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A revisão contratual na indústria da construção civil em razão da pandemia de Covid-19

quinta-feira, 22 de abril de 2021

Atualizado às 08:36

Introdução

A pandemia da Covid-19 exigiu dos governantes mundiais a tomada de medidas drásticas a fim de garantir o necessário distanciamento social da população, o que acarretou a suspensão de atividades comerciais não essenciais à sociedade, bem como a proibição de atendimento presencial em estabelecimentos comerciais. Nesse contexto, a pandemia tem sido responsável por uma crise econômica sem precedentes, que afetou as diversas indústrias brasileiras em diferentes níveis.

Entre os setores afetados está o da construção civil que, embora tenha sido enquadrado como setor essencial da sociedade, tem visto o aumento constante de preços dos insumos necessários à sua consecução, principalmente em relação aos materiais de construção, com constante aumento da demanda1.

A questão tem alcançado tamanha proporção que a falta ou o alto custo de matéria-prima foi considerado o principal problema enfrentado por empresários do setor ainda no quarto trimestre de 20202. Materiais como ferro, aço, alumínio, PVC e tijolos são alguns dos que tiveram oferta insuficiente nos últimos meses3, e a pouca oferta apresentou aumentos de 40 a 70% de seus preços em condições normais.

Pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI) quantificou a dificuldade na aquisição de insumos:

"Ao todo, 68% das empresas pesquisadas relataram dificuldades para comprar insumos no mercado doméstico. Ou seja, cerca de dois terços das indústrias. Pouco mais de 55%, que usam insumos importados, estão com dificuldades de comprá-los no mercado internacional. E, para piorar, mais de 80% das indústrias perceberam que os preços subiram. Cerca de 30%, inclusive, disseram que a alta foi acentuada. Está aí a prévia do IPCA 15 de outubro do IBGE que não deixa mentir.  A sondagem especial da CNI mostrou ainda que 44% das empresas estão com dificuldades de atender os pedidos dos clientes e as principais razões apontadas são falta de estoque (47%), demanda maior que a capacidade (41%) e incapacidade de aumentar a produção (38%). Sendo que a incapacidade de produzir mais vem por conta da falta de insumo e a falta de insumo vem por conta de que ninguém tem estoque, e assim vai num círculo vicioso. Nas previsões da CNI, a falta de produtos pode durar três meses ainda.4"

Segundo o setor da construção civil, esta alta pode ser atribuída ao aumento do dólar e à escassez mundial de produtos, o que provoca a exportação de matéria prima mais atrativa para os fornecedores brasileiros.

Fato é que o encarecimento expressivo dos insumos básicos à indústria da construção civil ocasiona o aumento do custo da obra, afetando os contratos firmados entre fornecedor e construtora, construtora e incorporadora, e, em última instância, prejudica a mantença dos contratos já firmados entre incorporadora e adquirentes.

Tendo em vista tal cenário, esse arrazoado pretende tratar da recente situação de aumento expressivo do preço dos insumos em percentual acima do praticado nos últimos anos, em razão da escassez de produtos por conta da pandemia, e também diante de obras já contratadas, lançadas e com unidades vendidas, não se estendendo para hipóteses em que seja possível equilibrar as contas com o repasse ao consumidor final, isto é, antes do lançamento do empreendimento imobiliário.

Isto porque, em que pese a possibilidade de pleito judicial de reequilíbrio de contratos já assinados, não se faz possível pleitear a redução de preços ofertados ao mercado em contratos ainda não firmados, por se tratar de tentativa de interferência na lei da oferta e da demanda, e até mesmo na interferência do Poder Judiciário na esfera econômica.

Hipóteses Legais de Revisão Contratual

A lei civil brasileira, inspirada por legislações estrangeiras, permite que em situações excepcionais a rigidez de um contrato celebrado entre partes igualitárias possa ser flexibilizada.

Esta previsão encontra-se positivada no Código Civil em seus artigos 421-A, III de maneira genérica, 478 a 480, com o chamado instituto da "onerosidade excessiva", no artigo 317 quando se trata de correção do preço contratado, e, no que se refere à matéria específica objeto desta análise, no artigo 625, I nos contratos de empreitada.

Há também a previsão de revisão contratual na legislação consumerista de forma mais ampla, apenas para o consumidor, em seu artigo 6º inciso V, o que será tratado mais adiante.

a) Instituto da onerosidade excessiva

O artigo 478 do Código Civil prevê a possibilidade de rescisão do contrato de execução continuada ou diferida caso a prestação de uma das partes se torne excessivamente onerosa, desde que cumpridos alguns requisitos.

São estes requisitos: (i) que o contrato seja de trato continuado ou diferido; (ii) que a prestação de uma das partes se torne excessivamente onerosa; (iii) que a outra parte da relação contratual receba uma extrema vantagem ao mesmo tempo, e; (iv) que a razão desta onerosidade excessiva seja por acontecimentos extraordinários e imprevisíveis.

O artigo 579, seguinte, permite que a parte que recebeu a vantagem exagerada evite a rescisão contratual, desde que concorde em modificar equitativamente o contrato. Trata-se do restabelecimento do equilíbrio, ou da presunção de paridade prevista no caput do artigo 421-A.

Em tese, as partes iguais têm, no momento da formação contratual, todas as informações e experiências necessárias para acordar as condições contratuais, sejam elas inerentes à sua parte na avença, ou externas mas que possam influenciar no desempenho contratual.

Quando um evento externo e imprevisível, como inquestionavelmente a pandemia de Covid-19 é, ocorre e produz efeitos na relação contratual, o instituto da onerosidade excessiva permite que a parte que comprovadamente sofreu prejuízos expressivos resolva o contrato sem dever de indenizar.

A revisão contratual pela parte que recebe a vantagem exagerada não se trataria de regra, mas sim uma faculdade.

O Poder Judiciário, contudo, por muitas vezes ignora tal faculdade, e a interpreta como uma obrigação do credor em revisar os termos contratuais, fazendo isso por ele. Vejamos:

Agravo de instrumento - locação de imóvel comercial - ação revisional de alugueres - insurgência contra r. "decisum" que trouxe indeferida tutela de urgência - pretendida redução nos locativos, dentro em o período de quarentena imposto pelo poder público, do equivalente a 50% (cinquenta por cento) - pandemia do coronavírus acomodada ao conceito de fato superveniente imprevisível desencadeador de onerosidade excessiva, e por isso a autorizar a revisão do contrato de locação - exegese dos artigos 317, "caput", e 478, "caput", ambos do Código Civil - aplicabilidade, ainda, da teoria da imprevisão - requisitos alicerçadores da excepcional medida evidenciados em sede de cognição sumária - redução dos locativos no percentual de 50%(cinquenta por cento) - distribuição equitativa dos prejuízos oriundos da conjuntura - decisão reformada - recurso provido.  (TJSP;  Agravo de Instrumento 2119914-29.2020.8.26.0000; Relator Tercio Pires; Órgão Julgador: 34ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 10/09/2020)

Revisional. Contrato bancário. Tutela deferida para suspensão das parcelas de contrato pelo prazo de 120 dias. Agravo de instrumento. Empresa que atua no ramo de educação ministrando cursos livres. Inteligência do art. 300, NCPC. Pandemia. Caso de força maior. Contexto econômico que impõe risco de dano irrecuperável ao devedor, diante do risco de quebra. Boa-fé contratual. Inteligência dos artigos 478, 479 e 480 do Código Civil. Possibilidade de se aplicar mudanças no instrumento contratual de modo equitativo a fim de evitar o rompimento do laço contratual. Medida transitória. Verossimilhança do direito alegado. Presença do 'periculum in mora'. Presentes os requisitos para a concessão da tutela provisória de urgência. Suspensão da cobrança de títulos e de juros e encargos decorrentes enquanto durar a suspensão das atividades decorrentes do Decreto Estadual de que estabeleceu a quarentena no Estado de São Paulo. Agravo de instrumento provido. (TJSP;  Agravo de Instrumento 2109131-75.2020.8.26.0000; Relator: Virgilio de Oliveira Junior; Órgão Julgador: 21ª Câmara de Direito Privado; Data do Julgamento: 18/09/2020)

Ainda que tecnicamente contestável aludido posicionamento do Poder Judiciário, fato é ser possível, desta forma, suscitar a onerosidade excessiva no rompimento e na tentativa de revisão contratual aos contratos em curso, desde que preenchidos os requisitos anteriormente citados, o que ocorre nas relações contratuais firmadas entre fornecedores, construtoras e incorporadoras.

b) O artigo 317 e a correção monetária

Em que pese o emprego comum pela jurisprudência pátria na fundamentação do deferimento da revisão contratual com a aplicação do artigo 317 do Código Civil, combinado aos artigos relativos à onerosidade excessiva anteriormente citados, as razões dos motivos do projeto de lei que se tornou o Código Civil, bem como a literalidade de seu texto, permitem a interpretação de que o legislador visava unicamente aplicar a devida correção monetária a prestações contratuais que, por motivos imprevisíveis, não foram atendidas, ou quando sua correção absolutamente não acompanhou corretamente a inflação.

Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.

Conforme ensina José Fernando Simão, o objetivo do legislador foi "permitir, exclusivamente, que o juiz fixe correção monetária em contrato no qual as partes não avençaram". Todavia, tem sido admitida a aplicação mais abrangente do referido artigo como aponta o próprio Simão em Código Civil Comentado5:

"A doutrina viu no dispositivo uma cláusula geral de revisão da prestação contratual que se altera entre o momento da formação do contrato (plano de existência) e o momento de sua execução ou cumprimento (plano de eficácia). Para que o juiz possa realizar a revisão contratual, deve haver i) manifesta desproporção entre o valor da prestação no momento da formação e execução e ii) a desproporção decorrer de motivos imprevisíveis."

c) Suspensão dos contratos de empreitada

Sem prejuízo da observância e suscitação judicial dos dispositivos anteriores, há especial previsão no Código Civil de suspensão das obras nos contratos de empreitada firmados, quando ocorrer algum motivo de força maior, ou quando sobrevierem dificuldades imprevisíveis que onerem a empreitada e o dono da obra rejeitar a possibilidade de revisão do preço.

Art. 625. Poderá o empreiteiro suspender a obra:

I - por culpa do dono, ou por motivo de força maior;

II - quando, no decorrer dos serviços, se manifestarem dificuldades imprevisíveis de execução, resultantes de causas geológicas ou hídricas, ou outras semelhantes, de modo que torne a empreitada excessivamente onerosa, e o dono da obra se opuser ao reajuste do preço inerente ao projeto por ele elaborado, observados os preços;

In casu, o motivo de força maior a ser suscitado não haveria de ser o mero encarecimento de materiais, mas sim o agravamento da pandemia, que ocasiona a escassez de material, e por consequência o aumento abusivo e imprevisível de preços.

As flutuações de preços do mercado são consideradas pela jurisprudência como fatos previsíveis e fortuito interno incapaz de afetar a base contratual, como se verifica pelos julgados abaixo.

RECURSOS DE APELAÇÃO E EX OFFICIO EM AÇÃO ORDINÁRIA. ADMINISTRATIVO. CONTRATO ADMINISTRATIVO. REEQUILIBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO. 1. Contrato administrativo celebrado para execução de obra em regime de empreitada integral, descumprimento contratual da CDHU em reajustar os preços contratados em periodicidade anual, reajustes que foram realizados e aplicados no 13º mês, prejuízo configurado, compensação financeira devida. 2. Aumento dos insumos e mão de obra acima do valor médio de mercado, situação que configura mera flutuação de preço de mercado, inexistência de situação imprevisível, inevitável e extremamente onerosa ao contratado a autorizar o reequilíbrio econômico e financeiro do contrato. 3. Sentença mantida. Aplicação do disposto no art. 252 do Regimento Interno deste E. Tribunal de Justiça. Recursos desprovidos  (TJSP; Apelação Cível 0009205-55.2004.8.26.0053; Relator Marcelo Berthe; Órgão Julgador: 3ª Câmara Extraordinária de Direito Público; Data do Julgamento: 25/11/2014)

CONTRATO ADMINISTRATIVO. Fornecimento de madeiras. Descumprimento parcial do objeto contratual. Aplicação das penalidades de rescisão contratual, multa e suspensão de licitar e contratar com o Poder Público. Cabimento. Entrega dos materiais fora do prazo, por diversas vezes, de responsabilidade da autora. Ausência de Documento de Origem Florestal que deveria acompanhar a entrega. Previsão no edital e no contrato. Alegação de quebra do equilíbrio econômico-financeiro, em razão do aumento do preço dos insumos. Inocorrência. Variação dos preços de mercado que constitui fato previsível. Autora que, ciente, assumiu o risco inerente ao negócio à época da contratação. Penalidades legais e devidas, por descumprimento do contrato. Demanda improcedente. Recurso não provido.  (TJSP; Apelação Cível 0007809-53.2008.8.26.0554; Relator Edson Ferreira; Órgão Julgador: 12ª Câmara de Direito Público; Data do Julgamento: 15/12/2010)

Contudo, o cenário atual, em que declarada calamidade pública, e as consequências recentes do agravamento da pandemia no cenário da construção civil conforme anteriormente delineados, desde que devidamente comprovadas as dificuldades de atendimento ao prazo de obra, como por exemplo com diário de obras ou outros elementos similares, constituem motivos de caso fortuito externo capazes de justificar a suspensão da execução da mencionada obra.

A relação consumerista

As relações entre fornecedores e consumidores têm proteção especial no Direito brasileiro, sendo reguladas pelo Código de Defesa ao Consumidor (CDC), o qual estabelece como direito básico do consumidor em seu artigo 6°, inciso V, a revisão de cláusulas contratuais por onerosidade excessiva, tendo como único requisito que essa seja causada por fato superveniente.

A relação entre o adquirente da unidade e o incorporador merece distância de tratamento das relações entre fornecedor, construtor e incorporador, por se tratar, à luz da lei e da doutrina, de uma relação entre partes desiguais.

Assim, de acordo com o CDC, a única possível revisão contratual haveria de advir em benefício do consumidor, e somente se requerida por ele. Isto porque a lei presume que a posição do consumidor seja a mais frágil da relação, e por isso faculta a este a possibilidade de equilibrá-la.

Não nos parece haver empecilho, contudo, para a aplicação da teoria da onerosidade excessiva, insculpida nos artigos 478 e seguintes do Código Civil, caso o incorporador seja aquela parte mais prejudicada pelo fato superveniente e imprevisível.

Por óbvio que neste caso possivelmente a jurisprudência se tornará mais rígida em averiguar a presença de todos os requisitos legais do artigo, os quais deverão ser cabalmente demonstrados em uma lide, a fim de possibilitar apenas a rescisão contratual, jamais a revisão de preços.

Ou seja, o incorporador deverá abrir seus números para comprovar que quando o VGV do empreendimento foi montado, quando ocorreu o lançamento do empreendimento, e quando a unidade imobiliária foi precificada e vendida, era imprevisível a alta expressiva dos insumos, a qual foi motivada por sua escassez durante a pandemia.

Será necessário comprovar, por meio de estudos fundamentados, que tal alta tem relação direta com o agravamento da pandemia, e que ao tempo dos eventos descritos no item anterior não era possível prevê-la.

Deverá ainda demonstrar o incorporador que o consumidor irá adquirir uma unidade por preço inferior ao praticado nos novos lançamentos do mercado, que surgirão já prevendo a alta de preços em seu VGV, e isso colocará o consumidor em posição de extrema vantagem, em prejuízo igualmente extremo do incorporador.

Ainda, nesse caso, entendemos que deverá se tratar de uma ação conjunta contra diversos consumidores, possivelmente separados por empreendimento, para demonstrar a globalidade do problema.

De toda forma, invocando novamente o artigo 317 do Código Civil, poderá o fornecedor demonstrar, também por laudo fundamentado, que a correção monetária que gerou um aumento expressivo do valor final de mercado do produto antes vendido, não foi expressa no índice eleito no contrato firmado, motivo pelo qual, judicialmente, há que se corrigir corretamente o saldo devedor do preço ajustado, de modo a ser mantida a base contratual, evitando-se assim a sua resolução por onerosidade excessiva.

Da perícia técnica a ser realizada, e do valor final a ser apurado para o convencimento do Juízo, ter-se-á o verdadeiro ajuste do preço combinado pelas partes à época da venda da unidade autônoma alienada, que será devido pelo adquirente, por força de decisão judicial.

 Conclusão

Diante deste cenário, é possível concluir que, guardada a paridade de relações, os contratos firmados no meio da construção civil são passíveis de revisão judicial, seguidos os trâmites e requisitos dos artigos 317, 478 e seguintes do Código Civil, desde que comprovada a anormalidade do aumento dos insumos, que não refletiria o cenário econômico, e nem seria possível a sua previsão quando da contratação entre as partes.

*Olivar Lorena Vitale Junior é advogado, sócio fundador do VBD Advogados, Presidente do IBRADIM, Membro do Comitê de Gestão da Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento de São Paulo (SMUL), Membro do Conselho de Gestão da Secretaria da Habitação do Estado de São Paulo, Conselheiro Jurídico do Secovi-SP e do Sinduscon-SP, Diretor da MDDI (Mesa de Debates de Direito Imobiliário), Membro do Conselho Deliberativo do Instituto Brasileiro de Direito da Construção - IBDiC,  Professor e Coordenador da UniSecovi, da ESPM-SP, da Especialização/MBA da POLI-USP, Professor da Escola Paulista de Direito - EPD, da Faculdade Baiana de Direito e de outras entidades de ensino.

**Regina Céli Silveira Martins é advogada, associada no VBD Advogados, pós-graduada em Direito Civil e Processual Civil pela Fundação Getúlio Vargas, membro da comissão de Contencioso Cível no IBRADIM.

__________

1 Disponível aqui

2 Disponível aqui.

3 Disponível aqui.

4 Disponível aqui.

5 SIMÃO, José Fernando. Código Civil Comentado. 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2020, pág. 394 e 395.