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O que a engenharia civil precisa aprender com a aviação civil

quinta-feira, 20 de maio de 2021

Atualizado às 09:34

A suspensão do uso dos aviões Boeing 737 Max 8 ao redor do mundo, por cerca de um ano e meio (entre 2019 e 2020), em razão de dois acidentes com aviões do mesmo modelo, deveria servir de exemplo para a engenharia civil e para a sociedade brasileira como um todo.

Por que?

Porque a criação e observância de procedimentos rígidos para a mitigação de riscos evita prejuízos desnecessários e, em diversas situações, pode salvar vidas, cujo valor é inestimável.

A aviação civil está sempre preocupada em identificar tudo que possa interferir em sua atividade e leva a segurança a sério não só na teoria, mas também na prática. Havendo dúvidas sobre a segurança daquela aeronave, ela simplesmente deixou de voar. Não há um "talvez". E o setor como um todo concorda e segue incondicionalmente a diretriz adotada. Há um esforço conjunto para corrigir o que se apresenta como um potencial problema, independentemente de quem seja o responsável ou de quem sofrerá as consequências de um possível acidente. Segue-se a determinação e trabalha-se para a obtenção de soluções.

Isso só se faz possível porque a aviação civil, em geral, trabalha muito bem com dois conceitos simples, que não podem se confundir: as figuras do perigo e do risco.

O perigo das atividades desenvolvidas no dia a dia é inevitável. Perigo sempre existirá e está presente em tudo que fazemos em nossas vidas. O grande problema é como nos relacionamos com ele.

O perigo está relacionado à natureza das coisas, sendo algo intrínseco à própria coisa ou atividade desenvolvida. O perigo é, de certa forma, inevitável. Mas, quando conhecemos o perigo e suas variáveis, podemos reduzir os riscos a que estamos expostos, tornando "administrável" o relacionamento mantido com ele. É o controle do perigo que traz segurança para nossas atividades. Daí a necessidade de procedimentos que sejam efetivamente respeitados.

É aqui que entra a figura do risco.

O risco está relacionado com a probabilidade de um acidente acontecer e varia de acordo com a exposição que se tem ao perigo. Ou seja, a probabilidade de ocorrer um acidente estará diretamente relacionada ao quanto você se expõe ao perigo sem os cuidados necessários.

Tomemos o "fogo" como exemplo, que é inegavelmente perigoso. O contato da pele com o calor do fogo causa ferimentos e, fora de controle, o fogo é capaz de destruir dezenas de quilômetros quadrados de florestas (vide o ocorrido na região do Pantanal em 2020). Mas o fogo também foi algo imprescindível para a evolução da humanidade e, atualmente, todas as residências são guarnecidas com fogões, que levam o seu manejo para dentro de nossas casas. Isso quer dizer que o fogo é perigoso por natureza. Mas, observados certos procedimentos e cuidados, o risco representado pelo fogo é tranquilamente administrável pelas pessoas.

No caso da aviação civil, o perigo é latente. Problemas durante o voo podem causar a morte de dezenas ou centenas de pessoas de uma vez só. Com esses fatores, é natural que haja uma preocupação absoluta com o manejo dos riscos envolvidos. Não é por outro motivo que, presente a figura do risco possivelmente relacionado diretamente a algum problema de um determinado modelo de avião, a sua utilização é imediatamente suspensa até que os riscos sejam reavaliados e novamente mitigados.

Presente dúvida sobre a causa dos dois acidentes aéreos, entendeu-se por reduzir o risco a zero: o modelo daquele avião deixou de voar em qualquer parte do planeta.

Esse tipo de preocupação a respeito do manejo de riscos deveria ser a prioridade do mundo contemporâneo. Mas a regra do que sê observa no Brasil, infelizmente, não é essa. A crença de que "Deus é brasileiro", de que tudo terminará bem e um desapego geral a regras e a procedimentos é a receita perfeita para acidentes como os que assombram o país de tempos em tempos, como no conhecido caso da "Boate Kiss", as repetidas tragédias de Mariana e de Brumadinho e o desabamento de edifícios inteiros, como no Rio de Janeiro (abril/2019) e em Fortaleza (dezembro/2019).

E o que esses eventos têm em comum? Nada mais nada menos do que o desprezo por regras técnicas de mitigação de riscos. Infelizmente, na prática, a observância a procedimentos que contornariam ou reduziriam os riscos a patamares insignificantes fica relegada a planos de pouca ou nenhuma preocupação. Talvez uma mistura de falta de fiscalização com a alegria Tupiniquim decorrente da falta de educação básica da sociedade como um todo contribua determinantemente para esse contexto.

Mas isso precisa mudar ou continuaremos vendo episódios trágicos com frequência. Essa é a crítica feita à engenharia, que assiste passivamente ao desrespeito de seus preceitos - que existem, mas não são cumpridos -, deixando a impressão de que está tudo bem.

Disso já nos alerta Tito Livio Gomide, especialista em inspeções prediais, há bastante tempo! Em seus artigos intitulados "Tragédia anunciada", já profetiza um iminente desfecho trágico para as construções que nos rodeiam porque, em regra, não sofrem qualquer tipo de manutenção.

Não deve ser novidade para ninguém que qualquer construção possui um prazo de vida útil e que, com o tempo, ela pode vir à ruína. Técnicas de manutenção periódica podem evitar o desgaste acelerado de estruturas e repor a sua funcionalidade ao longo do tempo.

A preocupação que a sociedade tem com a manutenção e revisão dos automóveis, curiosamente, não tem qualquer aplicação aos imóveis. O sujeito cuida perfeitamente de seu veículo, faz constantes manutenções, todo ano retorna à concessionária para realizar uma revisão, porque, afinal, não pode perder a garantia que acompanha o seu bem.

Mas esse mesmo sujeito compra um imóvel, que custa dez vezes mais do que um automóvel, e não é capaz de dedicar seu tempo para recompor o desgaste natural que o tempo provoca nesse bem que é tão caro ao brasileiro - "a casa própria".

A engenharia, de fato, possui regras para evitar o caos profetizado. Mas precisamos cumpri-las, antes que seja tarde demais! Não adianta ter procedimentos perfeitos se não forem aplicados. E não adianta apenas lamentar. É preciso fazer com que as normas sejam cumpridas.

Apenas como exemplo, podemos citar a NBR 5.674, válida desde 1999, e que trata do procedimento de "Manutenção de Edificações". "Esta Norma fixa os procedimentos de orientação para organização de um sistema de manutenção de edificações" e deveria servir como uma espécie de mantra para os condomínios. Mas aí surge a pergunta: quantos síndicos já ouviram falar desta norma? Quantos seguem algum procedimento de manutenção periódica e/ou preventiva no condomínio que administra?

A sociedade precisa perceber que todos têm papel importante e decisivo para contribuir reciprocamente com a segurança. O construtor deve empregar as técnicas necessárias para que as pessoas possam morar nas edificações construídas por ele. Mas o morador não pode se esquecer de que a forma como ele se relaciona com a sua moradia impactará na integridade de sua moradia. A construção é como uma corrida de revezamento, onde o usuário pega o bastão das mãos do construtor, mas deve continuar em movimento, dentro daquilo que dele se pode esperar, para que a linha de chegada seja alcançada.

Se algum risco não sopesado surgir no meio do percurso, medidas devem ser tomadas de forma breve e incisiva, para aquilo que já se sabe iminente não volte a ocorrer. Ilustrativamente, lembra-se o ocorrido em Londres, em 2017, em incêndio que destruiu um edifício residencial, deixando dezenas de vítimas fatais. Apurado que o revestimento utilizado na fachada, para dar maior conforto térmico à edificação, foi um grande vetor para as chamas, medidas imediatas foram adotadas por todo o território inglês. Nos dias que se seguiram ao incêndio, apurou-se que cerca de 600 edifícios possuíam o mesmo tipo de revestimento e uma força-tarefa foi constituída para que esses materiais fossem substituídos. Em poucas semanas, esse risco estava mitigado. Não foram apenas lamentos. As vozes técnicas foram ouvidas e respeitadas.

Devemos parar de achar que Norma Técnica não precisa ser seguida. O risco banal deve ser mitigado. É necessário criar mecanismos para exigir o cumprimento de regras de manutenção e a engenharia precisa querer ser ouvida e respeitada. Ou veremos cada vez mais presente a ocorrência das ditas "tragédias anunciadas".

*Fabio Tadeu Ferreira Guedes é mestrando em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Especialista em Processo Civil e em Direito Imobiliário pela PUC/SP. Fundador e colaborador do blog www.civileimobiliario.com.br. Membro Associado do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM.