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IPCA x IGP-m: entre os abismos e os moinhos da pandemia

terça-feira, 27 de abril de 2021

Atualizado às 13:07

"Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não se tornar também um monstro. Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você". Essa passagem, em tradução livre, contida no livro "Para Além do Bem e do Mal", de Nietzsche, representa a grande preocupação que a comunidade jurídica tem apresentado no combate do monstro da pandemia pelos poderes da República.

A pandemia demonstrou o quanto pode se tornar maquiavélico o enfrentamento de um problema global, não em sentido pejorativo, mas sim de supressão de um racional na escolha dos meios, e sem solução aparente, nos remetendo aos mais primitivos temores da humanidade: a morte.

Temos que constatar e reconhecer que, salvo raras exceções, falhamos ou tardamos em estabelecer estratégias eficazes para lidar com crises, o que se prova pela constante adoção de soluções que indicam curta visão e longos problemas.

Feito este negativo preâmbulo, é de notório conhecimento a tramitação, no Congresso Nacional, do PL1026/21, que pretende pré-fixar o IPCA como índice de reajuste anual da locação residencial e comercial, sugerindo a inclusão de um parágrafo único ao art. 18 da Lei do Inquilinato:

"Art. 18 ..................................................................................... Parágrafo único. O índice de reajuste previsto nos contratos de locação residencial e comercial não poderá ser superior ao índice oficial de inflação do País medido pelo IPCA (Índice de Preço ao Consumidor Amplo), ou outro que venha substitui-lo em caso de sua extinção. É permitida a cobrança de valor acima do índice convencionado, desde que com anuência do locatário."(NR)

Aqui vale destacar alguns itens sobre os quais não se pretende a análise nestas linhas: (i) a incongruência da alteração, fixando o índice para depois tornar possível suposta dispensabilidade e (ii) a aplicação temporal da Lei, se aprovada (por mais que pareça clara a irretroatividade).

Prosseguindo, como passaremos a esclarecer, se trata de mais uma intervenção inconstitucional na economia, ferindo de morte a parte final do art. 174 da Constituição da República Federativa do Brasil ("CRFB").

O Constituinte foi claro em dizer que o Estado, "agente normativo e regulador", será determinante para iniciativa econômica pública e indicativo para a privada. Mas o que isto significa? Parece adequado o entendimento do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, para quem a intervenção estatal deve se ater a uma justificativa determinante, como o funcionamento anormal da iniciativa privada ou a necessidade de sua reorganização1.

Ademais, o Supremo Tribunal Federal reconhece que o Estado "deve para evitar intervenções na dinâmica da economia incompatíveis com os postulados da proporcionalidade e da razoabilidade"2, mostrando-se compreensivo apenas na presença de justificativas sólidas e marcante interesse social3.

Há alguns anos, vê-se um movimento, por parte do Poder Legislativo, de leitura míope da Constituição, em que se simula um confronto intransponível entre valores constitucionais, devendo um deles prevalecer pelo bem comum (seja lá qual for o seu significado). Como consequência, temos uma profusão de projetos de Lei demasiadamente intervencionistas.

Tal fenômeno também se verifica no Poder Judiciário. Todavia, nestas linhas, deixaremos de lado a apreciação do seu papel na equação desse enclosure da iniciativa privada.

A bem da verdade, essa polarização constitucional soa intuitiva. Na sua sustentação, apresenta-se comumente um discurso eloquente, moralmente afinado e capaz de carrear salvas de palmas, mas que pode impor danos irreparáveis ao tecido jurídico.

É de sabença que a escolha de valores constitucionais para solução de questões, notadamente no campo legislativo, não pode ceder a uma opção discricionária entre eles. Assim, não se deve buscar a prevalência, mas sim a sua aplicação simultânea, compatibilizada e harmônica4.

Sob a lente do equívoco da polarização constitucional, o PL debatido transforma o IGP-M em um "monstro-moinho" da pandemia, seu inimigo número um. Assim, em uma versão quixoteana do direito social à moradia e na sua necessária proteção, afirma, sem nenhuma base racional, que o IPCA é o índice eleito para supostamente salvaguardá-lo, sob a alegação de que o IGP-M se apresentou demasiadamente elevado no período pandêmico.

Como dito, esta solução, oriunda de uma leitura enviesada da CRFB, ignora a premissa da ordem econômica levantada no princípio deste ensaio, que coloca o Estado no exercício das funções de fiscalização, incentivo e planejamento, mas não de interventor ilimitado5.

É preciso respeitar a máxima de Carlos Maximiliano, repetida pela jurisprudência nacional6, que dizia que não se pode presumir a inutilidade das palavras na Lei, especialmente aquelas proferidas pelo Constituinte. É preciso respeitar, ao menos, o núcleo semântico do vernáculo.

Ao afirmar que o Estado é indicativo para a inciativa privada, é aberrante imaginar que poderia o legislador intervir como quisesse em dinâmicas contratuais.

Por óbvio, não se pode esquecer do direito social à moradia, devendo o Estado fiscalizar abusos, incentivar formas mais econômicas de locação (talvez a social) e planejar políticas públicas habitacionais. Porém, sua invocação não autoriza uma intervenção direta no plano legislativo sobre o preço e sua rentabilidade, aspectos pactuados pelas partes em um contrato civil, presumidamente paritário e, portanto, com igual proteção constitucional.

Parece-nos adequada a seguinte conclusão: não cabe ao Estado ditar regras de preço ou definir índices de seu reajuste, para a iniciativa privada, quando se está diante de nichos não regulados ou na ausência de fundamentos que autorizem a excepcionalidade.

E aqui é preciso afirmar que o mercado locatício não é mercado regulado, não se podendo admitir a interpretação de que a tipicidade contratual o elevaria a tal categoria. Claramente, não se nega a relevância social do contrato, mas tal constatação igualmente não autoriza a intervenção indireta na forma pretendida.

Necessário rememorar, que o reajuste do preço do aluguel, previsto na Lei do Inquilinato e na Lei nº 9.069/95, tem por objetivo histórico manter em dia o racional econômico (posto pelas partes) do contrato civil, evitando seu rompimento e garantindo, aí sim, o direito social à moradia e a legítima expectativa econômica das partes.

Não se pode admitir que, por uma argumentação populista, desprovida de razoabilidade ou proporcionalidade, se ignore o importante vetor econômico da locação imobiliária. Isto porque a locação de bens imóveis é um negócio típico, inserido em um mercado maduro, com práticas e costumes já consolidados.

Obviamente, o legislador pode (e deve) abordar questões acessórias e periféricas: periodicidade, condutas abusivas e normas protetivas, mas nunca ditar ou limitar a rentabilidade de uma operação, mais uma vez, presumidamente paritária, inclusive por novel diploma infraconstitucional7.

Sendo certo a imprescindibilidade de justificativa para a intervenção, nos deparamos com o fato de que não há fundamento jurídico em "congelar" o índice de forma perene, senão vejamos: (i) o IPCA é variável (podendo potencialmente ultrapassar o IGPM ou gerar deflação não esperada), bem como pode ter, a qualquer momento, seu método de cálculo modificado; (ii) não se pode equiparar os vetores econômicos da locação residencial e "comercial", ante a sua distinta natureza e razão econômica; (iii) a pandemia é circunstancial e passageira, por mais que não se possa precisar o tempo.

É marcante a contatação de que a escolha do IPCA carece de razoabilidade na medida em que não apresenta solução juridicamente aceitável para os fins preconizados e admitidos pela CRFB8. A baixa variação do IPCA não o torna o índice mais adequado, até, historicamente, já esteve mais elevado que o IGP-M. Assim, o que de fato pretende o legislador é, única e exclusivamente, reduzir a rentabilidade da locação, o que não pode ser admitido.

Um alerta: não se pode colocar panos quentes na verdadeira hecatombe que o COVID-19 se tornou, ceifando as vidas de milhares, sendo certo que qualquer medida que busque ironizar, menosprezar ou negar o seu significado e cicatriz na sociedade brasileira, beira atitude criminosa.

Contudo, analisando com a serenidade necessária a medida legislativa proposta, constata-se que, para além de não resolver o problema, cria uma solução equivocada e desproporcional; em outras palavras, tenta vencer um moinho com uma lança.

Noutro ponto, a irrazoabilidade do PL se caracteriza também no desprestigio dos remédios de intervenção judicial postos pelo legislador infraconstitucional para enfrentar eventuais descompassos produzidos por eventos imprevisíveis e extraordinários, com ampla aplicação concreta pelo Poder Judiciário.

É preciso compreender que a pandemia deve ser combatida, não regulamentada. Pode-se vislumbrar um regime transitório, mas nunca um regime geral, com consequências nocivas a posteriori.

Em uma abordagem mais consequencialista, pensando na política habitacional por exemplo, essa intervenção pode desestimular a oferta de imóveis para locação residencial, o que fortaleceria ainda mais as mazelas deixadas pela pandemia.

Em conclusão, por mais nobre que possa ser o intento das Casas Legislativas, intervenções dessa natureza flertam perigosamente com a subversão do espírito constitucional, vocacionado, acima de tudo, ao equilíbrio dos valores e direitos cuidadosamente construídos pelos Constituintes.

Devemos ser cautelosos e conscientes, pois o abismo tenta nos mirar e uma lança não vence moinhos.

*Carlos Gabriel Feijó de Lima é advogado. Professor convidado dos programas pós-graduação da UERJ, NUFEI e UCAM. Secretário-geral da Comissão Especial de Direito Imobiliário e Direito Urbanístico da OAB/RJ. Vice-presidente da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/RJ. Pós-graduado em Direito Privado Patrimonial e Direito Imobiliário.

**Vinicius Bragança é advogado. Presidente da Comissão de Litigation e Gestão de Contencioso da 57ª Subseção da OAB/RJ. OAB/RJ. Pós-graduado em Direito Processual Civil.

__________

1 BARROSO, Luís Roberto. A Ordem Econômica Constitucional e os Limites à Atuação Estatal no Controle de Preços. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, 226: 187-212, out./dez. 2001. Pág. 204-205.

2 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RECURSO EXTRAORDINÁRIO : RE 958252 MG - MINAS GERAIS.

3 Idem. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE : ADI 1950 SP - SÃO PAULO.

4 SARLET, Ingo Wolfgang apud LIMA, George Marmelstein, A hierarquia entre princípios e a colisão de normas constitucionais. Jus Navegandi. Teresina, ano 6, n. 54, fev. 2002.

5 Disponível aqui. Acessado em 21/04/2021.

6 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO: ARE 1002041-89.2018.8.01.0000 AC - ACRE.

7 Lei de Liberdade Econômica (lei13.874/2019).

8 BARROSO, Luís Roberto. "Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito constitucional". Caderno de Direito Constitucional e Ciência Política. Revista dos Tribunais. 23 ed. 1998. Pág. 71.