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As funções do Tribunal Marítimo - Parte I

quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Atualizado às 09:01

Em textos anteriores desta coluna, fiz várias referências ao Tribunal Marítimo (TM) e às suas funções.  A partir do texto de hoje, tentarei apresentar, de forma mais sistematizada, as funções exercidas por este Órgão, ainda desconhecidas de grande parte do público jurídico.  Neste primeiro texto, trarei uma visão panorâmica destas funções.

Embora as Constituições brasileiras não tenham feito referência expressa ao Tribunal Marítimo - salvo uma breve menção no art. 17 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1946 - sua existência sempre foi reconhecida, e suas funções tratadas em sucessivos atos normativos.  Inicialmente, pelos decretos da Década de 1930, até a lei 2.180/54 e suas várias alterações.

Examinando este conjunto normativo, as funções do TM podem ser, didaticamente, assim divididas:

1 - função registral;

2 - função sancionatória;

3 - função instrutória;

4 - função arbitral;

5 - outras funções administrativas não específicas.

As três primeiras funções podem ser tidas como típicas ou próprias do TM.  Obviamente, esta especificidade se refere à matéria própria do Tribunal, ou seja, a função "registral", embora exista em outros órgãos públicos (como INPI, CVM, tabelionatos, etc.), diz aqui respeito ao registro da propriedade marítima, que nenhum outro órgão pode exercer.  O mesmo se diga da função "sancionadora", relativa aos acidentes e fatos da navegação (AFN), e não a sanções em geral (também existentes em inúmeros outros órgãos administrativos).

A função registral do TM é definida no art. 13 da lei 2.180/541, sendo ainda objeto de lei específica sobre os registros marítimos2.

Vale referir, para evitar ambiguidades, a existência dos tabelionatos ou cartórios marítimos, competentes para o registro de atos, contratos e instrumentos, tal como definido no art. 10 da lei 8.935/943. Embora existam controvérsias sobre a natureza e a extensão de tal competência dos cartórios marítimos, que serão analisadas em outra oportunidade, há um razoável consenso de que não existe um conflito de atribuições entre essas serventias e o TM: enquanto os cartórios registram atos translativos de propriedade, o Tribunal registra a propriedade em si, exatamente a partir dos atos lavrados pelos primeiros.  Numa analogia com os bens imóveis - situação bem mais corriqueira e facilmente compreensível - em que os cartórios de notas lavram as escrituras, mas é o cartório de registro de imóveis quem efetivamente registra a propriedade (e por isso só existe um registro de imóveis competente para cada bem imóvel); o cartório marítimo lavra os atos (contratos, manifestações de vontade, instrumentos), e a transferência de propriedade, decorrente de tais atos, é que será objeto de registro pelo TM.

Merece referência, ainda na função registral, o Registro Especial Brasileiro (REB), criado pelo art. 11 da lei 9.432/974, que também deve ser feito pelo TM.

A função sancionatória do TM tem sua matriz principal na alínea "b" do inciso I do art. 13 da lei 2.180/54, dentro do contexto de "julgar os acidentes e fatos da navegação"5. Evidentemente, esse e outros dispositivos da Lei trazem funções ancilares a essa competência punitiva. Sem a definição da natureza e das causas do acidente ou fato (alínea "a"), não seria possível punir os agentes que o causaram.  Igualmente, sem a indicação dos responsáveis (primeira parte da alínea "b"), tampouco seria possível aplicar qualquer pena.

Hoje, encontra-se assentada a ideia de que a imposição de sanções não é função exclusiva do Direito Penal.  Também no âmbito do Direito Administrativo, a apenação é não apenas permitida como necessária para o exercício de várias funções estatais.  A Lei confere tal função punitiva ao TM, exatamente porque a navegação é função revestida de interesse público e a sua segurança se insere entre os valores sociais protegidos pelas normas repressivas.

A delimitação do âmbito da função sancionatória do TM depende da conjugação de dois fatores, consistentes em saber:

- o que o ordenamento jurídico define como "acidentes e fatos da navegação" (AFN) e

- quais comportamentos, comissivos ou omissivos, no âmbito dos AFN, são puníveis, ou seja, podem ser definidos como "fato típico" no âmbito da função sancionatória do TM.

O primeiro fator encontra definição na própria Lei 2.180/54, em seus arts. 14 e 156. Os termos listados na alínea "a" do art. 14 são definições técnicas das Ciências Náuticas. Alguns autores de Direito Marítimo trazem essas definições7, que não serão reproduzidas aqui, por desviarem dos objetivos deste artigo.  Não há controvérsias significativas sobre seu conteúdo.

O segundo fator, ou seja, a "tipificação" dos comportamentos puníveis pelo TM, parece encontrar previsão nos arts. 121 e 122 da Lei 2.180/54, embora o dispositivo tenha a  função de definir penas e não tipos. Veja-se:

Art. 121. A inobservância dos preceitos legais que regulam a navegação será reprimida com as seguintes penas: 

Art. 122. Por preceitos legais e reguladores da navegação entendem-se todas as disposições de convenções e tratados, leis, regulamentos e portarias, como também os usos e costumes, instruções, exigências e notificações das autoridades, sobre a utilização de embarcações, tripulação, navegação e atividades correlatas. (não destacado no original) 

Assim a tipificação das condutas puníveis pelo TM não está sistematizada apenas em sua lei, mas se encontra esparsa em outros diplomas normativos, predominantemente, na Lei de Segurança do Tráfego Aquaviário (LESTA, Lei 9.537/97) e no Regulamento Internacional para Evitar Abalroamentos no Mar (RIPEAM).

É importante referir que o RIPEAM não é um simples regulamento técnico, mas norma jurídica positiva e vigente no Direito Brasileiro, uma vez que foi incorporado pelo Decreto Legislativo nº 77, de 1974. Com relação à LESTA, vale ressaltar a delegação feita, pelo seu art. 4º8, à Autoridade Marítima, para editar normas regulamentares sobre a segurança da navegação.

Essas normas ficaram conhecidas como "NORMAN" (Norma da Autoridade Marítima), numeradas sequencialmente e divulgadas pela Diretoria de Portos e Costas da Marinha (DPC), como já referido anteriormente nesta coluna.

Porém, a função sancionatória do TM não se confunde com a atuação da Autoridade Marítima e seus delegados, ao aplicarem multas e outras sanções, diretamente aos infratores. A questão é muito bem esclarecida pelo próprio art. 33 da lei9. Assim, para ficar claro: a Autoridade Marítima e seus delegados podem, ao constatar uma infração, autuar e aplicar diretamente a sanção ao infrator, obviamente observado o devido processo legal administrativo, como determina o art. 22 da LESTA10. Não há, nesse caso, qualquer atuação do TM.  Se, no entanto, a infração ocorrer no bojo de um acidente ou fato da navegação, a penalidade, se cabível, será aplicada no âmbito do processo do Tribunal Marítimo, no exercício de sua função sancionatória.

A função instrutória do TM consiste na apuração dos acidentes e fatos da navegação, e sua interpretação à luz das normas técnicas e jurídicas, de modo a determinar circunstâncias, causas e culpas dos acidentes. 

Essa função instrutória não se confunde com a função sancionatória, uma vez que seu resultado terá, em princípio, natureza informativa, e tem como destinatário o Poder Judiciário ou juízo arbitral, que tomará a decisão do TM como prova. O valor dessa prova - e mesmo sua natureza, ou seja, se é realmente prova, parecer técnico ou julgamento jurídico - é matéria altamente controversa.

A frequente confusão que se faz entre a função sancionatória e a função instrutória decorre do fato de que ambas se desenrolam no mesmo processo, que apura acidentes e fatos da navegação, e se encerram no mesmo acórdão. À luz do Direito Constitucional, todavia, especialmente sob a lente da separação dos poderes, a diferença entre as duas funções é patente: uma representa o exercício de atividade administrativa sancionatória, em que o TM instrui o processo e aplica pena, enquanto a outra se encerra na instrução em si, e terá valor significativo para o exercício de outra função estatal, a judicial. A função instrutória tem sua matriz no muito controvertido art. 18 da lei 2.180/54, bem como em seu art. 1911.

A função arbitral do TM está prevista no art. 16 da lei 2.180/54, alínea "f"12. Esta função não gerou, até hoje, nenhuma controvérsia jurídica, quer na doutrina, quer na jurisprudência.  Isto não ocorreu porque o assunto seja simples, ou desprovido de importância, mas pelo singelo fato de que essa competência jamais foi exercida. Longe de ser simples ou desimportante, trata-se de tema complexo e fascinante, diante das inúmeras possibilidades práticas que representa, e das várias indagações jurídicas que, certamente, suscitaria se colocado em prática.

As funções aqui chamadas de "principais" (registral, sancionatória e instrutória), e mais a função arbitral, evidentemente, não esgotam todas as previsões, no direito positivo, de competências do TM.  Observando outras alíneas do art. 16 da lei 2.18013, podemos encontrar situações em que o TM pratica atos administrativos, stricto sensu, sem repercussão no Judiciário.  Alguns são meros atos de gestão interna (como nas alíneas "j" e "l"), em outros funciona como órgão consultivo, no interior do Poder Executivo (alínea "e") ou de aconselhamento governamental (alíneas "g" e "h"). Trata-se de meros atos administrativos, ainda que alguns deles sejam privativos do TM.

Feita esta breve apresentação inicial, com uma proposta de sistematização, tratarei, nos próximos textos desta coluna, de cada uma destas funções, com o exame das controvérsias jurídicas decorrentes do seu exercício.

__________

1 Art . 13. Compete ao Tribunal Marítimo:

II - manter o registro geral:

a) da propriedade naval;

b) da hipoteca naval e demais ônus sôbre embarcações brasileiras;

c) dos armadores de navios brasileiros.

2 Lei 7652/88:

Art. 3º As embarcações brasileiras, exceto as da Marinha de Guerra, serão inscritas na Capitania dos Portos ou órgão subordinado, em cuja jurisdição for domiciliado o proprietário ou armador ou onde for operar a embarcação. 

Parágrafo único. Será obrigatório o registro da propriedade no Tribunal Marítimo, se a embarcação possuir arqueação bruta superior a cem toneladas, para qualquer modalidade de navegação.

Art. 12. O registro de direitos reais e de outros ônus que gravem embarcações brasileiras deverá ser feito no Tribunal Marítimo, sob pena de não valer contra terceiros.

Art. 15. É obrigatório o registro no Tribunal Marítimo de armador de embarcação mercante sujeita a registro de propriedade, mesmo quando a atividade for exercida pelo proprietário.

3 Art. 10. Aos tabeliães e oficiais de registro de contratos marítimos compete:

I - lavrar os atos, contratos e instrumentos relativos a transações de embarcações a que as partes devam ou queiram dar forma legal de escritura pública;

II - registrar os documentos da mesma natureza;

III - reconhecer firmas em documentos destinados a fins de direito marítimo;

IV - expedir traslados e certidões.

4 Art. 11. É instituído o Registro Especial Brasileiro - REB, no qual poderão ser registradas embarcações brasileiras, operadas por empresas brasileiras de navegação.

§ 11. A inscrição no REB será feita no Tribunal Marítimo e não suprime, sendo complementar, o registro de propriedade marítima, conforme dispõe a lei 7.652, de 3 de fevereiro de 1988.

5 Art . 13. Compete ao Tribunal Marítimo:

I - julgar os acidentes e fatos da navegação;

a) definindo-lhes a natureza e determinando-lhes as causas, circunstâncias e extensão;

b) indicando os responsáveis e aplicando-lhes as penas estabelecidas nesta lei;

c) propondo medidas preventivas e de segurança da navegação;

6 Art . 14. Consideram-se acidentes da navegação:

a) naufrágio, encalhe, colisão, abalroação, água aberta, explosão, incêndio, varação, arribada e alijamento;

b) avaria ou defeito no navio nas suas instalações, que ponha em risco a embarcação, as vidas e fazendas de bordo.

Art . 15. Consideram-se fatos da navegação:

a) o mau aparelhamento ou a impropriedade da embarcação para o serviço em que é utilizada, e a deficiência da equipagem;

b) a alteração da rota;

c) a má estivação da carga, que sujeite a risco a segurança da expedição;

d) a recusa injustificada de socorro a embarcação em perigo;

e) todos os fatos que prejudiquem ou ponham em risco a incolumidade e segurança da embarcação, as vidas e fazendas de bordo.

f) o emprego da embarcação, no todo ou em parte, na prática de atos ilícitos, previstos em lei como crime ou contravenção penal, ou lesivos à Fazenda Nacional.

7 Assim, J. Haroldo dos ANJOS e Carlos Rubens Caminha GOMES, em explicações completas e detalhadas (Curso de Direito Marítimo. Rio de Janeiro: Renovar, 1992, p. 83-105), e Eliane Octaviano MARTINS (Curso de Direito Marítimo, vol. III: contratos e processos. Barueri: Manole, 2015.op. cit., p. 739 e 749-775). 

8 Art. 4° São atribuições da autoridade marítima:

I - elaborar normas para:

[Segue-se uma longa lista de alíneas que relaciona os temas das normas, que não será transcrita aqui]

9 Art. 33. Os acidentes e fatos da navegação, definidos em lei específica, aí incluídos os ocorridos nas plataformas, serão apurados por meio de inquérito administrativo instaurado pela autoridade marítima, para posterior julgamento no Tribunal Marítimo. Parágrafo único. Nos casos de que trata este artigo, é vedada a aplicação das sanções previstas nesta lei antes da decisão final do Tribunal Marítimo, sempre que uma infração for constatada no curso de inquérito administrativo para apurar fato ou acidente da navegação, com exceção da hipótese de poluição das águas.

10 Art. 22. As penalidades serão aplicadas mediante procedimento administrativo, que se inicia com o auto de infração, assegurados o contraditório e a ampla defesa.

11 Art. 18. As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário. Art. 19. Sempre que se discutir em juízo uma questão decorrente de matéria da competência do Tribunal Marítimo, cuja parte técnica ou técnico-administrativa couber nas suas atribuições, deverá ser juntada aos autos a sua decisão definitiva.

12 Art . 16. Compete ainda ao Tribunal Marítimo:

f) funcionar, quando nomeado pelos interessados, como juízo arbitral nos litígios patrimoniais consequentes a acidentes ou fatos da navegação;

13 Art . 16. Compete ainda ao Tribunal Marítimo:

e) dar parecer nas consultas concernentes à Marinha Mercante, que lhe forem submetidas pelo Govêrno.

g) propor ao Govêrno que sejam concedidas recompensas honoríficas ou pecuniárias àquêles que tenham prestado serviços relevantes à Marinha Mercante, ou hajam praticado atos de humanidade nos acidentes e fatos da navegação submetidos a julgamento;

h) sugerir ao Govêrno quaisquer modificações à legislação da Marinha Mercante, quando aconselhadas pela observação de fatos trazidos à sua apreciação;

j) dar posse aos seus membros e conceder-lhes licença;

k) elaborar, votar, interpretar e aplicar o seu regimento.

l) eleger seu Vice-Presidente.