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CPF: vilão ou aliado à LGPD?

sexta-feira, 23 de junho de 2023

Atualizado às 10:21

Introdução

Os documentos nacionais de identificação civil são uma realidade para a maioria dos países. No site da World Privacy Forum1 é possível ver uma lista (de 2021) de países que adotam identidades nacionais (id), os que têm id digitalizadas e também os que têm, no documento de identificação, com algum dado biométrico associado, tal como a impressão digital ou uma imagem da íris.

No Brasil estamos acostumados a usar dois documentos nacionais de identificação, que são a Carteira de Identidade (RG) e o Cadastro de Pessoa Física (CPF). Não estamos aqui deixando de considerar a Carteira Nacional de Habilitação e, muito menos, e talvez o mais importante deles, o nosso primeiro e obrigatório documento, a Certidão de Nascimento. Não obstante os dois últimos, no nosso cotidiano os números do RG e do CPF são realmente imprescindíveis para muitos e serviços, tanto públicos quanto os privados.

Notem também que dos dados incluídos nestes documentos, tais como o seu nome, o nome da sua mãe, entre outros, nenhum é tão importante quanto o número do documento, mais especificamente o número do RG e o número do CPF. Reforço que estes números indexam quase todos os "movimentos" da nossa vida, indexam nosso cotidiano.

O grande livro

Imaginem que possa haver um livro de registro diário de todas as atividades de todas as pessoas neste país. As pessoas saem de casa com seus carros, compram em lojas e farmácias, frequentam escolas e academias, vão a shows e cinemas, usam transporte público, entre diversas outras atividades, e tudo passa a ser registrado neste livro de "movimentos". Notem que para praticamente todos estes "movimentos" têm um número de RG ou CPF embutido ou associado: na carteira de habilitação, nas compras com nota fiscal (ou sem, como nas farmácias), nas escolas e academias usamos estes números, como também para conseguir outros serviços e documentos (cartões de banco, cartões de transporte coletivo, serviços de internet e telefonia), quase tudo tem um número de CPF associado. Até quem usa a internet, o seu número de IP está associado à sua conta no provedor que, obviamente, tem seu número de CPF.

Voltemos ao livro dos "movimentos". Se indexarmos todas as tarefas descritas neste livro pelo CPF dos envolvidos teremos listados num índex, ao final do livro, todos os "movimentos" e atividades que fizemos ao longo do dia. Este livro físico ainda não existe e, provavelmente, não vai existir, mas certamente existem vários livros digitais pela web que acompanham nossa vida.

E qual é o problema?

Voltando ao site da World Privacy Forum2 vemos que a maioria dos países têm algum tipo de id nacional, no entanto e estranhamente para muitos leitores, alguns países não obrigam seus cidadãos a terem um id. Por exemplo, nos países do Reino Unido (Inglaterra, Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte) um id não é um documento compulsório. A necessidade de um documento de identificação nasceu devido ao fato do Reino Unido estar totalmente envolvido na Segunda Guerra Mundial entre 1939 e 1945. Nesta época as pessoas recebiam uma carteira de identidade nacional individual que deveria ser carregada o tempo todo (até 1952) e cadernetas de racionamento para alimentos e mercadorias escassas (o racionamento continuou até 1954)3. Os cartões de identificação do tempo de guerra foram finalmente retirados pelo governo de Churchill em 1952, sete anos após o final da guerra4, devido às tensões criadas entre a polícia e cidadãos inocentes. Consequentemente, hoje muitos países do Commonwealth não emitem um cartão nacional de identidade, tais como a Austrália, o Canadá e Nova Zelândia, muito embora todos eles exijam documentos específicos de identificação para algumas atividades, tais como dirigir um veículo automotor, viajar ao exterior, votar, entre outros.

Percebemos assim, que a existência ou não de um documento de identificação nacional não é imperativo e muito menos impeditivo para o exercício da cidadania em muitos países. Mesmo sem um documento de identificação um cidadão consegue trabalhar, estudar, ter uma moradia, constituir família, enfim, viver dignamente.

Notem que, identificar uma pessoa não significa identificar univocamente esta pessoa, ou seja, assegurar a singularidade do registro. Em outras palavras, os dados contidos num documento de identificação não necessariamente precisam ser únicos e específicos para um único indivíduo. Tomemos, como exemplo, o passaporte. Ele é um documento de identificação aceito internacionalmente e dele constam seu nome, nacionalidade, data e local de nascimento, sexo e nomes dos pais. Não existe um número único de identificação associado à pessoa do passaporte. Até mesmo o número do passaporte segue a validade do documento. Mesmo que alguém possa considerar que o conjunto de dados do passaporte seja único, ou seja, o nome seu, dos seus pais, aliado aos outros dados... só poderia ter uma pessoa nestas condições. No entanto, sabemos que isso vale para quase todos, mas tecnicamente não garante a unicidade da pessoa. Já, o CPF é esse número único. Existe um número "estampado" em cada um de nós.

A lei 14.534 de 11/01/2023

Em seu artigo primeiro "Fica estabelecido o número de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) como número único e suficiente para identificação do cidadão nos bancos de dados de serviços públicos."5. Pronto! Criamos um número único que será o identificador de praticamente todos os nossos registros e documentos públicos, tais como: certidão de nascimento, casamento, óbito, identidade, PIS, PASEP, título de eleitor, CNH, entre outros.

Esta lei tem origem no PL 1.422/2019 cujo relator, senador Esperidião Amin (PP-SC), alega que a medida favorece os cidadãos, especialmente os mais pobres6. No entanto, a configuração de um número de identificação nacional, um número de identidade nacional, é usado pelos governos de muitos países como um meio de rastrear seus cidadãos, residentes permanentes e residentes temporários para fins de trabalho, tributação, benefícios governamentais, cuidados de saúde e outras funções relacionadas com o governo. Números únicos também existem em outros países, mas com finalidades específicas. Por exemplo, nos EUA número de Seguro Social (Social Security Number, SSN) é um número individualizado de nove dígitos emitido para cidadãos dos EUA, residentes permanentes e temporários que é usado para requerer benefícios sociais e para fins fiscais. Lembro-me das recomendações dos funcionários da agência local da Social Security Administration de sigilo total sobre este número, quando recebi um SSN. Nos EUA não usamos o SSN para abrir conta em banco, para compras no comércio (incluindo farmácias), para fins escolares, entre outros. Um SSN é um número sigiloso guardado a "sete chaves".

Existe um motivo para termos números únicos?

Os números associados à documentos nasceram como um modo de indexação dos documentos. Para não fazer buscas grandes quantidades de registros por nomes ou outros dados complexos, é mais fácil, tanto para um humano quanto para uma máquina, buscar por um número. Assim os números foram adotados apenas com parte da burocracia de lidar com grandes volumes de documentos. Lembrem-se, já existiu um tempo em que o mundo não era digital, ou seja, os registros eram fixados em mídias analógicas, papel basicamente.

No entanto, a lógica do processo analógico, ou seja, a lógica de negócio, não mudou quando o mundo passou a ser digital, pois a mudança do mundo analógico para o digital foi gradual. Assim, os números continuaram a indexar os registros computacionais, ou seja, existiam números internos de registros para tudo, CNH, RG, PIS, Passaporte, etc.

Percebam que, dada a grandiosidade do universo que se deseja endereçar, ter uma identificação única pode ser uma boa ideia, mesmo em serviços que já nasceram digitais. Por exemplo, é desejável que só exista um @cristiano no Instagram, o perfil do futebolista Cristiano Ronaldo, o ser humano com maior número de seguidores nesta plataforma [6], com 590 milhões de followers, "míseros" 8% da população mundial. A identificação unívoca garante que o usuário não se enganará a seguir o eventual perfil de outra pessoa com o mesmo identificador. O mesmo vale para endereço de e-mail e páginas web (URL).

Não é por falta de um id obrigatório e único que os cidadãos da Noruega, França, Suécia, México, Itália, entre diversos outros, não recebem os serviços do estado, tampouco cumpram suas obrigações perante seus municípios, distritos e assemelhados. Por sinal, cabe reforçar que vários países, dentre esses a própria Itália, aceita solicitações de cidadania baseadas apenas na consanguinidade de parentes (avôs e avós, por exemplo) por meio de documentos muitas vezes rudimentares, como livros de registros paroquiais, por exemplo. Lembro que aceitando um novo cidadão, o estado assume uma série de obrigações, tais como prover saúde, educação e segurança a esta pessoa.

Efetivamente a lei 14.534 não traz benefícios aos cidadãos brasileiros por disporem, a partir de janeiro, de um apenas um número único de identificação. Num estado que se esforça para disponibilizar até mesmo eleições nacionais num modelo totalmente digital sem a necessidade dos eleitores apresentarem um id singular à sua pessoa, não deveria haver a necessidade de fusão de todos seus registros públicos num número único para prestar os demais serviços obrigatórios. Hoje, com praticamente todos os serviços públicos digitalizados, não deveria ser ônus do cidadão a facilitação da associação de dados diversos que podem expô-lo por completo para qualquer serviço público. Notem que, com um número único, todos os seus registros, do nascimento, passando pelos postos de saúde, eleições, trabalho, vida escolar, fiscal e, até a sua morte, todos estarão indexados a um único identificador, um único indexador. Teremos um número que controla a sua vida, não por sua escolha, mas por imposição do estado.

Conclui-se que, diferentemente do favorecimento dos "cidadãos, especialmente os mais pobres", a única motivação para um id único é a rastreabilidade dos individuos. O que a LGPD ofereceu com uma mão, a lei nº 14.534 tirou com a outra.

No próximo artigo veremos com a comunidade europeia, avessa as ideias de um id único, reage às pressões da Comissão Europeia ávida para impor um modelo semelhante ao nosso.

Referências bibliográficas

1. National IDs Around the World - Interactive map. Disponível aqui. Último acesso em 12 de junho de 2023.

2. Identity cards abolished after 12 years - archive, 1952. A Disponível aqui. Último acesso em 14 de junho de 2023.

3. Reconsidering the case for ID cards. Disponível aqui. Último acesso em 13 de junho de 2023.

4. Lei nº 14.534 de 11/01/2023. Disponível aqui. Último acesso em 14 de junho de 2023.

5. CPF será número único de identificação do cidadão, determina lei sancionada. Disponível aqui. Último acesso em 14 de junho de 2023.

6. The Top 20 Most Followed Instagram Accounts. Disponível aqui. Último acesso em 14 de junho de 2023.