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A regulação das mídias sociais e como esqueceram de combinar com os "russos"

sexta-feira, 6 de maio de 2022

Atualizado às 07:43

Preliminares

A eventual regulação das mídias sociais tem sido motivo de debates acalorados em todos espectros políticos. A aquisição do Twitter pelo bilionário Elon Musk incrementou essa discussão agora polarizando entre o controle total por uma empresa com capital fechado ou a liberdade ampla patrocinada por um mega empreendedor visionário. Apesar de todas essas acaloradas discussões, veremos que algumas iniciativas e conquistas sociais não são facilmente controladas, principalmente quando advindas de artefatos computacionais que se transformam e se recriam ao sabor do desafio tecnológico, da inovação, da expectativa de sucesso, ou, simplesmente pela possibilidade de contestação.

Um pouco antes

Os computadores foram criados preliminarmente como máquinas calculadoras que faziam tarefas precisas de várias pessoas em pouco tempo relativo. Tornaram-se máquinas fundamentais para cálculos balísticos durante a II Grande Guerra1 e impulsionaram os serviços censitários, bancários e financeiros2. Nem mesmo as formulações de Alan Turing, em meados dos anos 19303, que apontaram o computador como a primeira máquina genérica e multifuncional criada pelo homem, conseguiu avançar a passos largos a Inteligência Artificial já proposta e discutida no primeiro workshop sobre o tema no Dartmouth College em 19564. Nem o software e muito menos o hardware do século passado estavam preparados para a grande revolução que a Computação traria em nossas vidas no início deste milênio. O termo Web 2.05, cunhado em 2004, abriga várias tecnologias sobre a Internet que proporcionam serviços cada vez mais amplos aos seus usuários, tais como compras online, uso de redes sociais, softwares como serviços, enfim, a Web 2.0 proporcionou um mergulho intenso e profundo de toda sociedade urbana num mundo digital virtual sem precedentes.

Os paralelos

Se podemos dizer que a Web 2.0 imprimiu uma revolução na nossa sociedade, em praticamente todas as frentes, do comércio ao lazer, da economia às relações sociais, e das comunicações ao marketing, o mesmo não podemos dizer, por exemplo, sobre outras criações demandadas, como por exemplo, a imprensa de Gutenberg (1430). Na época a capacidade de reprodução de artigos literários era restrita a produção manuscrita de copiadores humanos. A mecanização era a única alternativa para ampliar a circulação de informação via mídia escrita. O mesmo raciocínio é válido para outros meios de mecanização para os quais temos a Revolução Industrial como uma grande fábrica de exemplos semelhantes à imprensa. Só por completude, as máquinas a vapor encurtaram distâncias, auxiliaram a redução de preços das commodities, ampliaram fronteiras, fomentaram a expansão do comércio, entre ouros benefícios. No entanto, todos esses avanços eram objetivos latentes de uma sociedade que ansiava pela modernização de necessidades básicas para o seu crescimento econômico e social.

Podemos afirmar que, nos seus primórdios, a Computação nasceu também sobre as mesmas necessidades, a mecanização. Mesmo considerando as eventuais facilitações de atividades prometidas pela Inteligência Artificial entre o final dos anos de 1950 até meados dos anos de 1970, o que a sociedade esperava da Computação eram meios de ampliar seu tempo de lazer, tais como: máquinas mais inteligentes para deveres domésticos, máquinas mais produtivas e inteligentes para a indústria, robôs antropomórficos, programas como o STUDENT que resolviam problemas de álgebra, como também os veículos autômatos6.

No entanto, o mundo começou a mudar a partir da entrada no novo milênio com a Computação expandindo suas áreas de atuação para o mundo das comunicações e dos serviços. Por exemplo, antes do advento dos tocadores de músicas encapsuladas no formato MP3 não havia uma pressão social para levarmos conosco, a qualquer lugar que fossemos, milhares de músicas para eventualmente ouvirmos. A maioria de nós ficaria satisfeito em poder levar alguns CDs para ouvirmos durante uma viagem e só. DJs certamente já existiam e carregavam suas caixas de vinis como mostra de grandes conquistas feitas durantes anos a custo de muito dinheiro. Tampouco falava-se no intercâmbio de músicas, a não ser as cópias de fitas cassete e, um pouco mais adiante, as cópias de CDs de áudio. O outrora famoso BitTorrent (lançado em 2001), que é um bem-sucedido protocolo de comunicação para compartilhamento de arquivos ponto a ponto (P2P), muito usado para compartilhar arquivos eletrônicos pela Internet de forma descentralizada, alastrou-se como erva daninha no campo musical e desmontou o esquema comercial das grandes gravadoras. Reforço: não era uma necessidade social lutar contra a indústria da música praticando a pirataria caseira. Não existia uma comoção social para esse esbulho do direito autoral.

Em 2004 quando o engenheiro turco do Google, Orkut Büyükkökten, lançou a primeira rede social de sucesso no Brasil, o Orkut, 29 milhões de brasileiros sentiram a carência iminente de se arregimentarem com parentes esquecidos e coleguinhas da época do "jardim da infância"7. Outros também aproveitaram o software para se aproximarem de celebridades, colegas e parentes de n-ésimo grau. O Orkut arregimentou 15% da população total do Brasil em 2011. Neste mesmo ano, a hegemonia do já aclamado Facebook que reinava nos EUA, chegou ao Brasil abrigando 30,9 milhões de visitantes únicos no mês de agosto8. Essa nova rede social foi a responsável por tirar o Orkut do ar em 2014. Reforço: antes dessas duas redes sociais, esse velho conceito de networking era restrito à nossa rede de colegas e amigos e, com alguma aptidão, à um "amigo do amigo do meu pai".

Então estamos afirmando que o Orkut foi uma criação da Google, como fora, de forma semelhante, o planejamento e a criação do thefacebook.com (renomeado para Facebook em 2005) por Mark Zuckerberg e colegas de Harvard em 2004? Não! Nesta época a Google adotava a filosofia dos 20%, ou seja, seus funcionários podiam usar 20% do seu expediente para trabalhar num projeto paralelo, a sua escolha, desde que relacionado com as atividades da empresa. Foi dessa fatia dos 20% que surgiram não só o Orkut, mas como também o Google Maps e o Gmail, por exemplo9.

Nessa onda de virtualização das comunicações vieram o ICQ (1996), MSN Messenger (1999), como mensageiros eletrônicos instantâneos e, o Skype (2003) também usado para vídeo conferência. Era também nessa mesma época que nossos computadores pessoais eram controlados pelo sistema operacional Windows XP e usávamos comprar o pacote Office 2003, a primeira versão a usar cores e ícones do sistema operacional. Tudo isso hoje contrasta com mensageiros instantâneos como aplicativos de celular e uma extensa variedade de softwares via web no modelo SaaS (Software as a Service), ou seja, o modelo de software como serviço. Como exemplo: Dropbox, Google Drive, Netflix, Amazon Web Services, Nubank e Microsoft 365.

Nos ombros de quem?

A pergunta que fica é: como conseguimos elaborar essa sociedade em que o software é parte vital de nossos relacionamentos, de nosso cotidiano e do nosso trabalho?

A resposta técnica é que esses serviços via software (redes sociais e afins), bem como os Markplaces (iFood, Amazon e Airbnb, como exemplos), apesar de parecerem um simples software na web, são softwares complexos que são executados sobre um grande elenco de protocolos e outros softwares que formam a base de comunicação de dados via internet. Toda comunicação via internet pode ser entendida pelo modelo TCP/IP. Esse modelo congrega todo tipo de protocolo e software básico para a comunicação via internet em quatro camadas sofisticadas, são elas: 1) Aplicação, ou seja, essencialmente o software que usamos; 2) A camada de Transporte que está relacionada com confiabilidade (o dado alcançou seu destino?) e integridade (os dados chegaram na ordem correta?) do acesso à rede; 3) A camada da Internet que captura os pacotes recebidos da camada de Transporte e adiciona uma informação sobre endereço virtual e, finalmente, num nível mais baixo; 4) A camada de rede que vai efetivamente enviar os pacotes pela Internet10.

Ressalto que toda essa arquitetura Web e de Internet é uma arquitetura aberta, regulamentada por técnicos e engenheiros de grandes consórcios de software e que podem ser usadas para qualquer finalidade. Dadas essas condições técnicas abertas a qualquer um, amparados pela formulação teórica da Tese de Church-Turing11 que garante termos a máquina genérica mais poderosa até hoje construída, não há como parar as inovações via Computação. Sua estrutura foi elaborada de forma a poder espalhar pacotes de informação da maneira como a imaginação do programador desejar. Sobre essa mesma arquitetura que hoje surfamos na rede e nos seus serviços, outros tantos indivíduos e máquinas do submundo virtual surfam, por exemplo, na Dark Web, em atividades anônimas e privadas em contextos ilegais (e legais também) dos mais variados e assustadores possíveis. E sem regulação. Não há força, não há meios, para pará-los.

Lembro-me dos meus anos como rádio amador oficialmente habilitado que, no início dos anos de 1990, experimentávamos o packet radio (rádio de pacote) que é um método de comunicação digital via rádio usado para enviar pacotes de dados. O que era muito semelhante ao modo como os pacotes de dados são transferidos entre nós na Internet hoje. Cada rádio funcionava como um nó da rede de comunicação, a exemplo dos computadores servidores hoje. Enviávamos e recebíamos informações com a nossa própria versão de protocolo de comunicação. E como era possível: os protocolos são especificações abertas de modelos de comunicação. São modelos disponíveis a qualquer pessoa. É só saber programar e ter o tempo necessário para essa atividade. Ou seja, se tirarem os fios, a web funcionará sobre as ondas do rádio. Saiu o ICQ, entrou o MSN, e depois o WhatsApp. No banco de reservas ainda temos o Twitter, o Telegram, o Truth Social, Mastodon, Reddit, Care2, Ello, Minds, The Dots, Plurk, Tumblr e aquele aplicativo que algum jovem gênio de 14 anos está escrevendo hoje e que iremos descobrir em breve. A rede não para. Nem precisa avisar os "russos".

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1 First Colossus operational at Bletchley Park. Disponível aqui.Visitado em 3 de maio de 2022.

2 The Automation of Personal Banking. Disponível aqui. Visitado em 3 de maio de 2022.

3 The Church-Turing Thesis. Disponível aqui. Visitado em 3 de maio de 2022.

4 Artificial Intelligence (AI) Coined at Dartmouth Disponível aqui.  Visitado em 3 de maio de 2022.

5 What Is Web 2.0. Disponível aqui. Visitado em 3 de maio de 2022.

6 A Complete History of Artificial Intelligence. Disponível aqui. Visitado em 3 de maio de 2022.

7 A história do Orkut, a rede social favorita do Brasil. Disponível aqui. Visitado em 3 de maio de 2022.

8 Facebook ultrapassa Orkut e é a rede social mais popular no Brasil. Disponível aqui. Visitado em 3 de maio de 2022.

9 Why Google's 20% time management philosophy should be adopted by startups. Disponível aqui. Visitado em 3 de maio de 2022.

10 TCP/IP Model. Disponível aqui. Visitado em 3 de maio de 2022.

11 Advogados e cientistas da computação unidos para lacrarem a neutralidade da rede. Disponível aqui. Migalhas 5.342 de 14 de maio de 2021. Visitado em 3 de maio de 2022.