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O Judiciário e a interpretação da alienação fiduciária de imóvel em garantia

terça-feira, 21 de setembro de 2021

Atualizado em 22 de setembro de 2021 13:30

Em quase vinte e cinco anos de vigência, não foram poucas as ameaças à exequibilidade da lei 9.514/97, especificamente ao instituto da alienação fiduciária de bens imóveis.

Nestas mais de duas décadas o Poder Judiciário foi o responsável por algumas das alterações legislativas que sucederam decisões inovadoras e regraram o procedimento extrajudicial de excussão do imóvel, como por exemplo a obrigatoriedade de intimação pessoal do devedor sobre as datas do leilão (artigo 27 §2º-A), ou a faculdade do devedor de purgar a mora até momento anterior à assinatura do auto de arrematação (artigo 26-A §2º), disposições incluídas na lei após jurisprudência consolidada no Superior Tribunal de Justiça.

Atualmente tramita na Corte Superior o Tema 1.095 que visa definir sobre a prevalência, ou não, do Código de Defesa do Consumidor na hipótese de resolução do contrato de compra e venda de bem imóvel com cláusula de alienação fiduciária em garantia.

O mote deste artigo, entretanto, não versa sobre o precedente vinculante que irá se formar com o julgamento do Repetitivo mas, apenas, sobre julgados isolados dos atuais Ministros do Superior Tribunal de Justiça que vêm atraindo a atenção dos advogados atuantes no contencioso imobiliário, que possam, talvez, futuramente se tornarem novas alterações legislativas.

Recentemente, sob a relatoria da ministra Nancy Andrighi, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu por negar provimento ao Recurso Especial nº 1.906.475/AM interposto pelo Banco Safra S.A., que, em resumo, objetivava a reforma de acórdão que negou provimento a apelo da própria instituição financeira, interposto contra sentença que decidiu dar provimento a pedido de anulação de leilão extrajudicial promovido por devedora fiduciante em razão da ausência de sua intimação pessoal sobre as datas dos leilões extrajudiciais.

No caso em comento, a devedora fiduciante esquivou-se ao recebimento da intimação pelo cartório de notas por três vezes, fazendo com que o credor promovesse à sua intimação por edital.

O fundamento do acórdão da Terceira Turma foi no sentido de que esta modalidade de intimação, pelo texto da lei, destina-se apenas a casos em que o devedor se encontre em local ignorado, incerto ou inacessível, o que não era o caso, e ainda, que a intimação por edital deveria ser precedida da tentativa de intimação via correspondência postal, o que também não havia sido tentado pelo credor.

O cenário fático do caso é um manual de instruções ao devedor de má fé: empréstimo à pessoa jurídica garantido por alienação fiduciária de imóvel de propriedade de uma das sócias, a qual se furta ao recebimento da notificação, não permite que o oficial se dirija ao seu apartamento para intimá-la e nem que o porteiro receba a intimação.

A despeito de o oficial do cartório de títulos e documentos ter fé pública, comumente presenciamos casos de nulidade de todo o procedimento pelo Poder Judiciário em razão de intimação "deficiente". No centro de tais discussões sempre reside a intimação por edital. A introdução do §3º-A ao artigo 26 pela lei 13.465/2017 acresceu à lei 9.514 a possibilidade de intimação por hora certa pelo oficial, e ainda o §3º já continha previsão de intimação via correio com aviso de recebimento. Tais medidas devem ser adotadas antes da intimação por edital a fim de evitar a nulidade posterior do procedimento.

Outro julgado que merece análise de seus fundamentos sobre possíveis desdobramentos futuros é o Agravo Interno em Recurso Especial nº 1.873.334/SP. Neste julgado, sob a relatoria do Ministro Marco Buzzi, a Quarta Turma entendeu por excluí-lo como representativo da controvérsia levantada no Tema 1.095, antes citado, porque na hipótese o devedor fiduciante não havia sido constituído em mora, mas sim solicitado a resolução contratual antes da inadimplência.

O ponto de atenção in casu seria a perigosa distinção realizada pela Turma a respeito da rescindibilidade a pedido do devedor daquela ocorrida pela inadimplência, indicando que haveria então possibilidade do STJ entender por equiparar a compra e venda garantida com alienação fiduciária a um compromisso de compra e venda.

Ainda neste assunto, a Terceira Turma no julgamento do Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 1757802/DF, de relatoria do Ministro Moura Ribeiro, entendeu por aplicar o Código de Defesa do Consumidor e autorizar a resolução da escritura pública de compra e venda de lote com alienação fiduciária em garantia, preterindo a lei 9.514/97, em razão da inadimplência da loteadora na entrega das obras, e desinteresse do adquirente na continuidade do contrato.

O acórdão, da mesma forma que o julgado de relatoria do Ministro Marco Buzzi anteriormente citado, entendeu que a resolução contratual a pedido do devedor fiduciante escapa da aplicabilidade da lei 9.514/97 em razão da redação do artigo 26: Vencida e não paga, no todo ou em parte, a dívida e constituído em mora o fiduciante...

Para os ministros, forma-se uma distinção da resolução contratual pela inadimplência do fiduciante, ocasião em que a lei 9.514 deve ser observada, e aquela pretendida antes da sua constituição em mora, quando então o contrato de alienação fiduciária seria passível de rescisão.

Registre-se que em ambos os casos a alienação fiduciária foi firmada com a empresa incorporadora e loteadora, e não com instituição financeira, situação em que não seria possível voltar ao status quo ante.

Em outra seara de discussão, o Ministro Luis Felipe Salomão, em seu voto vencido no julgamento do Recurso Especial nº 1.395.275/MG, dava provimento a recurso interposto por devedores fiduciantes sob o argumento da impenhorabilidade de bem de família, ainda que tais devedores tivessem dado o imóvel em garantia a pagamento de empréstimo contraído por pessoa jurídica cujo um dos devedores era sócio.

O julgado acima data de 2014. Em julgado mais recente, datado de 2019, o mesmo Ministro, como relator do Recurso Especial nº 1.595.832/SC, revisou seu posicionamento anterior e desta vez rejeitou a proteção de bem de família a imóvel oferecido como garantia fiduciária de empréstimo. Contudo, anulou todo o procedimento extrajudicial de excussão do bem em razão de erro material na qualificação do credor fiduciário na notificação à purga da mora.

Explica-se: naquele caso concreto a Caixa Econômica notificou a devedora à purga da mora, porém, o instrumento de cessão de crédito com a instituição financeira financiadora que firmou o contrato com a devedora somente foi firmado e averbado na matrícula meses depois da notificação. A Caixa não era, formalmente, detentora do crédito à época do início do procedimento extrajudicial.

Neste caso, o Ministro Salomão entendeu que a intimação deve seguir os mesmos requisitos intrínsecos ao processo, dentre eles, a legitimidade.

A lição que se extrai destes entendimentos isolados dos Ministros do Superior Tribunal de Justiça é a de que o exequente da garantia fiduciária deve estar atento aos procedimentos em seus detalhes mínimos, e antever possíveis alegações de nulidade, por vezes extrapolando as exigências legais, a fim de escapar de eventual invalidade completa do procedimento. Ocasião em que, inclusive, pode ocorrer a prescrição de parcelas executadas.

Notadamente o maior ponto de reflexão reside na resolução do contrato de alienação fiduciária a pedido do devedor antes de sua constituição em mora.

Caso se consolide o entendimento de que a alienação fiduciária é uma garantia apenas a um contrato de mútuo, e não também a um parcelamento do pagamento do preço pelo próprio vendedor, rasgando-se os ditames da lei, o próprio instituto da alienação fiduciária de imóvel em garantia, viabilizado pelas incorporadoras e loteadoras, restará ameaçado.