médicos de segurança referentes ao procedimento - e não respeitou as normativas e diretrizes técnicas que deveriam cercar o ato médico naquele contexto da cirurgia plástica, mormente devido ao uso da substância PMMA em excesso. Este modus operandi temerário do profissional tem relação causal com a morte da paciente A, nos termos do art. 13, caput, do Código Penal8.  Não basta, porém, para o Direito Penal, uma relação de mera causa e efeito para que a pessoa seja responsabilizada. É preciso analisar, também, a causalidade psíquica, ou seja, compreender se o agente agiu com dolo ou culpa. Em poucas palavras, o dolo pode ser caracterizado como a consciência e vontade de realizar a conduta típica, e se subdivide basicamente em dolo direto ou dolo eventual. Em relação ao dolo direto, configura-se quando o agente quis o resultado; por sua vez, quanto ao dolo eventual, o agente - no caso, o médico - assumiu o risco de produzir este resultado. No caso do dolo eventual, o agente tem a previsão do resultado que sua conduta pode causar, admitindo a possibilidade de se concretizar, sendo a ele indiferente. A culpa, por sua vez, é a violação de um dever objetivo de cuidado previsível à pessoa média, caracterizando-se como a conduta voluntária desatenciosa com resultado involuntário e não desejado, mas previsível, que podia ter sido evitado9. No caso do médico B, quanto ao elemento subjetivo que cercou sua conduta, a nosso ver, o ponto fulcral da questão reside justamente no uso desmedido e inadequado - vez que em excesso - do PMMA, substância10 cujo uso para fins estéticos não é recomendado por diversas entidades sérias em âmbito médico, tais como Conselho Federal de Medicina (CFM), Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica (SBCP) e Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD), embora a ANVISA não vede formalmente - e ainda11 - a utilização do produto12. Aliás, o uso de tal substância para fins cirúrgicos estéticos já foi objeto de artigos científicos13 e realmente os riscos superam os benefícios, daí porque sua utilização acaba sendo arriscada. No caso, o profissional da Medicina B utilizou o volume do produto a maior, sem contar que não informou a paciente sobre a substância utilizada, aumentando exponencialmente os riscos já inerentes à substância. Enquanto médico expert, tinha o dever de saber ou ao menos representar que aquela seria uma postura perigosa e optou por agir assim mesmo, de forma indiferente quanto a eventual resultado produzido no que tange à morte da paciente devido aos malefícios referentes ao produto. Neste caso, além de tudo, o médico, que detinha o conhecimento técnico em contraposição à pessoa da paciente, tolheu dela o direito de recusar o procedimento caso estivesse ciente dos riscos que o englobam em relação a eventual possibilidade de morte. Por isso, a nosso ver, agiu o médico de forma indiferente e irrefletida, assumindo um risco e sendo indiferente em relação ao resultado morte da vítima neste caso, sobretudo porque há alternativas ao uso do PMMA em procedimentos estéticos e, mais ainda, devido ao uso exacerbado da substância. É possível, pois, sustentar que há dolo eventual em sua conduta frente a esta situação, porém, é o caso concreto e as circunstâncias dos autos em termos probatórios que serão cruciais para realmente a imputação subjetiva ao agente. De todo modo, de acordo com os preceitos de um Direito Penal democrático, amparado no supraprincípio da dignidade da pessoa humana, jamais poderia ser admitida uma responsabilização automática do profissional da saúde, devendo ser analisado, para além da relação causal da conduta do resultado, o elemento subjetivo que cercou a conduta do agente, seja o dolo ou a culpa, sob pena de concluirmos pela atipicidade do fato e inexistência de responsabilidade criminal. No entanto, fato é que, hoje em dia, com uso cada vez maior de substâncias cujos riscos superam os benefícios em procedimentos estéticos, sem contar a ampliação desmedida deste mercado - com cada vez mais pacientes se tornando vítimas14 de variados profissionais da saúde que acabam agindo de modo temerário -, médicos devem abster-se de agir de modo não cuidadoso e violando diretrizes de um ato médico seguro, colocando vida e saúde de pacientes em risco, sob pena de responderem em diversas esferas jurídicas em decorrência de seus atos. __________ 1 Médicos, dentistas, esteticistas, biomédicos, enfermeiros, cosmetólogos, técnicos em enfermagem, fisioterapeutas, farmacêuticos, dentre outros profissionais, estão atuando no ramo estético, porém, nosso foco, aqui, não é falar sobre legitimidade, tampouco sobre "quem pode ou não pode" fazer tais procedimentos, sobretudo porque se trata de assunto polêmico. 2 Ressalte-se que, para que o médico seja considerado apto a realizar uma cirurgia plástica, além dos 6 (seis) anos de graduação em Medicina, exige-se, como pré-requisito, que sejam cursados 3 (três) anos de cirurgia geral e mais 3 (três) anos de cirurgia plástica, ou seja, são 12 (doze) anos de estudo no total para que o profissional seja, de fato, especialista nesta área inserida dentre as 55 (cinquenta e cinco) especialidades médicas atualmente existentes, conforme Resolução 2.330/2023 do CFM. Além disso, há incontáveis aperfeiçoamentos que podem ser realizados pelos médicos, o que, ao fim e ao cabo, visam a promover não só a especialização do profissional, mas também a segurança do paciente que confiou no profissional antes de fazer o procedimento eletivo, que, na maior parte das vezes, demanda um cuidado especial inclusive por parte do paciente no pós-operatório, v.g., alimentação, repouso, uso de vestimentas adequadas, acompanhamento com outros profissionais, tais como esteticistas e fisioterapeutas para fins de drenagem, uso de medicamentos, consultas de retorno, feedback ao médico sobre a intervenção etc. 3 SIQUEIRA, Flávia. Autonomia, consentimento e Direito Penal da medicina - 1 Ed. - São Paulo: Marcial Pons, 2019, p. 396. 4 GRECO, Luís; SIQUEIRA, Flávia. Promoção da saúde ou respeito à autonomia? Intervenção cirúrgica, exercício de direito e consentimento no direito penal médico. Studia Juridica. Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade (vol. 1). v. 108, 2017, p. 644-669. 5 GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva. 4ª Ed. Ver. Atual. / São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 57. 6 ANVISA esclarece sobre indicações do PMMA. No Brasil, o PMMA para preenchimento subcutâneo precisa ser registrado na Anvisa, pois é um produto de uso em saúde da classe IV (máximo risco). De acordo com o órgão, há registros de produtos para essa finalidade há mais de 10 anos no Brasil. Disponível em acesso em 15 set. 2023. 7 FERNANDES, Fernando Andrade. Sobre uma opção jurídico-política e jurídico-metodológica de compreensão das ciências jurídico-criminais. Liber Discipolurum, para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora: 2003, p. 57-59. 8 De acordo com o art. 13, caput, do Código Penal, o resultado (jurídico referente à ofensa à norma e naturalístico, em relação a haver uma modificação no mundo exterior), de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa; considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. 9 NUCCI, Guilherme. Manual de Direito Penal / Guilherme de Souza Nucci. - 16 ed. - Rio de Janeiro: Forense, 2020, pp. 313-318. 10 SOCIEDADE BRASILEIRA DE DERMATOLOGIA. Com má fama, PMMA não deveria ser usado para fins estéticos, dizem médicos. Disponível aqui, acesso em 21 mar. 2023. SOCIEDADE BRASILEIRA DE DERMATOLOGIA, SBD. CREMESP, SBCP E SBD pedem retratação à ANVISA sobre indicações do PMMA. Disponível aqui, acesso em 09 ago. 2022. 11 Agência Nacional de Vigilância Sanitária, ANVISA. Analisa o Projeto de Lei (PL) nº 403, de 2021, que "restringe a venda e utilização do polimetilmetacrilato (PMMA) para a realização de procedimentos estéticos". Disponível aqui, acesso em 29 ago. 2023. De acordo com o VOTO Nº 131/2021/SEI/DIRE3/ANVISA, Processo nº 25351.905324/2021-10, manifestou-se que concorda com a possibilidade de restringir a comercialização e uso desse tipo de produto para profissionais habilitados, visando a evitar maiores tragédias e mortes de pacientes. 12 KURIMORI, KLEBER TETSUO et al. Complicação grave do uso irregular do PMMA: relato de caso e a situação brasileira atual. Revista Brasileira de Cirurgia Plástica (RBCP). Disponível aqui, acesso em 19 jun. 23. 13 Myers S. D., Streiff M., Dulberger A. R., et al. (August 19, 2021) Polymethylmethacrylate Pulmonary Embolism Following Vertebroplasty. Cureus 13(8): e17314. DOI 10.7759/cureus.17314. 14 Exemplos de reportagens que falam do uso de PMMA e efeitos gravosos em modelos brasileiras. Disponível aqui e aqui - acesso em 15 set. 2023.
A teoria da perda de uma chance é aplicada na jurisprudência brasileira desde a década de 19901. Mas, foi no ano de 2005, por meio de um julgado proferido pelo Superior Tribunal de Justiça em um caso que envolvia um programa de premiação televisivo que tomou maior notoriedade no país2. Trata-se de uma teoria desenvolvida na França3, criada pela jurisprudência e dentro da qual ela tem o seu maior desenvolvimento e aplicação. E por isso, o objetivo presente é analisar como o Superior Tribunal de Justiça tem enfrentado a matéria. Para tanto, optou-se por analisar os julgados relativos à responsabilidade civil médica e, especialmente, quando se discute a probabilidade de cura ou sobrevida do paciente. É preciso compreender que para sua aplicação devem estar presentes todos os pressupostos da responsabilidade civil, de acordo com o posicionamento doutrinário e jurisprudencial, que são categóricos em afirmar a necessidade de restarem configurados: o ato antijurídico, o dano e o nexo causal4. O ato antijurídico será avaliado de acordo com os ditames existentes para sua configuração, isto é, a contrariedade ao direito em si5. Ocorre que os pressupostos do dano e do nexo causal serão avaliados de forma diversa, por meio de uma lente que tem como enfoque não o resultado suportado pela vítima. Isso não significa dizer que há ausência de dano, mas sim que haverá um dano final, relativo ao total suportado pela vítima e um dano chance, que se refere a probabilidade perdida. Este último é que será reparado desde que seja "real, atual e certo, dentro de um juízo de probabilidade, e não de mera possibilidade"6. O dano chance é avaliado pela probabilidade de que a vítima teria uma vantagem esperada ou poderia obstar um prejuízo7, mas nenhuma das duas hipóteses acontecerá, porque houve uma interrupção indevida do desencadeamento de fatos que poderia alcançar este resultado. A primeira situação pode ser exemplificada pelo caso julgado do "Show do Milhão", em que uma candidata se submeteu a uma série de perguntas e ao final, caso acertasse a última questão, alcançaria o prêmio de R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais). Contudo, este último questionamento foi formulado equivocadamente. Isto porque, a pergunta era sobre o percentual de terras destinado aos indígenas na Constituição Federal. Ocorre que não há percentual definido constitucionalmente e, assim, todas as alternativas estariam erradas. A candidata desistiu e posteriormente, processou o programa, pois não havia resposta correta e com isso, ninguém ganharia o prêmio. Se a pergunta estivesse correta e com possibilidade de acerto, não é possível saber se a candidata acertaria, todavia, é possível concluir que havia probabilidade de acerto. E é esta probabilidade definida pelo número de alternativas existentes e que poderiam ser escolhidas, que se configura na perda da chance de obter uma vantagem8. Para a segunda hipótese, ou seja, quando o desencadeamento importará em obstar o prejuízo, é possível exemplificar casos médicos, no qual o paciente deseja estar curado de uma doença que lhe acomete, mas em razão de um erro médico (ato antijurídico), o profissional reduz as possibilidades concretas de cura do paciente, o que impede o tratamento adequado. Em razão das possíveis concausas de cura que possam restar configuradas, como o tipo de patologia, o estágio quando do diagnóstico e as reações pessoais ao tratamento, não é possível afirmar que uma correta atuação do médico resultaria sem dúvidas na cura total do paciente, mas diante das peculiaridades do caso é possível verificar a probabilidade de cura existente para um tratamento eficaz. Nos dois casos, o dano é a chance perdida, seja em obter a vantagem esperada, seja em obstar o prejuízo. Por isso, fala-se em dano chance e não dano final. Após verificada a probabilidade existente no momento da ocorrência do ato antijurídico, "o liame causal a ser demonstrado é aquele existente entre a conduta ilícita e a chance perdida, sendo desnecessário que esse nexo se estabeleça diretamente com o dano final"9. Diante da necessidade de estarem presentes os três pressupostos básicos da reparação, os quais serão estudados em relação ao dano chance, pode-se afirmar que há a possiblidade de aplicação da teoria em todos os possíveis casos de responsabilização, inclusive para atos médicos, conforme o entendimento da doutrina e da jurisprudência da corte superior que entende ser "plenamente cabível, ainda que se trate de erro médico, acolher a teoria da perda de uma chance para reconhecer a obrigação de indenizar (...)"10. Em acórdão proferido pela Ministra Nancy Andrighi, foram analisados os argumentos contrários a aplicação da teoria da perda de uma chance para atos médicos. Mas, todos os argumentos foram confrontados e afastados para concluir pela possível e necessária aplicação da teoria. O julgamento foi proferido em processo no qual a paciente diagnosticada com câncer de mama foi submetida a masectomia parcial. Contudo, este não seria o tratamento adequado, mas sim a masectomia radical e, também, era necessária a recomendação de quimioterapia. Diante do inadequado tratamento, a paciente veio a óbito em decorrência da doença. Entendeu-se que o erro médico frustrou a possibilidade de cura da paciente. A responsabilidade do médico configura-se pelo "fato é que a chance de viver lhe foi subtraída, e isso basta."11 Neste caso, não apenas se verificou a possibilidade da aplicação da teoria nos casos médicos, mas, também, considerou-se que a perda da chance de tratamento é uma chance reparável. E para saber se pode ou não existir a reparação é preciso fazer o mesmo raciocínio lógico para o dano final, isto é, avaliar se é um interesse juridicamente relevante que foi lesado12. A chance da sobrevida se caracteriza quando o ato médico diminui ou afasta a possibilidade de cura e tratamento esperados13. Ela está "ligada não à vida, mas à sobrevivência, não a perda de um processo, mas ao seu êxito e não a permanência de uma enfermidade, mas de sua cura"14, relacionados com direitos fundamentais decorrentes da dignidade da pessoa humana e, portanto, tutelado pelo direito. O Superior Tribunal de Justiça entende que a mera chance de sobrevida é reparável por ser juridicamente relevante. Este foi o posicionamento do voto do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva no Recurso Especial n.º 1.335.622/DF, ao julgar o processo proposto em razão do falecimento de uma criança que contava, à época, com oito meses de vida. A criança inicialmente foi atendida por um hospital, no qual houve o seu internamento. Com o agravamento do quadro clínico, os médicos recomendaram que a paciente deveria ser encaminhada a outro local com melhores recursos. Os pais foram instruídos a proporem ação judicial que permitisse a internação da menor neste hospital, cujo atendimento seria particular. Proposta a ação e obtida a liminar, o médico que acompanhava o quadro clínico da menor, entrou em contato com a médica plantonista do hospital, mas foi informado que era necessário o envio da decisão. O mesmo médico imprimiu uma cópia e pessoalmente encaminhou para a imediata transferência da paciente, mas novamente houve a negativa do internamento, por entenderem que não era válida a cópia da internet. Em razão disso, a paciente foi mantida em ventilação mecânica em equipamento ultrapassado e veio a falecer. Os pais propuseram ação em face do hospital que recusou o atendimento, mesmo com a ciência da gravidade e emergência existentes na situação, bem como de liminar concedida e que determinava o seu internamento. O hospital foi condenado ao pagamento de indenização, porque resto comprovado que "caso o tratamento fosse realizado, poderia a filha dos autores ter tido a chance de, ao menos, sobreviver"15 e esta chance foi considerada como reparável, pois se repara não a cura em si, mas a impossibilidade do seu tratamento que postergaria a vida dessa menor. A partir deste julgado, a corte superior adotou o posicionamento de que "A simples chance (de cura ou sobrevivência) passa a ser considerada como bem juridicamente protegido, pelo que sua privação indevida vem a ser considerada como passível de ser reparada."16 Outros casos passaram a ter o mesmo entendimento. Como o julgamento do processo em que uma paciente que era acometida por leucemia sofreu tonturas, desmaiou e veio a óbito por traumatismo craniano. No caso, a descrição dos fatos revela que, por diversas vezes, a paciente esteve no hospital com sintomas que poderiam levar a crer da sua patologia, o que seria constatado por um simples hemograma completo. Não há certeza de que a queda foi ocasionada única e exclusivamente pela doença que lhe acometia, mas há certeza de que o melhor atendimento e verificação em tempo da sua doença teria evitado o mal maior. Por isso, entendeu-se que o erro de diagnóstico "retirou da paciente uma chance concreta e real de ter o mal que a afligia corretamente diagnosticado e de ter um tratamento adequado, ou seja, de obter uma vantagem"17. Por ser reparável o dano chance e não o dano final, o valor da indenização também não pode se referir ao valor total. Como por exemplo, no julgamento proferido pelo Ministro Og Fernandes. Neste caso, uma paciente sofreu uma parada cardíaca e o seu marido entrou em contato com o serviço de emergência do Município. Ocorre que o atendimento foi inadequado e contrariou aos protocolos existentes, pois não houve a transferência da ligação para um médico responsável e, ainda, o atendente informou a impossibilidade de deslocamento de uma ambulância, porque a que estava no local estaria estragada, sem ao menos requerer o deslocamento de outra ambulância em localidade mais próxima. Em razão disos, o marido da vítima, amputado de uma mão, apesar de suas dificuldades físicas, foi obrigado a colocar a esposa em veículo de passeio e levar até o pronto socorro mais próximo, quando ela veio a óbito18. O Superior Tribunal de Justiça entendeu pela perda da chance de sobrevida, ante o atendimento inadequado do atendente e arbitrou a indenização no percentual de 20% (vinte por cento) sobre os valores usuais de indenização por morte de ente querido da família19. Assim, tem-se que o Superior Tribunal de Justiça entende pela aplicação da teoria da perda de chance para casos médicos e considera a impossibilidade de cura ou sobrevida como reparável (dano chance), uma vez que juridicamente relevante. Sendo que a indenização deverá considerar a chance perdida e a quantia que seria arbitrada para o dano final. __________ 1 GONDIM, Glenda Gonçalves. A reparação civil na teoria da perda de uma chance. São Paulo: Editora Clássica, 2013, p. 59. Disponível em < https://editoraclassica.com.br/livro/a-reparacao-civil-na-teoria-da-perda-de-uma-chance> 2 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 788.459/BA. Quarta Turma. Relator Ministro Fernando Gonçalves. Julgamento em 08 de novembro de 2005. Publicado no Diário da Justiça de 13 de março de 2006, p. 334. 3 GONDIM, Glenda Gonçalves. Obra citada, p. 55. 4 Neste sentido, transcreve-se trecho da ementa do julgamento proferido pela Ministra Nancy Andrighi, no Recurso Especial n.º 1.666.388/SP, do qual se extrai a seguinte conclusão: "A visão tradicional da responsabilidade civil subjetiva; na qual é imprescindível a demonstração do dano, do ato ilícito e do nexo de causalidade entre o dano sofrido pela vítima e o ato praticado pelo sujeito; não é mitigada na teoria da perda de uma chance." (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial n.º 1.662.338/SP. Terceira Turma. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julgamento em 12 de dezembro de 2017. Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 02 de fevereiro de 2018.) 5 THIBIERGE, Catherine. Libres propos sur l'evolution du droit de la responsabilité. Revue Trimestrielle de Droit Civil, Paris, v.3, p.561-584, jul./set. 1999, p. 572. 6 BRASIL. Recurso Especial n.º 1.104.665/RS. Terceira Turma. Relator Ministro Massami Ami Uyeda. Julgamento em 09 de junho de 2009. Diário da Justiça eletrônico em 03 de agosto de 2009. 7 Esta referência é adotada em julgados do Superior Tribunal de Justiça, nos seguintes termos: "(...) 2. A teoria da perda de uma chance comporta duplo viés, ora justificando o dever de indenizar em decorrência da frustração da expectativa de se obter uma vantagem ou um ganho futuro, desde que séria e real a possibilidade de êxito (perda da chance clássica), ora amparando a pretensão ressarcitória pela conduta omissiva que, se praticada a contento, poderia evitar o prejuízo suportado pela vítima (perda da chance atípica)." (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 1.677.083/SP. Terceira Turma. Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Julgamento em 14 de novembro de 2017. Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 20 de novembro de 2017). 8 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 788.459/BA. Quarta Turma. Relator Ministro Fernando Gonçalves. Julgamento em 08 de novembro de 2005. Publicado no Diário da Justiça de 13 de março de 2006, p. 334. 9 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo interno no Recurso Especial n.º 1.923.907/PR. Terceira Turma. Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Julgamento em 20 de março de 2023. Publicado no Diário da Justiça Eletrônico de 23 de março de 2023. 10 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo em Recurso Especial n.º 553.104/RS. Quarta Turma. Relator Ministro Marco Buzzi. Julgamento em 01 de dezembro de 2015. Publicado no Diário da Justiça eletrônico em 07 de dezembro de 2015. 11 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial n.º 1.254.141/PR. Terceira Turma. Relatora Ministra Nancy Andrighi. Julgamento em 04 de dezembro de 2012. Publicado no Diário da Justiça eletrônico em 20 de fevereiro de 2013.   12 LORENZO, Miguel Federico de. El daño injusto en la responsabilidad civil: alterum non laedere. Buenos Aires: Abeledo - Perrot, 1997, p. 51. 13 KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. 8ª ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 75.   14 CHABAS, François. La perte d'une chance em droit français. In: GUILLOD, Olivier (Ed.). Développements recents du droit de la responsabilité civile. Zurique: Schulthess Polygraphischer Verlag, 1991, p. 133. [tradução livre] 15 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 1.335.622/DF. Terceira Turma. Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Julgamento em 18 de dezembro de 2012. Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 27 de fevereiro de 2013. 16 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 1.335.622/DF. Terceira Turma. Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Julgamento em 18 de dezembro de 2012. Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 27 de fevereiro de 2013. 17 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n.º 1.677.083/SP. Terceira Turma. Relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. Julgamento em 14 de novembro de 2017. Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 20 de novembro de 2017. 18 Informações constantes do acórdão recorrido. (BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Apelação Cível n.º   0000845-85.2011.8.24.0007. Quinta Câmara de Direito Público. Relator Hélio do Valle Pereira. Julgamento em 23 de fevereiro de 2021). 19 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial n.º 2.000.983/SC. Segunda Turma. Relator Ministro Og Fernandes. Julgamento em 02 de agosto de 2022. Publicado no Diário da Justiça eletrônico de 09 de agosto de 2022.
Desde o final do Século XX, vivemos a chamada "sociedade de risco" em que as espécies de responsabilidade civil "clássicas" - subjetiva e objetiva - e a teoria do risco não são suficientes a solucionar danos. Adicione-se, então, os princípios da precaução e da prevenção - funções preventivas da responsabilidade civil - parar tentar minimizar os riscos.  O princípio da precaução ("Princípio") se origina na Alemanha, em idos de 1970, associado ao Direito Ambiental. O Princípio:  (.) é aquele que trata das diretrizes e valores do sistema de antecipação de riscos hipotéticos, coletivos ou individuais, que estão a ameaçar a sociedade ou seus membros com danos graves e irreversíveis e sobre os quais não há certeza científica; esse princípio exige a tomada de medidas drásticas e eficazes com o fito de antecipar o risco suposto e possível, mesmo diante da incerteza1.  O Princípio é composto por dois elementos básicos: (1) incerteza científica (incerteza, razoável e efetiva, de que um dano grave / irreparável ocorrerá); e (2) risco de dano (grave e irreversível). Há, ainda, duas condições formais do Princípio: (1) incerteza científica e a respectiva medida adotada deve ser transitória; e (2) pesquisa investigativa deve se manter em andamento - adotar medida para evitar o risco não isenta a pesquisa e análise de medida definitiva ao risco.  O Princípio não pode - e não deve - ser aplicado indiscriminadamente, a qualquer situação, fator, serviço, produto. Ao contrário, deve haver sopesamento entre liberdade e direitos de indivíduos e empresas perante novas tecnologias; bem como necessidade de reduzir riscos nocivos das novas tecnologias. Assim, o Princípio deve ser aplicado considerando cautela, equilíbrio, razoabilidade e proporcionalidade. "[O] princípio da precaução não é um princípio da fatalidade, mas um princípio da inteligência"2. O Princípio foi amplamente recepcionado pelo ordenamento jurídico brasileiro, sendo hoje utilizado na proteção do meio ambiente, saúde e defesa do consumidor. Resta a pergunta: como aplicar o Princípio? Não há resposta fixa, inelástica. Ao contrário, as formas de o aplicar são indeterminadas, inúmeras, para que se analise e determine, caso a caso, qual a melhor forma de aplicar o Princípio. O que se pode sugerir são critérios para implementar o Princípio, a saber: (1) existência de risco de dano grave ou irreversível; (2) incerteza científica (constatada ou em início); (3) proporcionalidade e razoabilidade entre a medida adotada e seus efeitos; e (4) revisão da medida adotada após determinado período. Tudo isso baseado em análise científica e técnica sérias, utilizados os melhores conhecimentos e tecnologia da época, frente também aos fatores sociais, econômicos e ambientais. Defendemos que a maneira mais importante de implementar, aplicar, o Princípio, é via informação, porque (1) é a forma mais barata e eficaz de implementação do Princípio; (2) não interfere no desenvolvimento da tecnologia; e (3) permite a livre e consciente escolha do indivíduo. Contudo, veja que não é qualquer ato de informação que será eficaz, apenas o informar compreensível, adequado, suficiente, verídico, tempestivo e atual. Pois bem. A informação e o princípio da precaução são aplicados aos Organismos Geneticamente Modificados ("OGMs") por simples razão: não se concluiu, em termos técnico-científicos finais, sobre os riscos de consumo de alimentos OGMs. Felizmente, o Brasil adotou a rotulagem obrigatória para alimentos OGMs, sem relacionamento limite máximo de OGM em alimentos (via batalha judicial vitoriosa para o último aspecto). Contudo, sustentamos críticas: o símbolo (triângulo em amarelo e preto) é agressivo, remete a substância venenosa, perigo, atenção e cuidado; desvirtualizando a sua finalidade.  A revisão do símbolo e modo de comunicação, então, a nosso ver, é medida indiscutível e imperiosa. Propomos o "combo" de (1) informações escritas e (2) visuais (símbolo); ausente linguagem técnica e de maneira extremamente objetiva.  Quanto às informações escritas, veja exemplo do que sugerimos: Quanto ao símbolo, proximidade com o símbolo adotado pelos Estados Unidos parece funcionar. Isto é, designo que informe a presença de OGMs no alimento, em cores preto e branca, com a frase simples e direta "contém OGMs".  Símbolo e frase de alerta devem ser inseridos no painel principal do alimento; enquanto as informações escritas devem ser inseridas no painel da lista de ingredientes e da tabela de informação nutricional.  Considerações adicionais: informar, pura e simplesmente, não soluciona o impasse. Medidas complementares devem ser adotadas pela sociedade, cidadãos, cientistas, empresas privadas, ONGs, associações de defesa do consumidor e Poder Público. As que se destacam são: educação e participação.  Educação é via para criar consciência social. A cada uma das partes, dadas limitação e competência, cabe auxiliar e promover a educação sobre os OGMs. Tarefa árdua e complexa, considerando a taxa alta de analfabetismo do Brasil. Educados e informados, deve-se instigar a participação em processos decisórios envolvendo OGMs. Aqui, valem as considerações para (des)contruções técnicas sobre os alimentos OGMs, bem como quanto ao modo de informar. Consultas e audiências públicas devem ser efetivamente participativas, de modo que o Poder Público considere o posicionamento da sociedade (consumidores e empresas).  Temas associados aos alimentos OGMs, especificamente o direito à informação, continuarão a ser discutidos: há discussões técnico-científicas que devem ser revisadas (vis a vis o desenvolvimento técnico atual e futuro); e verificar-se-á o aumento na (já presente) discussão sobre a rotulagem obrigatória nos Estados Unidos. País que seria defensor ferrenho dos alimentos OGMs (frente ao posicionamento conservador da Europa), passa a impor a rotulagem obrigatória em 2022, que não foi muito bem-vista pela sociedade, notadamente empresas do setor.  O Brasil já teria passado pelo nível primário, de implementação. Dizer "em tese" é preciso, porque nem todas as empresas do setor de alimentos "adotaram" a rotulagem obrigatória. Observação baseada nas análises técnicas realizadas por órgãos de defesa do consumidor.  No passado, em curto período de tempo, houve uma intensificação da fiscalização de presença / comunicação devida sobre os OGMs em alimentos. As medidas passaram, eventuais infrações continuaram (e continuam).  A nosso ver, é imprescindível um controle administrativo "pesado e poderoso", bem como o desenvolvimento de instrumentos jurídicos eficazes para repreender e cobrar o atendimento à legislação. A individualidade em cada caso é importante, de maneira que haja a devida fiscalização, respectiva análise e imposição de penalidade.  "Em conclusão, o tema é de fundamental importância e não deixará de ser discutido, ao menos, até que se possua um posicionamento formal e definitivo da ciência sobre os OGMs. Enquanto isso, deve-se informar a sociedade, educar, conscientizar e instigar a participação de todos em processos decisórios. Deve-se também continuar a investigar os alimentos OGMs, sobretudo seus riscos. (...) Toda pessoa possui o direito de saber o que está consumindo e de escolher se consome ou não determinado produto"3. __________ 1 LOPEZ, Teresa Ancona. Princípio da precaução e evolução da responsabilidade civil. São Paulo: Quartier Latin, 2010, p. 103. 2 No original: "[L]e principe de précaution n'est pas un príncipe de fatalité, mais un principe d'intelligence". (GRISON, Denis. Qu'est-ce que le príncipe de précaution? Paris: Libraire Philosophique J. Vrin, 2012, p. 70). 3 JAMBOR, Daniela Guarita. Organismos Geneticamente Modificados: precaução, informação e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 166.
Recentemente, publiquei artigo aqui no Migalhas apresentando um critério de aferição de constitucionalidade de normas expedidas pelos Conselhos profissionais de saúde. Naquela oportunidade, defendi que a técnica de controle passa pela compreensão de que, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, esses Conselhos fazem parte do SUS. Assim o sendo, suas normas devem estar vocacionadas aos objetivos desse sistema, quais sejam a satisfação do direito fundamental da saúde, priorizando ações preventivas e de proteção, sem prejuízo das assistenciais. Quanto ao tema específico da assistência, a técnica de controle passa pela análise do acesso. Desse modo, se a norma editada por um dado Conselho diminuir o acesso às ações e serviços de saúde, haverá sinal efetivo de inconstitucionalidade, já que na contramão dos objetivos do SUS. Ao final do artigo, incomodou-me a ideia de não apresentar um pensamento propositivo. Ou seja, de qual é a melhor técnica para que os Conselhos venham a produzir normas que, para além de estar em sintonia com a Constituição, possam efetivamente colaborar com o desenvolvimento da saúde no país. Esse artigo nasce dessa inquietação. O ponto inaugural da produção normativa dos Conselhos parte da compreensão de que a norma é veículo para modificar a regulação setorial. É fundamental compreender que regulação não é sinônimo de regulamentação. Esta última (pela qual se proíbe ou se condiciona certas condutas) é, em verdade, ferramenta da primeira. A regulação é uma técnica de intervenção do Estado em dado setor da sociedade, com o objetivo de orientar que as atividades desse setor colaborem com alcance de certos objetivos públicos. Pensando na saúde, a regulação haverá, por determinação constitucional, de orientar os atores desse setor a moldar suas atividades a bem de colaborar (direta ou indiretamente) com a missão de satisfação respectivo do direito fundamental. A regulação é função do Estado, tal como define o artigo 174 da Constituição Federal. Pode ser coercitiva (sinônimo de regulamentação), mas não necessariamente. Há outras formas de o Estado regular a conduta de agentes privados, seja criando incentivos para a prática de certas condutas, seja pela imposição de ônus para atividades que se desvirtuem dos objetivos regulatórios. Mas a regulação irá tradicionalmente implicar novos custos ao regulado. Daí porque nem sempre a regulação é um bom negócio, na medida em que essa ampliação importará no aumento do preço da prestação, tendo potencial de diminuir o acesso. Além disso, provavelmente terá impacto econômico e na oferta de trabalho, desencadeando uma sequência de impactos que transbordam o próprio objetivo que se pretende atingir com a regulação. Portanto, o agente regulador deve ter em mente que sua missão é de equilibrar múltiplas questões e interesses, de modo que o produto de sua regulação tenha maior capacidade de contribuir para os objetivos ao qual se destina, conduzindo as condutas dos agentes privados para essa finalidade, sem onerar em demasiado a atividade regulada e as demais atividades a ela subjacentes. É legítimo trabalho de um equilibrista. Por isso, a primeira missão do agente regulador é decidir se irá ou não se valer da regular. Quando a decisão for positiva, compreendendo que o incremento dos ônus sociais derivados da regulação é sopesado por vantagens outras, deverá definir quais alternativas regulatórias se valerá: coerção, incentivos positivos para adoção de certas posturas ou incentivos negativos para frear condutas indesejadas. A decisão de se e como regular, logo se vê, não trivial. Pensando na regulação produzida pelos Conselhos profissionais de saúde, o primeiro passo para essa tomada de decisão é compreender seu lugar no SUS e que, como integrante desse sistema, sua atividade regulatória deve se orientar à ampliação das chances de satisfação do direito fundamental à saúde. A partir dessa compreensão, os Conselhos se valem de um meio (regulação da atividade profissional) para o atingimento de um fim (atendimento do direito fundamental à saúde). Regulação não é, claro, uma ciência exata. Mas têm mais chances de acertar na calibragem regulatória aqueles que se valem das ferramentas hoje disponíveis a qualquer agente regulador. Ainda que desnecessário fosse, todas elas têm hoje previsão legal expressa. Servem, em boa medida, para democratizar o processo de produção regulatória e assim, ampliando o diálogo com a sociedade, permitir que a regulação seja resultado de um processo mais participativo e menos impositivo. Esse processo não só aumenta as chances de acerto na regulação, como diminui os riscos de impactos negativos à sociedade que sequer foram cogitados pelo regulador. E, no âmbito dos Conselhos profissionais, isso me parece fundamental, especialmente para impedir que a regulação deles derivada seja fruto da percepção única dos que compõem aquela determinada profissão de saúde. Afinal, a regulação desses Conselhos é meio para atendimento de finalidades que transbordam o interesse de determinada categoria profissional. As ferramentas regulatórias mais consagradas, e que já se viu utilizadas ocasionalmente pelos Conselhos, são as audiências e consultas públicas. Por meio desses instrumentos, os Conselhos deverão interagir publicamente, de modo a colher impressões de como a pretensa regulação irá afetar os múltiplos setores da sociedade. Além disso, há de convidar aqueles atores que podem ter sua atividade mais intensamente atingidas, como a ANVISA, ANS, Ministério e secretarias de saúde, por exemplo. Mas a consulta e audiência públicas não são as únicas ferramentas disponíveis. Talvez uma significativamente relevante é a AIR (Análise de Impacto Regulatório). Segundo o artigo 5º da Lei da Liberdade Econômica nº 13.874/2019, sua utilização é obrigatória, toda vez que órgãos e entidades estatais (tal qual os Conselhos) editarem normas "de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados". A AIR, aliás, foi devidamente regulamentada (vide decreto 10.411/2020). Por esse regulamento, só está dispensada o AIR quando a regulação a ser produzida for de baixo impacto, conceito assim compreendido como aquele que: "não provoque aumento expressivo de custos para os agentes econômicos ou para os usuários dos serviços prestados; não provoque aumento expressivo de despesa orçamentária ou financeira; e não repercuta de forma substancial nas políticas públicas de saúde, de segurança, ambientais, econômicas ou sociais" (alíneas do inciso II do artigo 2º do decreto 10.411/2020). A AIR é uma atividade preditiva, aplicada com vistas a antever os impactos da regulação num dado setor e na sociedade como um todo. Seus resultados permitem melhor calibrar a regulação, auxiliando na produção material de norma, orientando se o seu conteúdo seja coercitivo ou de fomento, bem como definindo mitigadores voltados à diminuição ou compensação pelos impactos negativos derivados da regulação. Há técnicas específicas para elaboração dessas análises, tal como aquelas referidas nas alíneas do artigo 7º do decreto 10.411/2020: análise multicritério; análise de custo-benefício; análise de custo-efetividade; análise de custo; análise de risco; ou análise risco-risco. Agências reguladores independentes (tal como ANVISA e ANS) valem-se há mais de década da AIR e certamente podem exportar know-how aos Conselhos profissionais, auxiliando na execução da ferramenta a partir das melhores práticas. Outras ferramentas, que não serão aprofundadas nesse artigo, são igualmente úteis aos Conselhos profissionais de saúde. Refiro aqui, por exemplo, ao sandbox regulatório (ambiente regulatório experimental), com previsão expressa no artigo 11 da na Lei Complementar do Empreendedorismo Inovador nº 182/2021. Trata-se de técnica valiosíssima, especialmente diante da intensidade da inovação tecnologia experimentada no setor da saúde. Além disso, é possível relembrar da revisão regulatória, da agenda regulatória e da Análise de Resultado Regulatório (ARR). Fato é que atualmente a regulação da saúde sofre de uma enorme disformidade técnica. Isso impacta negativamente o setor e, por consequência, impõe obstáculo maior à satisfação do direito fundamental à saúde. Há, de um lado, agências regulatórias independentes, como ANVISA e ANS. Regidas pela Lei Geral das Agências (lei 13.848/2019) e por leis próprias, trabalham com as técnicas regulatórias aqui referidas e tantas outras igualmente sofisticadas. De outro, os Conselhos profissionais de saúde, compostos por representantes eleitos pelos profissionais da área. Esses dirigentes dominam, em maior ou maior medida, o conteúdo da ciência da área da saúde e a prática profissional. Mas a eles faltam, visivelmente, instrumentos e conhecimento técnico capazes de auxiliar na produção da boa regulação. Ambos os atores regulatórios erram. Mas erra menos quem se vale de uma técnica de produção da regulação, combinada com objetivos bem definidos. Espero ter alcançado o objetivo de apresentar um texto propositivo. Busquei apresentar que a decisão por regular e complexa e, uma vez positiva, o caminho para alcançar uma regulação de qualidade é recheado de desafios. Apresentei algumas das ferramentas mais eficientes para ampliar as chances de atingir esse resultado ótimo. Não faltando esforço e espírito de contribuição, torço para que esse artigo seja a centelha para que os Conselhos profissionais de saúde possam efetivamente começar a se valer das melhores práticas regulatórias.
As ações de saúde no Brasil são fortemente impactadas pelas normas expedidas pelos Conselhos profissionais de saúde. Não é exagerado concluir que há uma concorrência normativa entre agências reguladoras, como a ANVISA, por exemplo, e os Conselhos profissionais de saúde. Embora atuem como agentes reguladores da profissão, os Conselhos acabam por regular as próprias ações de saúde no país. Um bom exemplo disso está na recente polêmica para a utilização terapêutica de produtos à base de canabidiol. Já há algum tempo, a ANVISA vem autorizando a distribuição desses medicamentos no Brasil. Diante do grau de risco atrelado à utilização desses medicamentos, a ANVISA determinou a apresentação de receita médica para aquisição. Em 2022, o Conselho Federal de Medicina editou o resolução 2.324, a qual "aprovou o uso do canabidiol para tratamento" de certas doenças. A resolução foi suspensa temporariamente, diante da abertura de consulta pública (vide Resolução CFM 2326/2022). Independentemente da suspensão, fato é que, caso volte a vigorar a norma, surgirá enorme limitação para a autorização da ANVISA. Ainda que não submetida hierarquicamente ao CFM, há alguma diminuição da eficácia da norma da ANVISA. É que, se a norma do CFM diminui o espaço para profissionais médicos indicarem a medicação a pacientes, e a prescrição médica é condição para acesso ao medicamento, haverá, por consequência, a própria inutilização de parcela da norma da ANVISA, em razão de limitadores postos pela resolução do CFM. Essa limitação irá impactar tanto o sistema público, quanto o privado, já que em ambos a prescrição da medicação caberá ao profissional médico. Não quero aqui fazer um juízo de valor quanto ao acerto da norma do CFM, mas sim chamar a atenção para um fenômeno pelo qual as normas de Conselhos profissionais têm força para afetar todo o sistema de saúde brasileiro, indo muito além da esfera circunscrita à profissão. Mas o tema da participação dos Conselhos profissionais no sistema de saúde brasileiro não estava à mesa, quando de sua criação. E isso porque a saúde só passou a ser efetivamente um sistema no Brasil com o advento da Constituição de 88. Os Conselhos profissionais, por sua vez, foram criados muito antes, e por isso, não havia com antever essa relevância estrutural. Sua concepção se voltou a desenhar requisitos mínimos para o exercício das profissões de saúde, especialmente numa época em que a existência de práticos (pessoas sem formação específica, mas que exerciam cuidados de saúde a partir de certo conhecimento empírico) era uma realidade. Assim, esses Conselhos criavam normas que modulam o exercício das profissões e, simultaneamente, julgavam e sancionavam os profissionais que as descumprissem. Para se ter ideia disso, basta olhar os Conselhos Regionais e Federal de Medicina, criados pela Lei nº 3.268, em 1957. Segundo o artigo 2º da referida Lei, a competência dos Conselhos era a de zelar pela ética profissional, bem como pelo prestígio e bom conceito da profissão. Mesmíssima dicção tem a Lei nº 4.324 de 1964, criadora dos Conselhos Federal e Regionais de Odontologia. A preocupação com a saúde, individual e coletiva, era reflexa aos Conselhos. Afinal, como autarquias, eram parte da estrutura estatal, a qual não tinha como finalidade o atendimento à saúde da população. Em resumo, a saúde não era um direito do cidadão a ser satisfeito pelo Estado, não sendo, à época, de competência normativa dessas entidades profissionais. Mas isso mudou radicalmente quando do advento da Constituição de 88. A saúde não só se consolidou como um direito, mas de categoria fundamental. Além de previsão expressa como direito social (que é direito fundamental de segunda geração), a Constituição cuidou de direcionar o dever de atendimento a esse direito ao Estado (artigo 196). Mais do que impor ao Estado o dever de satisfação do direito à saúde do cidadão, a Constituição cuidou de definir como o Estado haveria de atuar para cumprir sua missão. No próprio artigo 196, a Constituição coloca a prestação de serviços voltados à recuperação do indivíduo como última alternativa. À frente estão ações de proteção, promoção e promoção da saúde. Portanto, é dever do Estado criar camadas para que o indivíduo tenha uma vida saudável e que não adoeça. Se tais objetivos não forem alcançados, a assistência integral surge como obrigação prestacional. Além disso, a Constituição, ainda no artigo 196 (que se vê, de conteúdo riquíssimo), dispõe que é dever do Estado garantir, mediante políticas públicas (sociais e econômicas), aos cidadãos acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde. E aqui está a chave para se compreender os contornos da atuação normativa dos Conselhos profissionais de saúde. Seguem eles como autarquias integrantes da estrutura estatal. Sua autonomia se limita às esferas administrativa e financeira. Sua função, como integrantes do Estado que o são, também é a satisfação do direito à saúde (a ser exercida dentro de sua função ético-normativa), não estando mais voltados simplesmente a garantir "bom nome e prestígio profissional". A regulação da atividade profissional é agora é meio para o atingimento da finalidade de consagração do direito fundamental à saúde. Ou seja, não existe autonomia ou liberdade normativa aos conselhos de profissões de saúde. Suas normas não mais são "decisões interna coporis". Os Conselhos profissionais, diante da virada constitucional de consagração da saúde como direito fundamental a ser satisfeito pelo Estado, passam, assim, a ser parte integrante do SUS. Aliás, o inciso II do artigo 200 da Constituição deixa evidente que uma das competências do SUS é a ordenação da formação dos recursos humanos na área da saúde. A ordenação, sinônimo de regulação, tem como parâmetro a construção das profissões para que os desígnios do SUS sejam atendidos. É função a ser exercida tanto no período da graduação (técnica ou profissional), quanto do exercício profissional, moldando sua execução de maneira sinérgica às finalidades do SUS. Compreendidas as condições constitucionais, que conformam as atividades dos Conselhos profissionais de saúde às normas do SUS, tem-se adequado parâmetro de controle de constitucionalidade das normas editadas pelos Conselhos. Está-se a falar que as normas reguladoras editadas por essas autarquias devem ir ao encontro das finalidades do SUS, em especial: acesso universal e igualitário com prioridade às ações de promoção e prevenção da saúde, sem prejuízo das assistenciais. Dessa forma, normas que limitarem o acesso às ações e serviços de saúde hão de ser consideradas inconstitucionais, ainda que editadas anteriormente à Constituição de 88 (diz-se aqui da não recepção dessas normas pelo ordenamento jurídico vigente). Esse raciocínio, aliás, é aplicável também às leis anteriores à Constituição, não raramente utilizadas como base de legitimidade para a edição de normas reguladoras por parte dos Conselhos. Uma das formas adequadas para o exercício desse controle de constitucionalidade é a análise da motivação do ato de resolução. Os Conselhos devem explicitar e comprovar as razões pelas quais as normas que editam estão em consonância com os objetivos do SUS. Certamente, não devem ser consideradas inconstitucionais aquelas normas que hoje vigem, mas não estão devidamente motivadas. No entanto, se desafiadas no âmbito do Judiciário, o ônus de demonstrar a compatibilidade com os objetivos do SUS recairá sobre os Conselhos que editaram normas desmotivadas. De outro lado, se devidamente motivadas, caberá a quem entender em contrário, provar em Juízo que a motivação apresentada na norma é inverídica e que, ao invés de colaborar, é obstáculo à missão estatal da satisfação do direito à saúde.
segunda-feira, 15 de maio de 2023

Slow Medicine: simplesmente medicina

Em um tempo de açodamento e superficialidade nas relações, o sopesamento de valores  e  a conduta reflexiva nem sempre são bem vistas e ficam cada vez mais em desuso. Isso em acentua em um cenário de desenvolvimento em volume exacerbado de modalidades tecnológicas, mediadas ou não pela Inteligência Artificial, que culminam nas mais variadas possibilidades de dispositivos aplicáveis em saúde e que, em não raras vezes, servem como suporte para sustentar narrativas que pregam soluções simples e rápidas para problemas complexos. Consequentemente, às mentes menos despertas, isso pode gerar uma espécie de encantamento que chega a ser pueril, pela falta de letramento mínimo das soluções que são oferecias, fato que pode atingir tanto o público leigo como profissionais que não tenham o mínimo de massa crítica aguçada. Então, a pressa toma conta de todas as vertentes da sociedade, afinal esse é o elemento que se traduz como o traço característico da atualidade. Porém, essa mesma pressa pode levar a decisões não muito acertadas. O paciente, por sua vez, que está cada vez mais impaciente com tudo, quer respostas na mesma velocidade, pois acredita que a tecnologia tem a salvação para tudo, todavia, por falta de conhecimento, desconsidera a existência das variantes inerentes a qualquer ecossistema. Com efeito, é bem verdade que a tecnologia e o avanço científico quando aplicados adequadamente trazem muitos ganhos, inclusive na assertividade que essas ferramentas de apoio à assistência da saúde possam causar no diagnóstico e tratamento, algo que, invariavelmente, causará reflexos na forma de atuar do profissional da saúde.  Contudo, apesar do propalado acréscimo trazer, em alguns aspectos, a possibilidade de aumento de segurança para o paciente, jamais reduzirá a Medicina a uma certeza da exatidão matemática tendente a se resumir o ato a uma obrigação de resultado. Isso porque, a Medicina guarda aspectos imponderáveis, próprios de peculiaridades e reações de um organismo vivo, que, por vezes, pode ser individualizável ao paciente, e impossível de controle. Por esse motivo, cada vez mais é necessário verificar concretamente se essas aludidas novas tecnologias tão propagadas pelos mais variados e, por vezes, ardis instrumentos de marketing, de fato, estão maduras para o seu uso, ou seja, se quando da finalização das etapas metodológicas para se atestar segurança e eficácia dos resultados das pesquisas ocorridas em ambiente controlado de laboratório, a fim de possibilitar a aplicabilidade no mundo real com existência de plena relação de efetividade. Nesse sentido, com o ímpeto de chamar a atenção e se apresentado sob a forma de revolução cultural contra a noção de que o que é mais rápido é sempre melhor, pauta-se a filosofia Slow, não com a proposta fazer tudo a um passo lento, mas fazer tudo na velocidade certa. Essa filosofia abrange várias vertentes como alimentação, estilo de vida, moda, sustentabilidade e saúde. Notadamente, dentro do escopo relacionado aos cuidados em saúde, a Slow Medicine - termo utilizado pela primeira vez pelo médico cardiologista  Alberto Dolara (2002)1 e traduzido no Brasil como Medicina sem Pressa - refere-se à busca por equilíbrio em detrimento a ênfase exagerada de processos rápidos na assistência, que levam à redução da qualidade e expõe o paciente a riscos desnecessários. Em realidade, o que se pretende é associar o termo Slow  Medicine a uma Medicina reflexiva, como forma de chamar a atenção para uma dimensão mais humana na assistência em saúde e, sobretudo, centrada nas necessidades do paciente. Destarte, é um apelo internacional por um cuidado mais consciente.2 Para tanto, atua com função educadora vislumbrando divulgação de informações amplas e robustas para auxiliar os pacientes nas melhores escolhas. Incentiva o autocuidado, ajuda o paciente e a comunidade na literacia em saúde 3, auxiliando na construção do conjunto de habilidades e competências que cada indivíduo possui para buscar compreender, avaliar e dar sentido às informações sobre saúde. Atualmente, em muitas situações profissionais que nada introjetaram do seminal objetivo do movimento apropriam-se do termo e o utilizam como forma de engajamento, publicidade e outras efemeridades. Por esse motivo é necessário destacar que Slow Medicine não é um mero anglicismo para fomentar uma nova grife, um modismo ou uma tendência passageira. Muito menos se pretende estabelecer como especialidade médica, certificação de boas práticas, ou na criação de relação de médicos diferenciados. Antes de tudo, a Slow Medicine pretende aprimorar a assistência com resgate de valores perdidos ao longo do tempo.4 Por esse motivo, apenas pretende a Slow Medicine reensinar os médicos a individualizarem suas condutas, desenvolver uma visão mais crítica a respeito das informações acessadas. Em suma, trata-se de uma filosofia e de uma prática em saúde que busca oferecer o melhor cuidado, baseando-se nas melhores evidências científicas, com foco centrado no paciente, elaborando decisões ponderadas e cautelosas e, sempre que possível, compartilhadas. Propõe um cuidado que busca a tecnologia apropriada à singularidade de cada paciente e de sua situação vivencial, tendo como premissa que nem sempre fazer mais significa fazer o melhor. Por isso que se arrima na fundamental necessidade de priorizar análise pormenorizada sobre a utilização dos novos tratamentos e meios procedimentos diagnósticos e se eles, realmente, trazem maiores benefícios do que riscos ao paciente. 5 O tempo é visto como elemento essencial, seja ele para ouvir, refletir, construir relações sólidas e duradouras entre médicos, pacientes, famílias e comunidade. Importante esclarecer, contudo, que o fato de um profissional seguir a filosofia e, por consequência, adotar uma postura slow, não significa dizer que precisará de mais tempo cronológico para estabelecer vínculos importantes e fazer avaliações acuradas em pouco tempo. É possivel ser treinado para otimizar o tempo e, principalmente, entender que quando estiver diante do paciente, deverá estar presente no tempo presente. Os profissionais de saúde atuam com atenção, equilíbrio e educação.6 Tudo começa a partir do diálogo cuidadoso com empatia e aproximação, segundo o qual se propõe entrevistar e examinar o paciente, equilibrar benefícios e danos das intervenções diagnósticas e terapêuticas, sendo ponderado para intervir quando os sintomas são indiferenciados,  comprometido com a observação como uma importante estratégia diagnóstica e terapêutica e cauteloso sobre a adoção de novos testes diagnósticos e terapias até que a evidência estabeleça seu valor.7 Existe o olhar humanizado, a escuta ativa e a conduta fundamentada na compaixão e no constante "colocar-se no lugar do outro". Busca identificar e reconhecer a singularidade, a capacidade e autodeterminação do paciente, objetivando encaixar suas características e história de vida, para que se sinta acolhido e colaborativo no processo do cuidado.  Para tanto, a autonomia do paciente é elevada a um patamar adequado, sendo que, há a aposição do conceito positivo de saúde, com foco no autocuidado, resiliência, e prevenção. No mesmo mote, considera os valores, expectativas e desejos do paciente como invioláveis por estar umbilicalmente vinculado com o fundamento da dignidade da pessoa humana.  Considera que é condição inerente da autonomia do paciente o direito de se expressar amplamente. O profissional, portanto, incentiva a comunicação honesta, ponderada e completa com o paciente, é respeitoso, acolhe e levar em consideração os valores, preferências. Nesse sentido,  reconhece o valor das narrativas individuais na prática clínica, não apenas para validar a experiência do paciente, mas também incentivar a criatividade e autorreflexão no médico, enveredando  para a Medicina Narrativa.8 O profissional com base na informação do paciente e dentro da autonomia técnica tem preparo para utilizar ferramentas mediadas pela Medicina Baseada em Evidências. Significa integrar a experiência clínica individual com as melhores evidências clínicas disponíveis a partir de pesquisas sistemáticas. Para tanto, é preparado para analisar estudos, desenhos de pesquisas, as metodologias aplicadas e se os resultados obtidos são factíveis. Logo, o termo slow em nada se vincula a uma medicina relaxada, indolente, preguiçosa, não resolutiva, e que leva muito tempo para tomar uma decisão e iniciar uma conduta. De certo, em muitas circunstâncias, a medicina deve ser rápida, ainda mais quando se deparam com situações de grave risco de vida. No entanto, é fundamental saber refletir sobre como lidar com uma doença, o significado da prevenção e do atendimento personalizado, saber avaliar criticamente os resultados de exames diagnósticos, saber adaptar as recomendações das diretrizes a cada paciente.9 Parte-se, então, de eixos arrimados na Medicina Sóbria, Respeitosa, Justa10 e honesta. Considera-se Medicina Sóbria, na ação com moderação, de forma gradual e sem desperdícios; Medicina Respeitosa, por cuidar da preservação da dignidade e dos valores de cada pessoa; e Medicina Justa, por estar empenhada em garantir o acesso a cuidados adequados para todos.  Por isso, não se trata de uma nova construção, mas um reenraizamento na essência da Medicina, em ampla confluência e aplicação prática dos princípios bioéticos. Nesse sentido, sumariamente, Medicina Sóbria, muito bem se adéqua aos princípios da beneficência ou não-maleficência, por visar o primum non nocere. Por sua vez, a Medicina Respeitosa, conflui com o princípio da autonomia, devido ao fato de valorizar as crenças e costumes individuais do paciente como ponto fundamental ao processo de tomada de decisão compartilhado. Por fim, a Medicina Justa, está entrelaçada com o princípio da justiça, pois, quando o profissional age racionalmente no manejo das propostas destinadas ao paciente, sem conflitos de interesse ou sem desperdícios irracionais, resulta em critérios de justiça distributiva. Não se olvide que o excesso irracional de cuidados para alguns, não deveria acontecer à custa da escassez de outros. Propugna-se, também, na utilização da tecnologia baseada em Choosing Wisely (escolhas sábias)11 e, consequentemente, anda em direção diametralmente oposta ao desperdício irracional e exposição de riscos desnecessários a todos os participantes da assistência, pois se acredita que fazer mais nem sempre significa fazer melhor. É o caminho para um tratamento sóbrio, respeitoso e justo, partilhado pelos profissionais da saúde, pelos pacientes e  para a comunidade. 12  Em consequência, distancia-se do oferecimento de um tratamento exagerado, desrespeitoso e injusto, tão aplicados pela medicina moderna, que em muitas situações é dotado de prática agressiva, ao aplicar o uso da tecnologia acriticamente em estrito cumprimento das recomendações que afirma tratar todos da mesma maneira, de modo a negligenciar as necessidades, expectativas, desejos, ansiedades,  e medos de cada pessoa que precisa de cuidados.  Prioriza a qualidade de vida, sopesando possíveis excessos do uso da tecnologia bem como  relação entre o risco benefício de uma conduta, sendo que, por critério de segurança do paciente, recomenda-se não intervir quando houver dúvida. Com essa linha de desdobramento lógico, enfatizam que o fato de ser fazer mais não significa fazer melhor, mas ao contrário em muitos casos. Nos processos de tomada de decisão reflete um conhecimento científico da maior qualidade, ou seja, melhores informações e melhores evidências, o que auxilia os profissionais na seleção das condutas e exames a serem pedidos, e leva em consideração a experiência do profissional médico e a vontade do paciente. Note-se que é essencial alicerçar a prática profissional em evidências científicas, desde que os profissionais da saúde façam uma leitura crítica da literatura científica para oferecerem cuidado sóbrio ao paciente, que consiste em empregar tudo o que for necessário, evitando-se desperdícios e excessos.  Assim, objetivamente definem David, Willian e Muir (1996)13: Medicina baseada em evidências é o uso consciencioso, explícito e judicioso da melhor evidência disponível ao tomar decisões sobre o cuidado de um paciente. 14 Nesse diapasão, importante trazer, em arremate, os dez princípios que norteiam a pratica filosófica na assistência da saúde, compilados pela iniciativa Slow Medicine Holanda quais sejam15: 1. Tempo: tempo para ouvir, para entender, para refletir. Tempo para consultar e tomar decisões. A tomada de decisões melhora quando os médicos dedicam seu tempo e sua atenção cuidadosa ao paciente; 2. Individualização: cuidado particularizado, justo, apropriado. feitos na medida adequada e equitativa A individualidade em lugar da generalidade. O paciente deve ser o foco da atenção e seu ponto de vista e seus valores são fundamentais; 3. Autonomia e Auto-Cuidado: a tomada de decisão deve ser compartilhada segundo os  valores, expectativas e preferências do paciente. Isto engloba uma integração do programa de cuidados no ambiente do doente; família, vizinhos, amigos e outros recursos;  4. Conceito positivo de saúde: transcende o antigo conceito de saúde da OMS ("um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades") o foco é no auto cuidado e resiliência, com ênfase na saúde e não na doença, abordando os cuidados de saúde e a prevenção de doenças e a manutenção da qualidade e da acessibilidade dos cuidados; 5. Prevenção: alimentação saudável é a prescrição básica para uma vida saudável. Atividade física regular.  pensamento positivo e flexibilidade mental podem (re)programar e são essenciais para manter nossos cérebros saudáveis;  6. Qualidade de vida: fazer mais nem sempre significa fazer melhor. Mais que quantidade deve-se investir na qualidade, na aceitação do inevitável. Deve-se sempre considerar a arte médica de não intervir a sabedoria da observação clínica e a arte médica; 7. Medicina Integrativa: a medicina complementar se possível em evidências. Segurança em primeiro lugar, eficácia quando possível. Sem metáforas da luta ou guerra contra a doença. As palavras de ordem são recuperação, equilíbrio, harmonia; 8. Segurança em primeiro lugar: lembre-se do juramento de Hipócrates : Primum non nocere et in dubio abstine. Em primeiro lugar não causar o mal. Em dúvida, abstenha-se de intervir; 9. Paixão e compaixão: resgatar a paixão pelo cuidar e o sentimento da compaixão na atenção médica. Buscar incansavelmente a humanização dos cuidados à saúde; 10. Uso parcimonioso da tecnologia: a tecnologia deve servir ao homem. As novas tecnologias devem cumprir seus objetivos de auxiliar a pessoa no autocuidado e auxiliar o médico a tomar as melhores decisões para seu paciente, que busquem primordialmente melhorar sua qualidade de vida. A Slow Medicine é, portanto, uma real retomada da medicina individualizada, pois todos somos uma única essência em nos mesmos, e não meras estatísticas em uma coletividade massificada. É o ideal resgate do "primum non nocere et in dubio abstine" (primeiro não prejudicar e na dúvida se abstenha). É o renascimento da verdadeira arte de cuidar.16 __________ 1 Dolara A. Invito ad una "Slow Medicine". Ital Heart J Suppl 2002; 3: 100-1. Disponível aqui. 2- Lie Y Slow Medicine, an international appeal on mindful healthcare Disponível aqui. 3-Peres F Rodrigues KM Silva TL Literacia em Saúde Fiocruz Rio de Janeiro 2021 4- Velho JCC Slow Medicine não é uma especialidade médica. Saiba por que. Disponível aqui. 5-Note-se que apesar de conter medicine na expressão, claramente não estaria limitado apenas à Medicina.  Como tem em seu escopo mais purista a proposta de direcionar a posturas éticas, ponderadas e baseadas em boas práticas centradas na pessoa, na prática atinge transversalmente todos os profissionais da saúde. 6-Bifulco V, Bottoni A. Porque uma medicina sóbria, respeitosa e justa é possível Disponível aqui.               7-Updates in Slow Medicine Disponível aqui. 8-Costa A C S  Medicina translacional na interseção da medicina baseada em evidências e da medicina narrativa Journal of Human Growth and Development versão impressa ISSN 0104-1282versão On-line ISSN 2175-3598 J. Hum. Growth Dev. vol.25 no.3 São Paulo  2015 Disponível aqui. 9-Bobbio M. Chiarlo M. Arcadi P. Per Slow Medicine le prove sono indispensabili Disponível aqui. 10- Il Manifesto di Slow Medicine ETS nel Mondo Disponível aqui. 11- Velho JCC Choosing Wisely e Slow Medicine: caminhos compartilhados Disponível aqui. 12-Birolini D. Slow Medicine - um conceito em evolução Disponível aqui. 13- David S., William R., Muir G. Evidence based medicine: what it is and what it isn't BMJ; 13 January 1996 disponível aqui. 14- Velho JCC Medicina Baseada em Evidências e Slow Medicine Disponível aqui. 15- Lie Y. Slow medicine, your medicine to a healthy life Ten basics of Slow Medicine Disponível aqui. 16- Callegari L. Slow Medicine: um a interface entre a Bioética, a Medicina e o Direito Disponível aqui.
Introdução Em 20 de janeiro de 2023, o Ministério da Saúde declarou emergência em saúde pública, em escala nacional, diante da necessidade de combate à desassistência sanitária dos Povos que vivem no território Yanomami1. O Ministério da Saúde também instalou o Centro de Operações em Emergências em Saúde Pública, o COE-Yanomami, um mecanismo nacional de gestão coordenada para responder à emergência em âmbito nacional, cuja gestão está sob a responsabilidade da Secretaria de Saúde Indígena (SESAI). O COE é responsável pela coordenação das medidas a serem empregadas durante o estado de emergência, incluindo a mobilização de recursos para o restabelecimento dos serviços de saúde na região, bem como pela articulação com os gestores estaduais e municipais do SUS. A situação é tão grave que as equipes do Ministério da Saúde encontraram, na região Yanomami, território indígena com mais de 30,4 mil habitantes, crianças e idosos em estado grave de saúde, com quadro de desnutrição grave, malária, infecção respiratória aguda e outros agravos, com registro de mortes de crianças e de cerca de mais de 11 mil casos de malária. Por isso, o Ministério da Saúde também instalou a sala da situação para tratar a grave crise humanitária dos Povos Indígenas Yanomami, com a participação do Ministério Público Federal, que enviou ao Governo Federal duas Recomendações, nº 1/2021 e 23/20222, com a indicação de diversas medidas para a reestruturação da assistência básica de saúde aos Povos da Terra Indígena Yanomami, para auxiliar a tomada de decisão dos gestores e para orientar a ação de equipes locais. O Ministério da Saúde constatou que o garimpo ilegal é a principal causa da crise de saúde que afeta a etnia que, no Brasil, vive entre os Estados do Amazonas e Roraima. Diante desse cenário, o artigo tem o objetivo de analisar a situação do Povo Yanomami, sob o viés do ordenamento jurídico brasileiro, bem como do direito internacional. Por sua vez, seu objetivo específico é refletir sobre a aplicação da Convenção para a Prevenção e Repressão do Genocídio, de 1948 ao caso, que se caracteriza como mistanásia social. Clique aqui e confira a íntegra da coluna. __________ 1 As informações estão disponíveis aqui. Acesso: 11 fev. 2023. 2 As informações estão disponíveis aqui. Acesso: 11 fev. 2023.
segunda-feira, 17 de abril de 2023

Hermenêutica médica

Interpretar significa revelar o sentido de algo. Na área médica é muito comum haver divergências sobre interpretação. Neste sentido, é sempre importante haver clareza na cadeia de interpretação do ato médico (interpretação médica => interpretação do ato médico => interpretação do julgador). Em primeiro lugar, há a interpretação médica, ou seja, produzida pelo agente que pratica ou participa do ato (médico assistente/cirurgião, por exemplo). É a interpretação autêntica. Em segundo lugar, a interpretação do ato médico decorre da análise de terceiro, que geralmente não participa do ato. Por exemplo: um jornalista que analisa uma acusação de erro médico. Em terceiro lugar, há a interpretação do julgador (Conselho de Medicina ou Poder Judiciário, por exemplo). Aqui a interpretação pode ganhar contornos diversos, com ênfase no aspecto técnico ou destaque para a regulação jurídica do ato médico. Estas duas últimas geralmente serão interpretações constitutivas e não autênticas. Cada fase é autônoma e pode originar resultados distintos. Dai a importância em: a) promover a interpretação adequada; b) afastar as interpretações equivocadas; c) fomentar a interpretação de acordo com o contexto; d) prestigiar a interpretação conforme os fatos (com o fim de preservar o mundo real), ou seja, a interpretação não pode ser meramente abstrata1. Zagrebelski assenta que a interpretação não é apenas um ato reprodutivo, mas também produtivo2. Ou seja, a versão apresentada pode influenciar o ato médico interpretado. Tais considerações são importantes no cenário brasileiro, pois o ato médico é constantemente submetido ao crivo da análise judicial ou do controle de classe (processo ético no Conselho de Medicina), razão pela qual a compreensão adequada do tema é indispensável para a preservação da ato médico e também da proteção dos seus destinatários (sociedade).  A hermenêutica também é muito importante nas discussões sobre erro médico (principalmente quando se investiga o erro técnico e o erro de raciocínio).  O erro médico é frequentemente judicializado. Na via cível, quando se postula indenização por danos ocorridos. E também no âmbito criminal, quando há tipificação na legislação penal vigente. Na esfera administrativa, é possível processar o profissional em razão de eventual descumprimento da ética médica. Ou seja, a responsabilização pode ser tríplice. Neste sentido, é importante saber a conceituação adequada. Erro médico é todo e qualquer ato que viola a legislação e, principalmente, causa dano/prejuízo. É um conceito amplo. O erro técnico é mais específico, pois se refere a questões da prática médica. Groopman faz importante observação sobre o tema: Durante muito tempo acreditei que os erros que cometemos na medicina fossem basicamente técnicos - prescrever a dose errada de um medicamento, fazer uma transfusão de sangue incompatível, marcar uma radiografia de um braço 'direito' em vez de 'esquerdo'. Mas como cada vez mais as pesquisas revelam, os erros técnicos são responsáveis por apenas uma pequena parcela de nossos diagnósticos e tratamentos errados. A maioria dos erros é de raciocínio equivocado. E parte do que provoca erros cognitivos são nossos sentimentos internos, aqueles que não admitimos imediatamente e que se muitas vezes nem sequer reconhecemos.3 O erro de raciocínio pode ocorrer na forma de "erro de representatividade: seu raciocínio é guiado por um protótipo; portanto, deixa de considerar possibilidades que contradizem o protótipo, atribuindo desse modo os sintomas à causa errada."4 Outra forma de erro médico muito comum é o "erro de atribuição: quando os pacientes se encaixam em um esteriótipo negativo."5 Tal reflexão indica a relevância na forma de pensar o ato médico. Vale dizer, após a anamnese o profissional deve fazer a interpretação adequada e apresentar a conclusão correta para o fato ou caso clínico. É claro que a medicina não é considerada uma ciência exata6. Mas a interpretação deve ser a mais científica possível, sob pena de permitir discussão do ato e eventual prática de erro médico, nas suas múltiplas possibilidades. A hermenêutica ainda influencia aspectos médicos específicos, tal como se verifica no dever de informação.  Um dos grandes desafios na área da saúde é concretizar o direito fundamental à informação. No Direito Médico, por exemplo, a soberania da palavra do profissional praticamente impedia o diálogo e o esclarecimento sobre os tratamentos e as intervenções sanitárias. Contudo, houve aumento significativo de condenações de médicos ao pagamento de indenizações em razão da omissão em informar adequadamente seu paciente. A questão é analisada com frequência pelo Superior Tribunal de Justiça. Em relevante decisão, a aludida Corte assentou que: [...] Todo paciente possui, como expressão do princípio da autonomia da vontade, o direito de saber dos possíveis riscos, benefícios e alternativas de um determinado procedimento médico, possibilitando, assim, manifestar, de forma livre e consciente, o seu interesse ou não na realização da terapêutica envolvida, por meio do consentimento informado. Esse dever de informação encontra guarida não só no Código de Ética Médica (art. 22), mas também nos arts. 6º, inciso III, e 14 do Código de Defesa do Consumidor, bem como no art. 15 do Código Civil, além de decorrer do próprio princípio da boa-fé objetiva. 3.1. A informação prestada pelo médico deve ser clara e precisa, não bastando que o profissional de saúde informe, de maneira genérica, as eventuais repercussões no tratamento, o que comprometeria o consentimento informado do paciente, considerando a deficiência no dever de informação. Com efeito, não se admite o chamado "blanket consent", isto é, o consentimento genérico, em que não há individualização das informações prestadas ao paciente, dificultando, assim, o exercício de seu direito fundamental à autodeterminação. 3.2. Na hipótese, da análise dos fatos incontroversos constantes dos autos, constata-se que os ora recorridos não conseguiram demonstrar o cumprimento do dever de informação ao paciente - irmão dos autores/recorrentes - acerca dos riscos da cirurgia relacionada à apnéia obstrutiva do sono. Em nenhum momento foi dito pelo Tribunal de origem, após alterar o resultado do julgamento do recurso de apelação dos autores, que houve efetivamente a prestação de informação clara e precisa ao paciente acerca dos riscos da cirurgia de apnéia obstrutiva do sono, notadamente em razão de suas condições físicas (obeso e com hipertrofia de base de língua), que poderiam dificultar bastante uma eventual intubação, o que, de fato, acabou ocorrendo, levando-o a óbito.7 Assim, os Tribunais brasileiros passaram a adotar posição contundente quanto ao cumprimento do direito à informação. Portanto, é indispensável que o termo de consentimento do paciente contemple todas as informações possíveis (sobre a intervenção, o desfecho desejado, possíveis eventos adversos, riscos, comportamento do paciente, etc), a fim de conferir mais transparência o ato, maior confiabilidade e deixar o seu destinatário seguro quanto ao serviço prestado. __________ 1 ZAGREBELSKI, Gustavo. Interpretare. Dialogo tra un musicista e un giurista. Il Mulino: Bologna, 2016, p. 48. 2 L'interpretazione non è mai solo un atto ri-produttivo, mas anche produttivo."  ZAGREBELSKI, Gustavo. Interpretare. Dialogo tra un musicista e un giurista. Il Mulino: Bologna, 2016, p. 54. 3 GROOPMAN, Jerome. Como os médicos pensam. Tradução Alexandre Martins. Rio de Janeiro, Agir, 2018, p. 49/50. 4 GROOPMAN, Jerome. Como os médicos pensam. Tradução Alexandre Martins. Rio de Janeiro, Agir, 2018, p. 53. 5 GROOPMAN, Jerome. Como os médicos pensam. Tradução Alexandre Martins. Rio de Janeiro, Agir, 2018, p. 54. 6 COEN, Daniele. L'arte della probabilità: certezze e incertezze della medicina. Raffaella Cortina Editore: 2021. 7 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, REsp 1848862/RN, RELATOR Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, DATA DO JULGAMENTO 05/04/2022, DJe 08/04/2022, Disponível aqui. Acesso em: 26 Abr. 2022.
O dr. Fulano, médico que trabalha com questões estéticas, possui 2 milhões de seguidores no Instagram e, em seu perfil, mescla posts pessoais com posts profissionais. Ou seja, ao lado de fotos - do tipo família margarina - com seus filhos e sua mulher há também fotos de procedimentos pouco invasivos realizados no consultório, reels de alguns atendimentos, reposts de pacientes que publicam fotos com ele e, ainda, fotos dos trabalhos sociais que ele faz. Na "bio" do seu perfil, há apenas a informação que ele é médico. O número do CRM e no Registro de Qualificação de Especialidade (RQE) não são divulgados. Este é um caso fictício, que inventei para ilustrar a reflexão que proponho neste texto: um médico que viola as normas de publicidade exaradas pelo Conselho Federal de Medicina causa danos ao paciente que o segue? De acordo com as atuais normas do Conselho Federal de Medicina (CFM), especialmente as resoluções CFM 1974/2011 e 2126/2015, o médico não pode postar fotos de seus pacientes. Nem se o paciente autorizar. Nem se o paciente pedir. Nem se o paciente já tiver divulgado a foto. Nem se a foto estiver rodando os grupos de whatsapp. Nem se a foto for capa do jornal de maior circulação do país. Não pode. Estas mesmas normas vedam as postagens do tipo "antes e depois" a determinam que o médico deve divulgar o número do seu CRM e de seu RQE, caso se apresente como especialista, em todas as publicidades que fizer. Há ainda uma lacuna normativa sobre a possibilidade de o médico misturar em um mesmo perfil, a vida pessoal e profissional. Sobre este tema, o médico e pesquisador australiano Neil David Long1, afirmou que "a confusão entre vida profissional e pessoal pode levar a infelizes consequências (...). Um momento de deslize pode deixar uma pegada digital permanente e prejudicar a confidencialidade, honestidade e confiança na profissão médica." Na era da sociedade da espetacularização, a sociedade de consumo privilegia o produto/profissional/serviço mais exposto, mais curtido, mais seguido... e esse posto tem se tornado objeto de desejo de muitos médicos. É inegável  que ter um perfil no instagram é uma forma de o médico fazer publicidade. E para muitas pessoas, há um excesso de conservadorismo - e muito atraso - nas atuais normas do CFM; afinal, as redes sociais hoje são um importante meio de comunicação e também de realização de negócios. Poderíamos dizer, assim, que as violações que o dr. Fulano comete às normas do CFM não é de interesse de seus pacientes. Para estes, importa que o Dr. Fulano seja um bom médico, leia-se, os atenda com cordialidade e entregue os resultados desejados. Todavia, a Medicina não é uma profissão de resultados, ela é uma profissão de cuidado. O objetivo do médico não é entregar ao paciente a estética desejada, é oferecer ao paciente o melhor cuidado, dentro da melhor técnica existente. "Primum non nocere" (em tradução literal: "primeiro não fazer o mal") é uma máxima que rege a relação paciente-médico desde os primórdios. Significa, resumidamente, que antes de qualquer ato, o médico deve ponderar os efeitos maléficos deste ao paciente. Se tais efeitos são claros em atuações negligentes, imperitas ou imprudentes, em temas afetos à publicidade médica a maleficiência não é tão cristalina. Ouso dizer, inclusive, que a maioria da população sequer consegue visualizar esta relação. Portanto, poderíamos concluir que o Dr. Fulano não causa danos ao paciente em sua atuação nas redes sociais. Contudo, profissionais de saúde que trabalham e pesquisam saúde mental já defendem que  "o uso problemático da Internet tornou-se uma preocupação de saúde pública, particularmente entre adolescentes e adultos emergentes."2 E mais, há, atualmente, uma preocupação crescente na psicologia os efeitos psíquicos que o uso desadaptativo causam nas pessoas, incluindo aumento de transtornos psíquicos e de dificuldades em relacionamentos interpessoais.3-4-5 Por estas razões, entendo que o dr. Fulano causa, sim, graves danos aos seus atuais e futuros pacientes. Explico: Em todo o mundo, a Medicina aparece como uma das profissões mais respeitadas e admiradas pela sociedade, portanto, como médico, o dr. Fulano ostenta uma posição de respeito e admiração. Soma-se a isso, o fato de que o dr. Fulano tem 2 milhões de seguidores, o que dá a ele um status de bom profissional. Assim, ao divulgar sua família margarina, o Dr. Fulano pode fazer com que seus pacientes olhem para a própria vida e sintam-se fracassados. Ao divulgar os procedimentos feitos em consultório, o Dr. Fulano pode alimentar nas pessoas a falsa sensação de que os procedimentos estéticos são simples e sem riscos. Ao divulgar reels de alguns de atendimentos, pode gerar o desejo narcísico de que o seguidor seja o próximo paciente. Ao repostar posts feitos pelos pacientes, pode criar uma falsa sensação de proximidade e cuidado. Ao divulgar fotos os trabalhos sociais que pratica, pode ganhar a empatia de seus seguidores à despeito de suas competências técnicas. Diante de tudo isso, é esperado que o leitor pense: "é simples, basta que o seguidor que se sinta mal deixe de seguir o dr. Fulano." É verdade, ele pode dar um unfollow no dr. Fulano. Mas as chances são pequenas. E mais, o fato de o Dr. Fulano ser médico vulnera a maior parte do seu público que está lá porque confia, respeita e admira o médico. Assim, ainda que o malefício causado pelo dr. Fulano não seja explícito, não podemos negar a possibilidade de que ele exista. E, quiçá, de que ele seja ainda mais grave do que os demais, exatamente por ser um dano não reconhecido. __________ 1 Long, Neil David (2018). The good, the bad and the ugly of social media: How to navigate through the noise. Emergency Medicine Australasia, -. doi:10.1111/1742-6723.13098  2 Shahla Ostovar;Reyhaneh Bagheri;Mark D. Griffiths;Intan Hashimah Mohd Hashima; (2021). Internet addiction and maladaptive schemas: The potential role of disconnection/rejection and impaired autonomy/performance . Clinical Psychology & Psychotherapy, -. doi:10.1002/cpp.2581 3 Ostovar S, Bagheri R, Griffiths MD, Mohd Hashima IH. Internet addiction and maladaptive schemas: The potential role of disconnection/rejection and impaired autonomy/performance. Clin Psychol Psychother. 2021 Nov;28(6):1509-1524. doi: 10.1002/cpp.2581. Epub 2021 Mar 23. PMID: 33687117. 4 Zsila Á, McCutcheon LE, Demetrovics Z. The association of celebrity worship with problematic Internet use, maladaptive daydreaming, and desire for fame. J Behav Addict. 2018 Sep 1;7(3):654-664. doi: 10.1556/2006.7.2018.76. Epub 2018 Sep 17. PMID: 30221539; PMCID: PMC6426373. 5 Fioravanti G, Flett G, Hewitt P, Rugai L, Casale S. How maladaptive cognitions contribute to the development of problematic social media use. Addict Behav Rep. 2020 Feb 21;11:100267. doi: 10.1016/j.abrep.2020.100267. PMID: 32467856; PMCID: PMC7244923.
Vivemos dias velozes e ultraconectados. Dias cuja única permanência é a mudança. Está ocorrendo - e a pandemia acelerou isso - uma passagem, em múltiplos setores, do universo físico-tradicional para o universo digital. Cremos que essas tendências se acentuarão de modo ainda mais rápido, numa velocidade e descentralização sem precedentes. Os avanços científicos dos próximos anos - e das próximas décadas - nos surpreenderão de modo constante. O perfil do mundo que conhecemos se alterou, e está constantemente se alterando. Se já achávamos que tudo mudava rápido, talvez nos espantemos ainda mais com o caráter e o perfil das próximas mudanças. Medicina, transportes, comunicações, viagens espaciais (e novos conhecimentos astronômicos), tudo isso ganhará cores revolucionárias e abalará velhas estruturas. Em termos comportamentais, a sociedade busca estruturas menos assimétricas e desiguais. Na dimensão jurídica, o conceito de vulnerabilidade ganha extrema importância no direito privado do século XXI. Situações de assimetria e desvantagem - seja econômica, etária, informacional, de gênero, racial, tecnológica - são levadas em conta na solução dos conflitos. Sobretudo no campo da Medicina, nota-se o frequente debate sobre vulnerabilidade, além da profunda modificação da relação médico-paciente com o grande arsenal tecnológico: atendimentos médicos à distância (telemedicina), robôs cuidadores, cirurgias robóticas, algoritmos de Inteligência Artificial no diagnóstico e propostas de tratamento, cuidados do paciente pela representação digital (medical digital twins), predições do quadro clínico com base em dados genéticos, Internet das Coisas (IoT) e wearable devices (tecnologias "vestíveis") na avaliação e monitoramento médicos constantes, análises clínicas e treinamento médico nas realidades virtual e aumentada etc. Com a inédita disrupção tecnológica, o desafio - em termos normativos - é tentar regular todas essas inovações, observando os perfis dos direitos fundamentais. Podemos dizer, sem exagero, que as possibilidades das tecnologias digitais emergentes são infinitas e espantosas - e já fazem parte do nosso dia a dia. Luís Roberto Barroso ressalta que a "conjugação da tecnologia da informação, da Inteligência Artificial e da biotecnologia produzirá impacto cada vez maior sobre os comportamentos individuais, os relacionamentos humanos e o mercado de trabalho, desafiando soluções em múltiplas dimensões".1 É dever do civilista do século XXI estar atento às novas relações sociais. O direito deve espelhar o nível evolutivo da sociedade em que se insere. Se essa sociedade muda profundamente, o direito deve acompanhar as mudanças - de modo criativo e responsável -, se quiser continuar a ter relevância. George Ripert - professor e reitor da Faculdade de Direito de Paris - cunhou frase célebre na década de 40 do século passado: "Quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o direito". É preciso ter aquele senso, já dizia Pontes de Miranda, para que o jurista não se apegue, demasiado, às convicções que tem, nem se deixe levar facilmente pelo novo. Nestas breves reflexões, a intenção é clara: trazer somente uma palavra inicial, de contextualização, sobre esses temas. Apenas para que a leitora e o leitor percebam o sentido - e a relevância - das mudanças que estão ocorrendo. Não é preciso muito esforço de argumentação para evidenciar que são mudanças que têm profundo impacto no direito privado (e não só nele). Vale destacar que, o presente texto faz parte de uma edição especial de abertura desta coluna, em 2023, e será dividido em Partes I e II. Propõe-se, nas linhas que seguem, uma visão panorâmica dos impactos das tecnologias digitais emergentes sobre o direito civil e médico, a partir das seguintes perspectivas: 1) Presença digital também é presença; 2) Capitalismo de Vigilância e o corpo eletrônico. 1) Presença digital também é presença Há, no mundo, quase 200 países e uma única internet. É inegável que a questão dos limites e distâncias físicas perdem muito de sua importância, pois essa rede de conexões - veloz e descentralizada - torna possível que estejamos presentes, diante dos outros, mesmo que fisicamente não estejamos. A partir daí ocorre uma infinidade de relações existenciais e patrimoniais, e o mundo interage de uma forma inédita. O direito de acesso à internet a todos (Marco Civil Internet, art. 4º, I) é essencial à construção de um Brasil menos desigual. A palavra de ordem, hoje, é inclusão digital. Alguém sem internet, atualmente, é alguém condenado ao isolamento comunicacional - e, em certo sentido, até social. Nossas práticas cotidianas são indissociáveis da Internet. Somos hoje seres progressivamente digitais, e isso se tornou algo tão cotidiano que sequer nos damos conta. Só nos daríamos se perdêssemos de forma abrupta essa conexão digital, esse mundo em rede. Virou rotina para quase todos nós a interação digital ao vivo em reuniões, aulas e audiências judiciais etc. Inúmeras plataformas hoje oferecem esses serviços - que com a pandemia adquiriu ares de essencialidade, sobretudo para eventos profissionais (não por acaso as ações do Zoom dispararam na Bolsa americana).        Todo esse fenômeno tem evidente repercussão jurídica, alterando o conceito de presença. Hoje podemos estar diante dos outros, ainda que não estejamos fisicamente diante deles. O "estar diante" assume outros significados e outras formas em nossos dias. A presença não precisa mais ser física, no sentido tradicional. A presença digital também é presença em termos jurídicos - e cada vez mais o será. Aliás, nas relações de família, a doutrina tem enfatizado a importância dessas tecnologias (literalmente na palma da mão) para permitir o contato, por som e imagem, a qualquer distância, pelo tempo que desejarmos, sem muitos custos. Assim, por exemplo, o direito fundamental à convivência entre filhos e pais pode ser exercido mesmo que um deles habite fisicamente em outro lugar. Além disso, na pós-modernidade, o conflito entre liberdade de informação e direitos da personalidade tem ganhado uma especial tônica. Há uma nova realidade social, ancorada na informação massificada na internet. Um dos danos colaterais da modernidade líquida, afirmada por Zygmunt Bauman,2 diz respeito a atual configuração do antigo conflito entre os espaços público e privado, ou seja, entre a informação e a privacidade. O deslocamento para o ambiente público de atos que eram eminentemente privados é hoje muito evidente e resulta do desenvolvimento de tecnologias de comunicação e informação, as quais possibilitam uma rede de dados ilimitada e de acesso público. Em ambiente digital, assumem grande importância as discussões sobre os eventuais danos sofridos pelos usuários da internet, bem como o direito de retirada de uma informação ofensiva, a sua retificação ou, conforme o caso, a retratação por parte do responsável. Além disso, Guilherme Martins afirma que o atual desenvolvimento tecnológico tem alterado radicalmente o equilíbrio entre lembrança e esquecimento, pois "a regra, hoje, é a recordação dos fatos ocorridos, enquanto esquecer se tornou a exceção. (...) os usuários da Internet, cujos passos são sempre reconstruídos pelas técnicas de rastreamento, acabam frequentemente privados da escolha quanto à técnica de obtenção de dados e quanto às informações que serão colhidas a seu respeito".3 Em 2021, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE nº 1.010.606 (caso Aida Curi), fixou entendimento de que o direito ao esquecimento é incompatível com sistema constitucional brasileiro, mas excessos e abusos no exercício da liberdade de expressão e da informação devem ser vistos caso a caso. A privacidade (como fundamento do direito ao esquecimento) pode ceder a outros direitos e interesses, tais como o direito à manifestação do pensamento, à livre circulação da informação e à liberdade de imprensa. É necessária, como afirmam Maria de Fátima F. de Sá e Bruno Torquato, "uma avaliação casuística, tendo em vista o tipo de informação, o quanto ela atinge a vida privada do indivíduo e o interesse do público na informação".4 Outra questão a ser ponderada é a de que a evolução das tecnologias de informação e comunicação tem aberto novas oportunidades para a interação entre fornecedores e consumidores. A relação entre as marcas e seus públicos foi se adaptando ao surgimento de plataformas digitais e redes sociais, enquanto novos canais de mídia e produção de conteúdo. E, nesse cenário, algumas pessoas que se destacam em ambiente digital pela influência que exercem em determinados nichos - conhecidas como "influenciadores digitais" - começaram a utilizar suas redes sociais para divulgar marcas e produtos. São frequentes os episódios nos quais a atuação de influenciadores se configura como publicidade ilícita (artigo 37, §2º, do CDC), na espécie "abusiva". Isso porque, como ressalta Michael César Silva, essas pessoas induzem o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança, violando o princípio do consumo com responsabilidade social, o qual determina que a publicidade não deve induzir, de qualquer forma, ao consumo exagerado ou irresponsável.5 A Era Digital também trouxe dinamismo e agilidade na propagação de informações e oportunidades para profissionais da saúde se conectarem com seus potenciais clientes. Os novos padrões da publicidade, especialmente em mídias sociais, têm gerado um grande desafio de adequação das técnicas de captação de pacientes no mundo digital aos preceitos éticos e legais. Nesse cenário, verifica-se que o direito à imagem é disponível (art. 20, do Código Civil), mas para os profissionais da Medicina há limitação na esfera deontológica (art. 75, do Código de Ética Médica), de modo que, mesmo diante de eventual autorização (licitude da conduta), o médico pode, em tese, ser responsabilizado eticamente. Além disso, tem-se evidenciado o frequente debate sobre os resultados postados pelos profissionais poderem ser interpretados como promessa de resultado, com a consequente transformação da obrigação de meios em resultado.6 Ainda no campo do direito médico, observa-se que a Telemedicina tem despontado como via de amplo acesso à saúde e, ao mesmo tempo, denota-se um novo significado do "estar presente", com profundo impacto na relação médico-paciente. Antes de ser realizada uma teleconsulta, por exemplo, o paciente precisa receber - e compreender - algumas informações importantes, tais como: benefícios, riscos, indicação da plataforma utilizada e, ainda, comparação do atendimento médico presencial em relação ao oferecido à distância. Ademais, o consentimento informado (leia-se, livre e esclarecido) adquire certas peculiaridades, pois há necessidade de um "duplo consentimento" do paciente, tendo em vista que, além do consentimento referente ao tratamento e intervenção médica, o direito à informação adequada engloba a ideia de consentir para o uso das novas tecnologias, a partir do conhecimento de seu funcionamento, objetivos, suas vantagens, custos, riscos e alternativas.7 Ressalta-se que há também alteração no processo do médico para obtenção do diagnóstico nas teleconsultas, pois no exame físico, o profissional deixa de ser o agente ativo e repassa ao paciente (ou representante legal) esse papel, por meio de orientações para que o doente mesmo assista o médico na realização do exame e resolva algumas questões solicitadas pelo profissional. Dada a complexidade de um atendimento médico à distância, tem-se ressaltado a importância de o profissional da saúde ter uma visão proativa, no sentido de pensar em como levar ao paciente as informações necessárias e que ele realmente as compreenda, realizando remotamente seu próprio exame físico a partir das orientações médicas passadas durante a teleconsulta. Eric Topol vislumbra um futuro breve em que as inovações tecnológicas mudarão definitivamente a experiência hospitalar, tendo em vista a disseminação dos chamados smart hospitals (hospitais inteligentes) e virtual hospitals (hospitais virtuais) ao redor do mundo.   Embora sejam necessárias as UTIs, salas de cirurgia e de emergência, o quarto normal de hospital é altamente suscetível à substituição em algumas situações, pelo conforto e praticidade do local de residência do paciente, especialmente idosos e pessoas com doenças crônicas, que necessitam de constante monitoramento médico, abrindo-se, assim, espaço para o surgimento dos virtual hospitals. O atendimento e monitoramento médico é feito por Telemedicina e com apoio de algoritmos de Inteligência Artificial, big data e as mais diversas tecnologias digitais emergentes.8 O "estar presente" na Medicina tem assumido, portanto, novas formas com os atendimentos e monitoramento médicos à distância. Inevitavelmente, as repercussões jurídicas são inúmeras. Merece especial atenção a questão da garantia de sigilo da informação e privacidade do paciente pela ampliação da circulação, conexão e tratamento de dados pessoais sensíveis, o que potencializa os riscos de vazamento ou tratamento/compartilhamento irregular. Além disso, como visto, há de se considerar um novo modelo de consentimento do paciente e a maior complexidade na aferição da responsabilidade civil. 2) Capitalismo de Vigilância e o corpo eletrônico Virou lugar-comum dizer que vivemos, hoje, na Sociedade da Informação - mas talvez seja necessário ir além e afirmar que estamos diante da Sociedade da Hiperinformação. Tamanho é o volume de informações disponível, tamanha é a velocidade de sua transmissão. Trata-se de algo realmente sem paralelo na história humana. A sociedade global vive um período no qual grandes players econômicos e plataformas digitais têm amplamente utilizado dados pessoais para controlar e decodificar comportamentos, no intuito de auferirem maior lucro, conforme explica Shoshana Zuboff, no livro "A Era do Capitalismo da Vigilância". Em decorrência do desenvolvimento tecnológico e da virtualização da vida no ambiente da Internet - com o fluxo incessante de dados que seus titulares a todo tempo acabam por transmiti-los nas tecnologias digitais emergentes sem sequer perceber -, vislumbra-se um cenário da informação em direção à vigilância, que é amplificada em uma "sociedade em rede". Informações e dados pessoais - compreendidos como preferências, situações e opções da vida - são utilizados indevidamente por empresas. Nesse contexto, a prática denominada profiling ("perfilamento") reflete uma faceta da utilização de algoritmos em grandes acervos de dados (big data), que propicia o delineamento do perfil comportamental do indivíduo, o qual passa a ser analisado e objetificado a partir dessas projeções. A velocidade com que tecnologias disruptivas têm sido lançadas e a capacidade de armazenamento e processamento de dados evidenciam os riscos da hiperconectividade e propiciam lesões ao chamado corpo eletrônico ou digital. Há também um cenário que propicia publicidades virtuais que utilizam de maneira indevida os dados pessoais dos consumidores, promovendo ofertas direcionadas e importunadoras, além de práticas comerciais como geopricing e geoblocking, as quais empregam o uso de dados pessoais e dados de conexão dos consumidores para o direcionamento da oferta de produtos e serviços no mercado de consumo. Conceitos como o de Stefano Rodotà (corpo elettronico) ou de Roger Clarke (digital persona) repercutem diretamente na aferição dos impactos jurídicos das tecnologias digitais emergentes. Inovações tecnológicas geram mudanças culturais. Uma delas - intensamente presente, mas nem sempre notada - é a superdocumentação que existe em nossas vidas. Todos andamos com câmeras e máquinas fotográficas potentes na palma da mão (smartphones), lidamos cada vez mais com tecnologias de rede, como a geolocalização, por exemplo. Aliás, parece claro que algoritmos e códigos-fonte têm, no século XXI, função cada vez maior de regular comportamentos. Nesse contexto, algo parece certo: os cidadãos não conseguem controlar, de modo efetivo, o fluxo de dados pessoais atualmente (nestas primeiras décadas do século XXI). O fluxo de dados é incessante e não conhece limitação geográfica. Os titulares de dados, nesse sentido, são vulneráveis, ou talvez até hipervulneráveis. Em uma sociedade na qual as informações se tornam a riqueza mais importante, assevera Stefano Rodotà que a tutela da privacidade contribui de forma decisiva para o equilíbrio dos poderes. Isso porque o fim da privacidade não representa apenas um risco para as liberdades individuais, mas pode também conduzir ao fim da democracia. A privacidade constitui um elemento fundamental da cidadania dos novos tempos, da "cidadania eletrônica". Ademais, diante da possibilidade dos dados pessoais do morto serem coletados por empresas, a partir de redes sociais, textos, e-mails, mensagens, imagens etc., permitindo-se reconstrução digital póstuma da voz e da imagem  - a exemplo da publicidade ocorrida por meio da reconstrução digital de imagem e da voz do falecido pai do jogador Zico - , doutrinadores como Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, Filipe Medon, Fernanda Schaefer e Frederico Glitz têm ressaltado a necessidade de se discutir a autodeterminação corporal após a morte e direitos relacionados à herança digital, dando-se, ainda, um passo além, para refletir sobre a tutela da identidade pessoal e valores existenciais do morto.9 Essa discussão enquadra-se no contexto dos bens da personalidade como bens digitais existenciais, conforme defende Bruno Zampier, em trabalho pioneiro no Brasil,10 ao apresentar a ideia de um testamento digital (digital will) formulado a partir de serviços disponibilizados por sites específicos na Internet, ou mesmo por um testamento particular regido pelo Código Civil. O autor defende a possibilidade de haver uma diretiva antecipada da vontade para este fim. No setor da saúde, desenvolveram-se, nos últimos anos, diversas soluções de big data e Inteligência Artificial em aplicativos de smartphones e wearable devices (tecnologias "vestíveis") - para gerenciamento de medicamentos e monitoramento frequente da condição física e mental, dieta e exercícios físicos -, que coletam inúmeras dados pessoais e analisam sinais vitais, batimentos cardíacos, temperatura, humor, cognição, atividade física etc. Por isso, um dos maiores receios com o implemento de novas tecnologias na Medicina, segundo afirmam Nicholson Price e Roger Allan Ford,11 refere-se à privacidade e proteção de dados pessoais sensíveis, pois uma quantidade imensa de informações sensíveis é coletada e, ainda, pode ser eventualmente compartilhada ou tratada de forma irregular, o que aumenta o potencial de vazamentos de dados e de danos mediatos e imediatos aos seus titulares. Frank Pasquale relata evento ocorrido em 2008, nos Estados Unidos, em que os dados de prescrição médica estavam sendo utilizados no mercado de seguros individuais, pois as farmácias repassavam a relação de compras de remédios às seguradoras.12 Com a coleta de milhões de informações de pedidos, as empresas readequavam suas políticas, a fim de excluir da cobertura algumas doenças e impor cobranças mais altas do prêmio a determinadas pessoas. Ainda, pode-se cogitar a possibilidade de empresas atribuírem determinadas condições médicas quando a pessoa faz algumas pesquisas on-line sobre uma doença, preenche algum formulário e acaba associado a essa doença em bancos de dados comerciais. Surgem cada vez mais criativas formas de coleta e tratamento de dados pessoais, o que renova, ininterruptamente, a necessidade de mecanismos para assegurar o direito à autodeterminação informativa como instrumento de promoção da pessoa. Inclusive, visando compatibilizar o assédio irrefreável das empresas que atuam com dados para realizar práticas abusivas de mercado, há quem defenda que a responsabilidade civil pela perturbação do sossego na Internet é um caminho viável. Por meio de uma nova garantia fundamental chamada "habeas mente", concretizar-se-ia, segundo Arthur Basan, os direitos à autodeterminação informativa e à privacidade.13 O marco da discussão sobre a proteção dos dados pessoais como direito fundamental no ordenamento jurídico brasileiro é o julgamento pelo STF, em 2020, no âmbito de cinco ações diretas de inconstitucionalidade - ADI 6.387, ADI 6.388, ADI 6.389, ADI 6.390 e ADI 6393 -, que suspendeu a eficácia da MP 954/2020, a qual autorizava a transferência (para o IBGE) de toda a base de dados dos usuários de telefonia fixa e móvel do Brasil. O Supremo, na oportunidade, reconheceu o direito fundamental à proteção de dados (assinale-se que a decisão do STF foi anterior à vigência da Lei n. 13.709/18 - Lei Geral de Proteção de Dados). Posteriormente, o Congresso Nacional aprovou a PEC incluindo a proteção de dados pessoais no rol do art. 5º da Constituição Federal, reconhecendo de modo explícito sua qualidade de direito fundamental. Assim, o art. 5º, inc. LXXIX, passou a dispor que "é assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais". Frise-se, contudo, que a comunidade jurídica já vinha anteriormente reconhecendo o direito à proteção de dados como um princípio implícito no ordenamento brasileiro. Por fim, vale um destaque: a polifuncionalidade da responsabilidade tem merecido especial destaque na doutrina brasileira, especialmente por Nelson Rosenvald, no contexto de tecnologias digitais emergentes e na atividade de tratamento de dados pessoais, tendo em vista a tendência de irreparabilidade de danos à privacidade, identidade pessoal, liberdade e igualdade, além de existir notável potencial de uma imensa quantidade de pessoas ser atingida.14 O art. 927 do Código Civil estabelece a regra geral pela qual "aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo". Contudo, esse é apenas um dos sentidos da responsabilidade, e os demais encontram-se ocultos no texto legal. Defende-se uma nova concepção da responsabilidade civil proativa no tratamento de dados pessoais. É preciso ser superada a visão do ordenamento positivo como mero impositor de sanções negativas, a partir de normas com funções protetoras ou repressivas, adotando-se, assim, um espectro voltado a sanções positivas, isto é, trazer incentivos para que o possível ofensor aja de forma a evitar ou mitigar o dano, a partir do cumprimento das diretrizes estabelecidas na lei. Essas mudanças também ilustram a evolução das legislações sobre proteção de dados em direção a um regime de proteção de privacidade mais preventivo e proativo.15 Em que pese os parâmetros de conduta dos agentes de tratamento de dados pessoais elencados no art. 50 e 51 da LGPD não possuírem previsão de natureza cogente, há parcela da doutrina brasileira que entende o seguinte: caso esses parâmetros sejam adequadamente seguidos, deverão ser considerados para os fins de mitigação de eventual responsabilização administrativa ou civil.16 Isso porque é tempo de "alargarmos os horizontes e investirmos em uma função promocional da responsabilidade civil, na qual a tônica será a aplicação das sanções premiais" - isto é, para além de compensar, punir e prever danos, a responsabilidade civil deve "criteriosamente recompensar a virtude e os comportamentos benevolentes de pessoas naturais e jurídicas".17 No direito médico, com a recente publicação no Brasil da lei 14.510/2022, reforçou-se a importância da governança de dados de saúde e, no âmbito da Telemática em Saúde (subdividida, a partir da sua finalidade, em Telessaúde e Telemedicina), serem implementadas práticas e estratégias voltadas para usar os meios telemáticos de forma mais segura e eficaz. O princípio da responsabilidade digital, apontado como princípio informador da Telessaúde no art. 2°, da lei 14.510/22 (art. 26-A, IX, da lei 8.080/90), direciona-se, segundo Fernanda Schaefer, "ao que se entende por accountability, parte importante da governança de dados (plano ex ante no qual se insere o compliance) e que amplia as zonas de incidência da responsabilidade civil também para os parâmetros regulatórios preventivos".18 O objetivo é ampliar o espectro da responsabilidade, por meio da inclusão de parâmetros regulatórios preventivos, com uma regulamentação voltada à governança de dados, seja em caráter ex ante ou ex post. Nesse sentido, Romualdo Baptista dos Santos é categórico: "a responsabilidade digital ou accountability digital mencionada na Lei da Telessaúde se refere à observância às normas expedidas pelo órgão de direção do Sistema Único de Saúde e às normas deontológicas baixadas pelo Conselho Federal de Medicina, além das normas sobre proteção de dados pessoais, a fim de evitar a ocorrência de danos. Se, a despeito de todos esses cuidados, o dano se concretizar, o descumprimento dessas normas é determinante para configuração do nexo de causalidade para efeito do dever de reparação."19 O princípio da accountability, ao estabelecer possíveis caminhos para conciliar a desejável inovação com a necessária segurança jurídica, demonstra como as funções preventiva e precaucional da responsabilidade civil orientam o desenvolvimento tecnológico no setor da saúde, neste primeiro quartel do séc. XXI. Inclusive, José Faleiros Jr. e Nelson Rosenvald explicam que a vertente ex post da accountability atua como um guia para o juiz, norteando a identificação e quantificação das responsabilidades, estabelecendo os remédios mais adequados e sua gradação/dosagem para cada tipo de tecnologia e situação concreta, a partir do reconhecimento da polissemia da responsabilidade civil. Nesse sentido, os doutrinadores ponderaram que, se o causador do dano investe com efetividade em compliance, pode-se cogitar a mitigação (redução equitativa) da indenização, numa espécie de sanção premial por seguir determinados standards de conduta (parágrafo único do art. 944 do CC).20 Ainda, nesse contexto, destaca-se a importante proposição de Hans Jonas, de uma ética da responsabilidade (princípio da responsabilidade). Trata-se de uma tarefa prognóstica e profilática em vista das consequências. A responsabilidade tem um princípio interno, portanto, porque está ligado à capacidade de previsão da consequência. Diante dos novos riscos e desafios tecnológicos, a responsabilidade é, sobretudo, uma forma de evitar que o próprio dano se concretize. Em outras palavras, não se trata de uma responsabilidade por uma ação já cometida, mas um compromisso por fazer ou deixar de fazer algo. A responsabilidade se liga à ideia de precaução em relação aos futuros efeitos ambivalentes da ação presente. De fato, a função compensatória por si só já não é capaz de responder aos reclamos de tutela de direitos fundamentais no contexto das tecnologias digitais emergentes. Diante dessas breves reflexões, observa-se que todas essas são realidades fantásticas, mas de certa forma, assustadoras. Não se pode negar que existem perigos para as relações humanas. Razão, ciência, humanismo e progresso: ideais do Iluminismo que são notadamente atemporais, conforme aponta Steven Pinker na obra "O Novo Iluminismo: em Defesa da Razão, da Ciência e do Humanismo". Um olhar crítico pondera: as inovações tecnológicas laçam luzes sobre a condição humana, o que evidencia a necessidade de impulsionar o pensamento crítico e o processo contínuo da descoberta e melhoria do conhecimento, bem como o aperfeiçoamento gradual e/ou ressignificação dos institutos e normas. Isso tende a se tornar mais acentuado no futuro. Gostemos ou não, novos paradigmas se aproximam e é essencial tentar entendê-los. Em breve, traremos a continuação do presente texto, com análise dos impactos de novas tecnologias no direito civil e médico a partir de uma terceira e quarta perspectivas: 3) O Admirável Mundo Novo da Inteligência Artificial e o ChatGPT; 4) Metaverso e os Gêmeos Digitais (digital twins). __________ 1 BARROSO, Luís Roberto. Sem data venia. Rio de Janeiro: História Real, 2020, p. 78. 2 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. 3 MARTINS, Guilherme Magalhães. Direito ao esquecimento na era da memória e da tecnologia. Revista dos Tribunais, v. 1019, p. 109-153, set. 2020. 4 SÁ, Maria de Fátima Freire de; NEVES, Bruno Torquato de Oliveira. O direito ao esquecimento e a decisão do Supremo Tribunal Federal na Tese de Repercussão Geral n. 786. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil, v. 28, p. 193-206, abr./jun. 2021. 5 Sobre o tema, destacam-se os seguintes trabalhos de Michael C. Silva: BARBOSA, Caio César do Nascimento; SILVA, Michael César.; BRITO, Priscila Ladeira Alves de. Publicidade ilícita e influenciadores digitais: novas tendências da responsabilidade civil. Revista IBERC, Belo Horizonte, v. 2, n. 2, 2019.  SILVA, Michael César.; BARBOSA, Caio César do Nascimento; GUIMARÃES Glayder Daywerth Pereira. A responsabilidade civil dos influenciadores digitais na "era das lives". Migalhas de Responsabilidade Civil, 10/06/2020. 6 MASCARENHAS, Igor de Lucena; NOGAROLI, Rafaella. Ser visto para ser lembrado: a publicidade médica em redes sociais como desencadeadora de Responsabilidade Civil. Migalhas de Responsabilidade Civil, 24/05/2022. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/366566/publicidade-medica-em-redes-sociais-como-responsabilidade-civil. Acesso em 17 jun. 2022. 7 DANTAS, Eduardo. NOGAROLI, Rafaella. Consentimento informado do paciente frente às novas tecnologias da saúde (telemedicina, cirurgia robótica e inteligência artificial). Lex Medicinae - Revista Portuguesa de Direito da Saúde, Coimbra, n. 13, ano 17, p. 25-63, jan./jun. 2020. 8 KFOURI NETO, M; NOGAROLI, Rafaella. Inteligência artificial nas decisões clínicas e a responsabilidade civil médica por eventos adversos no contexto dos hospitais virtuais. In: BARBOSA, Mafalda Miranda; BRAGA NETTO, Felipe; CÉSAR SILVA, Michael; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura (coord.). Direito digital e Inteligência artificial: diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 1079-1107. 9 MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; MEDON, Filipe. A reconstrução digital póstuma da voz e da imagem: critérios necessários e impactos para a responsabilidade civil. Migalhas de Responsabilidade Civil, 19/08/2021. Disponível aqui. Acesso em 18 jun. 2022. SCHAEFER, Fernanda; FREDERICO, Glitz. A existência da responsabilidade contratual post mortem: Breves notas a partir da série Upload. Migalhas de Responsabilidade Civil, 21/10/2021. Disponível aqui. Acesso em 18 jun. 2022. 10 ZAMPIER. Bens digitais: cybercultura, redes sociais, e-mails, músicas, livros, milhas aéreas, moedas virtuais. 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2021, passim. 11 FORD, Roger Allan; PRICE, W. Nicholson. Privacy and accountability in black-box medicine, Michigan Telecommunications & Technology Law Review, v. 23, p. 1-43, 2016. 12 PASQUALE, Frank. The black box society: the secret algorithms that control money and information. Cambridge: Harvard University Press, 2015, p. 26-30. 13 BASAN, Arthur Pinheiro. Publicidade digital e proteção de dados pessoais. O direito ao sossego. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 185-201. 14 ROSENVALD, Nelson. A polissemia da responsabilidade civil na LGPD. Migalhas de Proteção de Dados, 6/11/2020. Disponível aqui. Acesso em: 17 jun. 2022. 15 ROSENVALD, Nelson. A polissemia da responsabilidade civil na LGPD. Migalhas de Proteção de Dados, 6/11/2020. Disponível aqui. Acesso em: 17 jun. 2022. 16 ROSENVALD, Nelson. O compliance e a redução equitativa da indenização na LGPD. Migalhas de Proteção de Dados, 9/03/2021. Disponível aqui. Acesso em: 17 jun. 2022. 17 ROSENVALD, Nelson. O direito civil em movimento: desafios contemporâneos. 4. ed. São Paulo: JusPodivm, 2022, p. 210-216. 18 SCHAEFER, Fernanda. Telessaúde e responsabilidade digital na lei 14.510/22. Migalhas de Responsabilidade Civil, 14/02/2023. Disponível aqui. Acesso em 14 fev. 2023. 19 SANTOS, Romualdo Baptista dos Santos. A responsabilidade digital na lei da telessaúde. O que é isso?. Migalhas de Responsabilidade Civil, 7/02/2023. Disponível aqui. Acesso em 14 fev. 2023. 20 ROSENVALD, Nelson; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Accountability e mitigação da responsabilidade civil na Lei Geral de Proteção de Dados. In: FRAZÃO, Ana; CUEVA, Ricardo Villas Bôas.  Compliance e políticas de proteção de dados. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 771-807.
Em maio de 2022, a Academia Nacional de Cuidados Paliativos (ANCP) e a Academia Brasileira de Neurologia (ABN) posicionaram-se favoravelmente pela não implementação ou retirada da alimentação e hidratação artificiais de paciente em estado vegetativo crônico respeitada a sua vontade previamente manifestada. Alguns meses depois, em agosto de 2022, o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (CREMESP) aprovou a Resolução 355 que estabeleceu diretrizes éticas para auxiliar o médico na tomada de decisões sobre cuidados e tratamentos de pacientes que enfrentam a fase final da vida, incluindo a retirada do suporte artificial de nutrição, por meio de dieta enteral ou parenteral, e hidratação. A partir desses posicionamentos éticos e técnicos na área dos cuidados paliativos, torna-se relevante discutir, na perspectiva epistemológica do direito, os aspectos jurídicos da aplicação prática de tal medida no Brasil.  Para isso, este ensaio revisitará os fundamentos jurídicos de algumas decisões judiciais internacionais paradigmáticas sobre o tema e, em seguida, analisará as normas éticas e jurídicas vigentes nacionalmente, propondo um diálogo das fontes. Fundamentos jurídicos do direito de recusar tratamento Em 1969, um dos mais proeminentes advogados de direitos humanos do século XX, Luis Kutner, discutiu no artigo intitulado Due process of eutanásia: the living will, a proposal (1969) os problemas jurídicos decorrentes do não reconhecimento formal pela Constituição dos Estados Unidos do direito de paciente enfermo morrer se ela assim desejar. Dentre eles, destacou que tal lacuna poderia suscitar a interpretação de que uma pessoa com uma doença incurável ou terminal poderia ser obrigada a viver com dor e desespero, em razão do sofrimento causado por tal enfermidade. Evidentemente, Kutner (1969) demonstrou que tal lacuna jurídica era incompatível com o Estado de Direito em face da violação ao direito constitucional à privacidade, entendido aqui como a capacidade da pessoa, fundada no direito à liberdade, de tomar as suas decisões fundamentais na sua esfera privada, sem a interferência do Estado. De acordo com esse direito, entre as decisões fundamentais que o indivíduo teria capacidade para se autodeterminar, citam-se aquelas relacionadas, exemplificadamente, à orientação sexual, ao planejamento familiar e ao processo de morrer (LANGE, 2009). Inconformado com esse cenário, Kutner (1969) propôs a elaboração prévia de um documento - o testamento vital - com base no consentimento informado, no qual o paciente permitiria a morte em virtude da inação médica caso se encontrasse em uma situação incurável e irreversível, de modo a evitar o prolongamento do seu sofrimento. De acordo com o jurista, esse documento permite ao paciente recusar tratamento médico, podendo, inclusive, ser utilizado por pacientes Testemunhas de Jeová para a recusa de transfusão de sangue (KUTNER, 1969). As diretivas antecipadas de vontade, gênero do qual o testamento vital constitui uma de suas espécies (WILLMOTT et.al., 2006), é usado, portanto, para estender a autonomia do paciente para além da sua capacidade (EMANUEL, 1991), sendo um instrumento jurídico válido para o exercício da recusa de tratamento médico quando o paciente se tornar incapaz de exercer a sua autodeterminação. Casos judiciais paradigmáticos de direito de recusar tratamento A tese jurídica proposta por Kutner passou então a ser utilizada em diversos julgamentos paradigmáticos nos Estados Unidos, como nos casos Quinlan e Cruzan. Karen Ann Quinlan tinha 21 anos de idade quando foi internada, primeiramente, no Newton Memorial Hospital, Estado americano de New Jersey. Ela misturou bebida alcóolica com remédios para emagrecer e foi encontrada desacordada com parada cardiorrespiratória. Após alguns meses em estado vegetativo persistente, os pais de Quinlan solicitaram a retirada do tubo de ventilação artificial. Para isso, tiveram que ingressar na justiça, pois Quinlan não tinha feito as suas diretivas antecipadas. (PESSINI, 2004, p. 110). A decisão judicial do processo In the matter of Karen Quinlan, proferida pelo Tribunal de New Jersey em 1976, ratificou que: i) o direito constitucional à privacidade autoriza a todo enfermo o direito de recusar tratamento médico; ii) a retirada do ventilador artificial - meio extraordinário de manutenção da vida - não configura crime; e iii) diante da inexistência de diretiva antecipada de vontade de paciente incompetente, poderá haver a sub-rogação da tomada de decisão terapêutica de suspensão ou não de meio extraordinário e artificial de manutenção da vida. Essa decisão foi tão relevante que, de acordo com Lim (2005), marcou o nascimento do movimento "right to die". Meisel e Cerminara (2004) esclarecem que o termo "direito de morrer" passou a ser amplamente utilizado pelos Tribunais, podendo ser combinado com as expressões "morte natural" ou "morte com dignidade", e, eventualmente, podendo ser equiparado à eutanásia ou crime de misericórdia. Todavia, os autores rejeitam tal equiparação quando se referir a ação de ceifar a vida, reivindicando o conteúdo do right to die como direito de recusar tratamento médico. Outro julgamento paradigmático a ser destacado é o caso Cruzan. Em 1983, quando tinha 25 anos de idade, Nancy Cruzan teve danos cerebrais significativos devido à falta de oxigenação no cérebro após sofrer um acidente de carro, permanecendo em estado vegetativo persistente. Passados cinco anos nessa condição, ante a situação de irreversibilidade, seus pais solicitaram judicialmente a suspensão do suporte de alimentação e hidratação artificiais para permitir a morte da filha, que também não tinha diretivas antecipadas. (LARSON, 2005). Em 1990, em decisão histórica, a Suprema Corte dos Estados Unidos (EUA) reconheceu que: i) a suspensão da hidratação e alimentação artificiais em pacientes em estado vegetativo persistente inclui-se no direito de recusar tratamento médico e que esse, por sua vez, encontra-se fundado no direito constitucional à privacidade; ii) para o exercício daquele direito, os indivíduos adultos e capazes devem manifestar a sua vontade mediante a elaboração de diretivas antecipadas; e iii) para os incapazes de exercer a sua autonomia acerca da decisão de retirada da nutrição artificial, tornar-se necessária a apresentação de provas claras e convincentes do desejo do paciente (LO; STEINBROOK, 1991). (Des)necessidade de comprovação do desejo de recusa do suporte artificial Um dado relevante de ser retomado no caso Nancy Cruzan foi a exigência de apresentação de provas claras e convincentes do desejo da paciente para a retirada do suporte artificial de alimentação e hidratação. Diferentemente do caso Quinlan, em que a liberdade de escolha para a tomada da decisão terapêutica foi sub-rogada aos representantes legais, no caso Cruzan, a comprovação inequívoca da vontade da paciente foi necessária para a recusa do tratamento. Isso ocorreu em razão da exigência de tal comprovação pela Lei do Testamento Vital do Estado do Missouri, local onde ocorreu o caso Cruzan e tramitou o processo judicial. A Suprema Corte dos Estados Unidos foi então suscitada a decidir a constitucionalidade ou não de tal exigência. Vale esclarecer acerca do caso Quinlan que a Suprema Corte dos Estados Unidos (COURT US, 1990) endossou a interpretação do Tribunal de New Jersey de que a única forma de garantir o respeito ao direito à privacidade de paciente incompetente, que não expressou os seus desejos de fim de vida em um testamento vital, seria sub-rogando o consentimento da retirada do suporte vital aos representantes legais. Nesse sentido, a Suprema Corte afirmou: Observando que o interesse do Estado [de preservação da vida do paciente] "se enfraquece e o direito do indivíduo à privacidade cresce à medida que o grau de invasão corporal aumenta e o prognóstico diminui", o tribunal concluiu que os interesses do Estado tiveram que ceder nesse caso [...] O tribunal também concluiu que a "única maneira prática" de evitar a perda do direito à privacidade de Karen devido à sua incompetência era permitir que seu tutor e família decidissem "se ela o exerceria nessas circunstâncias" (COURT US, 1990). Apesar de ter concordado com a sub-rogação aos representantes legais da retirada do suporte vital, em relação ao caso Cruzan, a Suprema Corte dos Estados Unidos ratificou a decisão do Tribunal do Missouri, que decidiu que ninguém pode ordenar um tratamento que sustente o fim da vida de um paciente incompetente na ausência de um testamento vital válido ou de evidências claras e convincentes dos desejos do paciente (COURT US, 1990). Assim, enquanto no caso Quinlan, o Tribunal reconheceu que a única forma de garantir o respeito ao direito à privacidade de paciente incompetente que não expressou os seus desejos de fim de vida em um testamento vital seria sub-rogando o consentimento aos representantes legais, no caso Cruzan, a Suprema Corte afirmou que uma pessoa incompetente não tem o mesmo direito constitucionalmente protegido que uma competente de recusar o tratamento que sustenta a vida. Logo, decidiu que, nesses casos, seria constitucional a exigência do Estado do Missouri de limitar o exercício desse direito, não sub-rogando à família a decisão pela retirada do suporte vital diante da ausência de diretivas antecipadas e exigindo provas claras e convincentes do desejo do paciente. Verifica-se, portanto, que o direito de retirada de suporte vital, incluindo suspensão da nutrição e hidratação, poderá ser exercido por paciente incompetente que não fez as suas diretivas antecipadas se foram cumpridas as exigências da lei regulamentadora, tal como a comprovação inequívoca do desejo do enfermo. Por outro lado, diante da ausência de requisitos específicos da lei regulamentadora das diretivas antecipadas, o direito de recusar tratamento médico do paciente em estado vegetativo que não registrou a sua vontade em um testamento vital poderá ser sub-rogado aos representantes legais. Diretrizes da ANCP e CREMESP sobre a retirada da nutrição artificial O posicionamento da ANCP e da ABN defendeu a legitimidade ética e jurídica da não implementação ou retirada de dieta em paciente em estado vegetativo crônico desde que: i) confirmada a irreversibilidade da condição vegetativa do paciente por equipe multiprofissional experiente (item 11); ii) evidenciado o desejo antecipado do paciente de não ser continuada a alimentação artificial por diretivas antecipadas de vontade ou por relatos de familiares e entes queridos do paciente (item 1); e iii) consentimento esclarecido do representante legal do paciente (item 22). A partir das premissas internacionais expostas, verifica-se que as diretrizes do item 1 do posicionamento da ANCP e da ABN encontram amparo na tese jurídica proposta por Kutner e no caso judicial de Cruzan de recusa de alimentação e hidratação artificiais. No entanto, o item 2 pode gerar equívocos de interpretação, ao vincular a retirada da dieta artificial do paciente em estado vegetativo à obrigatoriedade do consentimento do representante legal, tornando-se necessário tecer alguns apontamentos. Em primeiro lugar, importa esclarecer que a participação dos familiares no processo deliberativo de não implementação ou retirada do suporte artificial de hidratação e nutrição - ainda que esteja condizente com o atual modelo de tomada de decisão compartilhada, que inclui a participação dos familiares do paciente no processo de deliberação terapêutica - não é suficiente, por si só, para a autorizar a limitação do suporte vital do paciente que não tenha deixado registrado a sua diretiva antecipada de vontade nesse sentido. Como explicitado anteriormente, o interesse do Estado de preservar a vida do paciente diminui e o direito individual à privacidade do paciente cresce à medida que o grau de invasão corporal do suporte artificial aumenta e o prognóstico diminui. Logo, juntamente com o consentimento do representante legal (item 2), faz-se necessária a apresentação de diretivas antecipadas válidas ou provas claras e convincentes do desejo do paciente pela suspensão da alimentação e hidratação artificiais (item 1). Em segundo lugar, a decisão do representante legal acerca da limitação do suporte de dieta artificial pode entrar em conflito com a diretiva antecipada do paciente ou mesmo com a decisão técnica da equipe multidisciplinar de cuidados paliativos em relação às medidas de conforto do paciente. Se os conflitos entre a decisão dos familiares do paciente acerca da retirada do suporte vital e a decisão da equipe multiprofissional norteada pela boa prática clínica que repudia a obstinação terapêutica não forem conduzidos por uma comunicação efetiva, esses casos podem repercutir não somente na mídia como no judiciário. À título exemplificativo, cita-se o caso do bebê inglês Charles Gard que, além de ter demandado várias decisões judiciais nacionais e até do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, provocou o pronunciamento do Vaticano e do então Presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. Assim, Dadalto e Affonseca (2018) recomendam o aprimoramento das técnicas de comunicação entre equipe e os familiares, além de uma atuação mais empática da equipe de saúde, de modo que tais conflitos possam ser resolvidos sem a intervenção do Poder Judiciário. Ainda sobre o conflito no processo deliberativo, importante apontar a possibilidade de divergência entre a recusa do suporte vital feita validamente no testamento vital pelo paciente e a decisão do representante legal. Nesses casos, a Resolução CFM 1.995/2012 determina a prevalência das diretivas antecipadas sobre o parecer de não médicos. Como fica então o item 2 do posicionamento da ANCP e da ABN? Deve simplesmente ser ignorado e descumprido? Embora o consentimento dos familiares não seja o requisito obrigatório quando existir testamento vital nos termos da Resolução CFM 1.995/2012, a busca do consenso com o representante legal deve ser perseguida pela equipe de saúde para evitar a judicialização do caso, conforme solução apontada por Dadalto e Affonseca (2018). Em relação à Resolução CREMESP 355/22 acerca da retirada do suporte artificial de nutrição e hidratação, foram elencados cinco requisitos para que a recusa seja considerada ética: Art. 3º Para que a retirada de suporte artificial de vida (SAV) seja considerada eticamente aceitável em situações de futilidade terapêutica ou de tratamento potencialmente inapropriado, cinco pré-requisitos devem ser atendidos, a saber: I. O paciente em questão deve estar em fase terminal de enfermidade grave e incurável, identificada pelo seu médico responsável. Estas condições devem também ser diagnosticadas por outros dois médicos, sendo um destes médicos necessariamente especialista na área que causou a doença terminal e o segundo, médico atuante em área de cuidados paliativos. II. O objetivo da retirada do SAV é permitir a evolução da doença de maneira natural e com menor sofrimento até o momento do óbito. III. A retirada do SAV é considerada tecnicamente adequada por dois médicos, além do médico responsável pelo paciente, o qual indicou os cuidados paliativos. IV. A retirada do SAV está de acordo com a vontade do paciente, ou na sua impossibilidade, de seu representante legal. V. Todos os cuidados paliativos apropriados serão mantidos ou intensificados, visando o conforto do paciente e de sua família. (CREMESP, 2022). Além disso, a Resolução CREMESP 355/22 rechaça a realização de tratamento fúteis (aquele "que, de acordo com melhor evidência científica disponível, mostre-se incapaz de atingir o objetivo biológico almejado" - art. 1º) ou tratamento potencialmente inapropriados (aquele "que, embora potencialmente capazes de atingir os objetivos fisiológicos, [...] são altamente improváveis de resultar em sobrevivência digna, de acordo com os valores de vida e preferências de cuidado do paciente" - art. 2º), exigindo o consenso entre os envolvidos ou o envolvimento de equipes especialistas em cuidado paliativo e/ou comitês de ética/bioética (art. 2º). Com base nas premissas internacionais explicitadas anteriormente, a Resolução CREMESP parece encontrar amparo na tese jurídica proposta por Kutner no caso de o paciente estar competente para a tomada de decisão, expressando a sua vontade pela recusa de tratamento. Entretanto, no caso de paciente incapaz de decidir que não tenha deixado diretiva antecipada, resta questionar: a vontade do representante legal é juridicamente suficiente para autorizar a recusa do suporte artificial de alimentação e hidratação, tal como no caso Quinlan, sem a necessidade de apresentar provas claras e convincente do desejo do paciente, tal como exigido no caso Cruzan? Para responder tal questionamento, necessário percorrer as normas brasileiras sobre o tema no próximo subtítulo. Normas éticas e jurídicas nacionais sobre o direito de recusar tratamento médico Em uma perspectiva nacional, torna-se relevante fazer uma interpretação sistemática das normas éticas e jurídicas vigentes no país sobre o direito de recusar tratamento médico, em especial a não implementação ou retirada de dieta artificial em paciente em estado vegetativo crônico, partir do diálogo de tais fontes. Do ponto de vista da deontologia médica, o Conselho Federal de Medicina (CFM) possui diversas resoluções que legitimam eticamente o direito de recusar tratamentos obstinados ou fúteis. A Resolução CFM 1.805/06 permitiu aos médicos a limitação e a suspensão de tratamentos que "prolonguem a vida do doente, garantindo-lhe os cuidados necessários para aliviar os sintomas que levam ao sofrimento, na perspectiva de uma assistência integral, respeitada a vontade do paciente ou de seu representante legal". Já a Resolução CFM 1.995/12 regulamentou as diretivas antecipadas de vontade em prontuários médicos como instrumento para rejeição de medidas desproporcionais que prolongam o sofrimento do paciente sem trazer benefícios. Recentemente, a Resolução CFM 2.232/19 definiu expressamente a recusa terapêutica como direito do "paciente maior de idade, capaz, lúcido, orientado e consciente" (art. 2º). A interpretação sistemática dessas resoluções demonstra que tem legitimidade ética para fazer as suas diretivas antecipadas o paciente competente para a tomada de decisão terapêutica, incluindo a recusa de suporte artificial de alimentação e hidratação, quer expressando os seus desejos de cuidados e tratamentos, quer indicando um representante para a substituição do seu consentimento. Ademais, verifica-se também que, diante da ausência de diretivas antecipadas de paciente que se tornou incapaz de tomar as suas decisões terapêuticas, a Resolução CFM 1805/06 permitiu a retirada de tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade de seu representante legal. Portanto, na perspectiva da deontologia médica, vontade do representante legal é eticamente suficiente para autorizar a recusa do suporte artificial de alimentação e hidratação, tal como no caso Quinlan. Do ponto de vista jurídico, diante da ausência de uma lei federal regulamentadora específica dos direitos dos pacientes ou das diretivas antecipadas de vontade do paciente, resta fazer o diálogo de diversas fontes do direito para a elucidação do questionamento anteriormente formulado. A Lei Orgânica da Saúde, lei 8.080/90, determina que as ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Únicos de Saúde (SUS) devem obedecer ao princípio, entre outros, da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral (art. 7º, III). Já a Lei do Estado de São Paulo 10.241, de 17 de março de 1999, considerada um marco legislativo aos direitos dos pacientes, estabelece como direitos dos usuários dos serviços de saúde (art. 2º): VII - consentir ou recusar, de forma livre, voluntária e esclarecida, com adequada informação, procedimentos diagnósticos ou terapêuticos a serem nele realizados; [...] XXIII - recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida. Ainda no âmbito do sistema de saúde brasileiro, a Carta dos Direitos e Deveres da Pessoa Usuária da Saúde, disposta na Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) 533, de 09 de agosto de 2017, estipula: Terceira diretriz: [...] §11. E' direito da pessoa, na rede de servic¸os de sau'de, ter atendimento humanizado, acolhedor, livre de qualquer discriminac¸a~o, restric¸a~o ou negac¸a~o em virtude de idade, rac¸a, cor, etnia, religia~o, orientac¸a~o sexual, identidade de ge^nero, condic¸o~es econo^micas ou sociais, estado de sau'de, de anomalia, patologia ou deficie^ncia, garantindo-lhe: [...] VI - a informac¸a~o a respeito de diferentes possibilidades terape^uticas de acordo com sua condic¸a~o cli'nica, baseado em evide^ncias e a relac¸a~o custo-benefi'cio da escolha de tratamentos, com direito a` recusa, atestado pelo usua'rio ou acompanhante; [...] VIII - o direito a` escolha de tratamento, quando houver, inclusive as pra'ticas integrativas e complementares de sau'de, e a` considerac¸a~o da recusa de tratamento proposto; De acordo com a interpretação doutrinária do direito civil brasileiro, existem alguns enunciados normativos sobre o tema elaborados no bojo das Jornadas de Direito Civil, organizadas pelo Centro de Estudos Judiciários (CEJ) do Conselho da Justiça Federal (CJF). São eles: Enunciado 528 da V Jornada de Direito Civil (2012) Arts. 1.729, parágrafo único, e 1.857: E' válida a declaração de vontade expressa em documento autêntico, também chamado "testamento vital", em que a pessoa estabelece disposições sobre o tipo de tratamento de sau'de, ou na~o tratamento, que deseja no caso de se encontrar sem condições de manifestar a sua vontade. Enunciado 533 da VI Jornada de Direito Civil (2013) O paciente plenamente capaz poderá deliberar sobre todos os aspectos concernentes a tratamento médico que possa lhe causar risco de vida, seja imediato ou mediato, salvo as situações de emergência ou no curso de procedimentos médicos cirúrgicos que na~o possam ser interrompidos. Art.: 15 do Código Civil. Por fim, no âmbito judicial, importante citar as duas decisões judiciais com validade em todo o território nacional que ratificaram a constitucionalidade e legitimidade jurídica das Resoluções CFM 1805/06 e 1995/12, com base nos princípios e regras constitucionais e legais hodiernamente vigentes, em especial o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e a vedação constitucional de tratamento desumano e degradante (respectivamente, art. 1º, III, e art. 5º, III, da Constituição Federal de 1988 - CF/88). Além destes dispositivos constitucionais citados nas decisões judiciais, aponta-se ainda o princípio da legalidade (art. 5º, II - "II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei") cumulado com o princípio da privacidade (art. 5º, X - "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas"). Como o princípio da legalidade está intrinsecamente ligado ao direito à liberdade, sendo a lei uma garantia da liberdade do particular, que pode fazer tudo aquilo que a lei não proibir, depreende-se, à luz da tese jurídica de Kutner já explicitada, que a liberdade do paciente de tomar as suas decisões fundamentais na sua esfera privada - incluindo aquelas decisões relacionadas à recusa de suporte vital, como a alimentação e hidratação artificiais, em que não legislação proibitiva - encontra amparo no direito constitucional brasileiro. Do diálogo entre as fontes da dogmática jurídica brasileira e da deontologia médica nacional, conclui-se que o direito de suspensão da nutrição e hidratação artificiais poderá ser exercido de forma compartilhada com a equipe de saúde: i) por paciente com capacidade civil plena por meio exercício da sua autonomia; ii) por paciente incompetente que exprimiu antecipadamente a sua vontade em suas diretivas de vontade; iii) pelo representante quando expressamente indicado nas diretivas antecipadas de paciente; iv) pelo representante de paciente incompetente que não deixou diretivas antecipadas. Em relação ao último item supracitado, a decisão de limitação de suporte vital pelo representante de paciente incompetente que não deixou diretivas antecipadas justifica-se com base na ausência de lei federal regulamentadora e, consequentemente, pela ausência de proibição legal da suspensão do suporte artificial de alimentação e hidratação. Sobre isso, vale esclarecer que, não obstante a eutanásia e o suicídio medicamente assistido sejam considerados crime de homicídio privilegiado (art. 121, parágrafo 1º, Código Penal) e crime de auxílio ao suicídio (art. 122 do Código Penal), respectivamente, a suspensão do suporte artificial de alimentação e hidratação não é tecnicamente enquadrada nesses tipos penais. Ao contrário, como já explicitado nas decisões judiciais dos casos Quinlan e Cruzan, é considerada recusa de tratamento médico amparada pelo direito constitucional à privacidade. Nesse sentido, importante citar trecho do julgamento do caso Cruzan: [...] as técnicas usadas ou não para passar alimentos e água para o trato alimentar do paciente são chamadas de "tratamento médico", porque todas elas envolvem algum grau de intrusão e contenção. Alimentar um paciente por meio de um tubo nasogástrico requer que um médico passe um tubo longo e flexível pelo nariz, garganta e esôfago do paciente e no estômago. Por causa do desconforto que tal tubo causa, "todos os pacientes precisam ser contidos à força e suas mãos colocadas em luvas grandes para evitar que eles removam o tubo" [...] Um tubo de gastrostomia (como foi usado para fornecer comida e água a Nancy Cruzan [...] ou tubo de jejunostomia que tem ser implantado cirurgicamente no estômago ou intestino delgado [...] Exigir que um adulto competente se submeta a tais procedimentos contra sua vontade sobrecarrega a liberdade, a dignidade e a liberdade da paciente para determinar o curso de seu próprio tratamento. Assim, a liberdade garantida pela Cláusula do Devido Processo deve proteger, se proteger alguma coisa, a decisão profundamente pessoal de um indivíduo de rejeitar o tratamento médico, incluindo a entrega artificial de alimentos e água. (COURT US, 1990). Portanto, tal como no caso Cruzan, se houvesse uma exigência legal a restringir o direito de recusa terapêutica, que no ordenamento jurídico brasileiro se encontra ancorado dos princípios da privacidade cumulado com o da legalidade, é provável que a decisão, por si só, do representante de paciente incompetente que não deixou diretivas antecipadas não fosse juridicamente suficiente. Entretanto, tal como no caso Quinlan, diante da ausência de lei regulamentadora das diretivas antecipadas, as fontes acima elencadas mostram-se ética e juridicamente suficientes para fundamentar o direito de suspensão da alimentação e hidratação artificiais de paciente em estado vegetativo que não registrou a sua vontade em um testamento vital. ---------- 1 Posicionamento da ANCP e ABN (2022): "1. É ético e legal a renúncia à dieta artificial (não instalação ou retirada), diante de situação de estado vegetativo crônico onde haja clareza, após o devido processo de avaliação diagnóstica e prognóstica por equipe interdisciplinar experiente no manejo de pacientes com distúrbios prolongados de consciência, de que as possibilidades de recuperação da consciência e/ou da funcionalidade são mínimos e haja evidências obtidas através de diretivas antecipadas de vontade ou de relatos de familiares e entes queridos do paciente de que, para o mesmo, em função de seus valores pessoais, ser mantido indefinidamente em tais condições representaria algo pior do que a própria morte. Nestes casos, a retirada/não introdução da nutrição e hidratação por via artificial não correspondem nem a eutanásia nem ao suicídio.". 2 Posicionamento da ANCP e ABN (2022): "2. A suspensão/não introdução de nutrição e hidratação por via artificial somente pode ser realizada mediante o consentimento esclarecido do representante legal do paciente.".
No último dia 6 de dezembro, a Comissão de Juristas do Senado Federal, da qual tive a honra de fazer parte como membro, entregou ao Presidente da Casa, senador Rodrigo Pacheco, o anteprojeto do texto para regular a Inteligência Artificial no Brasil. Sob presidência do Ministro do STJ Ricardo Villas Bôas Cueva e relatoria da Professora Laura Schertel Mendes, o texto é fruto do intenso trabalho da Comissão ao longo dos últimos meses, contando com ampla participação de diversos setores da academia, mercado e sociedade civil por meio de audiências públicas e seminário internacional. O presente artigo não se revela, sob nenhuma circunstância, em manifestação de caráter institucional, nem pretende fazer uma defesa do texto apresentado. Seu único objetivo é fornecer alguns subsídios para o debate que continua agora que o anteprojeto foi entregue ao Senado Federal. Quais são os seus possíveis impactos para o Direito Médico? O texto, como dispõe seu artigo 1º, "estabelece normas gerais de caráter nacional para o desenvolvimento, implementação e uso responsável de sistemas de inteligência artificial (IA) no Brasil, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais e garantir a implementação de sistemas seguros e confiáveis, em benefício da pessoa humana, do regime democrático e do desenvolvimento científico e tecnológico." Tem-se, assim, como grandes pilares a centralidade da pessoa humana e a preocupação com a concretização de direitos, ao mesmo tempo em que se busca estabelecer diretrizes mínimas para a governança em relação à utilização desta tecnologia que se espraia pelos mais diversos meios da vida social. Os avanços da Inteligência Artificial no campo da Saúde têm sido amplamente difundidos, assim como os seus riscos. Algoritmos inteligentes atuam na prevenção de doenças, no diagnóstico e, até mesmo, na escolha das terapêuticas mais adequadas. A IA aplicada à robótica já é capaz de performar atos cirúrgicos que demandam intensa precisão1, sem mencionar a assistência à saúde em sentido amplo, que abrange, por exemplo, os tão difundidos robôs cuidadores. Nos exames, veja-se o caso do "Dio.io", criado pela sociedade empresária Healthy.io em parceria com a Siemens Healthineers, que "permite que pacientes possam fazer seu exame de urina no conforto de suas casas. Aprovado recentemente pela agência norte-americana de fármacos FDA, o produto é um é um kit que coleta e analisa amostras com ajuda de machine learning e visão computacional."2 No entanto, apesar dos inúmeros e inequívocos avanços proporcionados pela Inteligência Artificial na área, não há como escapar dos eventuais danos aos pacientes, nem mesmo de dilemáticas questões éticas, que desafiam a cada dia mais a relação médico-paciente. Apesar de não contar com regulação específica sobre as aplicações da Inteligência Artificial na Saúde, o anteprojeto apresentado pela Comissão de Juristas prevê a adoção de algumas normas com significativa repercussão. Em primeiro lugar, destaca-se que o anteprojeto se estrutura numa abordagem de regulação da Inteligência Artificial a partir dos riscos. Em seus artigos 14 a 16, disciplina o chamado "risco excessivo", que, no fundo, abrange aquilo que na dogmática europeia tem sido referido por vezes como "risco inaceitável". Trata-se, em última análise, de aplicações vedadas pela legislação, já que o ordenamento jurídico pátrio não as toleraria. Como exemplos, pode-se citar os sistemas de IA3: "que empreguem técnicas subliminares que tenham por objetivo ou por efeito induzir a pessoa natural a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança ou contra os fundamentos desta lei" (art. 14, inciso I); "que explorem quaisquer vulnerabilidades de um grupo específico de pessoas naturais, tais como associadas à sua idade ou deficiência física ou mental, de modo a induzi-las a se comportar de forma prejudicial à sua saúde ou segurança ou contra os fundamentos desta lei" (art. 14, inciso II) e que sejam utilizadas "pelo poder público para avaliar, classificar ou ranquear as pessoas naturais, com base no seu comportamento social ou em atributos da sua personalidade, por meio de pontuação universal para o acesso a bens e serviços e políticas públicas, de forma ilegítima ou desproporcional (art. 14, inciso III)". Além do risco excessivo, o anteprojeto disciplina, em seus artigos 17 e 18 os chamados sistemas de IA de "alto risco", descritos taxativamente em hipóteses atualizáveis pela autoridade competente4 - a ser designada por lei - por meio da observância de critérios descritos no artigo 18. E é precisamente no "alto risco" que o anteprojeto enquadra os sistemas de IA utilizados para as finalidades de "aplicações na área da saúde, inclusive as destinadas a auxiliar diagnósticos e procedimentos médicos" (artigo 17, inciso IX). São grandes os impactos da previsão deste inciso (de natureza exemplificativa, haja vista o emprego do vocábulo "inclusive") no rol dos sistemas de IA de alto risco, tanto para a governança, como também para a Responsabilidade Civil. Um primeiro impacto mais imediato reside na exigência de que a "documentação técnica de um sistema de IA de alto risco deve ser elaborada antes da disponibilização no mercado ou de seu uso para prestação de serviço e deve ser mantida atualizada durante sua utilização." (artigo 19, §2º). Além disso, prevê o artigo 20 uma série de outras medidas de governança, a exemplo de testagem, medidas de gestão de dados para mitigar e prevenir vieses discriminatórios, bem como a supervisão humana efetiva (effective human oversight), que abrange até mesmo o dever de considerar o chamado automation bias ou viés de automação, que consistiria na "ciência da possível tendência para confiar automaticamente ou confiar excessivamente no resultado produzido pelo sistema de IA" (artigo 20, § único, inciso II). Ainda em termos de governança, o artigo 7º prevê que as "[p]essoas afetadas por sistemas de inteligência artificial têm o direito de receber, previamente à contratação ou utilização do serviço de IA, informações claras e adequadas quanto" às "as medidas de segurança, não-discriminação e confiabilidade adotadas, incluindo acurácia, precisão e cobertura" (inciso VI). Digna de nota também é a regra relativa à chamada "avaliação de impacto algorítmico de sistema de IA", que, segundo disposto no artigo 22, será obrigatória aos agentes de IA "sempre que o sistema for considerado como de alto risco pela avaliação preliminar." Além disso, conforme previsão do parágrafo único do dispositivo, "[a] autoridade competente deverá ser notificada sobre o sistema de alto risco, mediante o compartilhamento da avaliação preliminar e de impacto algorítmico." Por derradeiro, o artigo 43 prevê que "[c]abe à autoridade competente a criação e manutenção de uma base de dados de IA de alto risco, acessível ao público, que contenha os documentos públicos das avaliações de impacto, respeitados os segredos comercial e industrial, nos termos do regulamento." Em relação ao regime de responsabilidade civil,5 o anteprojeto acabou por realizar um duplo recorte: objetivo e subjetivo. Assim, objetivamente, confere-se resposta distinta a depender do grau de risco da IA e, subjetivamente, o regime legal aplica-se apenas aos fornecedores e operadores de IA, descritos pela lei como "agentes de IA".6 Com efeito, para danos causados por agentes de IA que operem sistemas de alto risco ou risco excessivo, o regime de responsabilidade civil será de natureza objetiva. Para os demais níveis de risco, o regime terá natureza subjetiva com presunção de culpa e inversão do ônus da prova em favor da vítima do dano. Os agentes de IA, segundo o artigo 28, somente não serão responsabilizados quando: "I - comprovarem que não colocaram em circulação, empregaram ou tiraram proveito do sistema de IA; II - comprovarem que o dano é decorrente de fato exclusivo da vítima ou de terceiro, assim como de caso fortuito externo." Nada obstante, segundo previsão expressa do artigo 29, "As hipóteses de responsabilização civil decorrentes de danos causados por sistemas de IA no âmbito das relações de consumo permanecem sujeitas às regras previstas no Código de Defesa do Consumidor, sem prejuízo da aplicação das demais normas desta Lei." Ademais, os usuários de IA que não se enquadrem nos conceitos de fornecedor e operador continuarão regidos pela legislação pertinente, a exemplo do que ocorrerá com o Estado, que tem seu regime de responsabilizado fixado pelo parágrafo 6º do artigo 37 da Constituição da República. Como consequência, danos causados por hospitais e médicos em relação aos pacientes, em princípio, continuarão regidos pelas normas consumeristas. Vislumbra-se aplicação do regime do anteprojeto, por exemplo, em casos de litigância entre agentes empresariais, como entre hospitais que forneçam tecnologias uns para os outros, havendo sempre que se verificar a existência de vulnerabilidade apta a atrair a incidência da legislação consumerista. Outros destaques ainda podem ser feitos para o Direito Médico. Em especial, ganham relevo a centralidade do ser humano e os direitos associados à informação, além dos seguintes princípios elencados ao longo do rol do artigo 3º: autodeterminação e liberdade de decisão e escolha; participação humana no ciclo da inteligência artificial e supervisão humana efetiva; não discriminação; transparência, explicabilidade, inteligibilidade e auditabilidade; prestação de contas, responsabilização e reparação integral de danos; prevenção, precaução e mitigação de riscos sistêmicos derivados de usos intencionais ou não intencionais e efeitos não previstos de sistemas de inteligência artificial; não maleficência e proporcionalidade entre os métodos empregados e as finalidades determinadas e legítimas dos sistemas de inteligência artificial. O princípio da não maleficência, colhido da bioética, tem relevante aplicação para o Direito Médico, assim como a necessidade de inteligibilidade. Esta última se projeta, por exemplo, no consentimento livre, esclarecido e informado dos pacientes que devem ser amplamente advertidos quando o tratamento envolver alguma ferramenta de Inteligência Artificial. Tal princípio ainda se projeta e se aprofunda ao longo da lei por meio de disposições como a do artigo 7º, §3º, segundo a qual: "Os sistemas de IA que se destinem a grupos vulneráveis, tais como crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência, devem ser desenvolvidos de tal modo que essas pessoas consigam entender o seu funcionamento e seus direitos em face dos agentes de IA." No fundo, não basta que um idoso saiba que está sendo operado por um robô que utilize IA: é preciso que inequivocamente compreenda o que isso significa, bem como os seus direitos. Outrossim, merece atenção o artigo 11, segundo o qual: "[e]m cenários nos quais as decisões, previsões ou recomendações geradas por sistemas de IA tenham um impacto irreversível ou de difícil reversão ou envolvam decisões que podem gerar riscos à vida ou à integridade física de indivíduos, deve haver envolvimento humano significativo no processo decisório e determinação humana final." Sobre este artigo deverá se debruçar a doutrina do Direito Médico e a jurisprudência, a fim de interpretar como conciliar a norma com a eventual realização de cirurgias robóticas. Deve-se, assim, construir padrões de governança e boas práticas que tenham em primeiro plano sempre os princípios éticos que governam a relação médico-paciente. Como se pode notar nas tímidas considerações deste brevíssimo artigo, o anteprojeto apresentado pela Comissão de Juristas inaugura importante debate na seara legislativa, que agora tende a ser aprofundado com a tramitação no Congresso Nacional. Não há dúvidas de que o texto avança em pontos sensíveis, buscando concretizar direitos e garantias mínimas para o desenvolvimento tecnológico seguro e que tenha a pessoa humana em seu centro. Resta aguardar os próximos passos. __________ 1 KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella. Responsabilidade civil pelo inadimplemento do dever de informação na cirurgia robótica e telecirurgia: uma abordagem de direito comparado (Estados Unidos, União Europeia e Brasil). In: KFOURI NETO, Miguel; NOGAROLI, Rafaella (Coord.). Debates contemporâneos em direito médico e da saúde. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. 2 ALVEZ, Rafael. 5 aplicações da Inteligência Artificial na Medicina. Portal Telemedicina. 30 nov. 2018. Disponível aqui. Acesso em 12 out. 2022. 3 "Art. 4º. Para as finalidades desta Lei, adotam-se as seguintes definições: I - sistema de inteligência artificial (IA): sistema computacional, com graus diferentes de autonomia, desenhado para inferir como atingir um dado conjunto de objetivos, utilizando abordagens baseadas em aprendizagem de máquina e/ou lógica e representação do conhecimento, por meio de dados de entrada provenientes de máquinas ou humanos, com o objetivo de produzir previsões, recomendações ou decisões, que possam influenciar o ambiente virtual ou real. (...)" 4 "Art. 4º. Para as finalidades desta Lei, adotam-se as seguintes definições: (...) V - autoridade competente: órgão ou entidade da Administração Pública Federal responsável por zelar, implementar e fiscalizar o cumprimento desta Lei em todo o território nacional; (...)" 5 Em visão mais aprofundada sobre os impactos para a Responsabilidade Civil, consinta-se remeter a MEDON, Filipe. Inteligência Artificial e Responsabilidade Civil: autonomia, riscos e solidariedade. São Paulo: Juspodivm, 2022, 2. ed. (3ª edição a ser publicada no primeiro semestre de 2023). 6 "Artigo 4º: (...) II - fornecedor de sistema de IA: pessoa natural ou jurídica, de natureza pública ou privada, que desenvolva um sistema de IA, diretamente ou por encomenda, com vistas à sua colocação no mercado ou sua aplicação em serviço por ela fornecido, sob seu próprio nome ou marca, a título oneroso ou gratuito; III - operador de sistema de IA: pessoa natural ou jurídica, de natureza pública ou privada, que empregue ou utilize, em seu nome ou benefício, sistema de IA, salvo se o sistema de IA for utilizado no âmbito de uma atividade pessoal de caráter não profissional. IV - agentes de IA: o fornecedor de sistema de IA e o operador de sistema de IA."
1 Introdução O Direito Penal vem sendo, já há muito, tensionado em virtude do surgimento de "novos" problemas inerentes a âmbitos específicos da vida social - ou até mesmo da imperiosa revisitação, nesses contextos, de tradicionais questões penais, notadamente da parte especial. Apesar de se tratar de área muito explorada em outros países, o estudo do Direito Penal da Medicina é ainda incipiente no Brasil, mas extremamente necessário sobretudo em razão das crescentes complexidades das interrelações entre a Medicina e o Direito. Com efeito, o médico lida em seu cotidiano com bens jurídicos dos pacientes da mais alta importância, v.g. a vida, a integridade física, a privacidade, podendo sua atuação se amoldar a tipos penais como homicídio, aborto, lesão corporal, constrangimento ilegal, violação de segredo profissional etc. Contudo, não é novidade que a dogmática penal tradicional, com viés evidentemente paternalista1, ainda está presa a interpretações ultrapassadas do início do século passado2, cuja constitucionalidade é, no mínimo, duvidosa, além de não dialogar ou sequer compreender as atuais especificidades do Direito da Medicina. Por exemplo, a leitura fria e descontextualizada da dogmática tradicional paternalista permitiria, em tese, a punição de atos evidentemente legítimos de ortotanásia a título de homicídio por omissão imprópria (art. 121 c/c art. 13, par. 2º, CP) ou de omissão de socorro (art. 135, CP). Além disso, coloca deliberadamente nas mãos dos médicos - e não dos pacientes - a determinação da legitimidade das intervenções corporais, como se estes não tivessem qualquer voz sobre o destino de suas vidas e de seus próprios corpos, o que possui reflexos na definição do âmbito típico dos crimes de lesão corporal (art. 129, CP) e de constrangimento ilegal (art. 146, CP). Essa perspectiva tradicional ultrapassada acaba influenciando até hoje a prática judicial, que, além de incorporar sem muita reflexão o modelo paternalista, confina equivocadamente a responsabilidade penal do médico a hipóteses de erro médico, vinculando uma condenação quase que exclusivamente à violação de deveres de cuidado na realização das intervenções. Mais recentemente, um caso de violência obstétrica que teve como vítima a influenciadora Shantal Verdelho ganhou repercussão midiática e envolve, entre outras questões, a delimitação do âmbito típico do crime de lesão corporal em casos de intervenções médicas não consentidas, especificamente no contexto da assistência ao parto. Este caso servirá, aqui, como pretexto para explicitar, uma vez mais, a urgência de se abandonar por completo a dogmática penal paternalista e abrir caminhos para um Direito Penal da Medicina fundado no respeito à autonomia dos pacientes. 2 O caso Shantal O Ministério Público do estado de São Paulo ofereceu denúncia em face do médico obstetra Renato Kalil pela prática, em tese, dos crimes de lesão corporal praticada contra mulher (art. 129, par. 13º, CP) e violência psicológica contra a mulher (art. 147-B, CP), em concurso material (art. 69, CP). Narra a denúncia, em síntese, que o médico havia sido contratado pela então gestante Shantal Verdelho para acompanhar o nascimento da sua filha. Shantal expressou ao longo do pré-natal os seus desejos de ter um parto normal e de não ser submetida a determinados procedimentos, como a episiotomia (um corte cirúrgico feito na vagina e na vulva3 para ampliar o canal de parto). Depois de entrar em trabalho de parto, Shantal foi internada na noite do dia 12 de setembro de 2021 com contrações ativas. Sem entrar no mérito das demais condutas praticadas pelo médico, segundo consta na denúncia o crime de lesão corporal estaria caracterizado, in casu, porquanto o médico (i) determinou que membros da equipe realizassem a chamada manobra de Kristeller, pressionando o útero com o objetivo de facilitar a saída do bebê, a qual é proscrita pela Organização Mundial de Saúde e não havia sido consentida pela parturiente; e (ii) alargou manualmente o canal vaginal sem o consentimento da parturiente, para "facilitar a visualização e a passagem do feto pelo canal do parto", por ela ter recusado a episiotomia. Segundo consta, após o parto a vítima teve laceração perineal de segundo grau e, como consequência, sofreu com dores e incontinência anal. No entanto, o juiz da 25ª Vara Criminal de São Paulo rejeitou a denúncia ofertada pelo MPSP4. No que se refere à lesão corporal, argumenta-se que não haveria justa causa para a ação penal por não ter ficado demonstrado "o erro médico de procedimento por parte do investigado" (fl. 866) e o nexo causal entre a lesão (laceração do períneo) e as condutas realizadas pelo médico. Ou seja, para o juiz a caracterização do crime de lesão corporal dependeria, necessariamente, de um "erro médico" e da demonstração de que os procedimentos realizados pelo médico de fato provocaram uma piora da condição de saúde da parturiente (no caso, a laceração perineal), independentemente de haver ou não consentimento. É definitivamente louvável a preocupação esboçada na decisão com o respeito às garantias processuais penais. Contudo, o julgado pode já de saída ser criticado não apenas em razão do seu descompasso em relação à realidade das violências sofridas cotidianamente pelas gestantes em nosso país e a todo o conhecimento desenvolvido no contexto do movimento pela humanização da assistência ao parto5, mas também pela utilização de argumentos evidentemente paternalistas, conforme demonstrarei na sequência. São muitos os trechos da decisão que eu poderia ressaltar aqui. Eu gostaria, contudo, de chamar a atenção para apenas dois deles, que me dão o ensejo para questionar o âmbito típico do artigo 129 do Código Penal. No primeiro deles, ao dizer, com base na perícia, que não houve "erro médico ou procedimento inadequado" para caracterizar lesão corporal, porquanto o alargamento do canal vaginal realizado com as mãos era, diante da recusa da episiotomia, medicamente indicado para visualizar o feto e facilitar sua saída, o juiz ressalta o fato de que "a vítima, pessoa que não é médica obstetra, estabeleceu que o parto da sua filha seria natural e sem cortes (episiotomia)" (fl. 869). Para ele, portanto, o fato de a vítima ser medicamente leiga e recusar uma intervenção corporal (a episiotomia) seria relevante para a legitimidade do alargamento manual do seu canal vaginal, ainda que sem o seu consentimento. Já no segundo trecho, argumenta-se basicamente que o respeito à vontade da vítima não seria relevante para a determinação da responsabilidade penal do médico: "a adequação ou não do médico ter se submetido a` vontade da vítima e a tudo que ela determinou, o tempo todo, e' matéria do campo ético da medicina" (p. 871). Diante disso, eu gostaria, à luz do caso concreto, de colocar os seguintes questionamentos: possui a vontade do paciente alguma relevância para a determinação do âmbito típico do crime de lesão corporal? Será mesmo que os pacientes devem ter um altíssimo conhecimento técnico (basicamente, cursar Medicina) para poder recusar alguma intervenção em sua esfera corporal? A mera indicação médica de uma intervenção no corpo de um paciente a torna legítima? 3 Intervenções corporais não consentidas como lesões corporais A realização de uma intervenção médica no corpo de alguém promove uma afetação da sua substância corporal, independentemente do resultado a que se chega ou da vontade do médico de promover o bem-estar do paciente. Tanto a incisão feita com um bisturi ou o furo na pele realizado com uma seringa quanto a alteração do organismo provocada por uma transfusão de sangue interferem, inegavelmente, no corpo do paciente. Ainda que o paciente seja voluntariamente submetido a uma intervenção com o objetivo de promover uma possível melhora da sua condição de saúde, o eventual resultado positivo, no entanto, não afasta a afetação corporal antecedente6. Assim, ao menos em tese, toda interferência no corpo do paciente pode constituir um fato típico de lesão corporal (art. 129, CP). Isso não significa, definitivamente, que toda intervenção corporal é punível, mas nos faz questionar qual é o fundamento dogmático que legitima a prática desta conduta, afastando a tipicidade ou a antijuridicidade da lesão corporal. Conforme já tive a oportunidade de ressaltar,7 em um modelo de respeito à autonomia do paciente, a vontade do sujeito passivo da intervenção passa a assumir o papel central na análise da legitimidade das intervenções médicas.8 O fundamento para a adoção desse modelo pode ser extraído dos direitos à autonomia, à dignidade humana e à liberdade, assim como à integridade física e à privacidade, reconhecidos tanto a nível constitucional quanto sob a perspectiva dos Direitos Humanos. A autonomia, derivada da dignidade humana (art. 1º, III, CF) e da liberdade (art. 5º, caput, CF), constitui o cerne da personalidade do indivíduo, garantindo a ele o "direito de viver segundo a própria concepção de uma vida boa".9 Respeitá-la significa reconhecer, na "esfera nuclear da vida privada, limites dentro dos quais somente o próprio indivíduo poderá tomar decisões, sem a interferência de terceiros".10 É a autonomia que concede ao paciente o domínio soberano sobre o território do próprio corpo, atribuindo a ele o direito de tomar suas próprias decisões médicas11: "o corpo é o templo do indivíduo, isto é, é o âmbito inviolável que apenas ele próprio pode controlar".12 O respeito à autonomia é deliberadamente desconsiderado na concepção paternalista13, em que o médico (ou o juiz), na certeza de que sabe mais sobre o bem-estar da paciente do que ela própria, poderia se sobrepor à vontade dela ou deixar de informá-la acerca da intervenção, contanto que orientado por um propósito "beneficente". Essa concepção, ao relegar os pacientes a uma posição de passividade, acaba tratando-os como meros objetos de intervenção. Num modelo que leva a sério o respeito à autonomia do paciente capaz para consentir14, apenas este poderá autorizar interferências em seu domínio corporal. Como consequência dogmática desse raciocínio, somente o consentimento (ou, diante da impossibilidade de obtê-lo, o consentimento presumido) poderá legitimar essas intervenções e afastar o injusto do crime de lesão corporal, o que, por sua vez, torna prima facie ilegítimas as intervenções realizadas sem o consentimento ou contra a vontade do paciente. A lesão corporal (art. 129, CP) caracteriza-se pela ofensa "à integridade corporal ou à saúde" do paciente. Mas, em que consiste a integridade física? Com base em uma compreensão liberal dos bens jurídicos individuais, fundada no respeito à autonomia15, a integridade física adquire contornos bidimensionais16, abrangendo tanto o corpo enquanto substância, na sua dimensão biológica, quanto o direito do indivíduo de autodeterminar o que pode ou não ser feito com ele. O corpo, na verdade, é apenas o componente objetivo da integridade física - o objeto sobre o qual recai a conduta. Além dele, no entanto, também um segundo componente, referente à liberdade de disposição do seu titular, é objeto de tutela do crime de lesão corporal.17 Nesse sentido, como corretamente esclarece Roxin, "o corpo é objeto de proteção não como um conjunto de carne e ossos, mas apenas em conexão com a mente, que nele habita e o controla"18. A caracterização do crime previsto no art. 129 do CP, portanto, não pressupõe uma piora geral do estado de saúde, mas "a alteração, anatômica ou funcional, interna ou externa, do corpo humano"19. Se a afetação da substância corporal do titular do bem jurídico for realizada sem o seu consentimento válido, haverá uma invasão indevida da esfera corporal da vítima, suficiente para a consecução do tipo.20 Isso ocorre, por exemplo, nas hipóteses em que o médico realiza uma episiotomia ou administra ocitocina sintética para intensificar as contrações sem o consentimento da gestante, independentemente de haver ou não indicação. Afinal, a simples indicação não dá ao médico um direito irrestrito e irrevogável de interferir nos corpos dos pacientes sem o seu consentimento. No caso da manobra de Kristeller, apesar de não haver sempre uma invasão da substância do corpo, como ocorre nos casos em que a execução da manobra resulta em lesões internas, o simples emprego de força física não consentida contra o corpo da gestante nesses casos já é suficiente para caracterizar a lesão corporal. O mesmo ocorre quando alguém desfere um tapa ou um soco contra o rosto de outra pessoa sem provocar lesões internas - isso não deixa de ser uma lesão corporal pelo fato de a conduta violenta não adentrar o corpo da vítima. Importante frisar que a manobra de Kristeller sequer é medicamente indicada21, ou seja, nem mesmo sob a perspectiva paternalista é possível afastar o injusto da lesão corporal neste caso. Com ainda mais razão, o alargamento manual do canal vaginal também pode caracterizar lesão corporal quando realizado sem o consentimento da mulher. Ainda que não seja cabalmente comprovado que o "procedimento" contribuiu para a laceração perineal, ao pressionar com os dedos o introito da vagina da parturiente, forçando o tecido para abri-lo mais do que o normal, está-se provocando, mais uma vez, uma alteração da substância corporal, ainda que posteriormente a vagina tenha a mesma aparência. Não sendo o procedimento consentido ou devidamente esclarecido, não há dúvidas de que se trata de uma lesão corporal. A parturiente, in casu, tinha todo o direito de recusar a realização da episiotomia. Para autorizar ou recusar intervenções, exercendo sua autonomia, não é necessário que a paciente seja médica ou possua conhecimentos técnicos. Na verdade, o conhecimento necessário para tomar decisões sobre o destino do próprio corpo deve ser fornecido pelo médico, ao cumprir o seu dever de informar sobre todos os aspectos referentes principalmente, ao diagnóstico, à execução e aos riscos da intervenção, bem como eventuais alternativas. No final das contas, quem terá que viver com as consequências da decisão é a própria paciente e cabe a ela ponderar os riscos e benefícios de realizar ou não a intervenção. Frise-se, contudo, que no caso da episiotomia, ainda que a Organização Mundial de Saúde indique a sua realização em alguns poucos casos22, não havia indicação no caso concreto. E a recusa da paciente certamente não atribui ao médico um direito de alargar o seu canal vaginal sem o seu consentimento. De qualquer forma, a indicação médica da intervenção não constitui um requisito de validade, tampouco isenta o médico de colher o consentimento. A indicação, na verdade, afeta apenas a intensidade do dever de esclarecimento, já que quanto menos indicada for a intervenção, mais intensa será a obrigação do médico de informar e esclarecer todas as contraindicações e possíveis efeitos lesivos, para que a paciente realmente a conheça e decida livremente submeter-se a ela. Devo ressaltar, por fim, que os comportamentos de violência no parto que caracterizam lesão corporal não se confundem com a negligência médica (ou "erro médico"), pois não se trata de crimes culposos nos quais o médico deixa de observar deveres de cuidado inerentes à lex artis na execução desses procedimentos, mas sim de ações ou omissões dolosas de desrespeito à autonomia da mulher e invasão indevida da sua esfera corporal. 4 Conclusão O respeito à vontade da paciente pode, sim, possuir relevância para a determinação do âmbito típico do crime de lesão corporal e, portanto, não se trata de uma questão exclusivamente vinculada à ética médica. Considerando que qualquer intervenção médica que afeta o corpo do paciente constitui uma interferência em sua substância corporal e que apenas o seu consentimento livre e esclarecido pode legitimá-la, a realização de intervenções médicas não consentidas caracteriza prima facie o crime de lesão corporal (art. 129, CP). Afinal, a integridade física é um bem jurídico individual e a ninguém é dado o poder de intervir no corpo de uma pessoa sem a sua anuência, de sorte que corpo e vontade devem ser analisados, aqui, como um todo harmônico e indissociável. _____________ 1 A respeito, cf. SIQUEIRA, Flávia. Autonomia, consentimento e Direito Penal da Medicina. São Paulo: Marcial Pons, 2019. "O paternalista é aquele que, na certeza de que sabe mais sobre o bem-estar de um terceiro do que ele próprio, impõe-lhe, de alguma forma, um padrão de conduta baseado em certos valores, de modo a "promover o seu bem" mesmo que contra a sua vontade. Ou seja, age como se fosse um pai atuando no melhor interesse de uma criança" (p. 47). Assim, "uma intervenção paternalista (rígida) é aquela que, visando à promoção do bem-estar subjetivo do sujeito afetado e ignorando a sua vontade livre e informada, impõe-lhe coercitivamente um padrão de conduta, limitando a sua liberdade" (p. 83). 2 Considerando, inclusive, que a parte especial do Código Penal brasileiro é de 1940. 3 DINIZ, Simone Grilo; DUARTE, Ana Cristina. Parto normal ou cesárea? São Paulo: UNESP, 2004, p. 47. 4 Cf. https://www.migalhas.com.br/quentes/376409/juiz-rejeita-denuncia-contra-medico-renato-kalil-por-parto-de-shantal 5 A respeito da humanização da assistência ao parto, cf. DINIZ, Carmem Simone Grilo. Humanização da assistência ao parto no Brasil: os muitos sentidos de um movimento, Ciência & Saúde Coletiva, v. 10, n. 3, p. 627-637, 2005, p. 635. 6 PUPPE, Ingeborg, Die strafrechtliche Verantwortlichkeit des Arztes bei mangelnder Aufklärung über eine Behandlungsalternative: Zugleich Besprechung von BGH, Urteile vom 3.3.1994 und 29.6.1995, GA, 2003, p. 764. 7 SIQUEIRA, Autonomia, consentimento e Direito Penal da Medicina, p. 169 e segs. 8 Por mais que boa parte da doutrina brasileira ainda defenda, com base nos escritos do início do século XX, que o exercício regular do direito de profissão do médico (art. 23, III, CP) afastaria o injusto das intervenções médicas realizadas nos corpos dos pacientes (Cf., por todos, BRUNO, Aníbal. Direito Penal: Parte Geral. Tomo II. Rio de Janeiro: Forense, 1967, p. 11.), essa postura tradicional parte de premissas e chega a conclusões essencialmente paternalistas, porquanto acaba atribuindo ao médico, em última instância, a competência para tomar decisões acerca da saúde e da vida do paciente. 9 GRECO, Luís; SIQUEIRA, Flávia. Promoção da saúde ou respeito à autonomia? Intervenção cirúrgica, exercício de direito e consentimento no direito penal médico. Studia Juridica, Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Manuel da Costa Andrade (Vol 1), v. 108, p. 643-669, 2017, p. 649. 10 SIQUEIRA, Autonomia, consentimento e Direito Penal da Medicina, p. 71. 11 SIQUEIRA, Flávia. Gesundheitsschädigende Patientenaufklärung: Grund und Grenzen einer Entbehrlichkeit der Aufklärungen vor Heileingriffen. Medstra, v. 3, p. 153-159, 2018, p. 154. 12 SIQUEIRA, Flávia; SOARES, Hugo. Vacinação compulsória? Sobre os limites da atuação do Estado no combate à COVID-19. Revista de Estudos Criminais, v. 81, 2021, p. 40. Importante frisar que o direito ao próprio corpo é um direito inato, decorrente da própria humanidade da pessoa, ou seja, é um direito pré-positivo e anterior ao Estado. Cf. GRECO, Luís. Strafprozesstheorie und materielle Rechtskraft. Berlin: Duncker & Humblot, 2015, p. 653 ss. 13 Especificamente no contexto obstétrico, o modelo hospitalar hegemônico, chancelado pela decisão no caso em comento, permite intervenções paternalistas e, em termos gerais, a apropriação do corpo da pessoa gestante "para o seu próprio bem". 14 Parte-se do pressuposto que o paciente, para exercer legitimamente sua autonomia, possui capacidade para consentir, isto é, capacidade de entendimento e decisão consubstanciada pela real compreensão do significado e da extensão da intervenção, bem como pela competência para escolher, com base nas informações depreendidas, se deseja ou não a ela se submeter. Não se trata da capacidade negocial, vinculada à capacidade civil. 15 Nesse sentido, cf. ROXIN, Claus; GRECO, Luís. Strafrecht Allgemeiner Teil. vol. 1. 5. ed. München: C. H. Beck, 2020, §13, Nm. 12 ss.; SIQUEIRA, Autonomia, consentimento e Direito Penal da Medicina, p. 191 ss. 16 RODRÍGUEZ VÁZQUEZ, Virgilio. El delito de tratamiento médico arbitrario: una propuesta de lege ferenda. RECPC, v. 19-03, 2017, p. 29. 17 Cf. SIQUEIRA, Autonomia, consentimento e Direito Penal da Medicina, p. 191 e segs. 18 ROXIN; GRECO, Strafrecht Allgemeiner Teil, § 13, Nm. 14. 19 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial. vol. 2. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 213-214. 20 Para uma análise pormenorizada dos fundamentos dessa concepção do crime de lesões corporais, cf. SIQUEIRA, Autonomia, consentimento e Direito Penal da Medicina, p. 348 e segs. 21 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Recomendaciones de la OMS: cuidados durante el parto para una experiencia de parto positiva. Washington, D.C.: Organizacio'n Panamericana de la Salud; 2019, P. 155. 22 Apesar de questionada por muitos especialistas, a Organização Mundial de Saúde indica a realização da episiotomia em cerca de 10% dos casos. A respeito, cf. CARVALHO, Cynthia Coelho Medeiros de; SOUZA, Alex Sandro Rolland; MORAES FILHO, Oli'mpio Barbosa. Episiotomia seletiva: avanc¸os baseados em evide^ncias. Femina, v. 38, n. 5, mai 2010. _____________ *Flávia Siqueira é doutora em Direito Penal pela UFMG, com período sanduíche na Universität Augsburg e estâncias de pesquisa na Humboldt-Universität zu Berlin. Pós-doutorado pela UFMG, com pesquisa financiada pelo programa CAPES PrInt e estâncias na Humboldt-Universität zu Berlin. Professora de Direito Penal na Universidade Presbiteriana Mackenzie/SP.
1. Introdução Ao analisarmos os processos por "erro médico"1 é possível observar uma crescente no número de demandas sem que, com isso, tenha ocorrido, de fato, um aumento de "erros" propriamente ditos. Ou seja, hoje em dia, ajuíza-se mais ações tendo o suposto erro médico como causa, mas não necessariamente, significa dizer que temos mais erros profissionais. De acordo com dados disponibilizados pela TV Justiça e CNJ, no ano de 2021 tivemos 35 mil novos processos por "erro médico".2 O aumento  do número de processo está relacionado com o elevado grau de solvência dos profissionais médicos, clínicas e hospitais, de modo que processar se torna um "bom negócio".3 Esse bom negócio relacionado à judicialização gera condenações ou absolvições que, em 26% dos casos, é antagônica à legis artis, ou seja, temos más decisões que absolvem casos de violação à legis artis e casos de condenação sem descumprimento à legis artis.4 Nesse sentido, alguns autores apontam que as demandas médicas são verdadeiras loterias judiciais, decorrente da estrutura judicial.5 O problema, todavia, começa a surgir no cenário atual em que o Poder Judiciário, para além de permitir a estrutura de judicialização, ainda apresenta elementos favoráveis à judicialização como a gratuidade judiciária quase irrestrita e a não penalização do autor pela ignorância ao método bifásico. Dentro de um contexto de excessiva litigiosidade, o que se observa é que algumas especialidades estão sendo esvaziadas, na medida em que os profissionais buscam mitigar o risco de processo e passam a atuar em especialidades menos sujeitas ao risco. Paralelamente, alguns profissionais têm encontrado, na medicina defensiva, uma forma de se proteger dos processos, desconsiderando que o e o exercício da medicina defensiva, per si, já é ilícito e pode gerar condenações desnecessárias.6 Frise-se que o presente texto não pretende ignorar a existência de possíveis erros e abusos por parte dos profissionais de saúde, porém, parte da realidade: o cenário é bem menos catastrófico do que aquele apresentado nos frios números da judicialização, para debater  uma responsabilização responsável, seja por parte dos autores, seja por parte dos réus. 2. A gratuidade judiciária como elemento de fomento à judicialização da medicina A mens legem da gratuidade judiciária, parte do pressuposto de que nada adiantaria garantir o direito de ação se não houvesse a possibilidade de um cidadão pobre acionar o Poder Judiciário. Nesse sentido dispõe o texto constitucional: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; LXXIV - o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos; Já o Código de Processo Civil dispõe que seu art. 98 que a gratuidade judiciária compreende inúmeras isenções como o dever de não pagar despesas como custas/preparo, honorários periciais e os honorários advocatícios em caso de sucumbência, ressalvada, em relação a estes, a suspensão da exigibilidade pelo prazo de 05 anos. Em um primeiro momento, a concepção da gratuidade judiciária é razoável e lógica, pois os direitos fundamentais, per si, são insuficientes, devendo haver mecanismos de implementação de tais direitos através de garantias fundamentais. O direito de ação dissociado da gratuidade judiciária poderia gerar um Poder Judiciário elitizado, de forma que sua implementação é fundamental. Todavia, observa-se que o objetivo da gratuidade judiciária foi deturpado e o instituto passou a fomentar verdadeiras aventuras jurídicas. Sob o pretexto de legitimar o acesso ao Poder Judiciário, a gratuidade tem sido utilizada como instrumento de aventuras jurídicas. É comum que o autor de uma ação de erro médico ignore, por completo, a viabilidade fática/jurídica do pedido e ajuíze sua demanda amparado apenas na existência do resultado adverso. Nesse sentido, Genival Veloso destaca que  que é preciso desarmar a população de que todo e qualquer resultado sejam de responsabilidade médica.7 Todo erro erro médico é um resultado adverso, porém nem todo resultado adverso é um erro profissional. Ao se ingressar, sob o manto da gratuidade com ações judiciais por resultado adverso e tratar tais resultados como erros os autores sobrecarregam o próprio Judiciário, gerando um efeito sistêmico de hiperlitigiosidade. A existência de litigantes frívolos e ambulance chasers gera uma redução da expectativa dos benefícios dos litigantes legítimos e um consequente prejuízo coletivo.  A maior quantidade de fases processuais e o consequente alongamento do litígio apenas estimula um comportamento oportunista. 8 Nesse sentido Luciano Timm destaca que: Assim, considerando-se o conjunto dessas variáveis e ainda diversas outras que fazem parte do sistema processual civil brasileiro, é possível constatar que tais circunstâncias servem de estímulo tanto para o excessivo ajuizamento de demandas judiciais, muitas delas inegavelmente temerárias ou frívolas (por exemplo, com baixíssima expectativa ou probabilidade de êxito, em decorrência da inadequação ou insuficiência de fundamentos fáticos e jurídicos), quanto para a interposição de expedientes recursais à exaustão, tendo em conta os baixos ônus e riscos de utilização desse sistema. (...) Oportuno ressaltar que embora não seja exigido o pagamento por parte dos beneficiários da AJG, isso não significa que esses custos deixem de existir e tampouco que ninguém irá suportá-los, de acordo com a célebre frase popularizada por Milton Friedman: "Não existe almoço grátis". Muito pelo contrário, certamente alguém terá que fazê-lo (precisamente, o contribuinte que subsidia o Poder Judiciário).9 Ademais, é preciso lembrar que o acesso à direitos/garantias sociais impacta no orçamento, de modo que se deve exigir um comportamento responsável dos litigantes, evitando-se um exercício do direito de ação patológico e que é lesivo para a sociedade como um todo. Nesse contexto, a gratuidade judiciária deve representar uma garantia de ordem extraordinária e não ordinária, visto que, conforme será abordado no tópico seguinte, os honorários sucumbenciais servem como um obstáculo à litigância banalizada. 3. A condenação em honorários sucumbenciais em caso de não acolhimento integral do pedido de condenações por danos extrapatrimoniais Sob a égide do antigo CPC, o STJ editou, no ano de 2006, a súmula 326 que dispõe que: "na ação de indenização por dano moral, a condenação em montante inferior ao postulado na inicial não implica sucumbência recíproca." Considerando que no antigo CPC não era necessário indicar expressamente o montante pretendido a título de indenização, por vezes, o valor da causa e o pedido estimado não guardavam similitude. Ocorre que, a partir do Novo CPC, nos termos do art. 292, V, o valor da causa deve corresponder ao valor pretendido. Como advogado atuante na defesa médica, não raras vezes sou surpreendido com pedidos de indenização por dano moral que oscilam entre R$30.000,00 e R$1.000.000,00 para supostos erros idênticos. Diante disso, criou-se uma interpretação doutrinária e jurisprudencial no sentido de que a súmula 326 do STJ não seria mais válida, na medida em que, ao fixar a pretensão financeira pretendida, o autor restringiria o seu pedido e, na eventualidade de não acatamento integral do pretendido, ter-se-ia uma sucumbência recíproca. Ocorre que a 4ª Turma do STJ, por ocasião do julgamento do REsp 1.837.386 - SP, julgado em 16/8/22, compreendeu unanimemente que a súmula continuava válida, pois a atuação do autor teria natureza meramente estimativa, ao passo que caberia ao Poder Judiciário definir, com competência exclusiva, o valor da pretensão reparatória e está ocorre com elevada carga de subjetividade. É importante considerar que, a despeito do entendimento apontado pela 4ª turma, o próprio STJ desde o início dos anos 2000 tem adotado o método bifásico10 de forma implícita e, a partir de 2011, passou a incorporar, expressamente, a previsão do uso do método bifásico para eliminar a elevada carga de subjetividade nas condenações por danos extrapatrimoniais.11 O método bifásico é caracterizado pelo estabelecimento de uma "pena" base a partir da análise dos casos análogos em determinada corte e a posterior majoração ou redução da pena em razão das agravantes e atenuantes próprias do caso concreto. Logo, a fase primária do método bifásico é objetiva, enquanto a segunda fase buscaria promover a justiça à luz das particularidades do caso concreto. Desta forma, o argumento posto de que há uma elevada carga de subjetividade não encontraria respaldo a partir do próprio entendimento do STJ.12 Paralelamente, aponta-se para a criação do "paradoxo do vencedor".13 Sobre o tema, Alexandre Gomes afirma que permitir a condenação por sucumbência recíproca poderia gerar, procedências de demanda em que o montante indenizatório fosse inferior ao dever de custear honorários sucumbenciais.14 Em sentido contrário, alguns autores apontam para a possibilidade de condenação aos honorários sucumbenciais quando o valor pretendido não for integralmente acolhido a partir de uma leitura do art. 292, V do CPC.15 Em posição intermediária Fernando Andreoni Vasconcellos defende a impossibilidade de não condenação aos honorários sucumbenciais nos casos em que, ainda que não acolhido in totum a pretensão, estes encontram-se devidamente motivados e em consonância com a jurisprudência majoritária ou quando não houver jurisprudência pacificada e estável sobre a matéria.16 A verdade é que os valores trazidos no atual Código de Processo exigem a colaboração de todos os envolvidos com a proposta de uma pacificação do conflito. A funcionalização do processo exige que as partes busquem pretensões reparatórias verossímeis e dialógicas com os precedentes judiciais e particularidades do caso; ou seja, situações que divirjam dos precedentes e do uso do método bifásico devem ser compreendidas como exercício abusivo do direito de ação. Desta forma, a manutenção da súmula representa uma desconsideração com o trabalho desenvolvido pelo advogado da parte adversa, na medida em que o trabalho - questionável até - desempenhado pelo advogado do autor seria remunerado através de honorários sucumbenciais, ao passo que o êxito do advogado do réu em providenciar argumentos jurídicos para reduzir, significativamente, as pretensões do autor seria reduzido a nada.17 Imaginemos um autor que ingressa com uma ação indenizatória por suposto erro médico e pedido de dano moral no montante de R$2.000.000,00 (dois milhões de reais) e a condenação seja de "apenas" R$50.000,00 (cinquenta mil reais). Das duas uma: ou o advogado da parte autora não possui base técnica nenhuma para aplicar o método bifásico ou o advogado do réu desenvolveu uma argumentação espetacular para afastar quase que a integralidade da pretensão autoral.  Apesar da condenação ter sido apenas 2,5% do valor pretendido, apenas o advogado aventureiro terá direito aos honorários sucumbenciais. Como pontifica Timm: Em um país notoriamente assolado pelo problema da litigância excessiva, o instituto dos honorários sucumbenciais cria baliza fundamental à operacionalização de princípios como o direito à duração razoável do processo e da isonomia, ao exigir responsabilidade e ponderação dos que buscam a prestação jurisdicional - algo mais facilmente visível a partir do ferramental teórico da Análise Econômica do Direito;18 Logo, mostra-se imperiosa a superação da súmula 326 do STJ, por expressa previsão legal e também por uma necessidade de redução da litigiosidade abusiva, sob pena de se violar um dos preceitos basilares de não se remunerar a própria torpeza. 4. Conclusão O ajuizamento de ações objetivando a condenação de profissional de saúde por suposto erro exige responsabilidade. . Não podemos compactuar com o exercício abusivo do direito de ação em demandas que debatam responsabilidade extrapatrimonial ou com a deturpação de instrumentos processuais para legitimar finalidades indevidas. A responsabilidade civil e o processo civil precisam ser funcionalizados para coibir aventuras jurídicas e, ao mesmo tempo, garantir previsibilidade das decisões. A gratuidade judiciária não pode ser utilizada como subterfúgio para o exercício do direito de ação dissociado na realidade fática e jurídica. Ao se tornar a regra de acesso ao Judiciário, a gratuidade judiciária reduz os ônus do litigante aventureiro e lança o prejuízo para o réu e para a sociedade. No tocante à súmula 326 do STJ, mantido o entendimento de que os valores pretendidos a título de dano moral são meramente indicativos, o pedido de condenação por danos extrapatrimoniais pode ser utilizado como meio de pressão abusiva, na medida em que haverá uma inflação dos pedidos com consequente repercussão em custas recursais e honorários periciais sem que haja qualquer responsabilização do autor pela demanda. Se há uma crítica à litigiosidade excessiva, uma parcela significativa dessa responsabilidade é do próprio Poder Judiciário que não é apenas um figurante, mas verdadeiro coprotagonista - com os autores - de demandas infundadas, com valores astronômicos e sob o pálio da justiça gratuita e/ou Súmula 326 do STJ. ---------- 1 Nomenclatura que será adotada por ser o padrão fixado pelo CNJ para fins de elaboração do relatório do Justiça em Números, porém, por vezes, o suposto erro médico não se trata de um erro do profissional de medicina, mas de um outro profissional de saúde ou mesmo de um problema multifatorial que não é de responsabilidade do médico. 2 BRASIL. CNJ registra quase 35 mil novos processos por erro médico no país. Disponível aqui. Acesso em 10 set. 2022. 3 MASCARENHAS, Igor de Lucena; BAHIA, Saulo José Casali. O exercício da medicina defensiva enquanto reação às decisões judiciais: o papel do Judiciário na construção de uma postura ética no exercício médico. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 31, n. 141, p. 339-355, maio/jun. 2022. 4 PEREIRA, André Gonçalo Dias. Direito dos pacientes e responsabilidade médica. Coimbra: Coimbra Editora, 2015. p. 21 5 COUTO FILHO, Antonio Ferreira; SOUZA, Alex Pereira. Instituições de Direito Médico. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 60 6 MASCARENHAS, Igor de Lucena; BAHIA, Saulo José Casali. O exercício da medicina defensiva enquanto reação às decisões judiciais: o papel do Judiciário na construção de uma postura ética no exercício médico. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 31, n. 141, p. 339-355, maio/jun. 2022. 7 FRANÇA, Genival Veloso. Comentários ao Código de Ética Médica. 6 ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2010. P. 58 8 PATRÍCIO, Miguel Carlos Teixeira. Análise económica da responsabilidade civil médica. Lisboa: AAFDL Editora, 2017. 9 TIMM, Luciano Benetti. Parecer. Disponível aqui. Acesso em 10 de out. 2019. 10 Para fins de melhor compreensão do processo de quantificação do dano extrapatrimonial, sugerimos a leitura de MARANHÃO, Clayton; NOGAROLI, Rafaella. O método bifásico como critério de quantificação dos danos morais e estéticos decorrentes da atividade médica na jurisprudência do TJ/PR. Migalhas de Responsabilidade Civil. Disponível aqui. 11 REsp 959.780/ES, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 26/4/11, DJe de 6/5/11 12 Apesar da solução apontada, é importante registrar que o próprio STJ é oscilante em relação a uma possível harmonização dos valores, conforme aponta Luciana Berlini - BERLINI, Luciana Fernandes. O quantum indenizatório nas relações médico-pacientes. In: In: ROSENVALD, Nelson; MENEZES, Joyceane Bezerra de; DADALTO, Luciana. Responsabilidade Civil e Medicina. 2 ed. Indaiatuba: Editora Foco, 2021, p.50. 13 Em consonância com o argumento de que a sucumbência está adstrita ao pedido e não ao valor pretendido, vide FREDIANI, Yone. Honorários advocatícios e periciais - sucumbência, custas e justiça gratuita e a lei 13.467/17. Revista de Direito do Trabalho, São Paulo, v. 209, p.21-28, jul/2019. 14 GOMES, Alexandre G. Pedido genérico e sucumbência recíproca nas ações indenizatórias por danos morais. Revista de Processo, São Paulo, v. 317, p. 17-31, jul/2021. 15 Nesse sentido: CAMARGO, Daniel Marques de; BAGGIO, Hiago da Silva. As repercussões da imperativa indicação do valor da causa em ações indenizatórias fundadas em dano moral no CPC/2015 à luz dos postulados teóricos do Law & Economics. Revista do Processo, São Paulo, v. 328, p. 35-53, jun/2022; 16 VASCONCELLOS, Fernando Andreoni. A Súmula 326 do STJ e os seus necessários temperamentos à luz do CPC/15. Revista Judiciária do Paraná, Curitiba, v. 20, p. 217-234, nov/2020. 17 CAMARGO, Daniel Marques de; BAGGIO, Hiago da Silva. As repercussões da imperativa indicação do valor da causa em ações indenizatórias fundadas em dano moral no CPC/2015 à luz dos postulados teóricos do Law & Economics. Revista do Processo, São Paulo, v. 328, p. 35-53, jun/2022. 18 TIMM, Luciano Benetti. Parecer. Disponível aqui. Acesso em 10 de out. 2019.
Hígia se formara há pouco mais de 2 anos na faculdade de medicina e, enquanto se preparava para disputar uma vaga de residência em um dos hospitais mais prestigiados na sua área de pesquisa, a medicina de emergência, foi contratada como socorrista por uma empresa que administrava a concessão de uma das rodovias mais perigosas do país. Naquela tarde de sábado tudo parecia correr bem, sem qualquer acionamento para atender traumas mais graves. Ela havia feito alguns curativos em motoristas alcoolizados e também atendeu a uma senhora que, às margens da rodovia, fora atacada por uma vaca que perambulava solta, mas, em geral, nada demais. Até que uma ligação a retirou dos seus pensamentos. Havia ocorrido um capotamento no km 60 e, ao que indicava a ligação de um motorista que havia passado pelo local, um corpo fora projetado para fora do veículo. Hígia não tardou em acionar a sua equipe e, juntos, saíram em disparada até o local do evento. Lá chegando, constataram que realmente o veículo não logrou fazer uma curva, em função aparentemente da alta velocidade, capotara algumas vezes e uma pessoa fora projetada pelo para-brisas, encontrando-se desacordada com o corpo ao solo. Enquanto saía rapidamente da ambulância, chegou a refletir sobre o capotamento, que ocorrera em um local de curva suave, não havendo marcas de freadas na pista; chegou, ainda, a pensar que o corpo somente poderia ter sido projetado pelo para-brisas em razão da não utilização do cinto de segurança. Tudo era muito estranho, mas não havia tempo a perder. Ao se aproximar da pessoa, uma mulher, notou que ainda respirava com bastante dificuldade, mas havia um fio de vida em que se apegava. Sem tardar, começou a imobilizá-la e a realizar os primeiros socorros quando, de repente, notou estar evoluindo para uma parada cardiorrespiratória. O coração da vítima havia começado a falhar, até que parou. A médica gritou a alguém da sua equipe para que trouxesse o desfibrilador e começou a despir a mulher, da cintura para cima, para poder alocar o aparelho. Foi então que reparou, tatuada no tórax, a seguinte frase: "Se o meu coração parar, não quero ser reanimada". Ela se desesperou, porque se recordou da aula sobre testamento vital que tivera na faculdade e que, em que pese sem previsão em lei formal, a opção da paciente estava protegida pela Resolução n°. 1.955/2012 do CFM que, segundo os seus professores, havia até mesmo sido declarada válida ao ser questionada judicialmente1. A Resolução, de acordo com o que se recordava, define diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade (art. 1°). Seria o caso de respeitar a vontade da paciente naquele momento e não tentar com que o seu coração voltasse a bater? Não! Não, ela não podia fazer isso, porque havia treinado a ajudar as pessoas e não podia deixar que uma tatuagem feita como testamento vital superasse o seu juramento de Hipócrates2. Ademais, a tatuagem podia ter sido feita em alguma situação prévia, em que a mulher não estivesse raciocinando com clareza e diante de circunstâncias não atuais da sua vida. E, além disso, também se lembrava que o artigo 2° da mencionada Resolução conferia base normativa à sua atuação, na medida em que previa que nas decisões sobre "cuidados e tratamentos de pacientes que se encontram incapazes de comunicar-se, ou de expressar de maneira livre e independente suas vontades, o médico levará em consideração suas diretivas antecipadas de vontade." Circunstâncias. Sim, as circunstâncias. Se obtivesse alguma prova de que aquela tatuagem fosse dúbia, poderia tentar salvar a vida da mulher. Então, enquanto posicionava o desfibrilador, pediu à enfermeira que buscasse algo entre os objetos da mulher que indicasse que queria continuar a viver. A enfermeira encontrou uma carteira atirada ao asfalto, com fotos recentes da mulher e de duas crianças pequenas, de cerca de 3 a 4 anos de idade, que pareciam ser filhas da paciente; ao lado das fotos, estava um bilhete, com uma assinatura compatível com a da identidade da acidentada, que assim dizia: "Se você tem dúvidas se deve tentar me ressuscitar se o meu coração parar, reafirmo: não quero ser ressuscitada." Hígia entrou em pânico. Já não sabia o que fazer. O bilhete, a tatuagem, a ausência de marcas de freios na pista em curva suave, em que o capotamento não deveria ter ocorrido, e a projeção do corpo indicando a ausência de cinto de segurança pareciam elementos indiciários a comprovar, ainda que sumariamente, que realmente a conduta da mulher havia sido pensada, refletida, e que efetivamente não queria ser salva. Em instantes, enquanto já se preparava para administrar o choque, a médica se recordou das aulas na disciplina de noções jurídicas que havia tido e, entre elas, a chamada corrente libertária, sustentando, de acordo com o professor, o direito à posse de si mesmo, ou seja, que o Estado deve garantir, minimamente: (a) a ausência de paternalismo, isto é, que não pode irrogar para si a tomada de decisões afetas à individualidade do ser humano; e (b) a ausência de atos de conteúdo moral, significando que os atos estatais não devem atuar em terreno moral e, por mais incompreensível que seja a decisão do ser humano, deve ser respeitada3. "Tudo isso é importante, mas a vida é um bem maior a ser protegido" - foi o que pensou enquanto aplicava o primeiro choque. Nada. Nenhuma resposta. O coração continuava parado. Enquanto se preparava para dar o segundo choque, recordou-se, igualmente, da corrente positivista, sustentando a importância da obediência ao texto normativo, considerando que a sociedade define o que é importante para ela própria e que o legislador racional havia de materializá-lo em um documento normativo genérico e abstrato que estabelecesse, antecipadamente, padrões de condutas capazes de gerar estabilidade: ou seja, todos deveriam saber o que esperar uns dos outros, porque existem leis regulando comportamentos4. Deveria, então, observar o contido na resolução n°. 1.955/2012 do CFM, porque era um texto normativo? Mais um choque. Mais um questionamento: bem, mas se fosse assim, o testamento vital não deveria ter sido objeto de lei formal votada no Parlamento? Não deveria a sociedade decidir a viabilidade da negativa de tratamento ao paciente que não quer recebê-lo? Poderia o CFM fazê-lo por si só? Além disso, a expressão "diretivas antecipadas de vontade", prevista no artigo 2° do ato normativo, que deveria ser observada pelo médico se apresentava um tanto vaga, algo que dependia da interpretação moral a ser realizada no momento do atendimento. A vagueza parecia indicar a necessidade do preenchimento moral da cláusula jurídica, o que poderia lhe dar base para entender que, a despeito das aparentes provas de que não queria ser salva, tais não passavam de indícios não concludentes e que não poderiam sequer ser considerados quando em face ao direito à vida, de estatura muito mais ampla5. Essas discussões outrora travadas em sala de aula nada importavam naquele momento, a não ser salvar a paciente. Mais um choque e agora um sinal. Parecia estar retornando o coração. Hígia prendeu a respiração, mas o coração parecia não estar disposto a voltar. Mais uma parada. Percebendo algo de desesperança na atuação da médica, a enfermeira quis animá-la e fortalecê-la, dizendo: - Vamos Doutora, os filhos dessa mulher contam com a senhora. A senhora é vocacionada, tem coragem, é virtuosa e tem caráter. Não deixe essa mulher morrer! O que será dos filhos dela? Viverão à margem da sociedade, sem amparo; irão para as drogas sem mãe. Ajude eles!6 Imbuída desse pensamento, renovou as forças e, já tendo tomado uma decisão quanto ao dilema pelo qual passara, estava resolvida a fazer aquele coração voltar a bater, de qualquer jeito. Ela, então, administrou mais algumas medicações e novamente aplicou choques, esperando por uma resposta, talvez até divina, naquele momento. Se existia uma lei eterna e imutável a ser obedecida, era a de que a vida deveria ser respeitada e que os atos de bondade devem gerar respostas positivas. Deus haveria de prover a renovação da vida àquela mulher; se não por ela, ao menos pelos filhos7. E, por outro lado, ela era virtuosa em sua profissão. Dedicara-se com afinco para não perder qualquer paciente que por ela passou. As virtudes que cultivava desde o berço a impediam de pensar ou agir de outra maneira senão a de tentar, com todas as forças, salvar aquela mulher e era isso o que faria, sem medir esforços8. Entre os pensamentos e a ação, percebeu um leve sinal de retorno do batimento cardíaco. Mais medicamentos e o coração pareceu responder. A equipe inteira não acreditava e, para não perder aquela ponta de esperança, agiram rapidamente, imobilizando a mulher, administrando mais medicamentos e chamando auxílio imediato por helicóptero. O trabalho estava feito, a equipe médica e a vida haviam sido vitoriosas. A paciente foi estabilizada, levada à ambulância e em seguida ao hospital mais próximo, onde se recuperou totalmente, o que saberia depois a médica, em função do recebimento de uma citação em uma ação indenizatória proposta pela mulher, em que pedia reparação por não ter o seu direito de escolha previsto na Resolução do CFM respeitado9. __________ *O presente artigo trabalhará o instituto do testamento vital, previsto na Resolução n°. 1.955/2012 do CFM, que, de acordo com a epigrafe, "dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes." O objetivo do ato é, consoante artigo 1°: "Definir diretivas antecipadas de vontade como o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no   momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade.". O ato normativo revela, como não se pode deixar de perceber, potencial para discussões jurídicas diversas, variando desde a sua constitucionalidade, já analisada e adiante descrita no artigo, até os limites da sua aplicação em casos limites, em que o médico deverá avaliar a vontade do paciente em contraposição aos seus deveres éticos e legais. O texto contará, precisamente, a história de uma médica que lida com essa questão em uma situação de emergência, tendo que tomar uma decisão crucial para o salvamento ou não da paciente. 1 Aqui estamos diante da corrente positivista, que será adiante delineada quanto aos seus princípios. A sua primeira manifestação na história advém da existência de um texto normativo, a Resolução CFM n°. 1.955/2012, regulando o chamado "Testamento vital". A resolução de fato foi questionada judicialmente, sendo julgado improcedente o pedido. As informações podem ser obtidas aqui. Acesso em 07 set. de 2022. 2 Aqui se verifica um conflito bem marcante entre o positivismo e a existência de pautas valorativas. Não há previsão legal para o Juramento de Hipócrates (a não ser em seus princípios fundamentais inseridos no Código de Ética Médica, lei em sentido material), mas a axiologia que deve provém parece indicar que as leis podem, eventualmente, ceder passo a valores tidos como superiores e universais. Essa postulação vem a ser a base para a teoria pós-positivista, que, ao sustentar a tese da correção, reclama a existência de princípios fundantes do próprio Estado, que sequer se justifica enquanto formação legítima se inobservados. Vide, a propósito: ALEXY, Robert. Conceito e validade do Direito. Tradução de Gercélia Batista de Oliveira Mendes. São Paulo: Martins Fontes, 2011. RADBRUCH, Gustav. Tres estudios de Filosofía del Derecho y una arenga para los jóvenes juristas. Traducción de José Luis Guzmán Dalbora. Montevideo/Buenos Aires: Júlio César Faira Editor, 2013. 3 Inexiste uma corrente libertária, mas, em realidade, correntes com pensamento libertário, cuja formatação varia desde a anarquia radical até a proximidade com as teorias liberal-igualitárias. Em geral, afora parte aqueles princípios já mencionados ao decorrer do texto, as características essenciais são: (a) negação da autoridade exercida por órgãos especializados, que podem impor sanções físicas, reconhecendo apenas as sanções moral e econômica, esta última como decorrência do não cumprimento das obrigações; (b) ordem jurídica se baseia na reciprocidade; ou seja, o interesse que cada um tem em cumprir as suas obrigações pelas vantagens que obtém das obrigações correspondentes. Não há hierarquia entre os direitos; (c) negação, na vertente anarquista, da autoridade organizada, atribuída a órgãos especiais, com poderes com força repressiva; (d) preconizam uma sociedade livre, organizada pelo mútuo acordo entre os indivíduos. Estado garantiria apenas a propriedade privada, o cumprimento de contratos e seria responsável pela segurança; (e) a posse (ou propriedade) de si mesmo. Vide, entre outros autores: MAZILLI, Marcelo. ESTADO? NÃO, OBRIGADO! O manual Libertário, ou o ABC do antiestatismo. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010. OTSUKA, Michael. Libertarianism without inequality. New York: Oxford University Press, 2003. STIRNER, Max. O único e sua propriedade. Tradução de João Barrento. Lisboa: Editores Refractários, 2004. KYMLICKA, Will. Filosofia política contemporânea. Tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 4 O positivismo jurídico, fortemente influenciado pela lei científica da causa e efeito, propugna por estabilidade nos comportamentos. Por isso para essa corrente é tão importante a formatação legal, uma vez que, inserindo o ser e o dever-se na regra (Se F, então deve-ser P, em que F representa o fato bruto e deve-ser P o instituto jurídico gerado pela conversão do fato ao direito), logra-se obter a previsão de comportamentos sociais, seja para quem cumpre, seja para quem descumpre a linguagem prescritora do ordenamento jurídico. Os princípios fundamentais do positivismo metodológico são os seguintes: (a) tese das fontes sociais, desmembrada em (a.1) princípio do legislador racional - a sociedade cria o direito para ela própria e de acordo com a qualificação jurídica que entende apropriada para as circunstâncias fáticas; e o faz por intermédio do legislador, representante da sociedade, que visualiza os fatos sob diversos pontos de vista (econômico, político, social etc) e, despido de interesses próprios, factuais, ou de quaisquer ordens, cria normas que regerão comportamentos; (a.2) as cláusulas de fechamento, aplicáveis quando não existirem regras prevendo determinados comportamentos, o que evita considerar que o positivismo jurídico não seria um sistema completo e fechado; (b) a separação conceitual entre Direito e Moral. Acerca dessa corrente: SCARPELLI, Uberto. ¿Qué es el positivismo jurídico? Traducción de Jean Hennequin. México: editorial Cajica, 2001, p. 81-99. SANCHÍS, Luis Prieto. Constitucionalismo y Positivismo. México: Distribuciones Fontamara S.a., 1999. 5 A textura aberta identificada pela personagem principal nos remete à variação do positivismo denominada includente, ou inclusiva, de matriz Hartiana, em que o Direito deve ser aplicado, mas a moral invocada sempre e quando forem encontradas expressões jurídicas sem significado apriorístico, ou seja, que demandem a análise do caso concreto para serem compreendidas. Ex.: justa causa, boa-fé etc. HART, Herbert. O conceito de direito. Tradução de Antônio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. Excelente obra acerca das variações inclusivas e exclusivas: ETCHEVERRY, Juan Bautista. El debate sobre el positivismo jurídico incluyente. Un estado de la cuestión. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2006. 6 A exortação da enfermeira, invocando virtudes cívicas e as comparando com a função desempenhada pela médica no Estado (lato sensu, independentemente da natureza do seu empregador), remonta à teoria Republicana, que tem como traços centrais justamente (a) a atuação virtuosa e calcada no bem-comum; (b) a substituição do eu atomista, pela ideia de cidadão; (c) a importância da República no atuar do cidadão, que poderá até mesmo ceder seus direitos individuais em prol do bem-comum; (d) a possibilidade de intromissão do Estado no ambiente particular se e quando necessário à preservação dos fins virtuosos da República. A esse respeito: BOBBIO, Norberto; VIROLI, Maurizio. The Idea of the Republic. Translated by Allan Cameron. Cambridge: Polity Press, 2003. GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls. Um breve manual de filosofia política. Tradução de Alonso Reis Freire. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008, p. 187-195. 7 Aqui se verifica, no pensamento da personagem principal, a assimilação de algumas ideias jusnaturalistas, a partir das quais existe uma lei eterna e imutável e que deve ser seguida e obedecida simplesmente pela sua origem, em geral Divina (com variações, nesse ponto). Suas características gerais (com variações, a depender da origem teórica) são: (a) existência do Direito independentemente da vontade humana e anterior ao próprio homem; (b) leis divinas, eternas e imutáveis com validade superior ao próprio homem; (c) O Direito é algo natural e tem como pressupostos os valores do ser humano e a busca por Justiça. FINNIS, John. Lei natural e direitos naturais. Tradução de Leila Mendes. São Leopoldo: Editora da Universidade Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS, 2007. 8 Nesse ponto encontramos a teoria das virtudes, de matriz Aristotélica, cujas características fundamentais são: (a) a ação moralmente boa e virtuosa; (b) a virtude enquanto meio-termo das condutas adotadas; (c) a virtude da Justiça enquanto comportamento ético na vida social. HOBUSS, João (org). Ética das Virtudes. Florianópolis: Editora da UFSC, 2011. 9 Ao final do texto é apresentada, com a ação indenizatória proposta pela paciente, a possível consequência civil para a inobservância do instituto conhecido como "wrongful prolongation of life", que se insere no contexto da autonomia do paciente para recusar tratamentos médicos como, por exemplo (em numerus apertus), manutenção da vida, suporte ventilatório, a ressuscitação cardiopulmonar (RCP) e a nutrição e hidratação artificiais. Acerca do tema: DADALTO, Luciana; GONSALVES, Nathalia Recchiuti. Wrongful prolongation of life: um novo dano para um novo paradigma de proteção da autonomia. In: REVISTA BRASILEIRA DE DIREITO CIVIL - RBDCivil | Belo Horizonte, v. 25, p. 271-282, jul./set. 2020. A solução da contenda passaria necessariamente pela leitura do Direito vigente, em contraste com a teoria da Justiça adotada, de modo que a só existência da Resolução mencionada ao decorrer do texto não será suficiente e poderá variar conforme a leitura do material jurídico que o magistrado realize por oportunidade do exame do caso.
Para início da análise, é importante trazer alguns esclarecimentos sobre a violência obstétrica e as suas nuances. Dentre as várias conceituações de violência obstétrica na doutrina e na legislação - nacional e estrangeira -, merece destaque a definição da lei venezuelana, considerando ter sido o primeiro diploma a definir o instituto como uma das 19 formas elencadas de violência contra a mulher. A conduta passa a ser definida pela Ley Organica sobre el derecho de las mujeres a una vida libre de violencia, no ano de 2007, como sendo a apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres por profissional de saúde, que se expressa por meio de tratamento desumanizador, de abuso de medicalização e da patologização dos processos naturais. Isso acaba por resultar em perda da autonomia e da capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e sua sexualidade, impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres. Apesar de hoje ser muito claro que a violência pode ser perpetrada por outros agentes que não os médicos ginecologistas e obstetras, a polêmica acerca do uso do termo "violência obstétrica" permanece atual, sendo considerada pelo Conselho Federal de Medicina e pela Febrasgo como inadequada. Em meados de 2022, a Febrasgo considerou a expressão preconceituosa, seguindo a linha do Parecer 32 do CFM que entendeu se tratar de expressão "[...] impregnada de uma agressividade que beira a histeria". Emblemática é a acusação de que as mulheres são histéricas ao acusar um sistema que, como em diversos outros momentos históricos e por diferentes meios, controla os corpos femininos. Ao término de um século de freudismo, a histeria continua intimamente ligada à feminilidade, e as diversas tentativas de controle dessa corporeidade, conceitual ou não, por meio de acusações, muitas vezes, de suposto desequilíbrio e de falta de capacidade para tomar decisões1. Justamente nesse ponto, reside uma grande premissa dos estudos acerca da violência obstétrica: a autonomia. A histeria foi uma forma de manifestação da submissão à qual o sexo feminino estava exposto e foi desaparecendo a partir da emancipação das mulheres e a constante busca por autonomia2, seja no âmbito social, econômico, intelectual ou, como é o caso do presente estudo, no tocante à capacidade de decidir sobre o próprio corpo. Seguindo a linha de Bourdieu, no que se referente à violência simbólica, a visão androcêntrica - centrada no masculino - impôs-se como neutra, ratificando a dominação masculina sobre a qual se alicerça o patriarcado3. Assim, em diversos seguimentos, a figura masculina atua como dominante, seja em termos numéricos, seja em termos de acesso aos instrumentos de controle e poder. Por isso, faz-se importante uma construção baseada nos estudos da chamada "medicina da mulher" provada por meio de dados estatísticos e de fundamentação teórica o fardo do corpo sobre as existências femininas4. Isso transita em diversos campos, dentre os quais, destacam-se questões de saúde mental, de saúde pública, dos direitos sexuais e reprodutivos, incluindo os direitos de gestar e de parir de forma digna. Dito isso, resta traçar um paralelo desse panorama com os estudos da Bioética Principialista5. Necessário compreender que a proposta principialista como uma teoria Bioética não apenas remonta às origens da própria disciplina como exerce grande influência nos códigos de ética das diferentes profissões na área da saúde até hoje. Apesar de ser alvo de críticas, é inegável que a proposta de Beauchamp e Childress de uma teoria ética, baseada em princípios morais, representa um grande passo para o estudo da bioética6. Outras correntes baseadas nesses princípios surgiram posteriormente em decorrência de críticas à vertente principialista clássica. Com o passar do tempo, outros princípios se somaram aos clássicos princípios da Bioética de Beauchamp e Childress, merecendo destaque (e leitura posterior)  a abrangência dos valores contidos na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, adotada pela UNESCO7, a qual amplia o rol dos quatro princípios que guiam a Bioética Principialista clássica, quais sejam: autonomia, beneficência, não-maleficência e justiça. Apesar das diversas significações de autonomia, pode-se estabelecer um ponto em comum entre praticamente todas elas, elo esse que se refere às duas condições essenciais para pensar em autonomia, quais sejam: a liberdade - independência de influências controladoras -; e a qualidade de agente - capacidade de agir intencionalmente. Mais uma vez, faz-se necessário considerar a diversidade de valores incorporados ao termo autonomia, o qual denota diversos outros significados, que não convêm serem aqui explicitados de forma mais acentuada, tendo em vista o recorte adotado. Segundo a obra de Beauchamp e Childress, o termo autonomia adquire sentidos diversos, tais como: autogoverno, direitos de liberdade, privacidade, escolha individual, liberdade da vontade, seleção do próprio comportamento e pertencimento a si mesmo8. Pertencer a si própria no âmbito do gestar e do parir exige necessariamente dois fatores importantes: um deles seria a informação, necessariamente atrelada a uma decisão autônoma, na medida em que decidir exige instrução e compreensão acerca das causas e das consequências de um ato; e o segundo elemento seria a medicina baseada em evidências. Faz-se aqui um paralelo entre a medicina baseada em evidências e o princípio da beneficência; este refere-se à obrigação moral de agir em benefício de outros, configurando-se como uma obrigação de ajudar outras pessoas, promovendo seus interesses legítimos e importantes9, o qual deve ser assegurado em consonância com o princípio da autonomia, sob pena de configurar-se uma situação paternalista. Essa, por sua vez, incide diretamente sobre os corpos femininos, ocultando informação e desrespeitando a autonomia da paciente em prol de uma suposta beneficência não lastreada em evidências, que, por vezes, configura-se como maleficência, a qual será analisada à luz da não-maleficência. O princípio da não-maleficência se traduz na máxima de não causar o mal ao outro intencionalmente, assemelhando-se, dessa maneira, ao princípio da beneficência, que impõe prestações positivas no sentido de assegurar que o indivíduo não venha a sofrer danos. "[...] Determina o não infringir qualquer mal intencionalmente dele decorre a regra de fidelidade, entendida como a obrigatoriedade de manter as promessas e, o limite [...] de procurar sempre o bem da pessoa"10. Nesse sentido, importante é a análise do que Daniel Serrão chama de Aconselhamento Ético, o qual corresponde à orientação para a maximização do acerto nas decisões do outro, protegendo-os dos possíveis riscos e perigos ou erros e maximizando a sua capacidade11. É recomendado, pois, no âmbito da obstetrícia, que o profissional de saúde exerça o aconselhamento de forma muito habilidosa sob pena de converter-se em uma imposição, transformando-se, de um conselho elaborado, a propostas que devem ser acatadas, o que, por vezes, incide nas vias de parto ou na tolerância de medidas que se caracterizam violentas. Importa esclarecer que a violência obstétrica, nitidamente associada à não-maleficência, pode ser ilustrada, por exemplo, pelos protocolos e doutrinas atualizadas no âmbito médico, os quais desaconselham de forma expressa uma série de medidas populares no âmbito obstétrico. Nesse sentido, em 1996, a OMS desenvolveu uma classificação das práticas comuns na condução do parto normal, orientando para o que deve e o que não deve ser feito nesse procedimento, elencando algumas práticas claramente prejudiciais ou ineficazes. Aconselhou a OMS que determinadas condutas, embora habituais, fossem eliminadas, tais como: infusão intravenosa de rotina no trabalho de parto: posição de litotomia (mulher deitada) corriqueiramente adotada; esforço de puxo prolongado e dirigido; esforço de puxo prolongado e dirigido; e exames vaginais repetidos ou frequentes. Assim, em sede de compreensão do cenário coletivo no qual se insere a violência obstétrica, marcado por cirurgias cesarianas eletivas que chegam a 88% dos nascimentos, enquanto, na rede pública nacional, esse índice representa 46%, ambos os cenários com índices superiores ao recomendado pela OMS12. Trata-se, pois, de um cenário marcado por intervenções médicas, medicamentosas, não esclarecidas e, por vezes, não conscientes dos riscos atrelados à decisão, mesmo nas hipóteses nas quais a mulher pode exercê-la no tocante ao parto. A informação é elemento necessário para assegurar uma experiência digna e percebida como positiva, podendo decidir de maneira esclarecida e consciente, o que, por vezes, não lhes é assegurado no Brasil, seja pela ausência de recursos técnicos e hospitalares, seja pela inacessibilidade de informações acerca de direitos reprodutivos e das diretrizes brasileiras acerca do parto seguro para além do conhecimento técnico da doutrina mais recente e baseada em evidências, analisada a partir da aplicação do princípio da justiça. A Justiça se traduz na obra de Beauchamp e Childress como um princípio relacionado à erradicação de formas de exclusão social, negando qualquer forma de discriminação baseadas em características dos sujeitos, exemplificando na própria obra uma possível distinção de gênero como sendo uma violação ao dito princípio. Conduz a obra para a sugestão de políticas públicas que levem em consideração raça e gênero em prol de uma assistência digna, justa e igualitária. Para além da desigualdade estruturada pelo patriarcado e os julgamentos e responsabilidades atribuídas à mulher no que se refere à condução da sua gestação e parto, muitas vezes, estão as gestantes e as parturientes desassistidas e desamparadas em diversos aspectos. Algumas mulheres abandonadas por parceiro íntimo, por equipe técnica e sem acesso à informação atualizada e baseada em evidências que possa fazê-la compreender e subsidiar a sua decisão acerca da condução da gestação sem relegá-la ao médico ou ao profissional de saúde que a "acompanha" (ainda que de forma pontual). Isso porque não se pode falar de violência obstétrica, de princípios bioéticos, ou de diversos outros temas existenciais relacionados ao Biodireito, sem mencionar as questões de gênero, de raça e de todas as adversidades que delas decorrem. São muitas as mulheres atravessadas pelas mais diferentes desigualdades, vulnerabilidades e irregular acesso a instrumentos de poder e de informação, mas todas elas estão imersas em um cenário sistêmico de institucionalização do parto que coloca esse momento como um campo de legitimação de intervenções que "desnaturalizam" o ato de gerar uma vida. Gestar e parir são processos naturais, por vezes, cercados de mitos, mistérios e desatualizações que interferem diretamente nos valores de autonomia e beneficência, muitas vezes, autorizando uma conduta que conduz a uma prática maledicente. A não-maleficência caracteriza-se por condutas desaconselhadas e sem evidências científicas, as quais geram (ou estão propensas a gerar) danos e agravos em saúde física e/ou mental. Já, no tocante à Justiça, é preocupante (continuar a) observar um cenário de preponderância de uma cultura médica intervencionista em detrimento da observância de aspectos físicos, emocionais, econômicos e sociais que atuam como fatores impeditivos ao estabelecimento de um processo que considere a autonomia e a dignidade das mulheres13. ---------- 1 MICHELS, A. Histeria e feminilidade. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica [online], v. 4, n. 1 pp. 33-51, 2001. DOI: https://doi.org/10.1590/S1516-14982001000100003. 2 MURIBECA, M. M. M. Da problemática sedução da histeria à enigmática sedução do feminino em Freud. Estud. psicanal.,  Belo Horizonte, n. 39, p. 67-79, jul. 2013. Disponível aqui. Acesso em:  28 jul.  2022. 3 BOURDIEU, P. A dominação masculina. Trad. Maria Helene Kühner. 13. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2015. 4 MARTINS, A. P. V. Visões do feminino: a medicina da mulher nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2004. 5 BEAUCHAMP, T.; CHILDRESS, J. Princípios de Ética Médica. São Paulo: Loyola, 2002. 6 5 DEJEANNE, S. Os fundamentos da bioética e a teoria principialista. Thaumazein - Revista on-line de filosofia, Santa Maria, RS, v. 4, n. 7, p. 32-45, jul. 2011. Disponível aqui. Acesso em: 10 out. 2014. p. 34 7 Organizações das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Tradução para o português: Cátedra Unesco de Bioética da Universidade de Brasília, 2005. 8 BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002. op cit. 9 DANTAS, I. Constituição e bioética (breves e curtas notas). In: SARLET, I. W; LEITE, G. S. (orgs.). Direitos fundamentais e biotecnologia. São Paulo: Método, 2008. 10 NEVES, Maria do Céu Patrão; OSSWALD, Walter. Bioética Simples. Lisboa: Verbo, 2008, p. 85/86. 11 SERRÃO, Daniel. Aconselhamento Ético. In: ASCENÇÃO, José de Oliveira (org.). Estudos de Direito da Bioética, v. III. Coimbra: Almedina, 2009. 12 Leal, Maria do Carmo e Gama, Silvana Granado Nogueira daNascer no Brasil. Cadernos de Saúde Pública [online]. 2014, v. 30, n. Suppl 1 [Acessado 28 Agosto 2022] , pp. S5. Disponível aqui. 13 GRIBOSKI, R. A.; GUILHEM, D. Mulheres e profissionais de saúde: o imaginário cultural na humanização ao parto e nascimento. Texto contexto - enferm., Florianópolis, v. 15, n. 1, mar. 2006. Disponível aqui. Acesso em: 27 nov. 2009.
No exercício do planejamento familiar e do projeto parental, as pessoas ou casais podem utilizar-se das técnicas de reprodução assistida (RA) e, nesse contexto, valer-se do aconselhamento genético em alguma de suas fases (pré-conceptivo, pré-implantatório, pré-natal, pós-natal). Falhas, omissões, erros nesse processo podem gerar responsabilidade civil dos profissionais e instituições envolvidas. Daí surgem as wrongful actions, as ações que buscam a responsabilidade civil médica em razão dos danos materiais e existenciais causados pelas falhas no aconselhamento genético junto à RA. Diante disso, objetiva-se apresentar suscintamente as nuances do aconselhamento genético e das wrongful actions para, ao final, demonstrar sua possibilidade de aplicação e sua aplicabilidade de fato no Brasil junto às demandas de responsabilidade civil médica. Reprodução Assistida  Não há norma jurídica que regulamente a RA no Brasil, cabendo ao Conselho Federal de Medicina (CFM), por meio de normas deontológicas, a regulamentação, o que, atualmente, é feito pela Resolução CFM n.º 2.294/20211-2. São vários os métodos e técnicas de RA3, incluindo o uso de métodos contraceptivos (pílulas, ligadura de trompas e vasectomia, por exemplo) e, a mais falada e conhecida, a FIV - fertilização in vitro, onde ocorre a promoção do encontro do espermatozoide com o óvulo em laboratório. Logo, a RA não é um processo apenas ativo que busca a promoção da procriação. Na perspectiva dos Direitos Sexuais e Reprodutivos, seu intuito, é, se for o desejo junto ao projeto parental no exercício do planejamento familiar, evitá-la. É nesse contexto que se pode buscar o aconselhamento genético.                Aconselhamento genético O aconselhamento genético é um processo4 de atos médicos, junto à medicina preditiva e preventiva, por meio do qual é possível averiguar doenças ou deficiências genéticas, possibilitando a advertência acerca de suas consequências, da probabilidade de o embrião ou do feto (nascituro) apresentá-las, bem como dos meios para evitá-las, melhorá-las ou minorá-las. A avaliação das questões genéticas (doença ou deficiência), em qualquer caso, deve levar em conta que seu resultado prático depende da combinação de fatores genéticos e socioambientais, em especial quando se tratar de deficiência, considerando o conceito biopsicossocial e de avaliação multidisciplinar previsto no art. 2º do Estatuto da Pessoa com Deficiência, como é conhecida a lei 13.146/15 (Lei Brasileira de Inclusão). Na prática da RA, o/a paciente deve ser informado/a da existência e da possibilidade de realização do aconselhamento genético, cabendo a ele/ela/s a manifestação livre e esclarecida realizá-lo ou não. Como um processo, o aconselhamento genético é composto de várias etapas ou fases que podem ser assim compiladas, conforme os ensinamentos de Carlos María Romeo Casabona5 e de Aitziber Emaldi-Cirión6: 1) o/a médico/a, junto à relação médico/a-paciente e ao seu direito/dever de informar, explica ao/à paciente sobre a possibilidade de se realizar exames preditivos, cabendo a este, de forma livre e esclarecida, consentir ou não com a realização dos exames; 2) o/a paciente é submetido aos exames genéticos pertinentes, após seu prévio consentimento livre e esclarecido; 3) ocorre o aconselhamento genético propriamente dito, eis que o/a médico/a poderá realizar o diagnóstico genético do/a paciente por meio da interpretação e valoração das provas realizadas, com a detecção de possíveis doenças, deficiências, suas causas, possibilidade de transmissão à descendência etc., concluindo acerca do procedimento indicado ao/à paciente para evitar a transmissão à descendência; e tratar, melhorar ou minorar eventual questão genética; 4) devidamente esclarecido/a sobre o resultado do diagnóstico e dos procedimentos existentes, o/a paciente consentirá de forma livre e esclarecida acerca de qual/quais procedimento/s médico/s será/ão adotado/s, podendo, inclusive, optar pela não realização de nenhum deles; e 5) execução do ato médico (terapia ou edição gênica7). A depender do momento em que o processo de aconselhamento genético ocorre fala-se em suas espécies: pré-conceptivo, pré-implantatório, pré-natal e pós-natal. Dos três primeiros é que se originam as wrongful actions. O aconselhamento genético pré-conceptivo realiza-se antes da concepção (da união dos gametas masculino e feminino - espermatozoide e óvulo), in vitro ou in vivo. É realizado com o objetivo de verificar possível transmissão de enfermidades ou deficiências genéticas, hereditárias ou cromossômicas8 à descendência. O diagnóstico médico no aconselhamento genético pré-conceptivo pode oferecer ao/à paciente as seguintes alternativas9: 1) se não for identificada qualquer questão genética: a concepção e, portanto, a gravidez; 2) se for identificada alguma questão genética e a possibilidade de sua transmissão à descendência: a) que seja utilizada a FIV na RA e o exame e seleção terapêutica de embriões, b) que seja realizada a esterilização ou o uso de métodos contraceptivos para se evitar a gravidez ou c) dentro do exercício da autonomia junto ao planejamento familiar, a continuação dos métodos para concepção e gravidez, devidamente cientificados os/as pacientes de que a descendência poderá carregar as doenças e deficiências genéticas identificadas. O aconselhamento genético pré-implantatório é realizado junto ao embrião in vitro decorrente da FIV, antes de sua da transferência ao útero da mulher. Identificadas questões genéticas, é possível a realização da seleção terapêutica de embriões, o que é permitido no item VI.110 da Resolução CFM 2.294/2021; a realização de terapias gênicas; não implantar o embrião; a implantação do embrião e, gerando a gravidez, a realização de aconselhamento genético pré-natal; e/ou a seleção de sexo do embrião por questões terapêuticas. Se não for identificada qualquer questão genética, a indicação médica será pela implantação e consequente gravidez. O aconselhamento genético pré-natal é realizado junto ao nascituro ou feto, decorrente de gravidez oriunda ou não das técnicas da FIV. As provas são realizadas por meio de "técnicas não invasivas (ecografia) e/ou técnicas invasivas (amniocentese, biópsia dos velos coriais ou velocentese, fetos-copia, funiculocentese, remoção de uma ou mais células do blastocito etc.)."11 Diante do diagnóstico no aconselhamento genético pré-natal, o/a médico/a poderá indicar ao/à paciente as seguintes alternativas: se não for identificada qualquer questão genética, doença ou deficiência: continuidade da gravidez; se for identificada alguma questão genética, doença ou deficiência: interrupção terapêutica da gravidez, caso o ordenamento jurídico assim permita; ou proceder a uma terapia gênica fetal. As eventuais falhas (erros) ocorridas nas espécies de aconselhamento genético junto à RA é que são fundamento para o nascedouro das wrongful actions que têm consequências na responsabilidade civil. Wrongful actions As wrongful actions12são demandas judiciais com pedido de responsabilização civil de médicos/as, de hospitais, de clínicas e dos/as genitores/as pela concepção, pela gravidez, pelo nascimento e pela vida indevidos. A ação por wrongful conception decorre de um aconselhamento genético pré-conceptivo ou pré-implantatório com falha ou omissão nas provas e/ou em um resultado falso negativo, ensejando um diagnóstico também falho e, assim, uma concepção e gravidez indesejada. Por isso também é denominada de wrongful pregnancy. Pode ser fundamentada, também, na falha decorrente da indicação ou da aplicação dos métodos contraceptivos. O pedido é de indenização material decorrente das despesas com o nascimento e a criação do filho/a e a compensação aos danos existenciais dos/as pacientes. A ação por wrongful birth fundamenta-se nas falhas ou omissões no aconselhamento genético pré-natal, que não proporcionaram aos/às genitores uma série de provas e o diagnóstico; e/ou as provas geraram resultados falsos negativos; e/ou não foi detectado ou não comunicado a eles/as sobre a questão genética presente no nascituro a tempo de que se pudesse buscar a interrupção terapêutica da gravidez13, nos termos da lei, ferindo a autonomia dos genitores. O pedido é de indenização pelos danos materiais decorrentes dos custos de criação de um/a filho/a e pelos danos existenciais oriundo da gravidez e do nascimento, que é indesejado. A ação por wrongful life é proposta pelo/a próprio/a filho/a nascido com questões genéticas (doença ou deficiência), baseada em erro junto ao aconselhamento genético pré-natal, com fundamento na falha das provas e/ou no diagnóstico, que retira dos/as genitores o direito de optar pela interrupção terapêutica da gravidez, nos termos legais; ou a possibilidade de realização de terapias gênicas fetais. O pedido engloba é de indenização por danos materiais decorrentes do custo extraordinário de uma vida com doença ou deficiência (tais como gastos com tratamentos médicos, habilitação e reabilitação); e por danos existenciais. Aqui reside uma controvérsia importante, eis que os danos existenciais residiriam na fundamentação de que seria melhor não ter nascido do que ter nascido com doenças ou deficiências. Logo, o que se argumenta é o direito de não nascer e o direito de nascer com o corpo e mente sãos.14                Wrongful actions no Brasil A ação por wrongful conception pode ser proposta no Brasil quando, no aconselhamento pré-conceptivo, ocorrem erros (por ação ou omissão) que geram violações à autonomia junto ao planejamento familiar, à realização de terapias gênicas (quando existentes e permitidas), à seleção terapêutica de embriões e/ou à utilização de métodos anticonceptivos no aconselhamento. A ação por wrongful birth poderia ser proposta no Brasil diante de falhas no aconselhamento genético pré-natal, decorrendo violação à autonomia em relação à opção pela interrupção da gravidez, apenas nas hipóteses do artigo 128 do Código Penal, quais sejam, o aborto necessário (quando não há outro meio de salvar a vida da gestante) e o aborto no caso de gravidez resultante de estupro; bem como no caso de gestação de fetos (mero)anencéfalos, conforme permitido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 54 em 2012. Nas demais hipóteses de interrupção terapêutica da gravidez, como o aborto não é permitido no país, não haverá fundamento adequados. Outro fundamento possível para a ação no Brasil é aquele baseado na falha de provas ou de diagnóstico que retira o direito à terapia gênica fetal, se disponível e possível eticamente. A ação por wrongful life, no âmbito do aconselhamento genético pré-natal, não encontra fundamento no Brasil quanto ao direito de não nascer, pois a possibilidade de exercer sua autonomia e escolher entre viver ou não viver15 não é de competência do nascituro. Entretanto, Graziela Trindade Clemente e Nelson Rosenvald16 entendem que a fundamentação possível juridicamente para a demanda por wrongful life seria aquela vinculada aos "custos acrescidos que uma situação peculiar de vida (com deficiência) impõe." Nesse caso, a fundamentação seria possível no Brasil. Foi realizada pesquisa17, utilizando-se a expressão "wrongful", junto ao mecanismo de busca de jurisprudência dos sites de todos18 os Tribunais de Justiça dos Estados brasileiros e do Distrito Federal. Somente foram encontradas duas decisões no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul - TJRS com fundamentos vinculados à wrongful conception ou pregnancy. Na primeira, de 2014, a autora buscou a responsabilidade civil médica diante de ausência de informação de que ligadura tubária solicitada e autorizada por ela não havia sido realizada, culminando em nova gravidez.19 Na segunda, de 2017, a autora buscou responsabilização civil por falha no uso de anticoncepcional injetável que culminou no nascimento de uma criança.20 Apesar de não utilizar a terminologia wrongful conception/pregnancy, são encontradas nos tribunais brasileiros demandas que tem como fundamento esterilizações falhas.21 Logo, apesar de existirem fundamentos jurídicos para tanto e hipóteses possíveis, em especial quando vinculadas à violação da autonomia junto ao livre planejamento familiar, os Tribunais de Justiça dos Estados brasileiros e do Distrito Federal não aplicam a teoria da responsabilidade civil médica por wrongful conception/pregnancy, birth ou life, pelo menos com a nomenclatura estudada, ainda que as práticas de aconselhamento genético e RA sejam realizadas no país. __________ 1 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução CFM n.º 2.294/2021. Publicada no D.O.U. de 15 jun. 2021, SeçãoI, p.60. Disponível em: https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/resolucoes/br/2021/2294. Acesso em: 23 ago. 2022. 2 "Um dos pontos fundamentais da regulamentação deontológica tem sido a medida de preservação das autonomias do paciente (e, mesmo, do médico) diante dos comandos normativos atuais." SÁ, Maria de Fátima Freire de; MEIRELLES, Ana Thereza; SOUZA, Iara Antunes de. Doação anônima de gametas à luz da resolução CFM 2.294/21 e (im)possibilidade de responsabilidade civil. Migalhas, Coluna Migalhas de RC, 15 jul. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 23 ago. 2022. 3 SÁ, Maria de Fátima Freire de; NAVES, Bruno Torquato de Oliveira. Bioética e biodireito. 5ª ed. Indaiatuba: Foco, 2021. p.102. 4 EMALDI-CIRIÓN, Aitziber. Lección 11. El consejo genético en el ámbito de la reproducción humana. In: ROMEO CASABONA, Carlos Maria; JIMÉNEZ, Pilar Nicolás; MALANDRA, Sergio Romeo. Manual de Bioderecho. Madrid, Editorial Dykinson: 2022. p.281. 5 ROMEO CASABONA, Carlos María; EMALDI-CIRIÓN, Aitziber; EPIFANIO, Leire Escajedo San; JIMÉNEZ, Pilar Nicolás; MALANDA, Sergio Romeo; MORA, Asier Urruela. De la medicina curativa a la medicina preventiva: Consejo genético. In.: La ética y el derecho ante la biomedicina Del futuro. Cátedra Interuniversitaria Fundación BBVA - Diputación Foral de Bizkaia de Derecho y Genoma Humano. Bilbao: Universidade de Deusto, 2006. p.193. 6 EMALDI-CIRIÓN, Aitziber. Lección 11. El consejo genético en el ámbito de la reproducción humana. In: ROMEO CASABONA, Carlos Maria; JIMÉNEZ, Pilar Nicolás; MALANDRA, Sergio Romeo. Manual de Bioderecho. Madrid, Editorial Dykinson: 2022. p.281-284. 7 Aqui fala-se no uso da técnica CRISPR/Cas9 na edição gênica, como um editor de texto genético, capaz de promover a correção ou a exclusão de genes com mutações relacionadas a doenças e deficiências, de forma a desfazer ou a silenciar seus efeitos. CLEMENTE, Graziela Trindade; ROSENVALD, Nelson. Edição gênica e os limites da responsabilidade civil. In.: MARTINS, Guilherme Magalhães; ROSENVALD, Nelson. Responsabilidade civil e novas tecnologias. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2020. p.238. 8 EMALDI-CIRIÓN, Aitziber. A responsabilidade dos profissionais sanitários no marco do assessoramento genético. In: CASABONA, Carlos Maria Romeo; QUEIROZ, Juliane Fernandes (Coord.). Biotecnologia e suas implicações ético-jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p.64. 9 ROMEO CASABONA, Carlos María; EMALDI-CIRIÓN, Aitziber; EPIFANIO, Leire Escajedo San; JIMÉNEZ, Pilar Nicolás; MALANDA, Sergio Romeo; MORA, Asier Urruela. De la medicina curativa a la medicina preventiva: Consejo genético. In.: La ética y el derecho ante la biomedicina Del futuro. Cátedra Interuniversitaria Fundación BBVA - Diputación Foral de Bizkaia de Derecho y Genoma Humano. Bilbao: Universidade de Deusto, 2006. p.193. 10 "VI - DIAGNÓSTICO GENÉTICO PRÉ-IMPLANTACIONAL DE EMBRIÕES 1. As técnicas de RA podem ser aplicadas à seleção de embriões submetidos a diagnóstico de alterações genéticas causadoras de doenças, podendo nesses casos ser doados para pesquisa ou descartados, conforme a decisão do(s) paciente(s), devidamente documentada com consentimento informado livre e esclarecido específico. No laudo da avaliação genética, só é permitido informar se o embrião é masculino ou feminino em casos de doenças ligadas ao sexo ou de aneuploidias de cromossomos sexuais." 11 LEONE, Salvino; PRIVITERA, Salvatore; CUNHA, Jorge Teixeira da. Dicionário de bioética. Aparecida (SP): Editora Santuário, 2001. p. 267. 12 Paulo Mota Pinto ensina que as wrongful actions iniciaram-se nos Estados Unidos em 1970. PINTO, Paulo Mota. Indenização em caso de "Nascimento Indevido" e de "Vida Indevida" (Wrongful Birth e Wrongful Life). Revista Brasileira de Direito das Famílias e Sucessões. Porto Alegre, v.3, n.3, p. 75-99, abr-mai, 2008. p.78. 13 ROMEO CASABONA, Carlos María; EMALDI-CIRIÓN, Aitziber; EPIFANIO, Leire Escajedo San; JIMÉNEZ, Pilar Nicolás; MALANDA, Sergio Romeo; MORA, Asier Urruela. De la medicina curativa a la medicina preventiva: Consejo genético. In.: La ética y el derecho ante la biomedicina Del futuro. Cátedra Interuniversitaria Fundación BBVA - Diputación Foral de Bizkaia de Derecho y Genoma Humano. Bilbao: Universidade de Deusto, 2006. p.215. 14 EMALDI-CIRIÓN, Aitziber. A responsabilidade dos profissionais sanitários no marco do assessoramento genético. In: CASABONA, Carlos Maria Romeo; QUEIROZ, Juliane Fernandes (Coord.). Biotecnologia e suas implicações ético-jurídicas. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p.97. 15 SOUZA, Iara Antunes de. Aconselhamento Genético e Responsabilidade Civil: As Ações por Concepção Indevida (Wrongful Conception), Nascimento Indevido (Wrongful Birth) e Vida Indevida (Wrongful Life). Belo Horizonte: Arraes Editores, 2014. p.131. 16 CLEMENTE, Graziela Trindade; ROSENVALD, Nelson. Edição gênica e os limites da responsabilidade civil. In.: MARTINS, Guilherme Magalhães; ROSENVALD, Nelson. Responsabilidade civil e novas tecnologias. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2020. p.258. 17 SÁ, Maria de Fátima Freire; SOUZA, Iara Antunes de. Responsabilidade Civil e Reprodução Humana Assistida: a (in)aplicabilidade das ações de wrongful conception ou pregnancy e birth nos tribunais brasileiros. In: MARTINS, Guilherme Magalhães; ROSENVALD, Nelson (Org.). Responsabilidade Civil e novas tecnologias. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2020. p. 394-395. 18 Fora pesquisado o termo "wrongful" no sistema de pesquisa de jurisprudência dos Tribunais de Justiça estaduais brasileiros e do Distrito Federal:  TJAC, TJAL, TJAP, TJAM, TJBA, TJCE, TJDF, TJES, TJGO, TJMA, TJMT, TJMS, TJMG, TJPR, TJPB, TJPA, TJPE, TJPI, TJRN, TJRS, TJRJ, TJRO, TJRR, TJSC, TJSE, TJSP, TJTO. 19 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado. Apelação Cível Nº 70058338039. Nona Câmara Cível. Relator: Eugênio Facchini Neto. Julgado em: 26 mar. 2014. Disponível aqui. Acesso em: 23 ago. 2022. 20 RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Estado. Apelação Cível Nº 70075425744. Nona Câmara Cível. Relator: Eugênio Facchini Neto. Julgado em: 13 Dez. 2017. Disponível aqui. Acesso em: 23 ago. 2022. 21 MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça do Estado. Apelação Cível n. 0566326.87.2006.8.13.0016.  Relator Desembargador Marcelo Rodrigues. Órgão Julgador: 11ª Câmara Cível. Data de Julgamento: 12 Set. 2007. Disponível aqui. Acesso em: 23 ago. 2022.
Embora se trate de um termo que abrange mais de 100 diferentes tipos de doenças, com melhor e pior prognóstico, existe uma espécie de compartilhamento social da ideia de que ouvir que se tem câncer é pior do que tomar conhecimento de outras doenças até potencialmente mais graves a depender do caso. Foi por isso que eu resisti a aceitar que uma grande parte - talvez a maioria - dos pacientes com cânceres avançados não entende que não existe prognóstico de cura, e não apenas isso, que não existe prognóstico de vida longa. Até hoje, quando publico ou falo sobre isso, mesmo depois de tantos anos dizendo a mesma coisa, pergunto-me se não vai aparecer alguém para demonstrar que estou errada. Obviamente, eu queria que aparecesse. Quando entrei no doutorado para pesquisar as expectativas equivocadas dos pacientes com câncer avançado e a contraposição entre direito à saúde e o que chamei de direito à esperança, um dos professores da banca de admissão me perguntou se eu tinha certeza do que estava fazendo. Eu já estava aprovada, a questão não era essa. Era se eu estava realmente disposta a enfrentar um assunto para o qual a população brasileira não está preparada; um assunto para o qual a maior parte das pessoas, especialmente no ocidente, não está preparada. Quatro anos depois, na banca de qualificação, outro professor disse que minha tese tinha que vir com uma capa informando tema sensível. "Não é fácil ler o que está escrito aqui". Não é fácil saber o que está escrito ali. Em 2003, Gordon e Daugherty publicaram um artigo chamado "Hitting you over the head", na revista Bioethics, uma das mais importantes publicações de bioética. Os autores afirmavam que as opções de tratamento disponíveis para pacientes com câncer avançado - cânceres metastáticos em geral - são limitadas e têm, na melhor das hipóteses, o potencial de benefícios terapêuticos apenas marginais1. Em 2016, Peter Wise revisou a literatura sobre as drogas oncológicas para pacientes com câncer metastático e publicou o artigo "Cancer drugs, survival, and ethics", no BMJ, uma das revistas médicas mais respeitadas do mundo. Nele, Wise demonstrava a baixíssima efetividade das drogas no tratamento dos cânceres avançados (sobrevida global de até três meses), incluindo os tumores mais prevalentes no mundo e as drogas aprovadas pelas principais agências até 20142. A editora-chefe à época, Fiona Godlee, recomendou que todos os oncologistas lessem seu artigo. No ano seguinte, Wise escrevia ao BMJ:  Eu revisei recentemente os resultados frequentemente ruins dos tratamentos com medicamentos oncológicos e a falta de empoderamento e falta de informações dos pacientes. Até que drogas melhores estejam disponíveis, nós precisamos de uma discussão de tratamento multidisciplinar mais informada e equilibrada, o que deve resultar em [i] uma prática com maior ética, [ii] mais pacientes com cânceres pouco responsivos submetidos exclusivamente a cuidados suportivos melhores, e [iii] uma consequente redução de custos nas drogas para doença metastática.3  Embora haja estudos com resultados promissores para pacientes com alguns tipos de câncer avançado, é possível dizer que o cenário não sofreu grandes alterações nesses últimos cinco anos. Como demonstra Siddharta Mukherjee na obra mais completa já escrita sobre a evolução do câncer, O Imperador de todos os males4, há pelo menos um século temos visto resultados promissores serem seguidamente derrotados para a maior parte dos casos. Infelizmente, a forma mais honesta de resumir o cenário é reconhecer que a maior parte dos pacientes com câncer metastático não tem prognóstico de cura ou sobrevida longa. E isso acontece com ou sem tratamento. Em outras palavras, é dizer que a maior parte dos pacientes irá morrer de seus cânceres em um tempo relativamente curto, cuja variabilidade dependerá muito pouco da quimioterapia a que se submetam. Como explicar, então, a quantidade de ações judiciais em que pessoas com câncer metastático afirmam que precisam de acesso a determinado medicamento, pois correm o risco de morrer sem ele? Durante quase dez anos, eu acompanhei uma grande parte das ações judiciais desses pacientes, ajuizadas contra a União e outros entes públicos, em que se alegava que o medicamento era essencial para a manutenção da vida do paciente. Na maior parte dos relatórios médicos que instruem essas ações, há poucas explicações: "o medicamento é necessário" e ponto. Nos mais elaborados, há alguma explicação técnica cuja compreensão é inacessível à maior parte dos operadores do direito e mesmo a profissionais de saúde. Em geral, eles dizem que "foi demonstrado aumento da sobrevida livre de progressão". Na obra Mallignant5, publicada em 2020, o oncologista e hematologista Vinay Prasad explica detalhadamente diversos estudos que demonstram que, de modo geral, não tem havido relação entre aumento da sobrevida livre de progressão e aumento de sobrevida global. Em outras palavras, dizer que um medicamento é necessário com base nesse desfecho é uma falácia. O paciente não vai viver mais por causa disso. É difícil saber se o médico realmente acredita que ele vai. Isso envolve uma série de questões, desde a influência da indústria farmacêutica até a falta de atualização da maior parte dos oncologistas. Mas acreditando ou não, ele afirma a necessidade de um tratamento, que é compreendida pelo paciente - e depois, pelo advogado e pelo juiz - como uma chance de se curar ou, pelo menos, de viver muito mais. O paciente não procura um advogado para ajuizar uma ação, esperar por uma decisão judicial e, depois, pelo seu cumprimento, por mais um a três meses de vida. Ele faz isso, porque acredita que pode se curar ou viver muito. Estudos importantes e de largo alcance demonstraram que a maior parte dos pacientes com cânceres metastáticos não compreendem que não podem ser curados6. Eles não entendem o propósito do tratamento ao qual se submetem. Em pesquisa para o doutorado que realizei em hospitais do Brasil e da Alemanha em 2018, percebi que isso pode ser bem pior: mesmo os pacientes que entendem que seus cânceres são incuráveis podem acreditar que suas doenças não os matarão, desde que se mantenham em tratamento: uma ideia que chamei de enquanto há quimioterapia, há vida7. A falta de entendimento sobre seu prognóstico é determinante para as decisões que serão tomadas pelas pesssoas. Há estudos que demonstram que "pacientes com câncer avançado aceitariam tratamentos tóxicos por até mesmo 1% de chance de cura, mas não aceitariam o mesmo tratamento por um aumento substancial na expectativa de vida sem a cura"8. Não apenas muitos doentes se submetem a tratamentos invasivos, com alta toxicidade e diminuição do tempo de vida com qualidade, porque acreditam que estão abrindo mão de um presente melhor por um futuro provável, como grande parte deles vai usar parte esse tempo para encarar uma batalha judicial que nunca é incólume. Eles acreditam estar buscando a tutela de seu direito à saúde. Mas o que está em jogo, na verdade, seria um direito à esperança. Como costumo dizer, milagres podem até acontecer e nós temos todo o direito de esperar por eles. Mas não existe o direito de colocar a sua ocorrência na conta da ciência. Se de um tratamento que tem a probabilide de me oferecer, no caso de eu responder a ele, uma média de até três meses de sobrevida (global), eu espero me curar ou viver mais cinquenta anos, então não é de saúde que estamos falando. É de esperança. E a ela não existe um direito reconhecido por nenhum ordenamento jurídico de que se tenha notícia, mesmo porque se trata de elemento subjetivo e de conteúdo não universalizável. No Brasil, a nossa legislação diz que o direito à saúde é o direito à saúde baseada em evidências, por meio da qual se exige que a tomada de decisões médicas seja norteada pela busca explícita e honesta das melhores evidências científicas da literatura médica. Nesse sentido, é necessário reconhecer que grande parte das decisões judiciais que defere o acesso a tecnologias em saúde com base em expectativas irreais a seu respeito não têm fundamentação jurídica, por conferirem a relatórios médicos poder de definição que eles não poderiam ter. Direito à saúde nos termos do artigo 196 da Constituição e das diretrizes da Lei n. 8.080/90 e do Decreto n. 7.508/2011 não significa - e nem poderia - conteúdo de receituário médico. Enquanto nos esforçamos para fornecer quase toda e qualquer tecnologia prescrita para esses pacientes, eles seguem com suas expectativas irreais até muito perto do fim de suas vidas, quando o próprio corpo cumpre o papel não desempenhado pela equipe médica de informar que a morte está próxima. Investimos na cultura do tratar, abandonamos a cultura do cuidar. Um dos mais importantes direitos do paciente, independentemente da crença na existência de tratamentos curativos ou prolongadores da vida, é o direito à expectativa de continuidade razoável de cuidado, especialmente em relação ao alívio de sintomas e da dor. É papel da Medicina tornar a vida mais tolerável e, segundo Modell, drogas para o alívio de sintomas afiguram-se, originalmente, como o único objetivo realístico da medicina.9 Os chamados cuidados paliativos têm o objetivo precípuo de garantir ao paciente a melhor qualidade de vida possível com a máxima autonomia, a partir de uma perspectiva multidisciplinar de manejo da dor física e psíquica, com comunicação adequada com o doente e seus familiares, que também são destinatários dos cuidados, dure o tempo de vida do doente dez meses ou dez anos. No entanto, a priorização do cuidado de pessoas, acima da ideia de tratar doenças a qualquer custo, ainda é uma realidade distante. A forma pela qual os sistemas de saúde são financiados incentiva a obstinação terapêutica: o ressarcimento de serviços de saúde se dá, em geral, pelo que se oferece ao paciente em termos de tratamento "ativo" - cirurgia, quimioterapia - e não para evitar ou impedir a sua dor.10 Em relação ao câncer, sabe-se que os cuidados paliativos vêm sendo fornecidos tarde no curso da doença metastática e que esse referenciamento tardio é inadequado para alterar a qualidade do cuidado fornecido.11 Eu sei que a maior parte das pessoas acredita que cuidados paliativos são o que sobra "quando não há mais nada a fazer". Essa é a visão preponderante não apenas das pessoas leigas que ouvem falar do assunto, mas dos próprios médicos. E ela está completamente equivocada. Murray et al12 citam estudos que demonstram que cuidados especializados integrados à oncologia, comparados a cuidados-padrão, aumentaram a qualidade de vida e, para algumas pessoas, a longevidade. Em outras palavras, os cuidados paliativos interferem diretamente na vida que se terá no curso da doença, seja qual for o seu desfecho. Além disso, há estudos que demonstram que o início precoce do manejo de cuidados paliativos melhora de forma significativa a compreensão do paciente sobre seu prognóstico ao longo do tempo, o que impacta as decisões, inclusive sobre tratamento, no fim da vida13. Os cuidados paliativos iniciados logo quando do diagnóstico da doença, ao mesmo tempo em que fazem com que os pacientes tenham a melhor vida possível até que a morte sobrevenha, não impedem que se iniciem ou se mantenham os chamados tratamentos ativos, tal como a quimioterapia. Mas porque os pacientes terão uma melhor compreensão do seu prognóstico e, muitas vezes, porque poderão considerar melhor suas prioridades - ir ao hospital fazer um novo ciclo de quimioterapia ou ter o melhor manejo de sintomas possível para aproveitar o seu tempo de outra maneira -, frequentemente interromperão essas terapias mais cedo. Gosto de citar uma passagem do médico e bioeticista americano Sherwin Nuland, que escreveu um dos melhores livros que já li - para a minha pesquisa e para a minha vida: How We Die: Reflections on Life's Final Chapter. Nele, Nuland conta sobre o câncer do irmão, Harvey, e de como o influenciou a tentar um tratamento: Harvey pagou um alto preço pela promessa de esperança não realizada. Eu havia oferecido a ele a oportunidade de tentar o impossível, apesar de saber que a tentativa seria a custo de grande sofrimento. No que dizia respeito a meu irmão, eu havia esquecido, ou ao menos abandonado, as lições aprendidas em décadas de experiência. Trinta anos antes, quando não havia quimioterapia, Harvey teria morrido provavelmente no mesmo tempo em que ele eventualmente morreu, da mesma caquexia, insuficiência do fígado e desequilíbrio químico crônico, mas sua morte teria sido sem a devastação adicional de tratamentos fúteis e do conceito desviado de "esperança" que eu havia relutado em negar a ele e sua família, tal como a mim mesmo. Quando eu expliquei a alta frequência de toxicidade perigosa de certas formas desesperadas de tratamento cuja probabilidade de sucesso é remota, alguns de meus pacientes com câncer avançado escolheram sabiamente não fazer nada, e encontraram sua esperança de outras maneiras.14 Abdicar do tempo restante apostando no impossível pode até ser visto como a única opção para algumas pessoas. Mas, com certeza, não será para muitas. Provavelmente para a maioria, terminar o fim da sua vida vivendo, e não tentando (sobre)viver, é a melhor chance. Como costumo dizer, para muitos de nós, o fim da vida será a sua parte mais importante, até porque é tão vida quanto seu início e seu meio. Naturalmente, só dá para pensar em opções, em especial as de tratar ou não tratar e quanto tratar, quando se sabe que o fim da vida está próximo - ainda que, eventualmente e sem que a ciência possa explicar o porquê, algumas pessoas vivam muito além de seus prognósticos. Você poderia terminar este texto pensando que ele não é para você. Seja porque não está doente, porque não conhece alguém que está doente; ou porque, se ou quando adoecer, confiará no que o seu médico disser ou terá discernimento suficiente para entender as suas opções. Acho pouco provável que algum de nós passe por esta vida sem ser acometido por um câncer em estágio avançado ou com mau prognóstico - nosso ou em algumas pessoas que são importantes para nós. Mas é a improbabilidade da segunda parte que me move mais. Não é curioso que todos tenhamos tanto medo de ter câncer, de morrer de câncer e, ao mesmo tempo, a maior parte de nós, quando tem um câncer incurável, acredite que será curado? A maioria dos médicos não diz para o paciente você está morrendo ou você tem seis meses de vida, como muitas vezes vemos nos filmes. Eles dizem termos técnicos sobre terapias e resultados. Eles falam "vamos iniciar esse tratamento", "você está respondendo ao tratamento", "seu tumor diminuiu". Com sorte (?), eles dizem que "um estudo demonstrou uma melhora de sobrevida livre de progressão em tantos por cento". E eu estou dizendo: isso não significa que você está melhorando, muito menos que será curado. Não é fácil ler isso. Não é fácil saber disso. Mas, por mais que o exercício de projetar o fim da própria existência seja estranho a princípio, tentar evitar o assunto morte é um desperdício de energia. Ela vai continuar acontecendo. E, paradoxalmente, mas nem tão paradoxalmente assim, a reflexão sobre a nossa finitude pode ser justamente o que nos impulsiona para uma vida melhor. Dure ela quanto tempo durar. É claro que ninguém está verdadeiramente preparado para a ausência. A gente se prepara para se preparar, não para não sentir. O sofrimento é como o DNA, cada um tem o seu, único, intransferível. Mas saber que a vida acaba - para nós e para os outros - pode nos trazer de volta para o presente, especialmente quando estamos muito absorvidos pela ideia de futuro. O futuro é sempre uma ideia, para quem está doente e para quem está saudável: em um mês ou um ano, pessoas dos dois grupos não terão chegado a ele. Não posso terminar este texto sem registrar que penso sempre na ideia de que viver o agora não é realidade para muita gente - textos e eventos sobre o fim da vida são, em sua maioria, elitizados. Ter medo de morrer de câncer ainda é privilégio de quem não tem medo de não ter o que comer na próxima refeição. Mas sei que as melhoras que pudermos proporcionar na distribuição dos cuidados, especialmente a democratização do acesso aos cuidados paliativos precoces, pode afetar as vidas das pessoas mais vulneráveis. E assim, quem sabe, conseguiremos conferir o mínimo de dignidade a pessoas que a tiveram negada suas vidas inteiras, ainda que, por enquanto, apenas no fim delas. ___________ 1 GORDON, Elisa J.; DAUGHERTY, Christopher K. 'Hitting You Over the Head': Oncologists' Disclosure of Prognosis to Advanced Cancer Patients. Bioethics, v. 17, n. 2, p. 142-168, 2003. 2 WISE, Peter H. Cancer drugs, survival, and ethics. BMJ; v. 355, p. 1-4, 9 nov. 2016 3 WISE, Peter H. Palliative care doctors should be included in treatment discussions. BMJ, v. 356, n. 1551, 29 mar. 2017, tradução livre. 4 MUKHERJEE, Siddhartha. O imperador de todos os males: Uma biografia do câncer. Traduzido por Berilo Vargas. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. 5 PRASAD, Vinay. Malignant: How Bad Policy and Bad Evidence Harm People with Cancer. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 2020. 6 TEMEL, Jennifer S. et al. Longitudinal Perceptions of Prognosis and Goals of Therapy in Patients With Metastatic Non-Small-Cell Lung Cancer: Results of a Randomized Study of Early Palliative Care. Journal of Clinical Oncology, v. 29, n. 17, p. 2319-2326, 10 jun. 2011; WEEKS, Jane C. et al. Patient's Expectations about Effects of Chemotherapy for Advanced Cancer. The New England Journal of Medicine, v. 367, p. 1616-1625, 25 out. 2012, tradução livre. 7 ARAÚJO, Cynthia Pereira de. Existe direito à esperança? Saúde no contexto do câncer e fim de vida. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020. 8 WEEKS, op. cit. 9 MODELL apud MCKEOWN, Thomas. The Role of Medicine: Dream, Mirage, or Nemesis. New Jersey: Princeton University Press, 1979, p. 191. 10 A BETTER way to care for the dying. The Economist, 29 abr. 2017. Disponível aqui. Acesso em: 30 maio 2018. 11 TEMEL, op. cit. 12 MURRAY, Scott et al. Palliative care from diagnosis to death. BMJ, v. 356, n. 878, 27 fev. 2017. 13 TEMEL, op. cit. 14 NULAND, Sherwin B. How We Die: Reflections of Life's Final Chapter. New York: Vintage, 1994, p. 231, tradução livre.
O Mundo da informação e as relações de saúde O mundo da informação se consolida cada dia mais, no entanto, com esse avanço informativo, tem-se mais desafios éticos jurídicos a enfrentar, o que, por vezes, passam invisibilizados, ou mesmo, mitigados, mas que acarretam consequências sérias. O consentimento é um desses parâmetros. O consentimento informado é um instituto jurídico que tomou força nos últimos anos do século XX.1 Isto ocorreu devido à mudança do paradigma na relação médico-paciente: do abandono da medicina paternalista para o exercício da medicina em favor da autonomia do paciente.2 O paciente passou a ser reconhecido pela prática médica como pessoa, dotada de valores inerentes a ela, a qual deve ser respeitada a vontade de autodeterminação. Esclarecido porque pressupõe, para sua validade, o entendimento pelo paciente das questões relativas à sua condição de saúde e do tratamento ao qual poderá se submeter. Livre porque, a partir da compreensão destes aspectos, o paciente irá decidir, de acordo com suas concepções, se aceita ou não se submeter à intervenção médica. Em tempos em que as divulgações, principalmente por médicos, sobre temas relacionado à saúde têm amplo espectro nas redes sociais, como, por exemplo, Instagram e/ou WhatsApp, sob manto de informar e educar, distribuem-se informações sobre doenças e tratamentos com uma maior "liberdade". Esse movimento impacta diretamente no exercício do consentimento livre e esclarecido, posto que, traduz para uma sociedade leiga uma série de condutas a serem adotadas no caso de prevenção e tratamento de doenças que estejam a ser discutidas, mas sem as devidas advertências que os temas impõem. A força e rapidez com que essa informação chega à sociedade é descomunal, médicos, na medida em que passam a ter seguidores e suas intervenções, sejam elas em qualquer plataforma de mídia, podem virar rapidamente uma "consulta" virtual sem que os parâmetros legais dela sejam devidamente respeitados. Nessa seara que a conduta adotada pelo profissional da saúde, especialmente o médico, impacta na tomada de decisão esclarecida, na busca de tratamento médico adequado ou na escolha consciente da aceitação ou recusa da conduta médica a ser adotada para real proteção do exercício direito à saúde. A divulgação de fake News e os impactos no exercício das condutas na sociedade. A voz humana, assim, tem um alcance maior que vai para além de consultório físico e palestras em congressos, chegando a qualquer um que tenha acesso a uma plataforma digital, tendo-se em mente que o acesso digital é um direito fundamental nos dias atuais. Ocorre que esse alto poder de divulgar carrega consigo limites no que se refere ao conteúdo do que será divulgado, sendo vedado, no ordenamento jurídico, a propagação de notícias falsas, as chamadas Fake News, entendidas estas, para o presente artigo, como toda aquela que não é calcada em base científica comprovada (evidência) e/ou que seja construída sob a base metodológica inadequada para atestar da sua eficácia. Qualquer forma de divulgação de tratamento, procedimento e/ou medicamento para tratar e/ou evitar sintomas de doenças deve ocorrer dentro do consultório médico, seja ele físico ou virtual, e, estar calcado na conduta médica adequada de individualização do caso (humanização do paciente), sendo feito os esclarecimento dos eventos adverso e a base científica da conduta adotada para que possa a pessoa exercer licitamente o seu direito ao consentimento livre e esclarecido, respeitando, assim, devidamente a natureza jurídica do instituto que é possibilitar o entendimento da conduta médica a ser adotada. Com utilização dos meios de divulgação de conteúdo médico (doença, tratamento, medicamento, entre outros) de maneira mais fácil na sociedade, seja pelas redes sociais de médicos, entidades médicas, seja por aplicativos de conversas, onde é fomentado pelo produtor do conteúdo que aquela mensagem que contém conteúdo da prática médica seja divulgada para o maior número de pessoas possíveis, entramos em uma seara bastante arenosa da conduta médica e seus impacto jurídicos. O impacto no consentimento do paciente está entre tais consequências. Primeiro ponto de impacto, é que muitas vezes, o paciente já chega ao consultório munido de "esclarecimento" sobre a temática da sua doença e/ou tratamento, o que foi introduzido pela rede social que acompanhava e com a chancela do médico que a propagou. O segundo impacto está que, nesses casos, o médico quando da leitura do termo ou do prognóstico já conduz a conversa no sentido que o esclarecimento foi feito nos mesmos termos da referida postagem, chegando ao ponto de, em alguns casos, ser fomentado que em caso de dúvida posterior envie um direct ou uma mensagem, ou mesmo que seja desnecessário o consentimento, visto que o paciente já chegou até o profissional por causa da postagem. Mas, o ponto mais relevante, é a consequência que essa propagação de informação, que, aparentemente, foi construída e divulgada sob manto de educar a sociedade, é consolidada com base nas chamadas Fake News. A construção do consentimento livre esclarecido diante da relação de hipossuficiência que há entre o conhecimento do médico que divulga  e do "público" que absorve tais informações gera ruídos, na medida em que irão calcar seu processo de decisão baseados em informações genéricas, muitas vezes não adequadas ao seu caso individual, mas que o profissional/influencer médico, nem sequer faz distinção quando propala o prognóstico, podendo acarretar em uma mácula no consentimento que poderá esvaziá-lo no sentido jurídico. Outro ponto relevante nessa discussão é o fato de nesses ambiente virtuais haja uma maior facilidade de propagação de fakenews com a consequente distribuição de informações que conflitam com o que lecionado pela ciência a qual está submetida, utilizando, por vezes, o embasamento em estudos que nem sequer existem, ou mesmo, que não tem o reconhecimento metodológico científico de sua eficácia para o fim que está sendo exposto. Nesse ambiente virtual é mais fácil fazer a citação de estudos que não existem ou mesmo que, se existirem, a sua metodologia não é adequada para comprovação da eficácia para que se propõe a intervenção médica propalada, visto a dificuldade que a população tem de buscar e entender os estudos que tem cunho científico, sem falar do suposto argumento de "autoridade" que o médico  impõe em sua fala, deixando ainda mais vulnerável o paciente na tomada de decisão esclarecida, já que está sendo informado de forma equivocada sobre a conduta. Os impacto da divulgação de Fake News e o consentimento esclarecido. O código de ética médica- CEM em seu artigo 112, veda ao médico divulgar informação sobre assunto médico de forma sensacionalista, promocional ou de conteúdo inverídico, no entanto, nos últimos dois anos não nos faltaram exemplos de lives e entrevistas que tinham o propósito de divulgar informações inverídicas indo de encontro direto com as bases científicas amplamente existente, bem como, propalando procedimentos médico sem base cientifica comprovada. Tal prática acarretou um impacto enorme a tomada de decisão livre e esclarecida da população em geral. Como fazer a melhor tomada de decisão se havia, principalmente dentro do ambiente virtual, um médico, dizendo que tal conduta deveria ou não ser adotada, ou mesmo, propagando a utilização de certo medicamento sem que houve consulta prévia desse paciente, com a devida anamnese? No entanto muitos se sentiram examinados e adotaram as condutas propaladas, muitas vezes de forma sensacionalista, o que é vedado. A utilização desse mecanismo de divulgação gera impacto gigantesco no exercício das liberdades individuas, nomeadamente, no consentimento, seja porque, em muitos casos, deixou-se de buscar o tratamento adequado, seja porque, foi introduzido uma prática médica, que aparentemente é consentida, mas era marcada por uma ausência de discussão com o paciente da ausência real de base científica para o caso, eventos adversos entre outras consequências. A relação de consentimento já não consegue atingir o fim jurídico pretendido, posto que, não é repassado ao paciente todas as nuances que a conduta médica acarreta. O paciente vê, principalmente nas redes socias, a divulgação de medicamentos e tratamentos sem o menor controle sob como isso pode impactar na construção da tomada de decisão que o mesmo terá sobre a prática que irá se submeter. Considerações finais A atuação médica de propalar tratamento, medicamentos, procedimentos sem o cuidado ético necessários, bem como, aqueles que são alicerceados em  Fake News tem um repercussão direta na matriz do instituto do consentimento, macula a dimensão do conhecimento individual de cada pessoa na consequência da sua tomada de decisão da utilização ou autorização no tratamento que se propõe. É vedado ao médico divulgar, fora do meio científico, processo de tratamento ou descoberta cujo valor ainda não esteja expressamente reconhecido cientificamente por órgão competente, consoante o art. 113, CEM. Necessário observar que é direito do médico indicar o procedimento adequado ao paciente, observadas as práticas cientificamente reconhecidas e respeitada a legislação vigente (CEM), desde que ocorra em consulta médica. Ainda, tal prerrogativa é acompanhada da necessidade de que seja dirigida apenas ao seu paciente respeitando o binômio, cientificamente comprovado, com os parâmetros devidamente explicado ao paciente e, que tal pratica tenha o reconhecimento legal. Na ausência de qualquer um deles, deve o médico, no âmbito da sua conduta, quer nas falas sociais direcionadas ao público para, supostamente, educar, quer em  consulta esclarecer e alertar da inexistência de comprovação cientifica baseada nos parâmetros a legais existentes, sob pena de poder responder pela conduta para além do procedimento ético, mas também na seara cível. A divulgação das chamadas Fake News no âmbito da saúde coloca a população geral em risco, que já são munidas de uma hipossuficiência prévia para questões cientificas médica, deixando-a mais vulneráveis ainda a tratamentos e utilização de medicações desnecessários, visto que, a propulsão se alicerça ao argumento de autoridade do profissional médico colocando em xeque a possibilidade da verdadeira natureza jurídica do esclarecimentos, bem como, da decisão livre calcada no poder de autodeterminação consciente da população. Os prejuízos nas condutas de saúde, principalmente, as preventivas ficam abaladas como a divulgação de Fake News por parte do corpo médico, a informação chega distorcida à população que tem, como dito antes, mitigado seu poder de esclarecimento, aumentado o abismo da hipossuficiência do paciente, retirando do mesmo o discernimento necessário para a tomada de decisão consciente, livre e realmente esclarecida. Diante de um bombardeio de informações, principalmente quando estamos a falar de Fake News, o esclarecimento ou é comprometido ou passa a ser inexistente, pois, sob a falsa promessa de resultados médicos inatingíveis, aumenta-se o risco para a população em geral nas suas escolhas no diárias individuais no que tange a sua saúde, bem como, impacta no exercício do direito coletivo à saúde. A pratica abusiva dessa conduta da propagação de Fake News deve ser coibida em todos os segmentos da sociedade, mais ainda, pelo conselho Federal de medicina, para que haja a proteção do direito à saúde. Essa fiscalização deve ser cada dia  mais premente, visto que, a utilização desse mecanismo, sob o manto do livre exercício da escolha da conduta médica a ser adotada, esta não pode ser balizada por ignorar os parâmetros científicos metodológicos adequados, bem como, em burlar a realização eficaz do esclarecimento adequado e livre à população, sob pena de responsabilização ética, civil e penal. __________ 1 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Consentimento Informado na Relação Médico-Paciente, Estudo em Direito Civil, Coimbra Editora: 2004. p. 57. 2 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O Consentimento... op. cit. p. 349.
"O que melhora o atendimento é o contato afetivo de uma pessoa com outra. O que cura é a alegria, o que cura é a falta de preconceito."Nise da Silveir 1. Panorama geral No livro O Alienista, de Machado de Assis, Simão Bacamarte é um médico que cuida dos doentes da Casa Verde, uma instituição para pessoas "desequilibradas" na cidade de Itaguaí. Em um dado momento da narrativa, o referido alienista envia um ofício à Câmara da cidade ordenando que todas as pessoas do hospital (80% da população) fossem devolvidas ao convívio social. No ofício, explica "que se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades e, como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto"1. A despeito da ironia do nosso escritor, as doenças psiquiátricas atingem boa parte da população. Cerca de 970 milhões de pessoas sofrem de transtornos mentais no mundo. São 166 milhões de adolescentes. Os números aumentaram ainda mais com a pandemia da covid-19. Estima-se que a prevalência de ansiedade e de depressão cresceu mais de 25% somente no seu primeiro ano2. No Brasil, um dos países mais atingidos pela depressão, existem 7.2 milhões de pessoas acometidas por ela3. O presente texto visa analisar a assistência farmacêutica no SUS, que é um dos pilares da política de promoção da saúde mental. Ainda que outras estratégias assistenciais sejam fundamentais, a prescrição de medicamentos também é essencial para o tratamento de diversos quadros de doença mental4. 2. Relações nacional, estaduais e municipais de medicamentos ofertados pelo SUS 2.1 Lista nacional (RENAME) Para que um medicamento seja ofertado pelo SUS em todo o território nacional, ele precisa ser analisado por um órgão de composição plural criado pela lei 12.401/11, chamado Conitec - comissão nacional de incorporação de tecnologias no SUS. Antes da sua criação, as tecnologias eram analisadas pela CITEC - comissão para Incorporação de tecnologias do ministério da saúde5. O processo de incorporação é disciplinado pela lei antes referida e pelo decreto 7.646/11. Nele, é feita a análise das evidências científicas acerca da tecnologia. Também são abordadas questões de farmacoeconomia, para verificar custo-efetividade e o impacto orçamentário causado por sua eventual incorporação (§2º, do art. 19-Q, da lei 8.080/90, acrescentado pela lei 12.401/11). Após a elaboração do relatório pela Conitec, que poderá recomendar ou não a inclusão do tratamento no SUS, o processo é encaminhado para o secretário de ciência, tecnologia e insumos estratégicos, vinculado ao Ministério da Saúde (art. 20, do decreto 7.646/11). É ele quem dá a última palavra no processo de incorporação (art. 23). Uma vez aprovada a incorporação de um medicamento, ele deverá estar disponível no SUS 180 dias após a publicação da portaria que o incorporou (art. 25, do decreto) e passará a constar da RENAME - Relação Nacional de Medicamentos, em que são arrolados todos os medicamentos oferecidos nacionalmente pelo SUS. Significa dizer que ela deverá ser entregue em todo o território nacional no prazo previsto. 2.2 Listas estaduais e municipais Paralelamente à relação nacional, estados, DF e municípios podem ter suas próprias listas de medicamentos, com distribuição limitada aos seus territórios, em relações estaduais e municipais, estas últimas denominadas REMUME. Esses entes federados podem identificar doenças de maior prevalência e adotar as medidas que entenderem necessárias para combatê-las. Ocorre que, a despeito de deixar margem para a ampliação do elenco de medicamentos, as relações estaduais e municipais podem gerar desigualdades quando se considera o território nacional. Isso se torna especialmente relevante quando as doenças atingem uma parcela importante da população, como é o caso dos transtornos mentais. Por isso, é relevante que a RENAME possua um elenco satisfatório não só para o tratamento de doenças psiquiátricas, mas para outros agravos à saúde. Com isso, a igualdade prevista constitucionalmente no SUS será obedecida (art. 196, CF/88). Confira a íntegra do artigo. 
"Não é pelo facto de alguém se ter tornado agora incapaz que se tem autoridade para desrespeitar a narrativa pessoal que transporta consigo e que lhe possibilitou ter uma vida biográfica e não meramente biológica." Laura Ferreira dos Santos  Considerações iniciais João é um filósofo de 50 anos de idade, saudável, no pleno gozo de suas faculdades mentais. Ao longo de sua carreira, dedicou-se aos estudos da morte e do morrer. Ciente de sua própria finitude e dos problemas éticos e jurídicos que envolvem a tomada de decisão em fim de vida, João dirige-se à um Tabelionato de Notas e lavra, em 13.01.2014, uma procuração para cuidados de saúde nomeando seu melhor amigo, Pedro, como seu procurador, dando a ele amplos e irrestritos poderes para tomar decisões acerca dos cuidados de saúde quando e se João ficar gravemente doente e impossibilitado de se autodeterminar. No dia 20.10.2020, João sofre um grave acidente de carro e fica em estado vegetativo, impossibilitado de manifestar-se sobre seus cuidados de saúde. Pedro, então, apresenta no hospital a procuração para cuidados de saúde lavrada e, 45 dias depois, toma ciência de que o documento fora declarado ineficaz por um magistrado, nos autos da ação judicial de curatela de João, ajuizada por Maria, esposa do paciente. A decisão judicial foi motivada da seguinte forma: "segundo o ordenamento jurídico brasileiro, a procuração perde efeito com a incapacidade do mandante e, portanto, Pedro não tem direito de tomar nenhuma decisão sobre os cuidados de saúde de João." Esse é um caso que eu inventei, inspirada em um caso real que tem sido veiculado pela imprensa brasileira. Quero, com essa ficção, analisar a validade e a eficácia da procuração para cuidados de saúde no ordenamento jurídico brasileiro. Breves notas sobre os documentos de Diretivas Antecipadas  A ideia de que o indivíduo tem o direito de decidir, prospectivamente, sobre quais os cuidados de saúde ele gostaria de receber quando e se, no futuro, estiver impossibilitado de manifestar vontade surgiu no pós-Segunda Guerra Mundial, com o reconhecimento dos direitos à vida e à liberdade pela Declaração Universal dos Direitos do Homem. Em paralelo a esse reconhecimento, a relação médico-paciente sofreu profundas alterações, de modo que o modelo hipocrático paternalista de tomada de decisão foi, gradativamente, dando lugar ao modelo autonomista e, mais recentemente, ao modelo solidário/compartilhado. O modelo autonomista pretendeu dar ao paciente o protagonismo na tomada de decisões de saúde e embasou o surgimento do consentimento informado e também dos documentos de diretivas antecipadas. Enquanto o consentimento informado cuida da manifestação de vontade para um procedimento/tratamento/cuidados de saúde que o paciente necessita no momento presente; os documentos de diretivas antecipadas, surgidos dos EUA na década de 1960, tratam de manifestações sobre situações futuras e eventuais, as quais o outorgante vislumbra por meio de sua imaginação, com o objetivo de autodeterminar-se prospectivamente. Atualmente, reconhece-se haver sete espécies de documentos de diretivas antecipadas: testamento vital, procuração para cuidados de saúde1 (também conhecida como mandato duradouro), ordens de não reanimação, diretivas para saúde mental, diretivas para demência, documentos de recusa terapêutica e plano de parto2. O direito à manifestação prévia de vontade para cuidados de saúde tem sido reconhecido nas últimas duas décadas no Ocidente. Países como Espanha3, Portugal4, Alemanha5, Reino Unido6, França7, Itália8, Argentina9, Uruguai10 e Colômbia11 aprovaram leis que conferem validade e eficácia a documentos de manifestação antecipada de vontade em matéria de saúde, conferindo inclusive a eles força cogente diante da oposição de terceiros. Todavia, apesar de crescente nos ordenamentos jurídicos estrangeiros, o reconhecimento da autonomia prospectiva e, consequentemente, da validade e eficácia dos documentos de diretivas antecipadas, como um dos reflexos do direito à autodeterminação, ainda é incipiente no Brasil. Procuração para cuidados de saúde x representação legal x contrato de mandato A procuração para cuidados de saúde é "um documento que permite a um adulto competente designar uma pessoa - um procurador - que será autoridade a dar ou retirar consentimento para cuidados de saúde quando o outorgante perder a competência mental"12. Paula Távora Vítor afirma que o procurador de cuidados de saúde é um representante voluntário "e que, portanto, decide no interesse deste [representado], tendo em conta, na medida do possível, os seus desejos reconhecíveis". Percebe-se, assim, que a pessoa que faz uma procuração para cuidados de saúde está, em verdade: (i) dizendo para o ordenamento jurídico vigente que ela não concorda em ser representada, nos seus cuidados de saúde, pelas pessoas escolhidas pela lei (representação legal); (ii) reconhecendo que, desde o Estatuto da Pessoa com Deficiência, o curador (representante legal) deixou de ter poderes decisórios sobre situações existenciais; (iii) assumindo que deseja ter o controle de seus cuidados médicos, nas situações em que não puder mais se autodeterminar, situações estas em que será substituída pelo procurador para cuidados de saúde, pessoa da sua escolha e confiança. Neste contexto, não deve prosperar eventual aplicação análoga das normas do contrato de mandato à procuração para cuidados de saúde, na medida em que a função dos institutos é completamente distinta. A lógica legislativa do referido contrato alicerça-se na função patrimonial do mesmo e, sob esta, faz total sentido que a procuração - instrumento do contrato de mandato - perca efeito em caso de incapacidade do mandante. Em contrapartida, a procuração para cuidados de saúde alicerça-se na possibilidade de se "avançar paulatinamente no reconhecimento dessa faceta da personalidade humana", entendida como "a autodeterminação preventiva e a delegação do exercício dos direitos de personalidade"13. Trata-se de instituto cuja função é exatamente a representação voluntária da tomada de decisão de saúde, a ser efetivada exatamente nos momentos em que o outorgante estiver privado de sua capacidade decisória. Aspectos jurídicos da procuração para cuidados de saúde A procuração para cuidados de saúde deve ser compreendida como um negócio jurídico unilateral de caráter existencial - uma vez que regula situação jurídica subjetiva pessoal - cuja função é a representação voluntária diante da incapacidade decisória do outorgante. Estas situações configuram o que Stefano Rodotá chama de indecidibile per il legislatore14, ou seja, um espaço determinado pelo constituinte em que as escolhas acerca dos direitos de personalidade são próprias do sujeito, não podendo sofrer limitações externas. Maria Celina Bodin de Moraes15 ensina que a dignidade da pessoa humana é uma cláusula geral de tutela da personalidade humana e que, portanto, deve permear todas as relações públicas e privadas. A partir dos ensinamentos de Moraes, Rose Melo Venceslau Menezes defende que, para a concretização dessa cláusula, deve ser "garantida pelo ordenamento a promoção da sua própria personalidade através da prática de atos de autodeterminação que podem assumir a forma de qualquer situação subjetiva"16.        A teoria tradicional dos negócios jurídicos aponta como pressupostos de validade do negócio jurídico a capacidade do agente, o objeto lícito, possível, determinado ou determinável e a forma prescrita ou não defesa em lei17. E como fatores de eficácia tudo aquilo que não o integra mas contribui para a obtenção de resultado visado18, como, por exemplo, a condição, o modo/encargo e o termo. Significa dizer que apenas negócios jurídicos existenciais que violem um dos aludidos requisitos podem ser invalidados pelo Poder Judiciário. No mesmo sentido, apenas negócios jurídicos nos quais inexistam ou pendam os fatores de eficácia podem ter seus efeitos mitigados por esse poder. Segundo Paula Távora Vítor19, a verificação de validade e eficácia da procuração para cuidados de saúde deve partir da análise da situação do outorgante no momento da feitura do documento. Deve-se avaliar se o mesmo era civilmente capaz e se possuía capacidade para consentir, pois é exatamente a perda dessa capacidade que deverá ser aferida no futuro para determinar o início e, eventualmente, o fim da eficácia do documento. É este, portanto, o enquadramento jurídico da procuração para cuidados de saúde no Brasil: um instituto cuja função é a representação voluntária para a tomada de decisões nas situações em que o outorgante perdeu a capacidade decisória, configurando-se assim, exercício de autolimitação dos direitos de personalidade, exercício este que deve ser admitido "pela ordem jurídica quando atenda genuinamente ao propósito de realização da personalidade do seu titular."20 Considerações finais Percebe-se, por todo o exposto, que o documento feito por João adquiriu validade no dia em que foi feito, posto que preenche os requisitos legais de validade do negócio jurídico; e eficácia no momento em que os profissionais de saúde constataram que João estava impossibilitado de se autodeterminar. Como o direito de ajuizar uma ação no Poder Judiciário é um direito constitucional, uma pessoa que não concorde com o documento conseguirá questioná-lo em juízo. Todavia, tanto o questionamento quanto eventual decisão contrária ao documento - sem que haja razão objetiva para se duvidar da veracidade da escolha - configura-se, na verdade, desrespeito à existência do João. Não se está desrespeitando um papel, está se desrespeitando a essência de um ser humano. E, neste sentido, não importa se quem está desrespeitando essa essência é o médico, o curador, a instituição de saúde ou o Poder Judiciário: o ultraje é o mesmo e igualmente absurdo.  __________ *O presente artigo é um desdobramento de um post que eu fiz no instagram em 4/7/2022. O post pode ser acessado aqui.  1 O termo em inglês é: durable power of attorney for health care. Na década de 2000, a tradução mais usada era "mandato duradouro", mas a tradução literal foi incorporada na lei portuguesa 25/2012 e, eu, particularmente, tenho há alguns anos preferido usá-la em detrimento de mandato duradouro. 2 Sobre o tema: DADALTO, Luciana. Testamento Vital. 6 ed. Indaiatuba: Foco, 2022. 3 ESPANHA. Govierno. LEY 41/2002, de 14 de noviembre. Básica reguladora de la autonomía del paciente y de derechos y obligaciones en materia de información y documentación clínica. Boletín Oficial del Estado, Madrid, 15 nov. 2002. 4 PORTUGAL. Lei 25/2012. Disponível aqui. Acesso em 07 jul. 2022. 5 ALEMANHA. Die ge­setz­li­chen Grund­la­gen der Pat­Verfü im Bür­ger­li­chen Ge­setz­buch (BGB). Disponível aqui. Acesso em 07 jul. 2022. 6 REINO UNIDO. Mental Capacity Act (2005). Disponível aqui. Acesso em 07.07.2022. 7 FRANÇA. Loi n. 2016-87, créant de nouveaux droits en faveur des malades et des personnes en fin de vie. Disponível aqui. Acesso em 07 jul. 2022. 8 ITÁLIA. Legge 2801. Disponível aqui. Acesso em 07 jul. 2022. 9 ARGENTINA. Ley n. 26.529 de 19 de noviembre de 2009.  Disponível aqui. Acesso em 07 ju. 2022. 10 URUGUAI. Ley 18.473. Disponível aqui, acesso em 07 jul. 2022. 11 COLÔMBIA. Ley 1733 de 2014. Disponível aqui, acesso em 07 jul. 2022. 12 "It allows a competent adult to designate a person-a proxy decision maker-who will have the authority to give or withhold informed consent for medical procedures should the designator lose mental competence." GOLDSTEIN, Mary Kane et. al.Durable Power of Attorney for Health Care: Are We Ready for It?. In: The western journal of medicine. September 1991, v. 155, n. 3, p. 263. 13 PEREIRA, André Gonçalo Dias. O consentimento informado na relação médico paciente. Coimbra: Coimbra Editora, 2004, p.250-251. 14 RODOTÁ, Stefano. Politici, liberateci dalla vostra coscienza. Disponível aqui. Acesso em 07 jul. 2022. 15 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil-constitucional dos danos morais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 16 MENEZES, Rose Melo de Venceslau. Autonomia privada e dignidade humana. Renovar: 2009, p. 58. 17 AZEVEDO, Antônio Junqueira. Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.  18 FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: parte geral e LINDB. 17 ed. Slavador: Editora JusPodivm, 2019, p.713. 19 VÍTOR, Paula Távora. O apelo de Ulisses: o novo regime do procurador de cuidados de saúde. In: Julgar. Edição da Associação Sindical dos Juízes portugueses e da Associación Profesional de la Magistratura. Número Especial. 2014. 20 SCHREIBER, Anderson. Direitos de Personalidade. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 27.  
David Goodall, cientista australiano, não sofria de nenhuma doença ameaçadora da vida, mas alegava que a idade avançada, aliada ao processo de envelhecimento, lhe confinaram à uma existência que representava um aniquilamento de sua dignidade. Em entrevista ao canal australiano ABC, admitiu publicamente seu desejo de morrer, reafirmando que sua infelicidade advinha da impossibilidade de concretizar seu desejo de uma morte digna.1 À época a Austrália não admitia o suicídio assistido,2 o que obrigou o professor a viajar para Suíça, país que permite a prática em estrangeiros, e por meio de uma organização civil, pôde concretizar seu desejo. Hélène Wuillemin, francesa de 100 anos, parece vivenciar o mesmo dilema: com limitações físicas inerentes à senectude avançada que lhe restringem a autonomia, também buscou a morte digna por meio de organizações de suicídio assistido na Suíça, mas foi recusada diante da ausência de diagnóstico de enfermidade que caracterize a terminalidade de vida.3 David e Hélène não são os únicos a vivenciarem dilemas entre vida e morte na senitude. Recentemente foi bastante noticiado o caso do artista Alain Delon, 86 anos, também em busca do seu ideal de morte digna.4 Na verdade, alguns fatores ocorridos no século XX e XXI, como a tecnologia aplicada à medicina, modificação do perfil epidemiológico das doenças crônicas e o aumento significativo da expectativa de vida, impactaram de forma determinante as decisões de fim de vida. A Organização Mundial da Saúde estima que o número de pessoas com idade superior a 60 anos chegaria a 2 bilhões em 2050.5 Em outro estudo, a OMS revela que 60% da população mundial morrerá em decorrência de doenças crônicas, o que aponta para uma fatia considerável da população que passará muito tempo doente e terá que lidar com o sofrimento e a deterioração da qualidade de vida.6 Dados do IBGE relativos à expectativa de vida do povo brasileiro informam que, em 2019, alcançou a idade de 79,9 anos para mulheres, e de 72,8 anos para homens,7 confirmando a real possibilidade de se viver mais tempo que o desejado, como os casos de Goodall e Wuillemin. Todo esse panorama mundial demanda um novo olhar sob a autonomia para decidir sobre a duração da vida associada ao ideal da dignidade humana: questões existenciais reivindicam sua prevalência diante dos valores morais e religiosos da sociedade. Afinal, diante de um processo de envelhecimento que atente contra a dignidade humana teria o Estado legitimidade para obrigar alguém a viver as intempéries de uma velhice limitadora e humilhante? Quando há uma tensão entre o direito à vida e a dignidade da pessoa humana, qual caminho seguir? Antes de adentrarmos nos embates jurídicos que cercam o tema, é necessário conceituar o que é o suicídio assistido e o cansaço existencial chamado de completed life. Segundo Barroso e Martel,8 o suicídio assistido é a retirada da própria vida com auxílio ou assistência de terceiros. O ato causador da morte é de autoria daquele que põe termo à própria vida e o terceiro, médico ou não, colabora com o ato. Quando prestado por um médico, chama-se suicídio medicamente assistido, e a assistência consiste, geralmente, em prescrição de dose letal de medicamento. Já o termo completed life surgiu na Holanda, no projeto de lei denominado Completed Life Bill (PL 35.534), proposto pela parlamentar Pia Dijkstra, em 17/7/20. O projeto enfrenta a questão do suicídio assistido com base na ideia de completed life e visa atender ao anseio de uma parcela crescente de idosos holandeses que desejam ter mais autonomia em seu fim de vida. O tema já é discutido na Holanda há bastante tempo. Um de seus marcos históricos foi o ensaio do professor e juiz emérito Huib Drion, intitulado "O fim desejado pelos idosos", publicado no NRC Handelsblad em 1991,9 no qual Drion defendeu a provisão de um meio pelo qual os idosos pudessem encerrar suas vidas em momento que lhes parecesse apropriado. Huib foi o primeiro acadêmico holandês a afirmar a obrigação do Estado de fornecer medicamento letal a cidadãos maiores de 70 anos, para que pudessem decidir, de forma autônoma, quando encerrar suas vidas.10 Assim, o termo completed life diz respeito ao sentimento vivenciado por pessoas de idade avançada, relativo à sensações de perda da dignidade pessoal, deterioração da saúde, dependência crescente e declínio, de modo que suas vidas lhes parece longa demais e alegam estarem "fartos de viver".11 Esta sensação está geralmente ligada à limitações próprias da velhice avançada, mas não se resume a estes fatores. O cansaço existencial atinge também aspectos sociais e psicológicos profundos, numa complexa interação de fatores, tornando os dias do idoso insuportáveis. A desorganização física, social ou emocional pode se tornar significativa ao ponto de fazer nascer o desejo consciente e livre de morrer. O fenômeno da vida concluída é uma soma de incapacidades, limitações e ausência de vontade de se conectar com a vida, configurando uma postura de desapego e alienação. O idoso não possui mais nenhum desejo de viver porque nada mais há para esperar da vida.12 Frise-se que a experiência é sempre pessoal, de modo que não há como desenvolver uma definição objetiva do completed life. A análise acerca da existência do quadro é sempre subjetiva, uma vez que apenas o próprio indivíduo pode dizer de que forma as circunstâncias da vida são sentidas. Se o idoso conclui que deseja encerrar sua existência, aceitar esse desejo e ajudar também pode ser uma forma de respeito e cuidado. Se por um lado, as condições econômicas, sociais e psíquicas de uma pessoa podem ter-lhe conduzido à um processo de envelhecimento condizente com seus critérios de dignidade, por outro, muitas enfrentam limitações de diversas ordens que as empurram para perda gradativa da autonomia.  Nesse contexto, o idoso pode antever dias indignos e abdicar desta vivência dissociada de seu projeto de vida. Embora não seja o caso de todos, nessa fase da vida é comum a perda da qualidade de vida e o aumento significativo da possibilidade de conviver com uma ou mais doenças crônicas. Também é corriqueiro o enfrentamento de deficiências em várias funções orgânicas, ampliando a possibilidade de ocorrência da temida dependência de familiares e o confinamento a uma vida mais biológica que biográfica. Recentemente, em 20/5/22, a divisão especial do Conselho de Estado holandês, em análise ao PL 35.534, acima mencionado, emitiu parecer sugerindo a substituição do termo completed life para suffering from life. O Conselho argumentou que o termo completed life possui conotação positiva e pode levar à impressão de que se trata de pessoas que completaram sua vida de forma satisfatória, quando na verdade refere-se à um grupo para o qual a vida se tornou um sofrimento insuportável. O departamento, então, optou por usar o termo suffering from life, ou, em português, sofrendo da vida.13 Diante das premissas que configuram o suffering from life, passamos ao seu cotejo com a CF/88 brasileira e os direitos da personalidade. A CF/88 funda seu Estado Democrático de Direito posicionando a dignidade da pessoa humana como objeto e razão de ser de todo ordenamento jurídico. O conteúdo desta dignidade humana, no campo da autonomia existencial, está inexoravelmente atrelada à ideia de liberdade para viver segundo suas escolhas pessoais. A ligação estreita entre dignidade e liberdade reflete a viabilidade de um projeto de vida digna para cada um. Dizer que ninguém pode determinar a vida alheia é o mesmo que dizer que só a pessoa tem o poder de se autodeterminar no que se refere à sua vida privada. Os direitos da personalidade, por sua vez, asseguram este ambiente decisório pessoal e íntimo que envolve as diversas fases do viver e parece abarcar também o exercício da autonomia para morrer, já que a morte compõe a vida, ainda que como sua derradeira etapa. E se assim o é, optar pelo suicídio assistido diante do cansaço existencial parece ser um direito protegido pelo nosso ordenamento jurídico. Aqui vale citar a relevante distinção entre ser humano e ser pessoa, duas perspectivas diferentes e pertinentes nesta análise, já que em casos ligados à morte digna e fim de vida, a dignidade a ser preservada não é aquela geral ligada à qualidade de ser humano, mas a outra, aquela específica dignidade atrelada ao ser pessoa, que é encontrada considerando o desenvolvimento pessoal da personalidade e as peculiaridades que tornam aquele indivíduo ele mesmo. Nesse contexto, a mesma situação, por exemplo, o suicídio assistido por suffering from life, pode vir a integrar o projeto de pessoalidade de alguém, e deverá ser tutelado porque, neste caso, a dignidade será protegida no respeito à escolha subjetiva assumida pela pessoa.14 Da mesma forma, para alguém que não contempla o suicídio assistido em seu ideal de "vida boa", a opção representará uma afronta à sua dignidade. Aqui vale o ditado popular: o que para uns é remédio, para outros é veneno. Rodotà, tratando de dignidade nas questões pessoais, as identifica como o núcleo da existência do homem e defende que o Estado, ao permitir este exercício da autodeterminação, não está fazendo uso de autolimitação de seu poder, mas operando verdadeira transferência de soberania ao indivíduo.15 O professor italiano refere-se à este espaço decisório próprio do indivíduo de spazio indecibile per il legislatore, ou seja, um ambiente delimitado pelo constituinte para o exercício da autonomia privada do indivíduo.16 É frequente a identificação da dignidade com a capacidade humana de autodeterminação, habilidade individual de fazer escolhas autônomas que devem ser respeitadas por representarem a autonomia moral do indivíduo. Numa sociedade pluralista e democrática, coexistem diversos projetos de vida divergentes que reclamam convivência harmoniosa. Como bem ensina Maria Celina Bodin de Moraes, o indivíduo, se não agride a ordem jurídica nem atenta contra direito de terceiros, tem poder sobre sua própria vida e morte, de modo que a intervenção do Estado à revelia da pessoa parece atentar contra a sua dignidade.17 O exercício da dignidade para à livre escolha quanto à morte remete inevitavelmente ao tão defendido direito à vida, que a despeito de ser de fato especial e representar um consenso nas sociedades ocidentais, não é absoluto. Tradicionalmente concebido como um direito irrenunciável e indisponível,18 surge a necessidade de revisitar tais características quando se trata das decisões de fim de vida. Por muito tempo prevaleceu a ideia da irrenunciabilidade/indisponibilidade desse bem jurídico, não havendo espaço para sua livre disponibilidade, nem para manifestação da vontade do ofendido. Este entendimento se encontra superado.19 Na verdade, a própria doutrina não obteve êxito na definição e determinação de que bens são ou não disponíveis, isto porque encontrar um critério diferenciador, num estado plural, fatalmente representará uma imposição do que seja ou não disponível conforme a moral dominante.20 Rose Melo Vencelau Meireles identifica que poder de disposição e autonomia privada se confundem, porque ambos representam o poder de criar, modificar ou extinguir situações jurídicas, de modo que o caráter existencial das situações jurídicas não impede a existência de um poder de disposição do seu titular. Muito ao contrário.21 A escolha pela morte, se inserida dentro de um projeto de pessoalidade, integra o exercício do direito à vida, porque exprime sua realização ainda que seja para o seu fim. Nas palavras de Meireles (p. 159):22A afirmação de que as situações jurídicas existenciais são indisponíveis é demais simplória e desconsidera que a autonomia privada em termos exclusivamente patrimonialista é incompatível com a centralidade que a pessoa humana ocupa no ordenamento jurídico.  Em questão de vida e morte, ao se relativizar a dignidade para dar prevalência à vida, como defendem as concepções tradicionais, surgem situações dramáticas que desafiam o Direito, como o caso de Goodall e Wuillemin. Ainda que se reconheça hierarquia normativa entre os dispositivos do texto maior, certamente não estará a vida acima da dignidade humana, que como fundamento da República, detém superioridade axiológica frente a outros interesses reconhecidos.23 Szatjn24 afirma que a inviolabilidade da vida, defendida a ferro e fogo por tantos, vale contra terceiros, mas não pode se voltar contra o indivíduo, lhe suprimindo a capacidade decisória sobre a duração de sua vida. A vida inviolável, pois, é aquela que se amolda à autonomia individual do sujeito de direitos, em respeito à suas escolhas diante de seu projeto pessoal de vida. O ordenamento jurídico deve dirigir sua proteção à vida qualificada com os predicados escolhidos por cada ser humano e respeitada segundo os parâmetros por ele mesmo ditados. Viver de maneira precária, independentemente de critérios de qualidade, pode representar uma opção válida para muitos e até, em certos casos, uma dádiva. Mas não para todos. O suicídio assistido por suffering from life, como ato de autonomia existencial, merece tutela do ordenamento jurídico, porque conduz ao conteúdo jurídico da dignidade humana. A opção consciente e válida acerca da interrupção do envelhecimento se liga à realização do ideal de morte digna e se sobrepõe aos demais princípios constitucionais, porque prestigia o princípio-fonte do qual decorrem todos os outros. Ao Direito cabe exigir de alguém um comportamento que fira sua própria dignidade humana? Muito ao contrário: a ele cabe apresentar opções legítimas para o desenvolvimento pleno da personalidade, que se dará segundo as concepções de cada um, inseridas aí as decisões relativas à morte e o morrer.  _____ 1 DAVID Goodall: 104-year-old scientist to end own life in Switzerland. 2018. The Guardian [site], 2018. Disponível aqui.  2 Em 2017, o estado de Victoria, na Austrália, aprovou a Lei de Morte Assistida Voluntária. Disponível aqui.  3 Disponível aqui.  4 Disponível aqui. Acesso: 07 jun. 2022 5 NAÇÕES UNIDAS BRASIL. Mundo terá 2 bilhões de idosos em 2050; OMS diz que "envelhecer bem deve ser prioridade global". Naçõesunidas.org [site], Brasil. Disponível aqui.  6 NAÇÕES UNIDAS BRASIL. Número de pessoas idosas com necessidade de cuidados prolongados triplicará nas Américas até 2050. Nacoesunidas.org [site], Brasil, 02 out. 2019. Disponível aqui.  7 IBGE notícias [site]. Disponível aqui.  8 BARROSO, Luís Roberto; MARTEL, Letícia Campos Velho. A morte como ela é: dignidade e autonomia individual no final da vida. Panópitica, v. 5, n. 2, p. 69-104, 2010. 9 DRION, Huib. The self-chosen death of elderly people. NRC Handelsblad, 1991. 10 SERBETO, Enrique. Holanda aprobará uma pastilla letal para los mayores de 70 cansados de vivir. ABC sociedad [site]. Disponível aqui.  11 Esta descrição tem por base a exposição de motivos de E. Sutorius, J. Peters e S. Daniels pertencentes à Proeve van Wet que emergiu da iniciativa de cidadania «Vida concluída». 12 WIJNGAARDEN, E. Van. Ready To Give Up on Life. [s.l.] University of Humanistic Studies, Department of Care Ethics, 2016. 13 Disponível aqui.  14 SÁ, Maria de Fátima; MOUREIRA, Diogo. Autonomia para morrer. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2015. 15 RODOTÀ, Stefano. Autodeterminação e laicidade. Revista Brasileira de Direito Civil, Belo Horizonte, p. 139-152, 2018. 16 RODOTÀ, Stefano; MARTINI, Eleonora; FERRARA, Giuliano. Cultural a que asistimos y la libertad de conciencia. Entrevista, p. 1-3, 2008. 17 MORAES, Maria Celina Bodin de. Ampliando os direitos da personalidade. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional, v. 1, p. 121-148, 2010. 18 TEPEDINO, Gustavo. A tutela da personalidade no ordenamento civil constitucional positivo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. 19 SIQUEIRA, Flávia. Autonomia, consentimento e direito penal da medicina. São Paulo: Marcial Pons, 2019. 20 MARINHO, Renato Silvestre. Princípio da autorresponsabilidade no direito penal. São Paulo: LiberArs, 2018. 21 MEIRELES, Rose Melo. Autonomia privada e dignidade humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. 22 Idem.  23 SCHREIBER, Anderson. Direitos de personalidade. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2014. 24 SZTAJN, Rachel. Autonomia privada e direito de morrer: eutanásia e suicídio assistido. São Paulo: Cultural Paulista, 2018.