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Adeus 2023! Novas tecnologias e equidade em saúde

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Atualizado às 07:55

2023 está chegando ao fim e quantas novidades acompanhamos ao longo deste ano!

Se entre 2020 e 2022 muito discutimos sobre os desafios da pandemia (Covid-19), 2023 foi um ano de retomada da diversidade de assuntos, muitos marcados pelo alto grau de incertezas e tantos outros identificados pelas renovadas esperanças em tratamentos e cuidados de saúde.

No campo da reprodução humana assistida continuamos sendo desafiados agora com a divulgação dos primeiros embriões sintéticos não humanos (embrioides) que se desenvolveram em um útero artificial; a criação de embriões humanos a partir de células-tronco; pelo nascimento do primeiro bebê gerado em um útero transplantado (em cirurgia robótica e fora de um ensaio clínico); pelo nascimento do bebê com DNA de três pessoas (a partir do uso da técnica de Tratamento de Doação Mitocondrial); pelo nascimento de bebê gestado por duas mulheres. Chegamos à marca mundial de 10 milhões de pessoas nascidas em 45 anos de fertilização in vitro (sem contar a enorme quantidade de embriões congelados); o turismo do parto e da reprodução assistida (em especial a busca pela maternidade de substituição) se intensificou; empresas já acenam a possibilidade de fertilizar embriões no espaço. Enquanto as técnicas avançam, o Brasil não consegue tirar do papel nenhum projeto de lei sobre o tema, permanecendo regulado por softs laws que não dão minimamente conta da complexidade jurídica da matéria.

Mas não é só o início de vida que apresenta novidades. Os questionamentos também se manifestam nas questões referentes à terminalidade de vida. Culturalmente, brasileiros se recusam a reconhecer a finitude humana como algo indissociável da vida e acabam criando grandes expectativas quando acompanham notícias como a do bilionário americano que gasta milhões de dólares em tratamentos que visam o rejuvenescimento; ou quando bilionários (como Elon Musk, Jeff Bezos e Peter Thiel) investem verdadeiras fortunas em empresas de biotecnologia que têm como principal objetivo a busca da imortalidade. A Neuralink (de Musk) obteve autorização da FDA para testar seus chips neurais em seres humanos, que com os implantes seriam capazes de controlar dispositivos externos com o pensamento. Já a Altos Labs (de Bezos) está desenvolvendo técnicas de reprogramação celular para combater doenças e expandir expectativa de vida. Thiel vem investindo em pesquisas e serviços de criogenia que apresentam como promessas salvar e prolongar a vida, o que desafiaria, juridicamente, o próprio conceito biológico de morte.

Se não bastassem os altos investimentos na busca da perpetuação da vida, outros debates importantes ganham novos espaços. Discute-se se a obstinação terapêutica seria um direito do paciente (ou dos pais, quando se refere de crianças como no recente caso da bebê inglesa Indi Gregory), ou se deve haver limites às intervenções médicas, consideradas inúteis ou fúteis. Se de fato não é possível afirmar a obstinação terapêutica como direito, com os cuidados paliativos não há dúvidas: são direitos do paciente (tanto no setor público, quanto no privado).

No entanto, assim como nas questões referentes ao início da vida, o legislador brasileiro nega-se a avançar em atos normativos referentes à terminalidade. O conceito de morte biológica para fins de tipos penais (como homicídio) distancia-se do conceito de saúde (adotado pela OMS) e, portanto, das novas concepções a respeito do fim da vida. A legislação ainda se prende ao enterro como regra, aceitando a cremação com normas restritivas e desconhecendo outras formas de dar fim ao corpo humano que talvez atendam mais aos valores do morto e, até mesmo, a importantes questões ambientais.

A Inteligência Artificial ganha cada vez mais espaços na Medicina. Anunciou-se uma nova mão biônica que se funde aos ossos, nervos e músculos do usuário e é capaz de entender comandos, permitindo gestos mais precisos, o que com certeza amplia as fronteiras do transumanismo. No entanto, com a popularização de softwares como o ChatGPT intensificaram-se os debates sobre a utilização da Inteligência Artificial na Medicina; a necessidade do uso de tecnologias assistivas na adoção e uso de dispositivos médicos; a proteção de dados de saúde coletados por esses sistemas.

A Medicina de Precisão avança, não só no que se refere à personalização de medicamentos, mas também quanto ao tratamento certo e ao momento oportuno de acesso (o que continua sendo uma grande barreira, em especial para os pacientes oncológicos e com doenças raras e ultrarraras). A genômica avança, ao ponto do Reino Unido autorizar o primeiro tratamento com edição genética (uso da CRISPR) para a Doença Falciforme e a Beta-Talassemia. A genômica também está por trás da pesquisa que resultou em cinco pacientes com HIV curados a partir de transplantes com células-tronco geneticamente modificadas para resistir ao vírus. Anunciou-se o fim do sequenciamento genético completo do cromossomo Y, o que pode levar a novas descobertas sobre suas funções. Pela primeira vez cientistas anunciaram sucesso no cultivo de células de rim humano em um embrião de outro animal, o que intensifica as promessas de xenotransplantes.

Mas é claro que nem tudo são flores. As tecnologias, sem dúvida, fascinam e trazem esperanças renovadas à Medicina. É nesse cenário de promessas e esperanças, de transformações profundas, de busca pela realização do direito à saúde que para além do princípio da responsabilidade, precisamos falar também no princípio da precaução que não se preocupa em apenas evitar danos conhecidos e esperados (prevenção), mas busca impedir ou limitar comportamentos que, em razão do atual estado do conhecimento e da ciência, representam mais uma possibilidade de dano, do que uma certeza benéfica.

No entanto, para além dos desafios trazidos pelas tecnologias em si, com elas alguns dilemas parecem se aprofundar e, talvez, o principal deles, seja como garantir o acesso e a equidade em saúde. Os medicamentos e tratamentos cada vez mais caros provocam discussões não só sobre qual deve ser o custo de um fármaco ou dispositivo, mas também o que deve ser custeado pelo Estado e por operadoras de saúde (podemos colocar preço na vida?). Transtornos de saúde mental se agravam e as políticas públicas não parecem avançar. A assistência básica à saúde ainda possui gargalos importantes que acabam levando ao agravamento de saúde e, por consequência, à busca da assistência especializada (muito mais cara e nem sempre eficaz).

Mesmo com tantas tecnologias, acabamos nos esquecendo do básico!

Não investimos em letramento em saúde! Importante abordagem para a boa saúde e bem-estar, que auxilia na informação e torna as comunidades aptas a adotar um estilo de vida mais equilibrado (de acordo com as suas próprias realidades), a tomar decisões autônomas e, principalmente, a questionar as diferentes notícias sobre ações e serviços de saúde que nem sempre possuem conteúdo verdadeiro ou útil. A alfabetização em saúde é instrumento que auxilia a capacitar as pessoas para cuidar e se responsabilizar pela própria saúde e pela saúde coletiva, prevenindo doenças, impedindo agravamentos e fazendo escolhas mais saudáveis. É também ferramenta que permite que usuários conheçam seus direitos, o sistema de saúde e as ações e serviços que estão à sua disposição.

Por tudo isso, talvez possamos afirmar que a crise dos sistemas de saúde (público e privado) evidenciam-se pelo seu alto custo, baixa resolutividade e insignificante impacto social, devendo se agravar nos próximos anos não só pela pressão das novas e caras tecnologias, mas especialmente porque a expectativa de vida aumentou substancialmente e, com ela, estão sendo alteradas as principais causas de adoecimento e morte.

De fato, o que aqui quero registrar, é que por mais fascinantes que sejam as novas tecnologias, é preciso antes delas (ou com elas) se lançe um olhar mais cuidadoso para as determinantes de saúde, porque essas sim impactam substancialmente os sistemas de saúde.

A ideia de igualdade, constante no art. 196, da Constituição Federal e no art. 7º., IV, da Lei Orgânica da Saúde (Lei n. 8.080/90), revela que o sistema de saúde não se realiza apenas na ideia de assistência, mas sim, no conjunto de condicionantes e determinantes de saúde que têm reflexo imediato na qualidade de vida. É de equidade que estamos tratando, que pensada a partir de seus múltiplos conceitos, garante que todas as pessoas tenham oportunidades justas para atingir seu potencial de saúde e isso, por óbvio, não vai ser atingido se a opção for investir fortunas em tecnologias que se distanciam de realidades sociais.

Por isso, é preciso que o discurso utilitarista do preço da vida seja mitigado por outros fatores que devem ser primeiramente levados em consideração como eficiência real da tecnologia pretendida e as realidades sociais em que serão inseridas ou disponibilizadas. Nesse contexto, o princípio da equidade, mostra-se intimamente relacionado ao princípio bioético da justiça considerado, ao lado do princípio da beneficência, prevalente em razão da sua necessariedade à convivência social.

Quando se fala em equidade na saúde se está a tratar de compatibilizar o ideal constitucionalmente prometido com o real possível (não confundir com reserva do possível), sem que se justifiquem as impossibilidades simplesmente nos discursos utilitaristas. Trata-se de buscar a melhor distribuição possível de recursos que são naturalmente escassos, de modo que possam beneficiar o maior número possível de pessoas de forma isonômica e equânime. O problema está, então, na priorização das escolhas e como justificá-las.

Foi com esse olhar que ao longo de 2023, nesta coluna, discutimos as tecnologias digitais emergentes e o Direito Civil e Médico no prelúdio de um admirável mundo novo (com Felipe Braga Netto e Rafaella Nogaroli); conversamos sobre os danos que alguns médicos causam nas redes sociais (com Luciana Dadalto); descobrimos a hermenêutica médica (com Clenio Jair Schulze); ficamos chocados com a mistanásia social e o genocídio do povo yanomami (com Cláudia Regina de Oliveira Magalhães da Sila Loureiro); refletimos sobre a Slow Medicine (com Livia Callegari); enfrentamos as questões sobre a técnica de controle de constitucionalidade das normas dos Conselhos profissionais de saúde (com Silvio Guidi); surpreendemo-nos com os organismos geneticamente modificados e como o princípio da precaução nos auxilia com a regulação (com Daniela Guarita Jambor); enfrentamos a polêmica aplicação da teoria da perda de uma chance pelo STJ (com Glenda Gonçalves Gondim); analisamos cirurgias estéticas, uso de PMMA em excesso e morte do paciente (com Mariana de Arco e Flexa Nogueira); encaramos o difícil tema da mistanásia de pessoas idosas no Brasil (com Hideliza Lacerda Tinoco Boechat Cabral); investigamos se descendentes têm direito de conhecer a sua origem biológica (com Flaviana Rampazzo); estudamos o consentimento do paciente e as novas tecnologias (com Juliano Ralo); discutimos o cado Indi Gregory (com Renata Oliveira Almeida Menezes e com Alexandro de Oliveira); analisamos os desafios do aborto legal no Brasil (com Francielle Elisabet Nogueira Lima; Taysa Schiocchet e Mariana Martins Nunes).

Como podem notar, a diversidade de temas revela a complexidade dos estudos realizados no Grupo de Pesquisas Direito da Saúde e Empresas Médicas, coordenado por Miguel Kfouri Neto, agora transformado em Instituto Miguel Kfouri Neto. As tecnologias avançam cada vez mais rapidamente e o Direito, como o pensamos hoje, mostra-se incapaz não só de acompanhar tantas transformações, mas também, de dar boas respostas às novas perguntas, especialmente quando respostas utilitaristas são mais fáceis e tentadoras do que as respostas personalistas.

Se 2023 ficou conhecido como o ano da retomada (pós-pandemia) e já nos surpreendeu com tantas novidades, imagine o que podemos esperar de 2024! Encerramos as publicações deste ano desejando que nos próximos 365 dias possamos dar continuidade aos nossos estudos e, quem sabe, apresentar algumas respostas em um ambiente de tantas incertezas.