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Aplicabilidade da teoria do desvio produtivo a partir da LGPD - "O tempo vital do titular de dados como bem juridicamente tutelado"

sexta-feira, 22 de abril de 2022

Atualizado às 08:06

Do mero aborrecimento ao desvio produtivo do consumidor

A atividade de consumo é inerente à existência humana, estando presente desde o nascimento até a morte do indivíduo, razão pela qual identifica-se a atual existência de uma sociedade de consumo.  

Segundo Bauman1, "o fenômeno do consumo tem raízes tão antigas quanto os seres vivos - e com toda certeza é parte permanente e integral de todas as formas de vida conhecidas a partir de narrativas históricas e relatos etnográficos."

Fato é que o elevado fluxo de aquisição de bens e serviços gera, em mesma escala, o aumento dos conflitos entre consumidor e fornecedor, os quais são causados pelo desmazelo - ocasionalmente intencional - desse no atendimento ao cliente, cometendo atos antijurídicos que ensejam reparação à vítima no campo material e moral. 

Tanto a doutrina pátria como a jurisprudência relacionada à obrigação de responder por  dano passível de indenização, no âmbito de suas esferas protetivas, vêm sofrendo mutação evolucionista caminhando de uma consolidada visão onde o   mero dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada estão fora da órbita do dano moral, porquanto tais situações não são intensas e duradouras, a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo, como descritos em acórdãos como no REsp 844.7362 do Superior Tribunal de Justiça, para se atribuir direitos indenizatório, a certas situações advindas da relação de consumo, que gerariam mais do que um "mero aborrecimento".

Recentemente o TJ/SP3 impôs a um Banco uma condenação ao pagamento de indenização ao consumidor que recebeu cobranças indevidas por dívidas contraídas por terceiro, sob o argumento fulcral de que impor ao consumidor perda de tempo com cobranças indevidas e recorrentes, gera dano moral pois este experimentou desgaste, perda de tempo, angústia e aflições.

A jurisprudência passa então a ampliar a visão acerca dos bens juridicamente tutelados em questões específicas que envolvem a dignidade da pessoa humana como direito constitucional subjetivo e essência de todos os direitos personalíssimos, considerando que "o dano moral é todo prejuízo que o sujeito de direito vem a sofrer por meio de violação a bem jurídico específico. É toda ofensa aos valores da pessoa humana, capaz de atingir os componentes da personalidade e do prestígio social4.

Observa-se que esta visão realça o denominado dano extrapatrimonial advindo da lesão a bem jurídico específico denominado de "dano moral", que não integra o patrimônio da pessoa e se relacionam à lesão aos direitos da personalidade, em contraposição à corrente doutrinária que situa o dano moral no âmbito da lesão à cláusula geral de tutela da pessoa5.

É nesse contexto que se vislumbra o desvio produtivo do consumidor. A teoria nasce justamente dos conflitos consumeristas em explosão na sociedade atual e é aprofundada por Dessaune6 que identificou e valorizou o tempo do consumidor quando submetido a situações de incrível stress emocional, incerteza e apreensão no âmbito da relação de consumo, como um bem juridicamente tutelável.

Segundo Dessaune, o desvio produtivo se perfaz quando o consumidor, em estado de carência e condição de vulnerabilidade, é incitado, pela forma de agir do fornecedor, a aplicar esforços para solucionar um problema de consumo. Assim, o consumidor despende de seu tempo vital, suprimindo ou adiando atividades existenciais, e assume deveres e encargos do fornecedor, os quais, por óbvio, não lhe cabem.

Nesta construção teórica o Autor aponta certos equívocos acerca da "tese de mero aborrecimento" como elemento não gerador do dever de indenizar, entre estes situa-se o fato de que em eventos de desvio produtivo, o principal bem jurídico atingido seria a integridade psicofísica da pessoa consumidora, enquanto, na realidade, são o seu tempo vital e as atividades existenciais que cada pessoa escolhe nele realizar - como trabalho, estudo, descanso, lazer, convívio social e familiar. Na sua ótica, o tempo existencial seria juridicamente tutelado por se encontrar protegido tanto no rol aberto dos direitos da personalidade quanto no âmbito do direito fundamental à vida.  

Conclui-se que se a vida, enquanto direito fundamental, precisa do tempo para acontecer, por óbvio tal esforço abala a existência do ser humano afetado, uma vez que no lugar de ocupar-se com atividades que lhe são necessárias ou desejosas - como trabalhar ou descansar -, é coagido a solucionar problemas que não são de sua responsabilidade resolver, ocorrência que é injusta e ultrapassa a esfera do "mero aborrecimento". Trata-se, portanto, do empenho de esforços por parte do consumidor para sanar um problema decorrente de uma relação de consumo, ao qual não deu causa.

A Sociedade da Informação como palco de desvios produtivos

A intensa revolução social, provocada pela rápida evolução tecnológica, com destaque à expansão da internet, afetou profundamente as estruturas econômicas, culturais, bem como as interações sociais, com reflexos na esfera privada dos indivíduos.

Tal movimento é notado especialmente na hodierna "sociedade informacional", na qual "a produtividade e a competitividade de unidades ou agentes dependem basicamente de sua capacidade de gerar, processar e aplicar de forma eficiente a informação baseada em conhecimentos"7, exprimindo uma nova estrutura social, chamada por Manuel Castells de "capitalismo informacional" em que considera que a atividade econômica e a nova organização social se baseiam, material e tecnologicamente na informação.

Nesse cenário, destacam-se as relações consumeristas, que utilizam cada vez mais novas tecnologias e perpassam pelo uso de dados pessoais. Sob este viés, muitas vezes os titulares de dados estão na posição de consumidores, fazendo com que se confundam, de certa forma, a proteção do consumidor com a proteção daquele titular de dados pessoais.

Ainda no embalo da evolução tecnológica e de novas tecnologias, cresce o comportamento de as pessoas possuírem duas espécies de vida: "uma vida real, de contato físico e material com pessoas e bens e uma outra virtual, que pode ser composta por redes sociais, e-mails, páginas pessoais etc., em interativa relação com outras pessoas e bens virtuais"8.  Este "corpo eletrônico"9 é composto pelo conjunto de dados pessoais sistematizados, que expõe em informação praticamente toda a vida das pessoas.

Neste contexto, podemos falar ainda na "persona digital"10, ou seja, no perfil de comportamento de um usuário de rede social, que é analisado e construído, por exemplo, a partir dos locais que ele visitou ou a partir das postagens que ele "deu um like", dentre outros elementos que podem ser utilizados para a sua construção.

Tendo em vista a extrema exposição de seus dados pessoais no mercado de consumo, em especial em uma sociedade que promove vigilâncias cada vez mais onipresentes, é importante o olhar e a proteção ao chamado "consumidor de vidro"11.

Sob este prisma, vislumbra-se que o tratamento de dados pessoais impacta diretamente na forma, por exemplo, como a publicidade é produzida diretamente para o consumidor, uma vez que há um conhecimento mais preciso em relação ao seu perfil e, com isso há uma alteração na forma com que o consumidor adquire ou utiliza produtos ou serviços.

Diante desta significativa alteração na cultura de consumo, que trouxe complexidade para o tema e, considerando que o titular de dados se confunde com a figura do consumidor, bem como a crescente valorização do tempo - essencialmente porque é ele meio pelo qual se propaga a vida do titular - e a vulnerabilidade, torna-se necessário investigar se a teoria do desvio produtivo do consumidor é aplicável no contexto da Lei Geral de Proteção de Dados.

As disposições de LGPD inibidoras de condutas de desvio produtivo em face do consumidor titular de dados pessoais 

A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), lei 13.709 de 14 de agosto de 2018, centraliza e coordena fundamentos, princípios, direitos e obrigações em relação ao tratamento de dados pessoais, visando a proteção da pessoa à qual os dados se referem. Nesse sentido, o artigo 2°, traz os fundamentos do tratamento de dados pessoais, que deve ser lastreado, além de outros, no respeito a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor, nos termos do inciso VI.

A LGPD, ao dialogar com outros campos do Direito, também gera a transversalidade entre o direito do consumidor e a proteção de dados pessoais, como resta demonstrado no artigo 45 da Lei 13.709/2018.

Desse modo, e ciente dos direitos dos titulares e dos deveres dos agentes de tratamento, é possível traçar um paralelo de aplicabilidade entre a supramencionada teoria do desvio produtivo e a Lei Geral de Proteção de Dados.

Importante rememorar que não somente é consumidor aquele que efetivamente adquire um produto ou serviço, mas, à luz dos artigos 17 e 29 do CDC, equiparam-se a eles todas as pessoas - determináveis ou não - expostas às práticas comerciais ou que foram vítimas do evento danoso.

Doutra feita, não se pode ignorar o preconizado pelo artigo 6º, inciso X, da LGPD, que exige do agente de tratamento eficácia no cumprimento da Legislação. O dispêndio de tempo é vedado expressamente no texto legal, por diversas vezes.

Vale ressaltar que, assim como no CDC, a LGPD também prevê a responsabilização do agente de tratamento ao causar dano patrimonial, moral, individual ou coletivo, ao titular de dados, vide artigo 42 e seguintes.

Para além disso, tanto consumidores quanto titulares de dados são caracterizados pela vulnerabilidade técnica, socioeconômica e informacional, corroborando com os diálogos entre a LGPD e o CDC.

Assim, uma vez que os consumidores se equiparam aos titulares de dados no âmbito das relações de consumo, bem como os agentes de tratamento aos fornecedores ou prestadores de serviços, entende-se plenamente possível a aplicação da teoria do desvio produtivo do consumidor no tocante ao atendimento dos titulares de dados, de forma tal que possa se evitar abuso de direitos em prejuízo ao titular dos dados.

Além disso, a LGPD, em seu artigo 5º, traz um rol de conceitos importantes, que servem como um "manual de instrução"12 para nortear a sua aplicação. Dentre os quais, o inciso IX, traz a figura dos agentes de tratamento de dados, que seriam o controlador e o operador. Ainda, no art. 5º, o inc. VI oferece um conceito de controlador: "pessoa natural ou jurídica, de direito público ou privado, a quem competem as decisões referentes ao tratamento de dados pessoais". No mesmo artigo, o inc. VII traz o conceito de operador: "pessoa natural ou jurídica, de direito público ou privado, que realiza o tratamento de dados pessoais em nome do controlador".

No Capítulo III da LGPD concentra-se um rol de direitos dos titulares de dados pessoais, mais especificamente a partir do artigo 17. Entretanto, deve ser feita uma leitura sistêmica e abrangente da norma a fim de se vislumbrar outros direitos e garantias destes titulares na LGPD.

O artigo 18 da LGPD traz um rol de direitos, quais sejam: de confirmação de que existe um ou mais tratamentos de dados sendo realizado (art. 18, I, LGPD); de acesso aos dados pessoais que lhe digam respeito (art. 18, II, LGPD); de correção de dados pessoais incompletos, inexatos ou desatualizados (art. 18, III, LGPD); de anonimização, bloqueio ou eliminação de dados desnecessários, excessivos ou tratados em desconformidade com a LGPD (art. 18, IV, LGPD); de portabilidade dos dados a outro fornecedor de serviço ou produto mediante requisição expressa (art. 18, V, LGPD); de eliminação de dados tratados com o seu consentimento (art. 18, VI, LGPD); de informação sobre o compartilhamento de seus dados com entes públicos ou privados (art. 18, VII, LGPD); de obter informação sobre a opção de não fornecer consentimento e as consequências da negativa (art. 18, VIII, LGPD); de revogação do consentimento (art. 18, IX, LGPD). 

Neste diapasão, o artigo 20, traz o direito à revisão das decisões automatizadas, possibilitando ao titular dos dados a solicitação de "revisão de decisões tomadas unicamente com base em tratamento automatizado de dados pessoais que afetem seus interesses, incluídas as decisões destinadas a definir o seu perfil pessoal, profissional, de consumo e de crédito ou os aspectos de sua personalidade".     

Importante trazermos à baila que o art. 12, §2º da LGPD que traz a proteção de dados por inferência, uma vez que: "Poderão ser igualmente considerados como dados pessoais, para os fins desta Lei, aqueles utilizados para formação do perfil comportamental de determinada pessoa natural, se identificada."

É certo que o processamento das requisições dos titulares (exercício dos direitos) deve ser o mais adequado e eficiente respeitando-se os prazos estipulados na legislação, com especial destaque ao artigo 19, que dita que a confirmação de existência ou o acesso a dados pessoais serão providenciados, mediante requisição do titular, que pode ser em formato simplificado, e deve ser respondido de forma imediata ou ainda por meio de declaração clara e completa, que indique a origem dos dados, a inexistência de registro, os critérios utilizados e a finalidade do tratamento, que deve ser fornecida no prazo de até 15 (quinze) dias, contado da data do requerimento do titular.

Resta evidente que a LGPD propugna por buscar a adequação e o cumprimento pelos agentes de tratamento de dados dos dispositivos legais por meio de modelos apropriados e da adoção efetiva de melhores práticas na governança de dados13, sempre visando resguardar a específica proteção jurídica diante da vulnerabilidade do titular de dados pessoais.

Dessa forma, cabe ao agente de tratamento buscar sempre a forma mais eficiente para atender aos direitos dos titulares, de modo a preservar seu tempo existencial e respeitar os ditames previstos na Lei Geral de Proteção de Dados. 

Conclusão

A caminhada para a compreensão global da LGPD e sua intersecção em diversos setores da sociedade é longa. Deve-se ter um olhar atento, especialmente, nesta nova forma de mercado no qual se extrai, de maneira unilateral, "a experiência humana como matéria-prima gratuita para a tradução em dados comportamentais que são disponibilizados no mercado como produtos de predição que antecipam e modelam comportamentos futuros"14, uma vez que quanto mais intrusiva for a prática, adentrando em hábitos estritamente particulares e sensíveis dos titulares de dados, e por conseguinte dos consumidores,  maiores serão os riscos de se causar danos aos indivíduos e incorrer em violação à LGPD.

Não obstante o arcabouço protetivo gerado pelo CDC e pela LGPD nas relações consumeristas e a proteção de dados pessoais, em casos excepcionais onde prepondera o abuso em detrimento do consumidor, será  possível a aplicação da Teoria do Desvio Produtivo, como forma de proteção do bem juridicamente tutelável consistente valorização do tempo vital do consumidor titular dos dados para que se coíba abusos e se verifique a justa indenização por meio da  busca da reparação civil, face aos agentes de tratamento que por descumprirem as normas programáticas da LGPD ou as cumprirem de forma inapropriada, causam danos extrapatrimoniais aos titulares dos dados pessoais, afetando-se a moral e ensejando  a compensação monetária adequada, em prol do  tempo que é o bem irrecuperável. 

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1 BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: A transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. p. 37. ISBN 978-85-378-0066-9 

2 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 844.736 Relator Ministro Luis Felpe Salmão. Disponível aqui. Acesso em: 01/04/20222.

3 BRASIL, Tribunal de Justiça de São Paulo, 19° Câmara de Direito Privado, Apelação Cível n° 1002236-83.2020.8.26.0590, Relator Ricardo Pessoa de Mello Belli.

4 BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, REsp 1.245.550, Relator Ministro Luis Felpe Salmão. Disponível aqui. Acesso em: 02/04/2022.

5 TARTUCE, Flávio. Responsabilidade civil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 427.

6 DESSAUNE, Marcos. Teoria aprofundada do desvio produtivo do consumidor: o prejuízo do tempo desperdiçado e da vida alterada. Espírito Santo, 2017.

7 CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede: economia, sociedade e cultura. V. 1 São Paulo: Paz e Terra, 2013, p. 119.

8 BASAN, Arthur Pinheiro; FALERIOS JÚNIOR, José Luis de Moura. A tutela do corpo eletrônico como direito básico do consumidor. Revista dos Tribunais online. Disponível aqui. Acesso em: 15/03/2022.

9 RODOTÀ, Stefano. Intervista su privacy e libertà. Roma/Bari: Laterza, 2005.

10 CLARKE, Roger. The Digital Persona and its Application to data surveillance. Disponível aqui. Acesso em: 01/04/2022

11 LACE, Susane. The glass consumer: life in a surveillance society. Bristol: Policy, 2005.

12 LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. DE LUCCA, Newton. Suboperador: possíveis soluções diante da omissão da LGPD. Migalhas de Proteção de Dados. Disponível aqui. Acesso em: 10 de abril de 2022.

13 SIMÃO FILHO, Adalberto, RODRIGUES, Janaina de Souza Cunha e LIMA, Marilia Ostini Ayello Alves de. A Governança e o registro de dados em LGPD sob a ótica da tomada de decisão estratégica, calcada na experiência "Gambito da Rainha". In: Direito, governança e novas tecnologias III [Recurso eletrônico on-line] organização CONPEDI Coordenadores: Aires Jose Rover; Danielle Jacon Ayres Pinto; Henrique Ribeiro Cardoso - Florianópolis: CONPEDI, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 01/04/2022.

14 ROSENVALD, Nelson. Coluna Migalhas de Proteção de Dados. A LGPD e a despersonalização da personalidade. Disponível aqui. Acesso em: 01/04/2022.