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A responsabilidade civil na IA médica: Expectativa vs. realidade. A frustração anunciada da promessa de segurança jurídica no PL 2.338/23

segunda-feira, 22 de dezembro de 2025

Atualizado em 19 de dezembro de 2025 10:11

"Grandes expectativas... grandes frustrações!"

(autor desconhecido, mas um verdadeiro sábio)

Introdução: Por que e de onde partiu a ideia trazida no título e subtítulo do artigo?

A presente inquietação acadêmica nasceu durante o encontro mensal do IMKN - Instituto Miguel Kfouri Neto, em 10/9/25. Após as belíssimas apresentações das palestrantes sobre a bioética e as questões contemporâneas do início ao fim da vida, foi formulada uma pergunta pontual de uma das nossas associadas sobre os impactos da IA - Inteligência Artificial na responsabilidade civil médica, quando tive o atrevimento de pedir a palavra. Concedida, afirmei que tentaria responder à questão, mas adiantei que a resposta, na verdade, não existia - ou, no mínimo, não ainda. Mas que, se vier a existir, não vai agradar, porque será mais do mesmo do que já se tem hoje. 

Sustentei, de improviso, a ideia que já tinha semeado na palestra que ministrei na Comissão de Direito Médico e da Saúde da OAB/SP no mês de agosto passado, e pude notar que o tema também gerou certa inquietação perante a Douta Advocacia Paulista, uma vez que, na prática, pelo que demonstrei, mesmo com a aprovação do PL 2.338/23, nós não teremos uma inovadora e muito menos uma efetiva regulação da responsabilidade civil pela utilização da IA na medicina. 

Enfim, as ideias que articulei naquele aprazível momento acadêmico, em meio às amigas e aos amigos associados do nosso IMKN, são a base do que defendo aqui, após a valiosa intervenção do Prof. Dr. Juliano Ralo, condutor daquele encontro online e que incentivou que aquelas reflexões na tentativa de uma resposta fossem registradas num artigo da Coluna Migalhas de Direito Médico e Bioética. Agradecendo ao incentivo do caro amigo de tantos anos... segue o modesto artigo!

Pois bem, adentrando ao âmago da questão, o que se constatou nos últimos anos, no seio da comunidade jurídica como da médica, foi o florescimento de uma esperança generalizada que se pode dizer até ingênua de certo modo, qual seja: a crença de que a futura e eventual aprovação do PL 2.338/23 (que dispõe sobre a regulação da IA no Brasil) representará uma espécie de porto seguro para os profissionais e instituições que se valem da IA para a prestação de seus serviços (os fornecedores). 

A ideia que está disseminada é que esse projeto de lei vai regular de maneira minimamente aperfeiçoada o sistema de responsabilidade civil brasileiro no trato das questões indenizatórias advindas da utilização dessa disruptiva tecnologia, na hipótese de causação de alguma espécie de dano ao usuário do serviço (o consumidor). A partir dessa ideia - totalmente frustrada pelo Projeto, como se verá - criou-se a fantasia da expectativa pela tão almejada segurança jurídica no manejo da IA. Com efeito, acredita-se que o projeto de lei de regência do tema será uma verdadeira "bala de prata" na solução das, hoje, incontornáveis questões sobre fatos que são corriqueiros no uso cotidiano dessa tecnologia nas mais diversas áreas do conhecimento humano, e especialmente na saúde e na medicina.

Essa esperança se fundamenta, principalmente, no objetivo demasiadamente grandioso declarado logo no primeiro artigo do projeto: Art. 1º Esta Lei estabelece normas gerais para o desenvolvimento, implementação e uso de sistemas de inteligência artificial (IA) no Brasil, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais e de garantir a implementação de sistemas seguros e confiáveis, em benefício da pessoa humana, do regime democrático e do desenvolvimento científico e tecnológico.

A expectativa, portanto, é que, finalmente, teremos um marco legal que trará a segurança jurídica necessária para fomentar e, então, "destravar" o uso da IA na saúde e na medicina - o que, todos sabemos, já foi destravado há muito tempo! Aqui, vale a repetição do nosso desconhecido, mas muito sábio autor da epígrafe deste trabalho: "grandes expectativas... grandes frustrações".

Muito bem, com a devida licença, sustento o oposto e vou demonstrar os argumentos a seguir, a partir dos estudos realizados para a construção de um item próprio sobre a IA médica na 2ª edição do O Erro Médico nos Tribunais1 que inicia com a seguinte valiosíssima passagem oriunda da obra nacional de referência no assunto: "o médico é livre para escolher seus meios de diagnóstico e propostas de terapia, mas também é responsável pelas suas escolhas".2

A dimensão do impacto da inteligência artificial na medicina

Para que a crítica ao anacronismo do PL 2.338/23 seja plenamente compreendida, é necessário, primeiro, dimensionar a magnitude da revolução no caminhar da humanidade que ele se propõe a regular. A análise do poder disruptivo da inteligência artificial em geral e na medicina em específico não se trata, nesse sentido, de um desvio temático, mas o ponto fulcral de partida desse escrito. Exatamente ao se expor o quão aguda é essa transformação tecnológica que ainda mais se evidencia a superficialidade da solução legislativa que se propõe para a sua regulação no projeto em exame.

Como sabido e já repetido inúmeras vezes, a inserção da IA - Inteligência Artificial no campo da medicina não representa uma mera evolução incremental, mas uma autêntica revolução que redefine a prática clínica e da gestão em saúde. Sua aplicação já transcende a teoria há muito tempo e se materializa em soluções tangíveis no cotidiano de pacientes, profissionais e instituições de saúde. 

Para dimensionar a amplitude dessa transformação, recorremos à compilação de Renato Sabbatini3 que organiza as efetivas aplicações da IA na medicina da seguinte maneira, afirmando que "estes são os desenvolvimentos mais recentes e já auxiliam em processos de anamnese, diagnóstico, prognóstico, busca de informações e pesquisa básica e clínica":

  • Diagnóstico e Terapia: Sistemas especialistas que oferecem diagnósticos diferenciais com alta precisão e rapidez;
  • Análise de Dados: Ferramentas de aprendizado de máquina utilizadas para análise preditiva e prescritiva, processamento de big data, estratificação de riscos e epidemiologia;
  • Sinais e Imagens Médicas: Aplicação de IA na análise de sinais e imagens, como na interpretação de eletrocardiogramas e em diagnósticos pulmonares;
  • Interoperabilidade: Integração com prontuários eletrônicos e dispositivos médicos por meio de APIs e padrões técnicos como HL7 FHIR, Open Infobuttons e CDS Hooks & Cards;
  • Assistência Virtual: Chatbots e sistemas de linguagem natural, como o ChatGPT, baseados nos Grandes Modelos de Linguagem (LLMs).

Complementando, o médico Cláudio Lottemberg4 destaca como essa revolução se estende à própria estrutura da gestão hospitalar, afirmando que a: "Inteligência Artificial pode aumentar eficiência da rede hospitalar. Sistemas Inteligentes podem trazer redução de ociosidade de leitos e de profissionais, gestão simplificada e economia de recursos. [...] Algoritmos podem analisar padrões históricos de atendimento, sazonalidade e dados em tempo real para prever períodos de maior ou menor demanda, o que permite aos hospitais ajustar a escala de médicos e enfermeiros, conforme necessário [...]. Ao mesmo tempo, os sistemas inteligentes podem rastrear a ocupação de leitos e prever altas hospitalares, reduzindo tempo de espera [...]. Chatbots podem ajudar na triagem de pacientes identificando casos prioritários e direcionando-os para atendimento".

Fica evidente, portanto, que a IA não apenas otimiza o ato clínico, mas redesenha toda a cadeia de operação em saúde. Este cenário, por si só, já configuraria uma das maiores transformações da história da medicina e da humanidade, sem dúvida!

Contudo, quando se acreditava que o ápice dessa disrupção já era visível, dois recentes acontecimentos emergiram não apenas como exemplos adicionais, mas como a prova cabal e irrefutável de que essa revolução é ainda mais profunda que se imaginava. 

Vejamos os dois recentes fatos trazidos à tona nesse caminhar da IA na saúde:

1. Microsoft comemora desempenho de IA médica e prevê revolução na saúde"5 - a precisão sobre-humana no diagnóstico: O primeiro fato, divulgado no início de julho de 2025, refere-se a um marco alcançado pela Microsoft com seu sistema MAI-DxO (Microsoft AI Diagnostic Orchestrator). Em testes rigorosos com casos clínicos de alta complexidade, o sistema alcançou uma taxa de acerto de 85%, um desempenho quatro vezes superior ao de médicos especialistas submetidos aos mesmos desafios. Mas, é fundamental notar que a própria Microsoft posiciona a tecnologia não como um substituto para o profissional, mas como uma ferramenta de suporte à decisão de poder sem precedentes, prometendo revolucionar o atendimento ao paciente ao torná-lo exponencialmente mais preciso, seguro e eficiente.

2. Robô guiado por IA realiza a 1ª cirurgia em humano6 - a autonomia da máquina na cirurgia robótica: O segundo fato eleva a revolução a um patamar ainda mais impressionante, transitando do campo diagnóstico para a intervenção cirúrgica autônoma. Trata-se da primeira cirurgia totalmente autônoma em um ser humano, realizada pelo robô SRT-H, desenvolvido pela Universidade Johns Hopkins. O feito é a culminação de um projeto que espelha o aprendizado humano: a IA foi treinada progressivamente, desde tarefas básicas como suturar até a execução completa da remoção da vesícula biliar, aprendendo ao "observar" vídeos de cirurgiões humanos. Durante o procedimento real, a IA não apenas atingiu 100% de precisão, mas demonstrou uma notável capacidade de adaptação em tempo real, superando desafios inesperados introduzidos propositalmente pelos pesquisadores para testar seus limites.

Portanto, estes não são meros avanços pontuais. São a concretização da promessa da IA em sua forma mais avançada. Ora, se um sistema pode diagnosticar quatro vezes melhor que um especialista e um outro pode operar com 100% de precisão autônoma, a discussão sobre seus impactos e a regulação de suas consequências no sistema de responsabilidade civil médica eleva-se para um novo patamar de inovação e eficiência sob o ponto da produção legislativa. 

Porém, como veremos a seguir, esta realidade operacional médica já tão avassaladora lança uma luz incisiva sobre a fragilidade e a inadequação do marco regulatório da IA positivado no PL 2.338/23 para disciplinar os efeitos jurídicos dessa aplicação, que antes era tão futurista na medicina, mas que, inegavelmente, já chegou, como se vê tranquilamente.

O promissor início de regulação da IA pelo PL 2.338/23

É preciso ser justo, ao menos inicialmente: o PL 2.338/23 parte de um reconhecimento correto e promissor. O legislador demonstra ter consciência da sensibilidade do tema ao classificar os sistemas de IA que envolvem a saúde como de "alto risco", na redação do art. 14 é clara nesse sentido:

Art. 14. Os sistemas de inteligência artificial serão considerados de alto risco quando puderem afetar significativamente a vida, os direitos e as liberdades fundamentais das pessoas naturais, considerados o contexto e o tipo de uso, especialmente quando utilizados em uma das seguintes áreas ou para uma das seguintes finalidades: (...)

VIII - diagnóstico e apoio à decisão clínica e terapêutica.

Coerentemente com essa classificação de risco, o projeto estabelece uma carta de direitos que, à primeira vista, parece robusta e protetiva do paciente submetido ao serviço médico apoiado pela IA. Realmente, o art. 6º garante à pessoa afetada por um sistema de alto risco um conjunto de prerrogativas essenciais:

Art. 6º A pessoa natural afetada por sistema de inteligência artificial de alto risco tem os seguintes direitos, sem prejuízo de outros previstos em lei:

I - direito à explicação sobre a decisão, recomendação ou previsão do sistema;

II - direito de contestar e solicitar a revisão de decisões, recomendações ou previsões de sistemas de inteligência artificial que produzam impactos em seus direitos;

III - direito à revisão humana de decisões tomadas exclusivamente por sistemas de inteligência artificial.

Até aqui, o projeto parece trilhar o bom caminho, identificando a hipótese de risco e estabelecendo direitos fundamentais ao paciente como a explicação, a contestação e a revisão humana das conclusões de apoio médico do sistema de IA. Não se pode negar: a base principiológica é sólida. 

Porém, precisamente quando o projeto de lei deveria dar o passo mais importante - o de definir como esses potenciais direitos serão efetivados e reparados em caso de ocorrência de dano ao paciente - foi que ele deixou totalmente a desejar. Com efeito, no momento próprio de tratar sobre o ponto central na hipótese de ocorrência de danos (o tão esperado inovador e prestativo sistema de responsabilidade civil), todo o ímpeto legislativo inovador se desfez, e o projeto retrocedeu para o conforto de velhas fórmulas normativas de décadas passadas, quando jamais sequer se imaginou a mera existência de uma tecnologia tão revolucionária como a IA tal qual a conhecemos hoje.

O anacronismo do sistema de responsabilidade civil proposto

A grande decepção com o projeto se materializa quando analisamos o núcleo da sua proposta para o sistema de responsabilidade civil no âmbito da utilização da IA.

Realmente, o que se encontra no projeto é desalentador: para regular a máxima inovação tecnológica do nosso tempo, o legislador responde também com o máximo conservadorismo jurídico. 

Efetivamente, o projeto abdica completamente de sua função de criar mínimas soluções inovadoras e ultra necessárias frente ao novo mundo que se abriu, adotando um método de remissão legislativa no mínimo cômoda, apontando a disciplina dessa gigantesca inovação para leis concebidas décadas antes do advento da IA moderna, como se nada tivesse mudado de lá para cá.

Veja-se que esse comodismo absolutamente impertinente e até de certa forma displicente está estampado expressamente em cada um dos dispositivos que compõem o cerne do CAPÍTULO V - DA RESPONSABILIDADE CIVIL.

Artigo 35: A remissão e a redundância quanto à aplicação do Código de Defesa do Consumidor - projetado no final da década de 1980!

Art. 35. A responsabilidade civil decorrente de danos causados por sistemas de IA no âmbito das relações de consumo permanece sujeita às regras de responsabilidade previstas na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), e na legislação pertinente, sem prejuízo da aplicação das demais normas desta Lei. 

Como se vê de sua literalidade, o dispositivo diz o óbvio e estabelece que, em se tratando de relações de consumo, os danos causados por sistemas de IA serão regidos pelo CDC. À primeira vista, muito embora possa parecer uma certa salvaguarda, na prática, trata-se de uma redundância que não acrescenta segurança jurídica alguma, já que tudo permanece como está, com as mesmas inquietações de hoje. 

Como se sabe, por meio da aplicação da técnica hermenêutica do "diálogo das fontes", já está assegurada a aplicação do CDC em tais casos. Trata-se, verdade seja dita, de uma remissão totalmente inútil!

O ponto crítico, no entanto, é o anacronismo. Repito: estamos falando da remissão a uma lei aprovada no ano de 1990, fruto de um projeto de lei concebido ainda ao final da década de 1980. É impensável que um marco legal concebido antes mesmo da própria utilização da internet de maneira comercial e cotidiana possa prever e regular adequadamente as complexidades oriundas de um "elemento" ainda desconhecido chamado "algoritmo", que nos trouxe indagações até aqui irrespondíveis, por exemplo, sobre a tal opacidade da "caixa-preta" (black box) ou dos tais "vieses algorítmicos". 

Concluindo, o art. 35 do PL não inova em absolutamente nada e apenas reafirma a aplicação de uma ferramenta legal antiga e despreparada para o novo cenário de desafios derivados da utilização da IA em todas as áreas do conhecimento humano, mas especialmente na saúde e na medicina.

Artigo 36: remissão a um diploma substancialmente ainda mais antigo - o Código Civil de 2002, projetado ainda na década de 1970!

Art. 36. A responsabilidade civil decorrente de danos causados por sistemas de IA explorados, empregados ou utilizados por agentes de IA permanece sujeita às regras de responsabilidade previstas na Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e na legislação especial, sem prejuízo da aplicação das demais normas desta Lei.

Pela leitura do dispositivo, constata-se que, para as relações que não são de consumo, o projeto de regulação da IA remete ao CC/02. Pois bem, se o CDC já é antigo para a disciplina da questão, o CC/02, cujas bases de responsabilidade civil são ainda mais antigas, é manifestamente insuficiente para a regulação do novo cenário. 

Com a necessária ressalva de que o CC/02 foi projetado ainda na década de 1970, de sorte que obviamente não foi desenhado para regular a distribuição de responsabilidades entre profissionais, instituições, desenvolvedores, implementadores e usuários de uma tecnologia autônoma e em constante aprendizado próprio. 

A remissão, novamente, é uma fuga da responsabilidade de legislar sobre o presente e o futuro, remetendo o regramento de uma revolução tecnológica da década de 2020 ao sistema de responsabilidade construído há exatamente MEIO SÉCULO atrás!!!

Artigo 39: o ponto alto do conservadorismo legislativo

Art. 39. As hipóteses de responsabilização previstas por legislação específica permanecem em vigor.

Aqui está, então, o "fecho de ouro" do conservadorismo regulatório que se pretendia alcançar. Ao determinar a aplicação de outras legislações especiais, isso serve como a consolidação final da tímida abordagem do projeto no campo da responsabilidade civil pela utilização da IA em qualquer ramo de atuação humana. É como que a confissão explícita do legislador de que, diante do maior desafio tecnológico de nossa era, a sua solução entregue será: "usem as leis que já existem". 

Trata-se, em verdade, da abdicação completa pelo legislador do dever de criar um regime de responsabilidade civil que efetivamente proteja a vítima e dê segurança ao médico e às empresas médicas na prestação do serviço de saúde apoiado pela utilização da IA. De fato, o art. 39 não é uma solução; é a aceitação formalizada do vácuo legislativo numa área que tanto requer uma nova e minimamente boa disciplina jurídica!

A permanência da omissão na disciplina da responsabilidade civil pela utilização da inteligência artificial no projeto de reforma do CC (PL 04/25)

O projeto de reforma do CC, consubstanciado no PL 04/25 em trâmite no Senado Federal, representa um esforço louvável de modernização do ordenamento jurídico brasileiro. Em sua estrutura, destaca-se a criação do Livro VI - Do Direito Civil Digital, e dentro deste o Capítulo VII - Inteligência Artificial. Essa organização revela a evidente consciência legislativa sobre a relevância das novas tecnologias digitais e da IA em particular no cenário jurídico contemporâneo, iniciando-se pelo art. 2.027-AL.

Pois bem, da mesma maneira que os arts. 6º e 14 do PL 2.338/23 foram percebidos acima como promissores no que tange ao início de uma virtuosa regulamentação e à proteção dos direitos dos indivíduos submetidos aos serviços apoiados pela IA, o art. 2.027-AL do PL 04/25 também exibe uma boa promessa inicial nesse sentido.

O texto do art. 2.027-AL estabelece diretrizes fundamentais para o desenvolvimento e uso de sistemas de IA (PL 04/25 do SENADO FEDERAL - Reforma do Código Civil):

LIVRO VI - DO DIREITO CIVIL DIGITAL

TÍTULO ÚNICO - DAS NORMAS APLICÁVEIS AO DIREITO CIVIL DIGITAL

CAPÍTULO VII - INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

Art. 2.027-AL. O desenvolvimento de sistemas de inteligência artificial deve respeitar os direitos de personalidade previstos neste Código, garantindo a implementação de sistemas seguros e confiáveis, em benefício da pessoa natural ou jurídica e do desenvolvimento científico e tecnológico, devendo ser garantidos: 

I - a não discriminação em relação às decisões, ao uso de dados e aos processos baseados em inteligência artificial; 

II - condições de transparência, auditabilidade, explicabilidade, rastreabilidade, supervisão humana e governança; 

III - a acessibilidade, a usabilidade e a confiabilidade; 

IV - a atribuição de responsabilidade civil, pelo princípio da reparação integral dos danos, a uma pessoa natural ou jurídica em ambiente digital.

Obviamente, é de todo meritório o reconhecimento de princípios como a não discriminação, a transparência, a auditabilidade, a explicabilidade, a rastreabilidade, a supervisão humana, a governança, a acessibilidade, a usabilidade e a confiabilidade. O inciso IV, em particular, ao prever a atribuição de responsabilidade civil pautada no princípio da reparação integral dos danos a uma pessoa em ambiente digital, sinaliza uma firme intenção de enfrentar a questão da responsabilidade civil de maneira robusta.

No entanto, a expectativa gerada pelo caráter inovador do PL 04/25, especialmente a partir da análise do seu art. 2.027-AL, no que concerne especificamente à responsabilidade civil decorrente da utilização da IA, encontra um ponto de inflexão quando da análise de seu parágrafo único, como veremos. 

Se, na avaliação do PL 2.338/23, a remissão para o CC (via Art. 36) podia ser interpretada como um anacronismo, por transferir a disciplina de um tema de ponta para um diploma legal gestado em outro contexto histórico (ainda na década de 1970), a situação com o PL 04/25 se revela sob uma ótica distinta, mas igualmente desafiadora.

O projeto de reforma do CC (PL 04/25), como se observa, é um instrumento normativo moderno e concebido, dentre tantas necessidades de adaptação ao novo modo de viver das pessoas, para dialogar com as exigências da era digital. A criação do "Livro VI - Do Direito Civil Digital" e do "Capítulo VII - Inteligência Artificial", dentro de uma proposta de atualização do CC, demonstra o reconhecimento inequívoco da necessidade de uma disciplina legal para o manejo da IA. Contudo, mesmo diante dessa arquitetura moderna e da explícita identificação da matéria, o art. 2.027-AL, em seu parágrafo único, dispõe que:

Parágrafo único. O desenvolvimento e o uso da inteligência artificial e da robótica em áreas relevantes para os direitos de personalidade devem ser monitorados pela sociedade e regulamentados por legislação específica (grifei).

A questão que se revela, agora, não é mais a do anacronismo anteriormente revelado, mas sim a da persistência de uma omissão na regulamentação específica da responsabilidade civil decorrente da utilização da IA. O legislador, mesmo tendo a oportunidade de edificar uma disciplina clara em um diploma jurídico moderno, opta por remeter a efetiva regulamentação para a "legislação específica". Essa abordagem transmite a percepção de que a disciplina pormenorizada da responsabilidade civil pelo uso da IA, embora reconhecida em sua relevância e importância, é endereçada a outro instrumento normativo, mas com a seguinte perplexidade legislativa em curso.

Atenção! Observa-se um fenômeno de remissão recíproca entre os projetos:

  • O PL 2.338/23 (projeto de lei de IA), em seu art. 36, remete a disciplina da responsabilidade civil pela utilização da IA para o CC.
  • Por sua vez, se aprovado, o PL 04/25 (projeto de reforma do CC, em seu art. 2.027-AL, parágrafo único, remete a mesma disciplina para uma "legislação específica".

Ocorre que essa "legislação específica" à qual o CC eventualmente reformado se refere é, nesse contexto, o próprio PL 2.338/23, uma vez promulgado. Estaria desenhado, então, um intrincado circuito legislativo que, ao invés de consolidar uma disciplina normativa apropriada, conduziria a uma indefinição quanto ao foro adequado para a regulamentação específica da responsabilidade civil no âmbito da IA. O tema, assim, seria transferido de um diploma para outro, sem que, em nenhum deles, fosse exaustivamente tratado de forma inovadora e conclusiva.

Essa omissão persistente dentro de uma proposta legislativa de vanguarda, aliada à estratégia de remissão recíproca, mantém a incerteza jurídica e corrobora a tese central deste artigo, demonstrando que a alta expectativa de segurança jurídica não se concretizará plenamente, perpetuando o vácuo legislativo e as inquietações acerca da responsabilidade civil decorrente do uso da IA.

Contudo, é fundamental ressaltar uma nuance crucial nesta análise desse item específico. A nosso ver, o PL 04/25, na sua concepção como um CC (um arcabouço normativo de caráter geral), está correto ao remeter a disciplina da responsabilidade civil para uma legislação específica. A especificidade e a complexidade da inteligência artificial demandam um tratamento próprio, detalhado e técnico, que poderia não se coadunar com a natureza de um Código tão vasto. O erro, portanto, não reside no PL 04/25 ao delegar a matéria. O equívoco recai sobre o PL 2.338/23 que, sendo a lei específica sobre inteligência artificial, deveria ser o locus adequado para aprofundar e consolidar essa disciplina, mas opta por remeter a questão a um diploma geral (o Código Civil) que, por sua própria natureza, não detém a vocação para tal.

Conclusão: Expectativa x realidade na promessa de segurança jurídica - PL 2.338/23

Está demonstrado, portanto, por meio da análise minuciosa dos dispositivos de regência da matéria, que a "montagem" do sistema de responsabilidade civil pelo uso da IA no PL 2.338/23 confirma nossa tese central: a grande expectativa em torno dele, ao menos na questão da segurança jurídica na questão indenizatória, será inevitavelmente frustrada. 

Essa frustração, como visto, irá se sustentar no anacronismo substantivo de suas propostas, que falham na proposta de regular a máxima inovação tecnológica de nossos tempos com o máximo conservadorismo jurídico, remetendo a disciplina legal de uma questão tão importante a diplomas legislativos de 40 ou 50 anos atrás. 

Ademais, conforme demonstrado, muito embora o PL 2.338/23 e o PL 04/25 apresentem avanços na disciplina jurídica de caráter geral da inteligência artificial, a análise conjunta de ambos os projetos de lei também evidencia que a promessa de segurança jurídica, especificamente para a disciplina da responsabilidade civil decorrente da utilização da IA, igualmente estará frustrada. 

Como visto, apesar de sua natureza moderna e da criação de um Livro e um Capítulo dedicados ao Direito Civil Digital e à Inteligência Artificial, o PL 04/25, mesmo contendo dispositivos com um delineamento inicial promissor, opta por remeter a regulamentação aprofundada da responsabilidade civil para a "legislação específica". Tal abordagem, ao invés de sanar, perpetua o intrincado ciclo de remissões legislativas, no qual a disciplina concreta da responsabilidade civil pela IA é, por assim dizer, "empurrada entre os diplomas legais de um para outro", mantendo-se a lacuna normativa e a incerteza jurídica neste ponto capital.

O resultado será a continuidade de um perigoso vácuo legislativo, já vivenciado hoje em dia e que irá permanecer tal e qual no caso da aprovação dos projetos de lei analisados.

E o que pode florescer nesse vácuo? Obviamente, a realidade se impondo como tal! A adoção da IA na medicina é inevitável e já vem ocorrendo em larga escala. Sendo assim, na ausência de uma regulação específica que distribua de maneira justa as obrigações dela advindas, a carga de responsabilidade civil recairá, sem dúvida, sobre os prestadores de serviço sem maior critério legal e segurança jurídica. 

A humanidade, em momentos de disrupção como este, não espera a mera remissão a leis do passado para a regulação de fenômenos tão relevantes; ao contrário, clama por uma produção legislativa que tenha o condão de forjar boas soluções para questões agudas. 

Ao se apegar a velhas fórmulas, o legislador não está apenas se omitindo, mas, ao mesmo tempo, está ativamente escolhendo perder a possibilidade de regrar esse importante fenômeno para o presente e o futuro, deixando toda uma sociedade, pacientes, médicos e empresas médicas à deriva no mar da maior revolução tecnológica do nosso tempo - o uso da inteligência artificial na saúde e suas consequências na responsabilidade civil médica.

Assim, chegamos a uma conclusão paradoxal: a frustração com a lei não apenas adia a segurança jurídica, mas agrava o risco para quem está na linha de frente da prestação do serviço médico!

A síntese definitiva desse paradoxo já defendemos há tempos e está registrada no campo "Nossas Reflexões" das "Epígrafes" do nosso "O Erro Médico nos Tribunais":

"Como temos sustentado há muito tempo, todas as formas de utilização de novas tecnologias na Saúde e na Medicina, como Telemedicina, Cirurgia Robótica e agora a Inteligência Artificial (...) carregam consigo um potencial extraordinário de grande aumento da responsabilidade civil médica (...). Como em tudo na vida, quanto maior é a autonomia, nessa mesma proporção, maior será a carga de responsabilidade!"

__________________________

1 SOUZA, Wendell Lopes Barbosa de. O Erro Médico nos Tribunais, Editora Foco, 2ª ed. 2025.

2 NOGAROLI, Rafaella. Presidente do IMKN - Instituto Miguel Kfouri Neto de Direito Médico e da Saúde. Responsabilidade Civil Médica e Inteligência Artificial. São Paulo: Thomson Reuters, 2023, p. 320.

3 Sabbatini, Renato M.E.: Inteligência Artificial na Medicina: Histórico, Evolução e Aplicações. Revista de Inteligência Artificial em Medicina. Vídeo gravado, publicado em 22 de abril de 2025. Disponível aqui. Acesso em: 22 abr. 2025. 

4 Mestre e Doutor em Oftalmologia pela Escola Paulista de Medicina, Presidente do Instituto Coalizão Saúde e do Conselho do Hospital Albert Einstein. Revista Veja, 02/0625: Disponível aqui

5 Disponível aqui. Acesso em: 25 de setembro de 2025.    

6 Disponível aqui. Acesso em 25 de setembro de 2025.