Reprodução assistida e bioética: O caso europeu do doador TP53, seus riscos e lacunas regulatórias
quinta-feira, 18 de dezembro de 2025
Atualizado em 17 de dezembro de 2025 14:15
O caso recentemente noticiado pela imprensa internacional, envolvendo um doador de gametas na Europa cujo material genético apresentava mutação grave associada à síndrome de Li-Fraumeni (a qual causa alterações no gene TP53 e eleva exponencialmente o risco de câncer, notadamente infantil), reacende discussões jurídicas e bioéticas de extrema relevância. O material genético reprodutivo do referido doador serviu para gerar cerca de duzentas crianças em diferentes países europeus, sendo que parte delas já foi diagnosticada com câncer em idade precoce. A gravidade da situação demonstra que problemas dessa natureza podem ocorrer a qualquer tempo e em qualquer parte do mundo, inclusive em sistemas de saúde que se consideram avançados1.
A mutação genética identificada no gene TP53 estava presente em espermatozoides do doador. Crianças concebidas com esses gametas herdaram essa alteração, com risco estimado de até 90% de desenvolver câncer ao longo da vida. Trata-se de um cenário grave, que transcende o dano individual e projeta consequências coletivas e sociais de grande magnitude.
O uso excessivo do material genético, como ocorreu na Bélgica, onde 38 mulheres tiveram 53 filhos com o mesmo doador, evidencia falhas graves de regulação e de fiscalização no setor de reprodução assistida. O caso noticiado, de multiplicação de descendentes com predisposição genética ao câncer, amplia geometricamente o risco populacional.
Como visto, há inúmeras questões envolvidas no tema e enfoques possíveis, como o risco genético ampliado, pois uma mutação pode se espalhar para dezenas ou centenas de descendentes em progressão geométrica, aumentando a incidência de doenças graves em uma população e espalhando-se geograficamente de modo indevido. Ou seja, um problema que poderia ser local em condições normais, torna-se global em situações como a ora narrada. Isso dificulta controle, rastreamento, pesquisa e tentativas de superação do problema.
Os prejuízos são individuais, pois as pessoas geradas por FIV com uso de material genético defeituoso deverão se submeter a exames preventivos e de acompanhamento mais rigorosos e com maior frequência2, além de terem maiores despesas em razão do acompanhamento profilático e de tratamento caso a chance de desenvolvimento de câncer se concretize. Isso pode comprometer igualmente a geração subsequente dessas pessoas geradas por FIV, ou no mínimo os seus planos reprodutivos, pois a mutação é transmitida de uma geração para outra.
Também há prejuízos coletivos, pois sistemas de saúde pública podem ser impactados por despesas que não ocorreriam caso houvesse um cuidado mais eficiente na gestão dos riscos.
Sob a ótica do direito médico, a responsabilidade civil das clínicas e bancos de sêmen é inegável. O uso indiscriminado de material genético sem controle adequado sobre o número de nascimentos por doador, aliado à ausência de informação clara às pacientes, compromete a validade do consentimento informado e viola a autonomia reprodutiva e existencial das mulheres que se submetem à fertilização in vitro sem ter a exata dimensão dos riscos associados, sejam os normais, sejam os anormais como o caso noticiado3.
O conceito jurídico de "segurança legitimamente esperada", previsto no CDC brasileiro, é aplicável por analogia. O fornecedor não pode colocar no mercado produto sabidamente defeituoso e, mesmo diante de defeito desconhecido, assume o risco, conforme precedente do STJ no REsp 1.774.372. Aplicando-se o raciocínio do procedente ao caso em análise, é possível afirmar que, conquanto a clínica não possa ser considerada garantidora universal, inegavelmente deve empregar todos os meios disponíveis para reduzir riscos e informar previamente sobre limitações da triagem genética.
Há, um risco acentuado decorrente da própria natureza do "produto" (material genético) utilizado pelas clínicas de fertilização. Esse risco aumenta o dever de cuidado do fornecedor quanto a qualidade e segurança legitimamente esperada, a qual se reflete no dever de busca adequada (tanto no que diz respeito aos meios quanto no que tange a adequação dos fins, incluindo adequado aconselhamento, rastreamento, precisão de coleta, manuseio, acondicionamento, mobilidade e gestão, inclusive na cadeia de custódia) e emprego correto de todos os meios disponíveis para identificar previamente possíveis adversidades e evitar que possam gerar problemas a quem assumirá como filho o bebê gerado por inseminação, assim como ao próprio bebê.
A análise da responsabilidade civil das clínicas e bancos de sêmen exige distinguir o defeito do serviço (art. 14 do CDC) da aplicação meramente analógica do regime jurídico do produto. Os gametas humanos, embora não sejam produto no sentido estrito tradicional, ingressam na cadeia de consumo como insumo fornecido no âmbito de um serviço médico, e a qualidade desse insumo influencia diretamente o resultado final. Assim, a responsabilização das clínicas pode decorrer primordialmente da falha na prestação do serviço, caracterizada por ausência de triagem adequada, gestão insuficiente da cadeia de custódia e falta de controle sobre o número de nascimentos por doador.
A analogia com o "fato do produto" é útil apenas para reforçar o critério da segurança legitimamente esperada, mas não substitui o regime principal, que é o de responsabilidade por defeito do serviço. Em síntese, o estabelecimento de saúde responde não porque o material genético seja, em si, equiparado a um produto defeituoso, mas porque o serviço prestado, que compreende seleção, armazenamento, controle, informação e disponibilização do material, deixou de atender ao padrão técnico-legal exigível, gerando risco indevido e violando o dever de cuidado ampliado próprio da reprodução assistida. Tratando-se de relação contratual entre a paciente e a clínica, a boa-fé objetiva incide para determinar deveres fiduciários como a colaboração, a lealdade, a segurança e o cuidado. O descumprimento de dever fiduciário pode ensejar obrigação de indenizar por adimplemento defeituoso.
O European Sperm Bank, envolvido no caso noticiado, alegou que a mutação não seria detectável pelos exames usuais4. Mas essa justificativa afastaria a sua responsabilidade? Sob a ótica do ordenamento jurídico vigente, qualquer clínica necessariamente deve agir no sentido de cooperar e evitar risco de danos, e não pode oferecer serviço utilizando material genético de modo amplo, porque a redução do uso de material de um único doador serve como um meio de prevenir danos. E a prevenção de danos está ínsita no dever de boa-fé presente nas relações contratuais, como é a relação entre a paciente da FIV e o prestador dos serviços nessa área.
Ademais, quanto à suficiência dos exames de triagem aplicados, é possível afirmar que, se os exames de triagem existem, estão disponíveis e não foram utilizados esse é um aspecto relevante na atribuição da responsabilidade, que se daria por omissão. Se os exames de triagem para determinadas síndromes o problemas genéticos de qualquer natureza não existem, então o alerta no que diz respeito a insuficiência da averiguação deve ser dado à contratante (dever de informação qualificado, na fase de escolha esclarecida), ademais da gestão de riscos, necessária para evitar que um único doador com material genético anômalo indevidamente espalhe esse defeito para um número excessivo de descendentes.
O dever de cuidado das clínicas é ampliado pela própria natureza do serviço oferecido, que envolve material genético humano. Não se trata de uma caneta, ou um telefone. O material genético é um dos elementos mais valiosos e caros ao ser humano, porque diz respeito à sua própria existência e preservação como espécie. A responsabilidade envolve não apenas coleta e acondicionamento do material, mas também aconselhamento adequado aos partícipes das relações envolvidas, além de rastreamento, precisão na análise e gestão da cadeia de custódia e de uso do material. O descumprimento desses deveres compromete diretamente o direito à saúde e à integridade física das crianças geradas.
A Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente asseguram às crianças o direito à saúde e à informação genética necessária para prevenção e acompanhamento médico. A omissão das clínicas em fornecer dados completos sobre riscos compromete esses direitos fundamentais, configurando violação constitucional e infralegal.
Do ponto de vista bioético, o caso afronta os princípios da não maleficência e da beneficência. O uso de material genético defeituoso causou danos concretos às famílias, à sociedade e aos indivíduos envolvidos (sobretudo às crianças geradas) e não promoveu o bem-estar esperado por quem busca a reprodução assistida (notadamente a completude familiar). Há riscos que são estatísticos (por exemplo, de anomalias em percentual baixo que não são detectáveis mesmo com a análise sob as técnicas mais avançadas), há riscos que não são admissíveis (anomalias que podem ser detectadas por exames desde mais baratos até os mais caros) e há riscos que podem ser dimensionados. No primeiro caso, não há muito a ser feito, o risco deve ser dimensionado pela contratante da técnica.
No segundo, cabe à clínica o exame do que é usual e à paciente cobrir os custos dos exames que pretenda adicionalmente, desde que seja devidamente informada sobre isso, para que possa exercer uma legítima escolha esclarecida e, no terceiro, cabe à clínica e a todo o sistema de reprodução assistida atuar no sentido de mitigar riscos de danos, e um dos meios é evitar a disseminação ampla de material genético (ou seja, é inaceitável que um único doador gere mais de duzentos descendentes, porque o risco envolvido, como visto no exemplo, é alto e grave, seja sob o critério quantitativo, seja sob o qualitativo).
No caso sob debate, a autonomia das mulheres foi violada pela falta de informação adequada, e a justiça distributiva foi comprometida pelo uso desproporcional do esperma em diferentes países.
As notícias do caso também informam sobre o fenômeno do "turismo reprodutivo", identificado no Reino Unido, onde mulheres viajaram à Dinamarca para utilizar o material do doador, a revelar outro risco jurídico. A ausência de harmonização legislativa internacional permite que pacientes busquem solução em países com regras mais flexíveis, dificultando a fiscalização e ampliando a insegurança e o risco.
A inexistência de legislação transnacional que limite o número de usos de esperma de um doador é um dos pontos mais críticos. Cada país estabelece suas próprias regras5, mas ao que parece os limites foram desrespeitados no caso, como noticiaram os veículos de comunicação antes indicados. Essa fragmentação ou omissão normativa gera inconsistências e compromete a proteção das crianças.
No Brasil, a resolução CFM 2.320/22 prevê que um doador não deve gerar mais de dois nascimentos por milhão de habitantes na região, buscando reduzir o risco de relações entre irmãos biológicos. Contudo, a norma apresenta lacunas, especialmente quanto à definição territorial e ao mecanismo de registro e controle, o que pode gerar questionamentos sobre sua efetividade e conformidade legal.
A dependência de grandes bancos internacionais de esperma, como ocorre no Reino Unido, onde grande parte do material é importado, agrava o problema. A lógica econômica desses bancos, que lucram ao vender para múltiplos países, colide com a necessidade de segurança genética e proteção da saúde pública.
A triagem genética atual aceita aparenta ser restritiva, mas ainda assim não é capaz de detectar todas as mutações. Como dito, essa limitação técnica não pode servir de escusa para a ausência de protocolos mais rigorosos e de medidas regulatórias que reduzam os riscos.
A justiça e a equidade também são afetadas pela disparidade entre limites nacionais. Crianças podem descobrir ter centenas de meio-irmãos, com potenciais efeitos psicológicos e sociais ainda não totalmente compreendidos. O impacto coletivo transcende o âmbito médico e alcança dimensões sociais e culturais.
Propostas recentes de Sociedades de Reprodução Humana e Embriologia sugerem limites, como por exemplo, 50 famílias por doador, com foco na redução do impacto social e psicológico da medida. Entidades como a Progress Educational Trust defende uma redução global mais severa.
A ausência de legislação internacional unificada e a insuficiência dos limites nacionais demonstram a necessidade urgente de um debate ético global. É imperativo discutir o número máximo de famílias por doador, os impactos psicológicos da multiplicidade de meio-irmãos, a necessidade de redução de riscos genéticos e o equilíbrio entre segurança genética e o desejo de gerar bebês.
A responsabilidade das clínicas é central nesse debate. São elas que detêm o dever de vigilância, de informação e de gestão de riscos. A solidariedade manifestada por instituições como o European Sperm Bank não substitui medidas reparatórias, mitigatórias e preventivas.
O caso europeu evidencia que a reprodução assistida, embora seja instrumento de realização de projetos parentais e de concretização do direito à família, não pode ser dissociada da responsabilidade jurídica e bioética. A proteção da criança e da família, além da preservação da própria integridade da pessoa humana e do ser humano, deve prevalecer sobre interesses econômicos.
Cabe a todos que lidam com a saúde, tanto na medicina quanto no direito, ter sempre em mente a responsabilidade intergeracional, na relação com danos genéticos transmissíveis, bem como a ética da precaução, que justifica limites quantitativos de uso de material genético diante de incertezas, notadamente científicas.
Em conclusão, a ausência de controles eficazes viola o princípio da Justiça reprodutiva, pois distribui riscos de forma desigual e não informada. O episódio narrado reforça a necessidade de convergência de esforços internacionais, com medidas regulatórias e fiscalizadoras pensadas e implementadas em cooperação entre países. Uma abordagem transnacional, que envolva protocolos de triagem genética avançados, controle e registro de doadores, com rastreamento do material armazenado e utilizado, além de limites uniformes de emprego de material genético, aparenta ser um meio eficiente para evitar que casos semelhantes se repitam.
O direito da saúde, o direito reprodutivo, os direitos da criança e o direito constitucional convergem para afirmar que a dignidade da pessoa humana, a proteção da vida e da própria espécie humana devem ser os pilares da regulamentação da reprodução assistida. Essa regulamentação deve observar um limite global de doadores por número absoluto de nascimentos, além de limite por família; criar um banco internacional integrado de dados de doadores; exigir auditoria independente dos bancos de materiais genéticos reprodutivos; estabelecer a obrigatoriedade de painéis genéticos mínimos e de mecanismos transnacionais de rastreabilidade. O caso europeu é um alerta global e exige resposta jurídica e bioética à altura de sua gravidade.
1 Texto elaborado com base nas seguintes notícias, disponíveis aqui, aqui e aqui
2 Exames preventivos recomendados para os filhos gerados com essa mutação: ressonância magnética anual do corpo e cérebro, exames de sangue e ultrassons abdominais regulares.
3 Há diferentes dimensões do consentimento a explorar, as quais não poderão ser desenvolvidas aqui em razão dos limites da coluna. No entanto, cabe destacar que o consentimento em reprodução assistida envolve múltiplos atos (escolha do doador, procedimentos clínicos, manipulação laboratorial, armazenamento), cada um com as suas particularidades informativas e técnicas.
4 Não se olvide do Regulamento Europeu de Tecidos e Células (EU Tissue and Cells Directive, disponível aqui, que fixa padrões mínimos, mas cuja fiscalização nacional é heterogênea.
5 Disponíveis aqui. "As regras que regem a doação de esperma e óvulos variam de país para país na Europa. O número máximo de crianças por dador vai de uma em Chipre a 10 em França, Grécia, Itália e Polónia, segundo um relatório de 2025 dos Conselhos Nórdicos de Ética. Outros países limitam o número de famílias que podem recorrer ao mesmo dador, para lhes dar a oportunidade de terem irmãos. Por exemplo, o mesmo dador pode ajudar 12 famílias na Dinamarca e seis famílias na Suécia ou na Noruega."

