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Migalhas Marítimas

Temas e aspectos do Direito Marítimo.

Sérgio Ferrari, Luis Cláudio Furtado Faria, Marcelo Sammarco e Lucas Leite Marques
4 - A Prova da Culpa e o Peso das Decisões do Tribunal Marítimo Outro ponto que se destacou na análise dos julgados sobre abalroação foi a questão probatória.  De um modo geral, o Poder Judiciário se ateve ao elenco clássico do Código de Processo Civil (CPC): prova testemunhal, documental ou pericial. Neste tema, todavia, é essencial ter em conta o que consta da lei 2.180/54, que instituiu o Tribunal Marítimo (TM), especialmente os seguintes dispositivos: Art. 18. As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário. Art. 19. Sempre que se discutir em juízo uma questão decorrente de matéria da competência do Tribunal Marítimo, cuja parte técnica ou técnico-administrativa couber nas suas atribuições, deverá ser juntada aos autos a sua decisão definitiva.  O tema já foi extensamente tratado nesta Coluna, tanto em textos deste autor como de outros que aqui escreveram, aos quais remetemos o leitor. Na jurisprudência, porém, não se tem uma posição unânime, e nem mesmo clara, na maioria das vezes, sobre o valor das decisões do TM nos processos judiciais.  O julgado a seguir, do TJAM, parece ter aplicado corretamente o o art. 18 da Lei 2.180/54, conforme parte da ementa que interessa a esse subtema: "EMENTA I: APELAÇÃO CÍVEL - DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL - PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE ATIVA PARCIAL - QUESTÃO QUE SE CONFUNDE COM O MÉRITO - INEXISTÊNCIA DE INTERESSE RECURSAL - SENTENÇA DE PRIMEIRO GRAU FAVORÁVEL NESTE QUESITO - NÃO CONHECIMENTO - DANOS MATERIAIS - ABALROAMENTO DE EMBARCAÇÕES - TRIBUNAL MARÍTIMO - ÓRGÃO AUXILIAR DO JUDICIÁRIO - ARTS. 1º E 18, L. 2.180/54 - DECISÃO QUE GOZA DE PRESUNÇÃO RELATIVA - SINISTRO QUE SE DEU POR CULPA DE PREPOSTO DAS APELANTES - INEXISTÊNCIA DE PROVAS EM SENTIDO CONTRÁRIO."1 No corpo do voto do Relator, destaca-se a seguinte passagem: "Com efeito, nos termos do art. 1º da Lei 2.180/54, o Tribunal Marítimo, com jurisdição em todo o território nacional, é órgão administrativo autônomo, auxiliar do Poder Judiciário, vinculado ao Comando da Marinha, tendo como atribuições o julgamento dos acidentes e fatos da navegação marítima, fluvial e lacustre e as questões relacionadas com tal atividade, especificadas em lei. Já o art. 18 do mencionado diploma legal estabelece que as decisões do Tribunal Marítimo, quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação, tem valor probatório e se presumem certas, sendo, porém, suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário." O mesmo se observa em outro julgado daquela mesma Corte: "Não tendo o Apelante produzido ou requerido prova pericial, ou de outra natureza, apta a infirmar as conclusões traçadas no inquérito administrativo produzido pela Capitania dos Portos (fls. 16/46) assim como a sentença do Tribunal Marítimo no processo administrativo n. 23.443/2008 (fls. 209/213), ressai acertado o reconhecimento do dever de indenizar pelos danos derivados do acidente fluvial."2 (transcrição parcial da ementa) O mesmo prestígio à decisão do TM sobressai da seguinte ementa de acórdão do TJRJ (transcrição parcial): "Acórdão unânime do Tribunal Marítimo, concluindo que o acidente foi causado por imprudência do comandante do ferryboat. Acórdão precedido de minucioso inquérito instaurado pela Capitania dos Portos da Bahia e de Laudo de Exame Pericial Indireto. Nos termos do art. 18 da Lei nº 2.180/54, "As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário.""3 Do mesmo Tribunal (TJRJ) é o acórdão do qual se colhe o seguinte excerto: "Muito embora suscetíveis de revisão pelo Poder Judiciário, as decisões proferidas pelo Tribunal Marítimo têm força probatória e tem presunção de acerto, nos termos do disposto na Lei 2.180/54, com a redação dada pela Lei 9.578/97. E é nesta prova técnica, oriunda do Tribunal Marítimo, que a decisão deve ser baseada, não só por se tratar o Tribunal Marítimo de órgão autônomo e auxiliar do Poder Judiciário, que analisou a questão de forma cuidadosa e exaustiva, mas também porque - como esclarecido acima - a Apelante, instada a se manifestar sobre as provas que pretendia produzir, nada fez. E o Tribunal Marítimo concluiu pela responsabilidade do condutor da embarcação de propriedade da Apelante no abalroamento de que tratam os presentes autos."4 Por fim, reporte-se decisão do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina (TJSC), cuja ementa, apesar de excessivamente sintética, permite vislumbrar o prestígio da decisão do TM, como prova técnica que goza de presunção relativa de certeza: "RESPONSABILIDADE CIVIL. ABALROAMENTO ENTRE EMBARCAÇÕES. AFUNDAMENTO DE UMA EMBARCAÇÃO. PEDIDO VISANDO INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E LUCROS CESSANTES. (...) ACIDENTE ENVOLVENDO EMBARCAÇÕES. CAUSA DO ACIDENTE. DEPOIMENTOS CONFLITANTES DURANTE A INSTRUÇÃO. DECISÃO BASEADA NA CONCLUSÃO DO TRIBUNAL MARÍTIMO, QUE ENTENDEU QUE O SINISTRO OCORREU DEVIDO À IMPRUDÊNCIA DO AUTOR. POSSIBILIDADE."5 Apesar disso, foram encontradas também decisões, concernentes a casos de abalroação, em que não há qualquer referência a decisão do TM.  Não se sabe se isso ocorreu em razão de não ter sido instaurado o inquérito correspondente (o que parece pouco provável), ou se, simplesmente, as partes e o Juízo ignoraram aquela instância administrativa, que tem a maior importância. Mais criticáveis, todavia, são os casos em que o Judiciário simplesmente negou, velada ou indiretamente, a presunção de certeza contida no art. 18 da lei 2.180/54.  Veja-se, como exemplo, o seguinte julgado do TJ/RJ, que invoca - equivocadamente, na nossa opinião - o art. 13 da Lei, além de uma despropositada analogia com o Código de Processo Penal: 6 Incide no mesmo equívoco, a meu juízo, o extenso acórdão proferido pelo mesmo Tribunal (TJRJ), em embargos infringentes, ao apresentar uma visão reducionista do papel do TM, segundo a qual suas funções seriam meramente punitivas (art. 13 da Lei 2.180/54), e não de produção de prova (art. 18 da mesma Lei). O mais curioso, neste julgado, é que o Relator extrai tal entendimento do próprio art. 18, tendo como "desinfluente" a decisão administrativa: "As provas dos autos conduzem à manutenção do voto-vencido, porque foram produzidas duas perícias técnicas em juízo e ambas convergiram pela culpa exclusiva do comando do navio da embargada "NorSul Tubarão" pelo abalroamento ocorrido, sendo desinfluente aqui a conclusão atingida na esfera administrativa do Tribunal Marítimo a esse respeito, conforme o preceito do art. 18 da Lei que o rege (Lei nº 2.180/1954):"7 Vale dizer: o voto prevalecente fez verdadeira "leitura invertida" do art. 18 da Lei do TM, pois extrai, da ressalva contida em sua parte final, uma "presunção de incerteza" da prova administrativa, bastando a mera existência de uma prova judicial - qualquer prova - para desconstituir a validade da decisão do Colegiado Marítimo.  Mais equivocada ainda, com a devida vênia, é a afirmação que se segue, no mesmo acórdão: "Como se viu do decisum administrativo acima transcrito, nem mesmo o nome das empresas de navegação é referido, o que corrobora o anteriormente afirmado de naquele âmbito o foco é para as pessoas de marinha que comandavam as embarcações ou compunham as respectivas tripulações, enquanto que o aspecto de responsabilização civil é de somenos importância. Assim, as decisões definitivas do TRIBUNAL MARÍTIMO não têm o condão de produzir a res iudicata, posto que é um órgão para o exame de acidente e fatos de navegação, ainda que judicialiforme, mas com outra perspectiva que não a de atribuir responsabilidades outras que não sejam a de aplicar as punições aos seus "jurisdicionados", conforme art. 17, da Lei 2.180/54."8 Portanto, como já afirmado, afigura-se equivocada a linha jurisprudencial que vê nas decisões do Tribunal Marítimo mera função punitiva, sem qualquer grau de vinculação (nem mesmo uma presunção relativa) para o Poder Judiciário. 5 - Prescrição A questão da prescrição da pretensão indenizatória, nas hipóteses de abalroação, é igualmente controversa. No Código Civil de 1916, não havendo previsão expressa, as ações de reparação civil eram subsumidas à regra geral da prescrição vintenária, presente em seu art. 1779.  No atual Código Civil, há dispositivo expresso, estabelecendo o prazo de 3 anos para a prescrição das pretensões de reparação civil, conforme art. 206 § 3º, IV10.  Para os prazos que já estavam em curso no início da vigência do novo Código, foi estabelecida regra de transição, segundo a qual os prazos que ainda não tivessem chegado à metade (10 anos) recomeçariam a correr, por inteiro, na data da vigência do novo Código.  Para os prazos que já tivessem corrido por mais que a metade, naquela data, a contagem continuaria na forma do Código anterior. Nada obstante, como já assinalado, a Convenção de Bruxelas foi internalizada no Direito Brasileiro e, segundo seu art. 7º, a prescrição em tal situação ocorreria em 2 anos11. Nada obstante, foram encontrados poucos julgamentos em que esteve em questão alguma discussão sobre a ocorrência de prescrição.  Num antigo julgado do extinto Tribunal de Alçada do Rio Grande do Sul (TARS), foi afastada o prazo prescricional de 1 ano, previsto no Código Comercial, conforme acórdão assim ementado: "REPARAÇÃO DE DANOS. ABALROAMENTO DE NAVIOS. PRESCRIÇÃO. NÃO SE TRATANDO DE AVARIA SIMPLES, MAS DE AÇÃO DE REPARAÇÃO PELO PERECIMENTO TOTAL DO NAVIO ABALROADO, QUE AFUNDOU, NÃO SE APLICA O PRAZO DE PRESCRIÇÃO ÂNUA, PREVISTO NO ART. 449, 3 DO CÓDIGO COMERCIAL.  AÇÃO CIVIL."12 (transcrição parcial) O dispositivo do Código Comercial, referido na ementa, foi revogado pelo Código Civil, mas vigorava à época do fatos, com o seguinte teor: Art. 449 - Prescrevem igualmente no fim de 1 (um) ano: 3 - As ações de frete e primagem, estadias e sobreestadias, e as de avaria simples, a contar do dia da entrega da carga. Assim, entendeu o TARS, a nosso ver corretamente, que a "avaria simples" referida no dispositivo é a avaria ocorrida na relação derivada de um contrato de transporte, ou seja, de uma relação contratual comercial.  No caso de abalroação, a relação é extracontratual e, portanto, civil.  Cabe ressaltar que o entendimento ora manifestado não está em contradição com a posição assumida no item 1 deste trabalho, com relação à definição de "abalroação". A ausência de relação contratual, aqui, é importante na determinação do prazo prescricional, mas continua não tendo repercussão, segundo nossa opinião, na definição jurídica do que seja a "abalroação". Um ponto interessante, abordado em acórdão do TJRJ, é o que diz respeito ao termo inicial da prescrição, na pendência de processo no Tribunal Marítimo, diante do disposto no art. 20 da Lei 2.180/54: Art. 20. Não corre a prescrição contra qualquer dos interessados na apuração e nas conseqüências dos acidentes e fatos da navegação por água enquanto não houver decisão definitiva do Tribunal Marítimo. Dando correta aplicação ao dispositivo, assim decidiu o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) "A decisão do Tribunal Marítimo foi proferida no dia 16/outubro/2003. A parte ora Apelante ingressou nos autos no dia 29/junho/2006, suprindo sua citação. Assim, não há que se falar em prescrição.13 6 - Matéria técnica: a "culpa" à luz do RIPEAM e a Teoria da "Last Clear Chance" Por fim, analisou-se em que medida os julgados teriam adentrado à matéria técnica, concernente às regras de navegação, para determinar a culpabilidade. Inicialmente, foi constatado que, na maioria dos julgados, entendeu-se, ainda que implicitamente (ou às vezes, permita-se dizer, inconscientemente), que essa matéria não era jurídica, mas eminentemente técnica e, portanto, dependente da produção de provas. Assim, como já analisado em textos anteriores, a decisão do TM tem papel fundamental, pois é tida, por expressa determinação legal, como prova, ou seja, como concernente à matéria de fato, ao determinar a culpa pela ocorrência da abalroação. No caso das decisões que afastaram, ou mitigaram, o valor da decisão do TM, recorreu-se a outras provas, em geral à perícia produzida em juízo, para concluir sobre a culpa. Ao adotar tal enfoque, o Poder Judiciário deixa de analisar, diretamente, as regras de navegação.  Tal postura, todavia, desafia uma reflexão, que deve ser, ao menos, levantada. O Regulamento Internacional para Evitar Abalroamentos no Mar (RIPEAM) foi incorporado pelo Decreto Legislativo 77, de 1974, e promulgado pelo Decreto (Presidencial) 80.068, de 02/08/1977. Constitui, portanto, norma jurídica interna e em vigor.  Assim, ao menos em tese, nada impede que seja aplicada diretamente pelo Poder Judiciário, ao apreciar as questões decorrentes de abalroações. Na verdade, na interpretação que parece mais razoável, tal caráter de norma jurídica do RIPEAM deve ser lido em conjunto com a Lei 2.180/54, ou seja, de que a aplicação e interpretação do RIPEAM, em caso de acidentes da navegação, cabe precipuamente ao TM.  Este é mais um motivo pelo qual entendo equivocadas, como já dito acima, as decisões que pura e simplesmente, afastam ou relativizam a importância das decisões do TM.  No entanto, não havendo processo administrativo no TM, ou afastadas suas conclusões (sendo infirmado por perícia judicial), o Magistrado pode e deve, no nosso entender, apreciar a aplicação, ao caso concreto, das regras contidas no RIPEAM. Neste sentido, alguns dos acórdãos analisados, ainda que não fazendo a análise aqui empreendida, de fato adentraram diretamente na aplicação do RIPEAM, como se vê dos excertos abaixo transcritos: "Após detida análise do feito e notadamente das disposições constantes do RIPEAM - Regulamento Internacional para evitar abalroamento no mar, em especial seu ANEXO III - disposições estas adotadas pelo Brasil em face do Decreto 55/78, estou, na esteira do voto do eminente Relator, provendo em parte o recurso da demandada. (...) Neste sentido é o mesmo RIPEAM quem apresenta as regras que estabelecem quais os sinais sonoros e de perigo (Regras 32 a 37), que nada mais constituem do que os sinais que as embarcações, nas mais variadas situações, devem utilizar para contatar, alertar ou avisar as demais embarcações acerca de suas intenções.O Anexo III do RIPEAM, estabelece as características técnicas que o material de sinalização sonora deve possuir."14 "APELAÇÃO CÍVEL. REPARATÓRIA A DANOS MATERIAIS (ACIDENTE MARÍTIMO), INACOLHIDA "A QUO". APELO: AFASTAMENTO DA TESE IMPRIMIDA POR RECORRENTE AO LUME ENCONTRAR-SE A EMBARCAÇÃO "IRACEMA V" REALIZANDO A FAINA DE DESEMBARQUE NA DRAGA "RECREIO DOS BANDEIRANTES" NO MOMENTO DO SINISTRO, ENGAJADA EM OPERAÇÃO DE DRAGAGEM, AO COMANDO DO COMANDANTE DA DRAGA, SOB PROTEÇÃO DOS ARTS. 3.G - 3.G.III E 18.A DO RIPEAM (REGULAMENTO INTERNACIONAL PARA EVITAR ABALROAMENTOS NO MAR), NÃO CONHECIDO SOBRE AVENTO CONTRÁRIO, DIANTE INOVAÇÃO RECURSAL. CULPA DA RECORRENTE NO EVENTO, DIANTE EVIDENCIADO CRUZAMENTO DE SUA EMBARCAÇÃO AO CANAL DE ACESSO AO PORTO, PELA TRANSPOSIÇÃO DE VIA PREFERENCIAL - SENTENÇA MANTIDA NO ASPECTO."15 Demonstrando, ainda, o alto grau de insegurança jurídica no tema, há interessante - para não dizer espantoso - acórdão prolatado pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), no qual, a par de não constar qualquer referência a decisão do Tribunal Marítimo (o que autoriza a presumir que não existiu ou simplesmente não foi considerada), tampouco a prova pericial, o Juiz adentra diretamente na análise técnica do acidente, embora deixando de aplicar, também, o RIPEAM.  Veja-se: "O Juiz que sentenciou o feito demonstrou seu convencimento com fundamento nos seguintes postulados: a) Havia baixa visibilidade na hora da colisão; b) A embarcação da União não tinha radar; c) A embarcação da União não tinha aparelho de ecobatimento; d) A embarcação estava em sua velocidade máxima, quando deveria tê-la reduzido em face das brumas; e) A embarcação navegava com apenas 02 tripulantes, quando o mínimo seria 03; f) A embarcação era equipada apenas com bússola, buzina e holofote como instrumentos de segurança relativos à situação presente; g) A embarcação não emitiu qualquer sinal sonoro mesmo navegando por vários minutos próximos às margens; h) A embarcação não tinha vigilante para evitar colisões; i) A tripulação não apresentava o Cartão de Tripulação de Segurança; k) A tripulação da embarcação efetivamente não detectou, em nenhum momento, a presença do barco abalroado; l) A embarcação estava próxima à margem e aos barcos fundeados; m) A trajetória da embarcação era no sentido centro-margem; n) O barco Laudson estava próximo à margem em local relativamente raso; o) O barco Laudson não tinha tripulação habilitada; p) O barco Laudson não acionou qualquer equipamento sonoro diante da aproximação perigosa da embarcação da União; q) O barco Laudson não tinha vigia para situações de risco; r) Todos os tripulantes do barco Laudson dormiam no momento da colisão;"16 Assim, salvo a existência de algum outro elemento não mencionado no acórdão - de cuja existência só se poderia saber com a consulta aos autos - parece que um processo relativo a abalroação foi decidido sem qualquer referência a decisão do Tribunal Marítimo, a prova técnica ou a regras do RIPEAM.  Em suma, teria ocorrido uma decisão baseada apenas no que "achou" o Magistrado, sobre a culpabilidade dos envolvidos, a partir da dinâmica dos fatos. Finalmente, há dois acórdãos do TJ/RJ, relativos ao mesmo processo (apelação e embargos infringentes), em que também foi abordado o RIPEAM.  Quanto a estes, porém, optou-se por analisar este aspecto em conjunto com a Teoria da "Last Clear Chance", que bem denota as peculiaridades do Direito Marítimo.  É o que se passa a fazer. Assim dispõem os itens II e III da Regra 8 do RIPEAM: "(II) Uma embarcação que estiver obrigada a não interferir com a passagem ou a passagem em segurança de outra embarcação, não estará dispensada dessa obrigação se, ao aproximar-se da outra embarcação, houver risco de abalroamento e deverá ao manobrar, respeitar integralmente as Regras desta parte. (III) Uma embarcação cuja passagem não deva ser impedida, continua plenamente obrigada a cumprir as Regras desta parte quando as duas embarcações se aproximam uma da outra, de modo a envolver risco de abalroamento." Estas regras veiculam um conceito bastante conhecido dos navegantes, mas que causa certa perplexidade para os leigos, e que poderia ser resumido da seguinte forma: no tráfego marítimo, não importa quem tem razão ou preferência; todos devem agir, com o seu máximo empenho, para evitar os acidentes. Assim, o fato de uma embarcação ter preferência, não significa que poderá simplesmente negligenciar o perigo da situação, confiando até o último minuto que a outra embarcação manobrará para lhe dar passagem.  O RIPEAM prevê procedimentos de aviso, sonoro, luminoso ou por rádio, e ainda, numa situação limite, que a embarcação faça uma manobra, ainda que tenha a preferência naquela situação. Esta circunstância guarda relação com a Teoria da "last clear chance", que é assim definida:  "The last clear chance rule was a common law rule which was developed to ameliorate the effects of the contributory negligence bar. Under this rule the plaintiff could recover notwithstanding his own negligence if the defendant had the last clear chance to avoid the accident but failed to do so."17 Assim, num acidente da navegação, se a embarcação com preferência teve uma última e nítida chance de evitá-lo, há que se reconhecer que terá uma parcela de culpa, ainda que menor e a ser apurada em cada caso concreto. Não cabe aqui, portanto, o raciocínio comum da responsabilidade civil, largamente empregado, por exemplo, nos acidentes de trânsito terrestre, em que o descumprimento das regras por um dos envolvidos é suficiente para atribuir-lhe integralmente a culpa.  No Direito Marítimo, repita-se, um dos princípios gerais é de que todos os navegantes têm igual responsabilidade em evitar acidentes, empregando todos os meios possíveis e razoavelmente esperados no caso concreto. Feita esta brevíssima explicação, passa-se à análise do caso específico, envolvendo a abalroação entre os navios "Norsul Tubarão" e "Global Rio". Segundo se depreende da leitura dos acórdãos, o "Global Rio" tinha a preferência de passagem.  Todavia, a tripulação do "Norsul Tubarão" não percebeu a situação de rumos cruzados, vindo a ocorrer rápida aproximação entre as embarcações.  Com isso, numa situação de risco iminente, o "Global Rio", apesar de ter a preferência, teria tentado uma última manobra, mas, por fazê-lo tardiamente e para o bordo errado, falhou em evitar a abalroação.  É o que sobressai de trecho da conclusão do IAFN, transcrito no acórdão da apelação: "Com base nisso, e em vários elementos subsidiários, o dito tribunal administrativo chegou à conclusão de que houve grave deficiência, acerca do navio Norsul Tubarão, por ter seu piloto permitido, que o barco seguisse por quase duas milhas marítimas, na velocidade de 11 nós, sem qualquer tipo de vigilância; constando que um "oficial de quarto" se ausentou do passadiço por cerca de 10 minutos, sem convocar o vigia, permanecendo no camarim de cartas (onde é redigido o diário de bordo). Chegou à outra conclusão, acerca do navio Global Rio, de ter seu piloto agido de forma correta, no rumo e na velocidade, buscando contato com a outra embarcação, quando a distância entre as duas era superior a três milhas. Mas teria havido falha, ao ser feita a manobra referida, quando a distância fora reduzida para meia milha. Teria seu piloto, destarte, por imperícia, também dado causa à colisão."18 A sentença teria reconhecido a culpa exclusiva da "Norsul Tubarão", em razão da violação às regras de preferência e à negligência da sua tripulação. Ao julgar a apelação, a 3ª Câmara Cível do TJ/RJ, todavia, reconheceu a existência de culpas concorrentes, em maior proporção para a embarcação que desrespeitou as regras de preferência, mas - e este é o ponto relevante - sem descurar da culpa, ainda que menor, da embarcação que, mesmo tendo a preferência, teve a chance de evitar o acidente, mas não o fez. Confira-se: "Os dois navios navegavam em rumos opostos, nos sentidos setentrional e meridional, ao longo do litoral bandeirante. Um deles, o da empresa ré e ora insurgente, desrespeitou a preferência de passagem do outro, da empresa autora e recorrida. Esta foi a causa principal da colisão. Mas o navio da empresa demandante, ao ser manobrado, o foi de modo imperito, no tempo retardado, em distância que não mais o permitia com segurança. Esta foi a causa secundária. Houve, sim, concorrência de culpas. Mas não em igual proporção. A não ser o afirmado pelos assistentes técnicos, e autores de pareceres, ligados à proprietária do "Norsul Tubarão", as expertises de primeiro e segundo grau, como também os fundamentos e as conclusões do Tribunal Marítimo e da Capitania dos Portos de São Paulo, convencem, a todas as luzes, que a responsabilidade, por culpa presumida, da ré e recorrente, foi mais intensa do que a responsabilidade, por semelhante culpa, da autora e apelada."19 Assim, ainda que não fazendo referência direta ao conceito, é certo que o acórdão prestigiou o que se poderia chamar de "princípio geral" do RIPEAM, que é a responsabilidade de todos os envolvidos que tinham a chance de evitar o acidente, e que, de certo modo, equivale à doutrina da last clear chance. Como houve um voto vencido (que, em linhas gerais, prestigiou a sentença), foram opostos embargos infringentes, julgados pela 10ª Câmara Cível.  O acórdão, já criticado acima (no que tange à valoração da prova produzida pelo Tribunal Marítimo), abordou, em linhas gerais, a questão da culpa concorrente, afastando expressamente as particularidades do Direito Marítimo e aplicando, ao acidente da navegação, soluções genéricas da Teoria da Responsabilidade Civil. Veja-se o que o voto condutor afirmou sobre a alegação da empresa proprietária do "Norsul Tubarão": "Por outro lado, argumentar, como faz a ora embargada NORSUL, desde a contestação (fls. 312 - 339 - vol. 2) que o navio "Global Rio", posto em situação de perigo pela negligência de preposto na condução de seu navio "NorSul Rio", teria a responsabilidade pelo abalroamento ocorrido porque não conseguiu safar-se a tempo de evitar o choque, é totalmente despropositado e, sem dúvida, completamente irrazoável, máxime em nosso País em que é francamente prevalente a já clássica doutrina da causalidade adequada, em detrimento da referida doutrina americana - the last clear chance -, conforme o grande mestre da responsabilidade civil - José de Aguiar Dias -, que de há muito nos ensina que prevalece entre nós a doutrina da causalidade adequada em detrimento daqueloutra que é prestigiada, mas nos Estados Unidos da América do Norte (...)" Entendemos equivocada tal fundamentação, na medida em que não se pode tomar, simplesmente, conceitos e princípios genéricos da responsabilidade civil e aplicá-los em ramo tão específico como o Direito Marítimo.  Aliás, sequer nos parece que se trate de uma contraposição entre a "Teoria da Causalidade Adequada" e a "Last Clear Chance Rule". Na verdade, a solução seria muito mais simples: o dever de empregar todos os meios ao seu alcance, para evitar o acidente, pode ser extraído da Regra 8 do RIPEAM, acima transcrita, e que, como também já demonstrado, é direito positivo vigente no Brasil. Neste passo, é ainda mais criticável que o acórdão tenha invocado justamente o RIPEAM, em outra passagem, para fundamentar sua conclusão, como se vê: "Assim, penso, que a conduta do comando do n/t "Global Rio" ao continuar a sua trajetória depois de avisar por meios de sinal sonoro e rádio ao graneleiro "NorSul Tubarão" a rota de rumo cruzado foi inteiramente legítima, atendendo, inclusive ao comando da regra nº 17, (a) (I): "Quando uma embarcação for obrigada a manobrar, a outra  deverá manter seu rumo e sua velocidade." (Sublinhei agora) Ora, doutos Colegas, pretender, como quer a ora embargada COMPANHIA DE NAVEGAÇÃO NORSUL imputar à parte contrária (GLOBAL TRANSPORTE OCEÂNICO S/A), neste episódio, até mesmo a exclusiva responsabilidade pela abalroação ocorrida é o mesmo que dizer: -"o outro navio se houve com culpa porque foi imperito ao tentar se safar da situação de perigo criada por mim!"" (os destaques são do original, assim como a observação entre parênteses, após a citação do RIPEAM) Levando ao limite o raciocínio subjacente a essa fundamentação, uma embarcação com preferência poderia assistir, impassível, à aproximação de outra, apenas esperando que o acidente se concretizasse, já que não teria mesmo nenhuma culpa.  Trata-se de conclusão absurda, que causa perplexidade em qualquer um que tenha um mínimo de vivência na navegação. Ora, se o Relator invoca o RIPEAM e se põe a interpretá-lo, como fundamento de sua decisão - o que, por si só, é uma atitude louvável, pelo que já defendemos acima - deveria ler o Regulamento em sua inteireza, como um sistema de normas que é.  Neste contexto, a citada regra nº 17 não poderia ser lida de maneira isolada, ou descontextualizada, mas de acordo com as diretrizes da já citada Regra nº 8 (parcialmente transcrita acima), que deve informar a interpretação de todo o restante do Regulamento. Por estas razões, enteno que o acórdão dos embargos infringentes não deu a melhor solução à lide.  Segundo a situação retratada nos autos, nos parece inadequada uma solução que atribua 100% da culpa a uma das embarcações (como, aliás, seria inadequado na maioria das abalroações, em que ambas as embarcações têm, em algum momento, como evitar o acidente).  A determinação do peso da culpa de cada embarcação, certamente, só poderá ser feita com profundo conhecimento do caso concreto, o que não é possível analisando-se apenas os acórdãos.  Nada obstante, a solução dada na primeira decisão do TM, assim como no acórdão da apelação, que distribui a culpa na proporção de 2/3 para uma embarcação e 1/3 para outra, aparenta estar mais próxima de uma solução justa, do que a sua atribuição integral à embarcação que violou às regras de preferência. 7 - Conclusão Pelo que foi visto brevemente neste artigo, o Judiciário brasileiro encontra-se despreparado para solucionar lides concernentes a abalroações, o que, aliás, ocorre com todas as matérias do Direito Marítimo. Temas que não deveriam gerar maiores discussões, como o valor da decisão do TM, ainda geram preocupantes controvérsias.  Isso, sem falar no puro e simples esquecimento de conjuntos normativos inteiros, como o Código Comercial, a Convenção de Bruxelas e o próprio RIPEAM. Nas lides de origem contratual, exatamente por isso, é muito comum a existência de cláusula compromissória, de modo a submeter o conflito à arbitragem, que terá muito melhores condições técnicas de dar uma solução justa.  Todavia, em tema de abalroação, é praticamente impossível a existência de cláusula compromissória, já que não existe relação contratual prévia entre as partes.  Nada obstante, ainda em tais situações, parece ser muito mais recomendável que as partes celebrem um compromisso arbitral, para uma solução mais rápida e tecnicamente aparelhada, do que deixar a solução a cargo do Judiciário, já que, como se viu nos acórdãos analisados, será muito mais demorada e com pouquíssimo conhecimento específico do Direito Marítimo. De todos os processos analisados, apenas o do TJRJ, discutido no item anterior, aprofundou o exame e as discussões sobre matérias essenciais ao deslinde de questões de abalroação, como o processo no TM e a aplicação do RIPEAM.  Ainda que não tenha dado a solução que me pareceu a mais correta (e por isso criticadas acima), aquele acórdão merece encômios por ter utilizado o instrumental correto para análise dos fatos. ______________ [1] TJAM, autos nº 0248677-43.2010.8.04.0001, apelação cível, Relator Desembargador Aristóteles Lima Thury, j. em 30/04/2015. [2] TJAM, Apelação Cível nº 0260745-59.2009.8.04.0001, Relatora Desembargadora Maria do Perpétuo Socorro Guedes Moura, j. em 28/07/2014, não destacado no original. [3] TJRJ, apelação cível 0322085-50.2010.8.19.0001, Relator Desembargador Ricardo Rodrigues Cardozo, j. em 31/07/2012. [4] TJRJ, apelação cível 0106898-98.2001.8.19.0001, Relator Desembargador Galdino Siqueira Netto, j. em 20/07/2010. [5] TJSC, apelação cível 1999.018323-8, Relator Desembargador Jorge Schaefer Martins, j. em 04/11/2004. Fonte: VIANNA, Godofredo Mendes, CARDOSO, Camila Mendes Vianna, MARQUES, Lucas Leite, op. cit., p. 27. [6] TJRJ, apelação cível 15144/99, Relator Desembargador Antônio Lindberg Montenegro, j. em 29/02/2000. [7] TJRJ, embargos infringentes 0169888-62.2000.8.19.0001, Relator Desembargador Pedro Saraiva de Andrade Lemos, j. em 03/09/2010. [8] idem. [9] Art. 177. As ações pessoais prescrevem, ordinàriamente, em vinte anos, as reais em dez, entre presentes e entre ausentes, em quinze, contados da data em que poderiam ter sido propostas. [10] Art. 206. Prescreve: § 3o Em três anos: V - a pretensão de reparação civil [11] Art. 7º, 1ª parte: "As acções de indemnização prescrevem no prazo de dois anos a contar do evento". (http://bo.io.gov.mo/bo/i/35/19/out01.asp#ptg) [12] TARS, apelação cível 184021665, Relator Juiz Luiz Fernando Koch, j. em 05/09/1984. Fonte: VIANNA, Godofredo Mendes, CARDOSO, Camila Mendes Vianna, MARQUES, Lucas Leite. op. cit., p. 27. [13] TJRJ, apelação cível 0106898-98.2001.8.19.0001, Relator Desembargador Galdino Siqueira Netto, j. em 20/07/2010. [14] TJRS (Primeira Turma Recursal Cível), recurso inominado 71003062445, Relator Juiz Ricardo Torres Hermann, j. em 25/08/2011. [15] Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (TJPR), apelação cível 4043876, Relator Desembargador Arno Gustavo Knoerr, j. em 20/08/2009. Fonte: VIANNA, Godofredo Mendes, CARDOSO, Camila Mendes Vianna, MARQUES, Lucas Leite, op. cit., p. 26. [16] TRF-1, apelação cível 1999.39.02.001093-7/PA, Relator Juiz Federal Convocado Osmane Antônio dos Santos, j. em 18/06/2013. [17] http://www.admiraltylaw.com/papers/MLA.pdf [18] TJRJ, apelação cível 56.146/2006, Relator Desembargador Luiz Felipe Haddad, julgado em 15/12/2009.   [19] Idem.  Vale observar que, nesta passagem, mesmo este esmerado e minucioso acórdão não escapou do uso incorreto da palavra "colisão", como destacado no item 2.1 deste trabalho. ______________ CAMPOS, Ingrid Zanella Andrade. Direito Constitucional Marítimo. Curitiba: Juruá, 2011. LACERDA, J. C. Sampaio de. Curso de Direito Comercial Marítimo e Aeronáutico, 4ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos. MARTINS, Eliane M. Octaviano. Curso de Direito Marítimo, vol.2, 1ª ed. Barueri: Manole, 2008. PIMENTA, Matusalém. Processo Marítimo: formalidades e tramitação. Barueri: Manole, 2013. RIPERT, Georges. Compendio de Derecho Maritimo. Tradução de Pegro G. San Martin. Buenos Aires: Tipografia Editora Argentina, 1954. REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito: situação atual. São Paulo: Saraiva, 1994. VIANNA, Godofredo Mendes, CARDOSO, Camila Mendes Vianna, MARQUES, Lucas Leite. Jurisprudência Marítima. Rio de Janeiro: Kincaid (edição própria, não catalogada), 2014.
A energia eólica offshore tem sido cada vez mais citada no país como uma alternativa eficiente e sustentável para a diversificação da matriz energética brasileira. Com os 7.367 km de costa e 3,5 milhões km² de espaço marítimo sob sua jurisdição, o Brasil possui uma plataforma continental extensa que confere características favoráveis para a geração de energia renovável utilizando a força do vento em alto-mar. Com o desenvolvimento do tema no País - em especial, com as discussões sobre a regulamentação da atividade pelo Congresso Nacional - outras questões também vêm surgindo e despertando debates entre players e autoridades. Dentre tais questões, e especialmente no setor marítimo, que interessa diretamente ao leitor desta coluna, destaca-se a regulamentação e o enquadramento regulatório das embarcações especiais que são empregadas na indústria offshore para a geração de energia eólica. Como anteriormente mencionado na coluna, tais embarcações estão diretamente relacionadas à instalação, operação, manutenção e descomissionamento das megaestruturas flutuantes utilizadas para geração de energia, executando tarefas complexas que permitem que o parque eólico funcione adequadamente - no que se inclui, por exemplo, o auxílio na instalação das próprias turbinas das torres eólicas. Muito embora o tema não tenha sido especificamente abordado pela legislação vigente, a jurisprudência da Agência Nacional de Transportes Aquaviários ("ANTAQ") tem se debruçado, cada vez mais, sobre a questão referente ao enquadramento normativo de tais embarcações especiais. É oportuno, assim, tratar do tema brevemente na presente coluna, em especial pelas relevantes discussões que ele deverá ensejar nos próximos anos.   II. O desenvolvimento do assunto na ANTAQ - enquadramento das embarcações que atuarão nos projetos de parques eólicos offshore No ano de 2022, a ANTAQ instaurou processo administrativo com o objetivo da elaboração de estudo sobre a geração de energia eólica offshore - em especial, "em forma de manifestação técnica, contendo aspectos regulatórios de navegação e portuários, bem como questões operacionais no Brasil e em outros países, visando subsidiar posicionamento superior a respeito" (Processo nº 50300.020618/2022-01). De acordo com a Nota Técnica 196 produzida no âmbito do Processo, haveria diversos tipos de embarcações que atuariam na fase de desenvolvimento dos parques eólicos offshore. A Nota cita particularmente as seguintes embarcações: off shore jack up installation vessels or wind turbine installation vessel (WTIV); heavy lift vessels; cable instalation vessels; multi-purpose vessels; e rock installation DP fall pipe. Ainda de acordo com a Nota, o corpo técnico da ANTAQ esclareceu que os desafios enfrentados para o desenvolvimento da indústria eólica offshore no Brasil seriam semelhantes àqueles enfrentados nos Estados Unidos. Isso porque a política mercante americana - denominada Jones Act - também seria uma política que privilegia utilização de embarcações de bandeira nacional, tal como ocorre no Brasil. Desse modo, um dos desafios para o crescimento dos parques eólicos residiria justamente no fato de que, tanto nos EUA quanto no Brasil, existirem poucas embarcações nacionais efetivamente aptas a atuarem na fase de desenvolvimento, operação e descomissionamento dos parques eólicos. Nessa linha, a Nota Técnica também pontuou que o ciclo de vida das usinas eólicas offshore seria similar às etapas da exploração offshore de petróleo e gás natural. Por essa razão, e considerando que as embarcações especiais que atuam no setor de óleo e gás estariam enquadradas na navegação de apoio marítimo - o que tem sido objeto de questionamento, como se verá adiante -- a Nota Técnica concluiu que as embarcações empregadas nos parques eólicos offshore também deveriam ser enquadradas como apoio marítimo. O processo, então, seguiu para a análise da Diretoria Colegiada, ocasião na qual a Agência proferiu o Acórdão nº 434/2023 no sentido de equiparar as embarcações utilizadas na operação dos parques eólicos offshore às embarcações empregadas na indústria de exploração de óleo e gás - firmando o entendimento de que as primeiras, a exemplo das segundas, também deveriam ser enquadradas no conceito de navegação de apoio marítimo. Vale dizer que essa não foi a primeira vez que a ANTAQ se posicionou dessa forma. No âmbito do Processo nº 50300.002301/2022-85, oriundo de consulta formulada por empresa de navegação, a Agência já havia proferido o Acórdão nº 499/22, por meio do qual concluiu que (i) "não há disciplina específica nas normas que tratam do Registro Especial Brasileiro - REB para o enquadramento do tipo de navegação realizado pelas embarcações que operam na exploração ou no desenvolvimento de atividade eólica", e (ii) "no caso concreto, para fins de enquadramento no REB, a navegação pretendida se enquadra como apoio marítimo". Ademais, a ANTAQ também tem adotado a interpretação extensiva do conceito de apoio marítimo para casos além dos relativos às embarcações empregadas em parques eólicos. Na realidade, tal entendimento da Agência também foi verificado no caso das embarcações de engenharia offshore, empregadas no setor de óleo e gás e que também foram enquadradas na categoria de apoio marítimo, por ocasião do Acórdão 604/22 e do Acórdão 472/23. III. Comentários sobre o entendimento adotado pela ANTAQ Considerando as repercussões desse enquadramento normativo, o que será abordado em maior detalhe adiante, é cabível e até mesmo necessária uma avaliação mais aprofundada e cuidadosa acerca do entendimento adotado pela ANTAQ em assunto tão relevante quanto o desenvolvimento de parques eólicos offshore. Afinal, existem questionamentos relevantes, tanto pelas empresas que atuam no setor de óleo e gás, quanto de energia eólica, exprimindo discordância quanto ao enquadramento normativo conferido pela Agência às embarcações especiais. Neste ponto, o que os agentes do setor contrários ao entendimento firmado pela ANTAQ defendem é que, seja pelas características inerentes às embarcações especiais, seja por força das diferentes atividades que desempenham, elas não poderiam ser enquadradas, simplesmente, na categoria de navegação de apoio marítimo, na forma do artigo 2º, VIII, da lei 9.432/971. Em apertada síntese, as embarcações especiais não atuariam realizando o "apoio logístico" a outras embarcações, tal como previsto na norma acima citada. Ao contrário, desempenhariam atividades específicas e mais complexas, tais como obras de engenharia submarinas sujeitas a contratos de EPCI e outras atividades que tornariam inviável o seu enquadramento na estreita categoria de apoio marítimo. Nesta classificação, deveriam estar incluídas apenas embarcações mais simples, fungíveis e similares entre si, que não se confundem com as complexas e sofisticadas embarcações especiais, em sua grande maioria de bandeira estrangeira.   A discussão quanto ao enquadramento normativo das embarcações especiais abrange efeitos práticos imediatos, que preocupam as empresas interessadas em investir no setor de geração de energia eólica do País. Isso porque o enquadramento das embarcações especiais como apoio marítimo acarretará, automaticamente, na sua sujeição ao procedimento de circularização para afretamento, nos termos da Resolução ANTAQ 01/15 - também já abordada anteriormente na coluna. Como se sabe, tal procedimento materializa a preferência de afretamento de embarcações de bandeira nacional (tal como esclarecido pela Nota Técnica 196 supramencionada) e implica em custos e procedimentos adicionais às empresas afretadoras de embarcações especiais. Em se tratando de embarcações tradicionalmente associadas ao apoio marítimo (como aquelas que fornecem apoio logístico a outras embarcações e instalações em alto-mar), a submissão ao procedimento de circularização é bastante conhecida e objeto de pouca controvérsia. Afinal, as embarcações de apoio marítimo de bandeira brasileira são mais numerosas, facilitando sua contratação pelas empresas afretadoras. Contudo, é no âmbito do afretamento das embarcações especiais, que realizam atividades complexas, como as que serão necessárias para o desenvolvimento de parques eólicos, que a submissão à circularização para afretamento mostra-se questionável de forma mais enfática. Especificamente, as empresas que necessitam afretar essas embarcações, em sua maioria de bandeira estrangeira, criticam a exigência de circularização - decorrente do enquadramento dessas embarcações na categoria de apoio marítimo, tal como decidido pela ANTAQ no acórdão anteriormente citado. Argumentam que a incerteza jurídica decorrente da necessidade de realização do procedimento de circularização poderá, a exemplo do que ocorre no âmbito da exploração offshore, acabar impactando projetos de implementação de usinas eólicas em alto mar, gerando custos adicionais e dificuldades operacionais para substituir a embarcação estrangeira originalmente contratada por uma embarcação brasileira. É que, dentro da lógica do procedimento de circularização, as empresas que desejem afretar embarcações especiais (em sua grande maioria, embarcações de bandeira estrangeira) devem, primeiro, lançar uma ordem de circularização por meio do sistema "SAMA" disponibilizado pela ANTAQ, para, então, verificar se há embarcação de bandeira brasileira disponível no mercado que preencha os requisitos para o afretamento. Em havendo essa disponibilidade, a embarcação brasileira irá lançar um bloqueio à circularização da embarcação de engenharia estrangeira, a fim de que a primeira, e não a última, seja a embarcação afretada pela empresa. Ocorre que, como tem se verificado no âmbito da exploração de óleo e gás offshore, a embarcação brasileira bloqueante nem sempre preenche os requisitos técnicos necessários para a execução do projeto para o qual será afretada, como argumentam as empresas do setor. Tal situação, para além de gerar atrasos no projeto com bloqueios que nem sempre se efetivam, também implica em custos para os armadores das embarcações especiais, que se veem obrigados a manter a embarcação inoperante - às vezes, por meses - até que a análise do bloqueio seja concluída pela ANTAQ. Ademais, a submissão do afretamento das embarcações especiais ao procedimento de circularização deveria também considerar particularidades operacionais que são verificadas especialmente no âmbito da implementação de projetos de geração de energia eólica offshore. A título de exemplo, é preciso avaliar se (i) tais embarcações especiais serão contratadas por meio de licitações, públicas ou privadas; (ii) se tal contratação envolverá uma análise prévia acerca da tecnologia e das especificidades da embarcação que vier a ser afretada; e (iii) se a embarcação especial será elemento essencial do projeto, não podendo ser substituída facilmente por embarcação de bandeira brasileira sem que haja impactos significativos, os quais podem até mesmo inviabilizar a execução da instalação e desenvolvimento do parque eólico. Como se não bastasse, é importante considerar se a mera possibilidade de paralisação dos projetos dos parques eólicos offshore em virtude de tais bloqueios, poderá comprometer a própria viabilidade da obra que se pretende executar. Afinal, trata-se de projeto complexos e específicos, não sendo recomendável que a sua execução seja interrompida para que outra embarcação, com características distintas, seja adaptada ao projeto, o que costuma gerar entraves e prejuízos operacionais, além da insegurança jurídica. No cerne de todas essas considerações, encontra-se, em última análise, a atratividade do País para investimentos e proprietários de embarcações estrangeiras. Nesse contexto, é preciso avaliar se o enquadramento das embarcações especiais que atuarão em parques eólicos na categoria de apoio marítimo, sujeitando-as consequentemente ao procedimento de circularização, não poderá criar obstáculos desnecessários ao desenvolvimento de tais projetos gerando desestímulo aos investimentos estrangeiros para geração de energia limpa no País. Por fim, ainda vale destacar que o entendimento prevalecente da ANTAQ, até o ano de 2013, era o de que as embarcações especiais não poderiam ser incluídas na categoria de apoio marítimo. Como formalizado por meio do Formulário de Proposição Normativa 05872812, a Agência entendia até aquele momento que, em razão de realizarem empreitadas e não serem empregadas em atividade de transporte aquaviário (muito menos de apoio marítimo/logístico), tais embarcações não dependeriam de prévia autorização para seu afretamento - não se sujeitando, portanto, ao procedimento de circularização. IV. Conclusão Em resumo, caso o entendimento atual seja mantido e não haja futuras alterações normativas, as embarcações especiais que atuarão nos projetos de implementação dos parques eólicos offshore poderão ficar sujeitas aos mesmos procedimentos de circularização e bloqueio aplicáveis às embarcações de apoio marítimo - com todas as consequências decorrentes dessa exigência, que é vista por diversas empresas do setor como fonte de custos adicionais e insegurança jurídica em relação a prazos, preços e execução de projetos complexos. O tema, assim, demanda reflexão aprofundada e sugere que o entendimento da ANTAQ sobre a classificação dessas embarcações seja revisitado para se alcançar um ponto de equilíbrio que atenda as demandas do setor e preserve a atratividade dos investimentos no país.   ____________ 1 Art. 2º Para os efeitos desta Lei, são estabelecidas as seguintes definições: VIII - navegação de apoio marítimo: a realizada para o apoio logístico a embarcações e instalações em águas territoriais nacionais e na Zona Econômica, que atuem nas atividades de pesquisa e lavra de minerais e hidrocarbonetos; 2 SEI/ANTAQ - 0587281 - Formulário para Proposição de Ato Normativo: "Considerando tratar-se de obra de engenharia submarina de grande porte (...) não cabe a esta Agência Nacional de Transportes Aquaviários - ANTAQ autorizar os afretamentos de embarcações para este tipo de serviço, não sendo, portanto, necessária a emissão do Certificado de Autorização de Afretamento."
Não são raras as vezes em que duas empresas se tornam, a um só tempo, credoras e devedoras uma da outra. Nesses casos, surge o questionamento acerca da possibilidade de a empresa detentora do maior crédito impor uma compensação de valores à outra. A compensação é disciplinada pelo Código Civil como um mecanismo indireto de pagamento. Em outras palavras, não há pagamento propriamente dito, muito embora o devedor seja liberado de sua obrigação. Nesse sentido, os artigos 368 e 369 do Código Civil elencam alguns pressupostos para que a compensação seja possível: Art. 368. Se duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e devedor uma da outra, as duas obrigações extinguem-se, até onde se compensarem. Art. 369. A compensação efetua-se entre dívidas líquidas, vencidas e de coisas fungíveis. Por sua vez, o art. 375 do referido diploma legal autoriza as partes a, por mútuo acordo, excluir ou, ainda, renunciar previamente à compensação. É dizer: as partes podem afastar, segundo sua vontade, a possibilidade de que seus créditos sejam compensados. Note-se que essa disposição vai ao encontro da lógica que rege as obrigações, uma vez que, em última análise, o devedor não é obrigado a compensar seu crédito, mas sim a pagar o montante devido. Não à toa, o legislador idealizou a compensação com o intuito de facilitar a relação das partes e, assim, evitar o inconveniente de um contratante pagar ao outro para, logo na sequência, receber um pagamento dessa mesma pessoa. Para além da compensação convencional, existem outras modalidades de compensação, a saber: i) a compensação judicial (i.e., imposta por decisão judicial) e ii) a compensação legal (i.e., imposta por força de lei). Nesses dois últimos casos, por óbvio, a compensação ocorre independentemente da vontade das partes.  A grande celeuma sobre o tema, contudo, acontece quando um dos contratantes fica à mercê de ver os valores que lhe são devidos em razão do objeto do contrato serem deduzidos ou compensados à força pela outra parte, sobretudo quando esta outra parte exerce posição dominante numa relação contratual que não se mostra, necessariamente, paritária e simétrica. Os contratos de afretamento típicos do direito marítimo, cujo objeto é a gestão, seja náutica e/ou comercial, de determinada embarcação, são terreno fértil para a discussão teórica proposta acima. Nos últimos anos, surgiram no Brasil inúmeras disputas relativas a contratos de afretamento onde, em sua maioria, a parte afretadora passou a aplicar unilateralmente determinadas multas às suas contratadas - fretadoras - impondo, ainda, que tais multas seriam de imediato deduzidas dos pagamentos devidos pelo afretamento nos meses subsequentes, numa forma de compensação. Não raro, tais multas sacadas unilateralmente pela parte afretadora ameaçavam ser compensadas sobre recebíveis futuros devidos à contraparte, mesmo quando sob impugnação administrativa e questionamento da parte contratada. Por conta disso, diversas empresas fretadoras buscaram - e ainda buscam - tutela jurisdicional objetivando receber integralmente o valor que lhes é devido pelo fretamento da embarcação e, ao mesmo tempo, afastar a controversa penalidade unilateralmente aplicada e auto executada pela contraparte no contrato, buscando o reconhecimento do descabimento da multa contratual questionada. Esse cenário tem sido comumente enfrentado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro na última década, tendo aquela Corte sido frequentemente instada a se manifestar sobre a legalidade ou não dessas compensações forçadas, considerando, sobretudo, os efeitos econômicos que elas podem ostentar. Ao longo dos anos, tem se consolidado a jurisprudência no sentido de que tais compensações manu militari afrontam o ordenamento jurídico, porquanto os atos de uma das partes contratantes não gozam de autotutela nem autoexecutoriedade. Em outras palavras, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro tem firmado posição no sentido de que as compensações de valores, em tais casos, representariam abuso de direito previsto no art. 187 do Código Civil. A Corte de Justiça do Rio de Janeiro também tem consolidado entendimento no sentido da impossibilidade de compensação de valores objetos de impugnação administrativa, dado que não se trataria de quantia certa e exigível, justamente por ser controvertida, de modo que os pressupostos dos artigos 368 e 369 do Código Civil não restariam atendidos. Para ilustrar o que se afirma, estima-se que, no período de 2011 a 2023, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro tenha julgado pelo menos 133 casos baseados em compensações pretendidas em contratos de afretamento desta natureza. E, desses casos, 109 (ou seja, 81,95%) foram favoráveis ou parcialmente favoráveis aos interesses das fretadoras contratadas. Citando um exemplo, confira-se a ementa abaixo transcrita: Apelação Cível. Direito Empresarial. Contrato de afretamento de embarcação celebrado entre a Petrobras e as autoras. Pretensão de que a ré se abstenha de aplicar descontos unilaterais sobre os recebíveis das operadoras como compensação pelos valores pagos no período em que as atividades da plataforma da cidade de Santos (FPSO Cidade de Santos) estiveram suspensas por ausência de tripulação mínima em serviço. Paralisação determinada em razão do número de funcionários afastados por COVID-19 bem como dos procedimentos necessários para o completo restabelecimento das atividades, dentre os quais a emissão de autorização pela ANP. Situação que havia ensejado o pagamento da remuneração parcial pela execução dos serviços (intitulada de "Taxa de Espera"), nos termos previstos nos ajustes firmados pelas partes, ante o enquadramento da paralisação como sendo decorrente de evento de força maior. Impossibilidade de a ré, posteriormente, e a manu militari, efetuar compensações nos referidos contratos. Conduta que configura exercício de autotutela, o que é vedado à demandada, submetida que está ao regime jurídico de direito privado. Possibilidade de parada de produção em razão do diagnóstico de casos da doença nessas unidades que foi prevista por entidades fiscalizatórias do setor (MPT, ANP e ANVISA), restando reconhecida a maior vulnerabilidade dos trabalhadores em atividade offshore. Cerceamento de defesa, ante a rejeição da produção de prova oral, consistente na oitiva de testemunhas, que não se reconhece. Suficiência probatória no tocante ao fato de situações como a ocorrida na plataforma em questão estarem classificadas como evento excepcional e de força maior. Inteligência do art. 370 do CPC. Sentença de procedência que se mantém. Recurso ao qual se nega provimento. (0125258-17.2020.8.19.0001 - APELAÇÃO. Des(a). HELENO RIBEIRO PEREIRA NUNES - Julgamento: 08/02/2022 - QUINTA CÂMARA CÍVEL) Na mesma linha, uma coletânea de julgados relativos a contratos de afretamento de embarcações se encontra compilada num capítulo específico dedicado ao tema "Afretamento", no Livro de Jurisprudência Marítima (link disponível aqui). Como visto, conquanto existam hipóteses de compensação forçada (judicial ou legal), essa modalidade de compensação somente é verificada em casos específicos. Como resultado, é o consentimento das partes que deve balizar a possibilidade ou não de compensação de créditos em uma relação contratual, sob pena de um dos contratantes ser forçado a compensar determinado valor por abuso de direito do outro. A lógica, portanto, é que alguém que manifestou discordância com a compensação de seus créditos não deve ser obrigado a compensá-los; caso contrário, legitimar-se-iam a autotutela e autoexecutoriedade, em hipótese incompatível com o ordenamento jurídico vigente.
Neste último artigo, fechando a trilogia de análise do acórdão proferido no Recurso Especial 1.988.894/SP, da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, sob a relatoria da ínclita Ministra Isabela Galloti, será abordada a questão quiçá mais controversa nos litígios envolvendo ações de ressarcimentos oriundas de seguros marítimos: a oponibilidade da cláusula de arbitragem às seguradoras. Inicialmente, é necessário recordar que a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, durante o julgamento, firmou o entendimento no sentido da paridade entre as partes contratantes descaracterizar a natureza de adesão do contrato de transporte, o qual, como é notório e sabido, se traduz no conhecimento de embarque (bill of lading). Com esteio na concepção de que as partes contratantes não são hipossuficientes, tanto no aspecto econômico quanto técnico, os ínclitos ministros concluíram que embora as cláusulas do bill of lading sejam estabelecidas em formulário, isto não implica na impossibilidade de negociá-las, sobretudo na prestação de serviço transporte marítimo de mercadorias de alto valor, como era o caso dos autos em debate. Jaz, nesse último ponto, a importância em inaugurar o presente artigo com essa recordação: se todos as partes contratantes se encontram em pé de igualdade no momento pré-contratual, há plena possibilidade de alteração e/ou exclusão de cláusulas de jurisdição, arbitragem ou mesmo limitação do quantum indenizatório por perdas e danos de carga durante a execução do transporte. Extensão a essa conclusão, aliás, deve ser concedida ao próprio contrato de seguro, traduzido em apólice de seguro, acobertando cargas milionárias e/ou operações logísticas milionárias ao custo de alta monta do segurado.  Nesse aspecto, como abordado no artigo anterior, os eméritos desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo destacaram que cláusulas compromissórias, tal como a arbitral, são praxe do mercado de transporte marítimo não sendo possível presumir desconhecimento da seguradora quanto a sua incidência em eventuais litígios oriundos desse modal. Bem dizer que, como bem pontuado pelo relator do acórdão originário, há precedentes no Tribunal Paulista reconhecendo de forma pacífica a previsibilidade da cláusula arbitral em litígios envolvendo transporte e seguro marítimo. Especial destaque ao acórdão de relatoria do desembargador Tasso Duarte1 no qual expressamente afirma que "a inserção de cláusula compromissória em conhecimento de transporte internacional é regra. Trata-se de cláusula padrão, sem que haja qualquer surpresa ou novidade para a seguradora".  É fundamental o reconhecimento da prévia ciência da seguradora, uma vez que acarreta a inarredável conclusão de que a cláusula compromissória arbitral consiste em risco predeterminado, a teor do quanto disposto no artigo 757 do Código Civil. Ainda sobre a temática da prévia ciência, reprisa-se, pelo brilhantismo da conclusão, a afirmação da Ministra Relatora Isabela Galloti que "(...) afastar a sub-rogação na cláusula arbitral, previamente exposta à aprovação da seguradora e de conhecimento de todos, implicaria submeter as partes do contrato de transporte marítimo ao arbítrio da contraparte na livre escolha da jurisdição aplicável à avença, pois depende única e exclusivamente da seguradora escolhida pelo consignatário da carga."  Aliás, é cada vez mais comum a inclusão de cláusula de arbitragem nas apólices de seguro de cobertura de altos valores, como era o caso em referência. Dessarte, com o devido respeito àqueles que defendem a não oponibilidade da cláusula de arbitragem à seguradora, quando sub-rogada nos direitos de seu segurado, não há logicidade em atestar apreço à modalidade de solução de conflito apenas quando lhe aprouve. Uma vez superadas as nulidades extrínsecas da oponibilidade da cláusula de arbitragem, restaria à 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça a análise quanto a higidez da entabulação contratual à luz da Lei n° 9.307/1996 e do Código de Processo Civil. Todavia, compreendeu-se que a análise esbarraria no impedimento contido na Súmula 07, adotando-se, via reflexa, a mesma linha de entendimento exarada pelo egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo de ser incumbência do juízo arbitral. O acórdão traz a lume, nesses termos, precedente nesse sentido em caso análogo que, pela relevância, aqui é transcrito: PROCESSO CIVIL. AGRAVO INTERNO. RAZÕES QUE NÃO ENFRENTAM O FUNDAMENTO DA DECISÃO AGRAVADA. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO DE FUNDAMENTOS AUTÔNOMOS. CONTRATO EMPRESARIAL. CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA. CONTRATO DE ADESÃO. REQUISITOS DO ART. 4º, § 2º, DA LEI 9.307/96. ANÁLISE DA NATUREZA JURÍDICA PELAS INSTÂNCIAS DE ORIGEM. NECESSIDADE. COMPETÊNCIA DO JUÍZO ESTATAL. SÚMULAS 5 E 7, DO STJ. RETORNO DOS AUTOS. (...) 4. No caso em debate, o Tribunal estadual entendeu que caberia ao próprio juízo arbitral analisar se o contrato seria de adesão ou não, a fim de verificar a validade da cláusula compromissória, de modo que, em razão dos óbices contidos nas Súmulas n. 5 e 7, do STJ, os autos devem retornar à origem para que se profira novo acórdão, à luz do entendimento desta Corte. 5. Agravo interno a que se nega provimento. (AgInt no AREsp n. 1.672.575/SP, relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, DJe de 30/6/2022.) (grifo nosso) Em verdade, a jurisprudência do colendo Superior Tribunal de Justiça reconhece, majoritariamente, a competência do árbitro para dirimir conflitos tangendo a higidez da cláusula compromissória arbitral. Ênfase ao ensinamento do Ministro Luis Felipe Salomão por ocasião do julgamento do Recurso Especial n° 1.278.852-MG: No caso dos autos, desponta inconteste a eleição da CAMARB como tribunal arbitral para dirimir as questões oriundas do acordo celebrado - o que indica forçosamente para a competência exclusiva desse órgão relativamente à análise da validade da cláusula arbitral, impondo-se ao Poder Judiciário a extinção do processo sem resolução de mérito, consoante implementado de forma escorreita pelo magistrado de piso; ressalvando-se, todavia, a possibilidade de abertura da via jurisdicional estatal no momento adequado, ou seja, após a prolatação da sentença arbitral. É interessante notar, por fim, que após o julgamento do acórdão cujos fundamentos são aqui debatidos, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça se debruçou sobre o tema e, expressamente mencionando o Recurso Especial 1.988.894/SP, afastou a alegação de nulidade da cláusula compromissória arbitral em virtude da natureza de adesão, reconhecendo a sua transmissão quando a seguradora se sub-roga nos direitos da sua segurada.  Em referido acórdão2, da lavra da Ministra Nancy Andrighi, consignou-se que "em conclusão aos argumentos lançados acima, defende-se que a sub-rogação prevista no art. 786 do CC/02 opera a transferência à seguradora dos direitos e ações que competiam ao segurado, incluindo as cláusulas acessórias e formas de exercício do direito de ação, entre as quais se insere a cláusula compromissória". Como debatido ao longo desses artigos, o julgamento histórico promovido no Recurso Especial 1.988.894/SP tende a render bons frutos, haja vista a robustez da sua fundamentação. Espera-se, assim, seja utilizado como importante instrumento à pacificação do entendimento sobre a cláusula compromissória ser oponível à seguradora sub-rogada nos direitos da sua segurada. Afinal, afastar a cláusula de arbitragem contraída pelo segurado sob o argumento de que os seus efeitos não se transferem ao segurador sub-rogado, é afrontar a força cogente que o compromisso arbitral impõe em razão do disposto na Lei de Arbitragem (lei 9.307/1996), bem como ao Protocolo de Genebra de 1923 (decreto 21.187 de 1932) e à Convenção de Nova Iorque de 1958 (decreto 4.311 de 2002). Referências: Diniz, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. São Paulo: Saraivajur, v. 3. Peluso, Cesar. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 7ª ed. Barueri, SP: Manole, 2013. Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil - Teoria Geral das Obrigações. 21ª edição, editada, revista e atualizada por Guilherme Calmon Nogueira de Gama. Forense, 2006. Venosa, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. São Paulo: Atlas, v. 2. Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996, Poder Executivo. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação 1011916-50.2018.8.26.0562. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação 9108101-03.2008.8.26.0000. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1988894/SP. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1424074/SP. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1189050/SP. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no AREsp 2214857/CE. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no AREsp n. 1.672.575/SP. __________ 1 TJSP, Processo n° 0149349-88.2011.8.26.0100, Relator Tasso Duarte Melo, Julgado em 11.02.2015. 2 Recurso Especial n° 2.074.780-PR.
O presente artigo abordará, inicialmente, as tutelas de urgência em arbitragens marítimas, à luz da Lei de Arbitragem (lei 9.307/96), especialmente em razão da regulamentação da Lei dos Portos (artigo 62, §1º da Lei nº 12.815/13), que passou a possibilitar ao direito marítimo/portuário a utilização da arbitragem como forma de resolução dos conflitos. Por fim, em razão da urgência nas medidas nas relações comerciais marítimas, o presente artigo discorrerá sobre o instituto do arbitro de emergência, já conhecido no cenário da arbitragem internacional, especialmente na Câmara de Comércio Internacional - CCI, sediada em Paris. Inicialmente é importante frisar que o decreto 10.025/2019 (que alterou o decreto 8.465/2015), regulamentou o §1º do artigo 62 da lei 12.815/13 - Lei dos Portos, facultando o uso da arbitragem para dirimir conflitos relacionados ao inadimplemento, pelas concessionárias, arrendatárias e operadoras portuárias no recolhimento de tarifas portuárias e outras obrigações financeiras perante a administração do porto e a Antaq, assim declarado em decisão final, impossibilita o inadimplente de celebrar ou prorrogar contratos de concessão e arrendamento, bem como obter novas autorizações. Ou seja, com a entrada em vigor da redação do artigo, possibilitou-se às empresas portuárias levar a discussão - após o encerramento da discussão na via administrativa - ao tribunal arbitral, buscando-se, assim, uma via mais célere e mais técnica para a solução da demanda. A arbitragem vem crescendo como meio alternativo, portanto, para a resolução de demandas no cenário nacional. São diversos os motivos pelos quais busca-se a arbitragem como via para resolução de conflitos, no lugar do de se buscar a solução pela via judicial, mas aqui, em razão foco estar no direito marítimo, chama-se atenção ao fato de que na arbitragem o árbitro utilizará de seu conhecimento agregado no âmbito da sua respectiva especialidade (no caso demandas do direito marítimo), pois o árbitro - via de regra - está totalmente familiarizado com o tema, solucionando o caso de forma mais equânime, através de sua própria experiência no assunto. Sobre o tema, a doutrina expõe o seguinte1: "Outro aspecto que contribui à celeridade do processo arbitral é o fato de o árbitro estar totalmente familiarizado com o tema pelo qual ele foi eleito para decidir, o que confere muito maior objetividade quando ele se depara com as alegações, argumentos e provas trazidas aos autos pelas partes. (...)Terceiro, a depender do caso, e sempre desde que respeitado o convencionado entre as partes, o árbitro pode decidir por equidade (Lei 9.307/96, artigo 2º, caput), possibilidade que inexiste no Judiciário. Em outras palavras, o juiz está totalmente adstrito às fontes formais da lei para decidir (lei, jurisprudência, doutrina, costumes), enquanto o árbitro pode lançar mão das máximas de experiência e de todo conhecimento adquirido no âmbito da sua respectiva especialidade, para equilibrar a relação econômica e jurídica(...)" Outra qualidade da arbitragem é a mitigação dos custos internos com a administração das disputas, considerando ser um caminho muito mais célere do que o processo judicial, eis que conforme artigo 23 da Lei de Arbitragem, o procedimento arbitral deve terminar após 06 (seis) meses, contados da instituição da arbitragem ou da substituição do árbitro, sabendo-se que a duração média de um processo judicial é de 4 (quatro) anos, sem contar o prazo para interposição de recurso aos Tribunais Superiores, segundo o Conselho Nacional de Justiça- CNJ2. Pois bem, importante destacar que o procedimento arbitral tem início com a instituição do tribunal arbitral (§1º, artigo 19, da lei 9.307/96), sendo certo que os árbitros, após a formação do tribunal arbitral, possuem competência para conceder medidas cautelares (parágrafo único do artigo 22-B da lei 9.307/96). A questão é que muitas vezes nas relações comerciais marítimas, nas quais o tempo é primordial, não há como se aguardar o regular trâmite para formação do tribunal arbitral e, consequentemente, a instituição da arbitragem, sob pena de se ter o direito fatalmente frustrado. Nesse sentido, a solução do legislador foi atribuir ao judiciário a prerrogativa para conceder as tutelas de urgência nesses casos, ou seja, antes de instituída a arbitragem, conforme artigo 22-A da lei 9.307/96, sendo certo que, uma vez constituído o tribunal arbitral ele passa a ter jurisdição exclusiva sobre a demanda, podendo, inclusive modificar, manter ou revogar a medida cautelar concedida judicialmente, a teor do artigo 22-B da Lei nº 9.307/96. Nesse sentido é o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça: "PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CAUTELAR. PRETENSÃO DE ASSEGURAR RESULTADO ÚTIL DE PROCEDIMENTO ARBITRAL FUTURO. CABIMENTO ATÉ A INSTAURAÇÃO DA ARBITRAGEM. A PARTIR DESSE MOMENTO, OS AUTOS DEVEM SER REMETIDOS PARA O JUÍZO ARBITRAL. RECURSO ESPECIAL PREJUDICADO. 1. As disposições do NCPC, no que se refere aos requisitos de admissibilidade dos recursos, são aplicáveis ao caso concreto ante os termos do Enunciado Administrativo nº 3, aprovado pelo Plenário do STJ na sessão de 9/3/2016. 2. A ação cautelar proposta na Justiça Comum para assegurar o resultado útil da arbitragem futura só tem cabimento até a efetiva instauração do procedimento arbitral. 3. A partir desse momento, em razão do princípio da competência-competência, os autos devem ser encaminhados ao Árbitro a fim de que este avalie a procedência ou improcedência da pretensão cautelar e, fundamentadamente, esclareça se a liminar eventualmente concedida deve ser mantida, modificada ou revogada. (...)3" Ato contínuo, no cenário internacional existe de forma sólida regulamentos de câmaras arbitrais, - a exemplo da  Câmara de Comércio Internacional - CCI, que será abaixo demonstrada - os quais trazem previsão do árbitro de emergência, figura responsável pela tomada de decisões mais imediatas, antes da instituição do tribunal arbitral, de modo que a jurisdição do árbitro de emergência se encerra a partir do momento que o tribunal arbitral efetivo é constituído. O artigo 29 do Regulamento de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Internacional - CCI - uma das mais relevantes do mundo -, sediada em Paris, confirma que o instituto do árbitro de emergência é uma realidade (positivada) no exterior. Veja-se o que lá dispõe: "Artigo 29 Árbitro de Emergência 1 A parte que necessitar de uma medida urgente cautelar ou provisória que não possa aguardar a constituição de um tribunal arbitral ("Medidas Urgentes") poderá requerer tais medidas nos termos das Regras sobre o Árbitro de Emergência dispostas no Apêndice V. Tal solicitação só será aceita se recebida pela Secretaria antes da transmissão dos autos ao tribunal arbitral nos termos do artigo 16 e independentemente do fato de a parte que requerer a medida já ter apresentado seu Requerimento de Arbitragem. 2A decisão do árbitro de emergência tomará a forma de uma ordem. As partes se comprometem a cumprir qualquer ordem proferida pelo árbitro de emergência. 3A ordem do árbitro de emergência não vinculará o tribunal arbitral no que tange a qualquer questão, tema ou controvérsia determinada em tal ordem. O tribunal arbitral poderá alterar, revogar ou anular uma ordem ou qualquer modificação a uma ordem proferida pelo árbitro de emergência. 4 O tribunal arbitral decidirá qualquer pedido ou demanda das partes relativo ao procedimento do árbitro de emergência, inclusive a realocação dos custos de tal procedimento e qualquer demanda relativa a ou em conexão com o cumprimento ou não da ordem. 5 Os artigos 29(1)-29(4) e as Regras sobre o Árbitro de Emergência previstas no Apêndice V (coletivamente as "Disposições sobre o Árbitro de Emergência") serão aplicáveis apenas às partes signatárias, ou seus sucessores, da convenção de arbitragem, que preveja a aplicação do Regulamento e invocada para o requerimento da medida. 6 As Disposições sobre o Árbitro de Emergência não são aplicáveis quando: a)  a convenção de arbitragem que preveja a aplicação do Regulamento foi concluída antes da data de entrada em vigor do Regulamento; b)  as partes tiverem convencionado excluir a aplicação das Disposições sobre o Árbitro de Emergência; ou c)  as partes tiverem convencionado a aplicação de algum outro procedimento pré-arbitral o qual preveja a possibilidade de concessão de medidas cautelares, provisórias ou similares. 7As Disposições sobre o Árbitro de Emergência não têm a finalidade de impedir que qualquer parte requeira medidas cautelares ou provisórias urgentes a qualquer autoridade judicial competente a qualquer momento antes de solicitar tais medidas e, em circunstâncias apropriadas, até mesmo depois de tal solicitação, nos termos do Regulamento. Qualquer requerimento de tais medidas a uma autoridade judicial competente não será considerado como infração ou renúncia à convenção de arbitragem. Quaisquer pedidos e medidas adotadas pela autoridade judicial deverão ser notificados sem demora à Secretaria" Nos termos do referido artigo, interpreta-se que a Parte, quando necessitar de medida urgente, sem que se possa aguardar a instituição do tribunal arbitral, poderá solicitá-la ao árbitro de emergência, mas só poderá, obviamente, antes da transmissão dos autos ao tribunal arbitral. A decisão do árbitro de emergência, por outro lado, não vinculará o tribunal arbitral quando instaurado, sendo que ele (tribunal) poderá alterar, revogar ou anular a ordem do árbitro de emergência. Importante, ainda, destacar que, nos termos do referido artigo, a instituição do árbitro de emergência não impede a Parte de requerer medidas cautelares a autoridade judicial, se preferir, não sendo considerada a opção de requerimento cautelar pela via judicial como renúncia à convenção de arbitragem, a despeito de, conforme a redação do artigo, uma vez que as Partes tiverem convencionado a aplicação de algum procedimento pré-arbitral, o qual preveja a possibilidade de concessão de medidas cautelares (como a judicial por exemplo), a disposição do árbitro de emergência será afastada. E em que sentido a previsão do árbitro de emergência auxiliaria nas demandas marítimas aqui no Brasil? A doutrina brasileira4 entende que a previsão do árbitro de emergência em convenção arbitral tem como efeito afastar a atuação do Poder Judiciário nas tutelas de urgência, fundamentando-se na previsão do artigo 22-A da Lei de Arbitragem5, diante da possibilidade de decisão célere pelo árbitro de emergência. Nesse sentido, como nas relações comerciais marítimas o tempo é determinante, o árbitro de emergência evitaria o deslocamento dos pedidos de urgência à via judicial, garantindo, aliás, às demandas marítimas - que muitas vezes envolvem valores expressivos- mais neutralidade e sigilo, que são características usuais dos procedimentos arbitrais. Conclusão. Como exposto neste artigo, com a entrada em vigor da redação do artigo 62, §1º na lei 12.815/13 - Lei dos Portos, possibilitou-se às empresas portuárias levar a discussão - após o encerramento da discussão na via administrativa - ao tribunal arbitral, buscando-se, assim, uma via mais célere e mais técnica para a solução da demanda. Como visto, o procedimento arbitral tem início com a instituição do tribunal arbitral (§1º, artigo 19, da lei 9.307/96), sendo certo que os árbitros, após a formação do tribunal arbitral, possuem competência para conceder medidas cautelares (parágrafo único do artigo 22-B da Lei nº 9.307/96). Porém, muitas vezes nas relações comerciais marítimas, nas quais o tempo é primordial, não há como se aguardar o regular trâmite para formação do tribunal arbitral e, consequentemente, a instituição da arbitragem, sob pena de se ter o direito fatalmente frustrado. Assim, a solução do legislador foi atribuir ao judiciário a prerrogativa para conceder as tutelas de urgência nesses casos, ou seja, antes de instituída a arbitragem, conforme artigo 22-A da lei 9.307/96, sendo certo que, uma vez constituído o tribunal arbitral ele passa a ter jurisdição exclusiva sobre a demanda, podendo, inclusive modificar, manter ou revogar a medida cautelar concedida judicialmente, a teor do artigo 22-B da lei 9.307/96. Por outro lado, no cenário internacional existe de forma sólida regulamentos de câmaras arbitrais, - a exemplo da Câmara de Comércio Internacional - CCI, que trazem previsão do árbitro de emergência, figura responsável pela tomada de decisões mais imediatas, antes da instituição do tribunal arbitral, de modo que a jurisdição do árbitro de emergência se encerra a partir do momento que o tribunal arbitral efetivo é constituído. No Brasil a previsão do árbitro de emergência evitaria o deslocamento dos pedidos de urgência para a via judicial, garantindo, aliás, às demandas marítimas, nas quais o tempo é fundamental - e que muitas vezes envolvem valores expressivos - mais neutralidade e sigilo, que, aliás, são características usuais dos procedimentos arbitrais. __________ 1 Direito da Arbitragem Marítima, José Gabriel Assis de Almeida e Sérgio Ferrari Filho, p.62. 2 Disponívfel aqui. 3 REsp n. 1.948.327/SP, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 14/9/2021, DJe de 20/9/2021 4 Lei de Arbitragem Comentada, Olavo Augusto Vianna Alves Ferreira, Matheus Lins Rocha e Débora Cristina Ferreira, pag. 319. 5 Art. 22-A.  Antes de instituída a arbitragem, as partes poderão recorrer ao Poder Judiciário para a concessão de medida cautelar ou de urgência.        
1 - Introdução Um dos grandes desafios na propagação do conhecimento e na aplicação prática do Direito Marítimo está na falta da chamada "experiência de vida", tanto de profissionais do Direito quanto da população em geral: não faz parte do dia-a-dia das pessoas, salvo aquelas que trabalham no ramo, os fatos que ocorrem no transporte aquaviário de bens e passageiros. Não por acaso, um dos exemplos mais utilizados para demonstrar este fato está no "acidente de trânsito".  Todos têm uma noção bastante clara, ainda que não técnico-jurídica, do que seja um acidente de trânsito, e é razoável dizer que quase todos já participaram ou presenciaram um acidente envolvendo veículos terrestres.  Ou seja, é um fato que faz parte da chamada "experiência comum" do homo medius, fundamental para que os juízes possam proferir decisões justas, independentemente do quanto possuam de conhecimento jurídico. Ocorre que, por outro lado, o exemplo também vale para demonstrar algo mais preocupante: quando um acidente semelhante ocorre entre embarcações, e as responsabilidades decorrentes são submetidas ao Poder Judiciário, a falta de experiência comum sobre o tema acaba levando a uma aplicação equivocada de conceitos mais genéricos do Direito Civil, e, até mesmo, do Código de Trânsito, para perquirir a culpa dos envolvidos.  Todavia, o Direito Marítimo tem conceitos próprios, não apenas técnicos, mas também jurídicos, que podem levar a soluções diferentes daquelas encontradas no Direito Civil, especialmente em temas como culpa concorrente e mitigação de danos. A partir destas premissas, este artigo analisará a "abalroação" (nome técnico da "batida" entre embarcações), expondo alguns conceitos básicos (aplicáveis, em alguma medida, a outros acidentes da navegação, como encalhe, varação, naufrágio, etc.) e examinando como estes conceitos foram trabalhados no Poder Judiciário brasileiro. Nesta primeira parte, será tratado o conceito de abalroação (e o vocabulário correspondente) e a legislação aplicável.  Na próxima coluna deste autor, na segunda parte, serão abordadas questões probatórias a prescrição. 2 - Conceito e nomenclatura A abalroação é uma modalidade de incidente da navegação na qual uma embarcação se choca contra outra.  Difere da colisão, em que a embarcação se choca contra alguma coisa diferente de embarcação. Sampaio de Lacerda, em obra clássica, depois de reconhecer que "segundo o conceito comumente adotado, abalroação é o choque de dois navios que navegam ou susceptíveis de navegar"1, formula um conceito próprio, em que se deveria acrescentar, a tal definição, o requisito de que "os navios que se chocam não estejam ligados entre si por algum vínculo contratual".  Este requisito é também adotado por Eliane Octaviano Martins2, ao passo que Matusalém Pimenta, além de não referir a "ausência de vínculo contratual" como parte deste conceito, entende, por outro lado, que a ocorrência de danos é parte essencial do conceito: "é o choque mecânico entre embarcações, desde que resulte em danos pessoais ou materiais, como condição sine qua non para determinação do acidente"3. Com o devido respeito aos clássicos da matéria, manifesta-se aqui a opinião de que a "ausência de vínculo contratual" não pode ser tida como parte do conceito de abalroação.  O fenômeno da abalroação é, antes de tudo, um fato.   Somente após a sua valoração pela norma jurídica, com a atribuição de consequências, é que se poderá qualificá-lo com fato jurídico4.  Assim, a existência, ou não, de vínculo contratual, não pode ser tomada como um elemento fático.  Em outras palavras: ainda que não existisse nenhuma norma jurídica regulando os contratos ou as relações jurídicas em tal situação, continuaria existindo a abalroação como fenômeno pré-jurídico, ou seja, como um fato.  Por esta razão, entende-se mais acertada a definição de Matusalém Pimenta, baseada apenas nos elementos fáticos, quais sejam, o choque mecânico, a presença de duas ou mais embarcações, e a ocorrência de dano. Nada obstante, como costuma acontecer com os institutos do Direito Marítimo em geral, o Poder Judiciário mostra extrema dificuldade no manuseio dos conceitos básicos desse ramo da Ciência Jurídica.  Assim, como se verá a seguir, muitas vezes é utilizada a palavra "colisão" para designar uma "abalroação", em absoluta falta de técnica jurídica. Como anteriormente referido, e é de se lamentar, as decisões judiciais sobre o tema não apresentam um mínimo de rigor técnico no uso das expressões "abalroação" (às vezes "abalroamento") e "colisão". No Superior Tribunal de Justiça (STJ), há uma decisão monocrática que transcreve acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe (TJSE)5, em que consta o seguinte: "(...) suficiente para a adoção das medidas necessárias a impedir a colisão, mesmo tendo o navio de pesquisa hidrográfica preferência naquele percurso, (...) A sentença entendeu que a responsabilidade pelo abalroamento foi exclusiva do navio da Marinha do Brasil, sem qualquer interferência da embarcação vitimada."6 (não destacado no original) Como se vê, numa única decisão, foram utilizadas duas palavras diferentes para designar a "abalroação", mas em momento algum a palavra correta. Num outro acórdão mais recente, daquele mesmo Estado, incidiu-se no mesmo equívoco: "Alegou o autor/recorrido que estava em via fluvial com sua canoa, quando outra embarcação, de propriedade do apelante, era conduzida em sua direção, em alta velocidade. Alega que a colisão entre ambas embarcações ocasionou lesões graves (...) quando perceberam que, em sentindo oposto, era conduzida, em alta velocidade, uma outra canoa, ocasionado a colisão das embarcações e diversas lesões na parte recorrida decorrentes do acidente."7 (não destacado no original) Já no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas (TJAM), tem-se situação semelhante: "Aduz que o acidente se deu em face da colisão da embarcação do Apelado contra a balsa, diante de circunstâncias que a Apelante não poderia evitar (...)"8 No Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJRS), o acórdão relativo a uma abalroação entre um jet ski e um jet boat (ambos, tecnicamente, "embarcações"), recebeu a seguinte ementa (transcrição parcial): "APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO REGRESSIVA. COLISÃO DE EMBARCAÇÃO. CULPA PELO ACIDENTE. DEVER DE REPARAÇÃO. Tendo a seguradora sub-rogado-se nos direitos do segurado em razão de acidente que este se envolveu com o réu, inegável o seu direito em postular o ressarcimento dos valores que despendeu. Prova dos autos que demonstrou a responsabilidade do requerido pela ocorrência do sinistro com a embarcação, mormente quando não possuía habilitação para conduzir o veículo e realizou brusca manobra que culminou com a colisão das embarcações. (...)"9 (não destacado no original) Também no Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5), lançou-se ementa com idêntico equívoco.  Veja-se sua transcrição parcial: "EMENTA: ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE ENTRE EMBARCAÇÕES MARINHAS. DANOS MATERIAIS CONFIGURADOS. DANOS MORAIS. NÃO CABIMENTO. SUCUMBÊNCIA RECÍPROCA. OCORRÊNCIA. 1. Hipótese de apelação e remessa oficial, em face de sentença que julgou parcialmente procedente o pleito autoral, objetivando a condenação da União em danos morais e materiais, em virtude de uma colisão entre o navio IVI, utilizado em atividades empresariais pela parte autora, e um navio de guerra da Marinha do Brasil."10 (não destacado no original)  Tem-se aí, então, uma questão que, embora singela, demonstra a pouca intimidade do Poder Judiciário brasileiro com as questões do Direito Marítimo, a dificultar até mesmo as pesquisas sobre o tema. 3 - Lei Aplicável Todos os casos pesquisados se referem a acidentes ocorridos em águas jurisdicionais brasileiras, e que, portanto, foram julgados à luz da lei brasileira. Nada obstante, o que mais sobressai dos julgados é a ausência de referências a normas definidoras de responsabilidade, no âmbito específico do Direito Marítimo, como aquelas constantes dos arts. 749 a 752 do Código Comercial e as da Convenção de Bruxelas (com força normativa no Brasil em razão da sua internalização pelo Decreto 10.773, de 1914).  A análise da responsabilidade se faz, quando muito, com referência ao Código Civil.  No mais das vezes, porém, os acórdãos se limitam a considerações doutrinárias ou genéricas sobre a responsabilidade civil, sem observar qualquer peculiaridade do Direito Marítimo. Veja-se, para confirmar a assertiva, as seguintes passagens de acórdãos: "Como cediço, para que se reconheça o dever de indenizar, necessário que se constate a presença de três elementos, quais sejam: a) conduta humana; b) dano ou prejuízo; e c) nexo de causalidade). (...)Desse modo, presentes as condições ensejadoras da responsabilidade civil, patente o dever de indenizar das Apelantes, em alinho com a disciplina do art. 932, III, do Código Civil Brasileiro, uma vez que os danos foram causados por ato culposo de preposto das Apelantes."11 (não destacado no original) "Não se vislumbra nenhuma violação ao art. 944, par. único do Código Civil, vez que ficou amplamente demonstrado que o abalroamento foi causado pela imprudência do comandante do ferryboat, sem nenhuma concorrência do comandante do navio da recorrida, que tinha prioridade de passagem. Por conseguinte, não prospera o pedido alternativo de redução do valor da indenização de acordo com o grau de culpa de cada parte, vez que a parte autora não concorreu para o evento danoso."12 (não destacado no original) "Portanto, tal conduta omissiva e culposa da tripulação do navio "NorSul Tubarão", ao deixar que o navio navegasse sem vigilância e não tendo efetuado a manobra imposta pelo Regulamento Internacional para Evitar Abalroamento em Alto Mar foi, sem dúvida, a causa adequada e determinante para a ocorrência da abalroação e os danos dele decorrentes, estando caracterizado o nexo de causalidade, na forma do art. 186 do Código Civil."13 (não destacado no original) Neste passo, vale destacar, ainda, algumas decisões que se apoiam na responsabilidade objetiva do Estado, com referência ao art. 37 § 6º da Constituição Federal, tão somente pelo fato de uma das embarcações envolvidas ser de propriedade da União Federal. Veja-se, como exemplo, o seguinte julgado do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5): "Por essa teoria, responsabilidade objetiva, o Estado é obrigado a indenizar os danos causados por seus agentes a terceiros, independentemente da comprovação de culpa. Apesar disso, para a caracterização da obrigação de indenizar, exige-se a presença de certos elementos. São eles: a) fato lesivo; b)causalidade material entre o eventos damni e o comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão) do agente público (nexo de causalidade) e c) dano."14 (não destacado no original) Manifesta-se aqui a opinião de que tal entendimento é, no mínimo, criticável.  Numa abalroação, deve-se antes de tudo perquirir o grau de culpa dos condutores de cada uma das embarcações, para então se determinar as responsabilidades.  Atribuir uma responsabilidade ao ente público, sem qualquer análise da culpa in concreto, e baseado tão somente nessa condição pessoal, leva a uma conclusão absurda: a de que acidentes idênticos poderão ter soluções diferentes, dependendo apenas da titularidade (propriedade) de uma das embarcações. Nada obstante, é interessante notar que um outro acórdão do mesmo Tribunal, porém mais antigo (1990), decidiu sobre fato bem semelhante (colisão entre embarcação de pesca e navio da Marinha de Guerra), apreciando o grau de culpa de cada um, sem considerações quanto a uma suposta responsabilidade objetiva do Estado. Confira-se a ementa: "ADMINISTRATIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL. ABALROAMENTO DE NAVIOS. CULPA RECÍPROCA. A PROVA DOS AUTOS EVIDENCIA A OCORRÊNCIA DE CULPA RECÍPROCA DA AUTORA E DA UNIÃO FEDERAL. Se o oficial de serviço no navio patrulha da Marinha de Guerra se houve com inexperiência, na ocasião do abalroamento, em contrapartida o barco pesqueiro não estava com iluminação ou qualquer sinal que denunciasse sua presença naquelas águas e, além do mais, seu comandante não se achava habilitado como patrão15, infringindo, assim, o artigo 349 do regulamento para o tráfego marítimo. Apelação e remessa oficial providas, em parte, para reduzir pela metade a indenização a cujo pagamento foi a apelante condenada."16 Como visto até aqui, ainda há muito o que avançar na difusão do conhecimento do Direito Marítimo, inclusive junto ao Poder Judiciário. Na próxima coluna, concluirei este tema, apresentado também algumas conclusões. __________ 1 LACERDA, J. C. Sampaio de. Curso de Direito Comercial Marítimo e Aeronáutico, 4ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1960, p. 318. 2 MARTINS, Eliane M. Octaviano. Curso de Direito Marítimo, vol. 2, 1ª ed. Barueri: Manole, 2008, p. 37-38. 3 PIMENTA, Matusalém. Processo Marítimo: formalidades e tramitação, 2ª ed. Barueri, Manole, 2013, p. 36.  O mesmo se pode extrair da lição do clássico de RIPERT, Georges. Compendio de Derecho Maritimo. Tradução de Pegro G. San Martin. Buenos Aires: Tipografia Editora Argentina, 1954, p. 311. 4 Referencia-se aqui a clássica teoria: REALE, Miguel. Teoria Tridimensional do Direito: situação atual. São Paulo: Saraiva, 1994. 5 Não se conseguiu localizar a decisão originária (TJSE), razão pela qual se está fazendo a citação indireta. 6 REsp 436.543-SE, Rel. Ministro Francisco Falcão, j. 25/04/2003.  Salvo quando expressamente referida fonte diversa, todos os acórdãos foram obtidos nas páginas dos respectivos Tribunais na internet. 7 TJSE, Apelação Cível 9378/2011, processo 2011219768, Relator Desembargador Ricardo Múcio Santana de Abreu Lima, j. em 16/01/2012. 8 TJAM, Apelação Cível nº 0260745-59.2009.8.04.0001, Relatora Desembargadora Maria do Perpétuo Socorro Guedes Moura, j. em 28/07/2014, não destacado no original. 9 TJRS, Apelação Cível 70029581089/2009, Relator Desembargador Tasso Cauby Soares Delabary, j. em 27/04/2011. 10 TRF-5, Apelação 0018478-60.2010.4.05.8300, Relator Desembargador Federal Manuel Maia, j. em 17/10/2013. 11 TJAM, autos nº 0248677-43.2010.8.04.0001, apelação cível, Relator Desembargador Aristóteles Lima Thury, j. em 30/04/2015. 12 TJRJ, apelação cível 0322085-50.2010.8.19.0001, Relator Desembargador Ricardo Rodrigues Cardozo, j. em 31/07/2012. 13 TJRJ, embargos infringentes 0169888-62.2000.8.19.0001, Relator Desembargador Pedro Saraiva de Andrade Lemos, j. em 03/09/2010. 14 TRF-5, Apelação 0018478-60.2010.4.05.8300, Relator Desembargador Federal Manuel Maia, j. em 17/10/2013. 15 Chama a atenção, também, o uso de vocábulo absolutamente leigo e impreciso ("patrão"), quando a legislação define claramente as categorias de marítimos civis e amadores (estes últimos: arrais, mestre ou capitão). 16 TRF-5, apelação cível 2135 CE 89.05.02413-0, Relator Desembargador Federal Orlando Rebouças, j. 27/03/1990. Fonte: VIANNA, Godofredo Mendes, CARDOSO, Camila Mendes Vianna, MARQUES, Lucas Leite. Jurisprudência Marítima. Rio de Janeiro: Kincaid (edição própria, não catalogada), 2014, p. 26.
O código civil brasileiro estabelece que o dano é passível de reparação pelo seu agente causador. Mas, antes disso, faz-se necessário demonstrar o nexo de causalidade entre o dano sofrido e a culpa do agente, sendo fundamental que determinada conduta seja de fato a causa do dano. Sem isso, não se pode identificar, no mundo dos fatos, o vínculo lógico e indispensável do nexo de causalidade para a reparação pleiteada em razão do dano sofrido. Antes de adentrar juridicamente nos fundamentos e teorias do nexo de causalidade, em paralelo com o acórdão que aqui será abordado, faz-se necessário esclarecer, em breves linhas, o significado deste instituto, que é fundamento indispensável para a caracterização da responsabilidade civil e o dever de ressarcimento do dano. Dito isso, partindo de um exemplo simplista, podemos considerar que em um transporte multimodal de cargas, quando determinada mercadoria chega ao seu importador final avariada, é necessário avaliar quem foi o agente causador do dano, quais foram as extensões do dano sofrido e, por fim, o vínculo lógico na conduta realizada e o dano ocasionado. Neste passo, será necessário analisar, de forma pormenorizada, todos os agentes envolvidos na cadeia de transporte a fim de identificar o que levou àquela mercadoria a sofrer determinado dano. Neste caso hipotético, pode-se considerar que após as diversas práticas realizadas para identificar o autor do dano, restou identificado que a mercadoria chegou com avarias do tipo amassamento, arranhão e envergadura em razão da má condução do produto durante o transporte rodoviário de cargas, por exemplo. Analisar todas as etapas do transporte se torna necessário para identificar o real agente causador do dano, de modo que o pedido de ressarcimento encontrará base legal para tanto. Contrário a isso, qualquer tipo de ambiguidade ou incertezas quanto ao momento em que efetividade o dano ocorreu ou quem de fato foi seu agente causador fará com que o vínculo lógico entre conduta e dano não encontre o liame para a caracterização do nexo de causalidade, elemento indispensável a retratar o direito ao ressarcimento das avarias causadas. Portanto, sendo o nexo causal a conexão factual que une o resultado à origem, representando a evidência de um dano concreto resultante da ação deliberada, da negligência ou da imprudência da parte responsável pelo referido dano, a imprescindibilidade da demonstração desse principal elemento para a caracterização da conduta de determinado agente é indispensável. Sobre as teorias adotas pelo código civil brasileiro, podemos citar a teoria da causalidade adequada, elaborada por Von Kries1, na qual estabelece que "apesar de existirem várias condições antes de ocorrer o evento danoso, apenas uma delas será levada ao conceito de causa, por ser a mais adequada, sendo esta a causalidade sem a qual o evento não teria acontecido, se tornando a própria referência. Segundo Kries, sem a existência do fato que efetivamente gerou o dano, a necessidade de reparação não existiria, ou seja, apenas o ato que gerou o efeito danoso causado por determinado agente é de fato o ensejador do nexo de causalidade. Por outro lado, também podemos citar a Teoria do Queijo Suíço, a qual foi detalhadamente abordada no artigo Digressões sobre concausas nos acidentes marítimos - O queijo suíço e o canal do Egito, elaborado pelo magistrado Leonardo Grecco2. No referido artigo, o autor faz uma analogia de que "os buracos de uma fatia de queijo suíço são os eventos e fatores que se podem encontrar numa situação potencialmente danosa". Assim, o artigo remonta à ideia de que a falha humana e os eventos naturais são previsíveis, mas um acidente somente se materializa quando todos os "buracos de uma fatia de queijo suíço" se alinham, de modo que todos os eventos e fatores que levaram ao dano concreto, devem ser considerados. Portanto, torna-se de extrema importância realizar uma análise detalhada de todos os vazios presentes na fatia de queijo, a fim de estabelecer um nexo causal e, consequentemente, determinar se é possível atribuir a responsabilidade há apenas um agente pelo eventual dano. No ordenamento jurídico brasileiro, podemos encontrar o conceito de nexo de causalidade no artigo 403 do Código Civil, de uma forma pontualmente abstrata, veja-se: Art. 403. Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual. O artigo em questão estabelece que os danos passíveis de compensação estão restritos aos prejuízos efetivamente incorridos e aos lucros cessantes decorrentes, desde que estes últimos sejam diretamente causados pela falta de cumprimento contratual. Tal disposição implica que apenas os danos diretamente relacionados à não realização da obrigação podem ser objeto de compensação. No mesmo contexto, também podemos identificar o art. 927, parágrafo único do Código Civil e arts. 186 e 187 do mesmo diploma legal. Note que, ainda que respectivos artigos tratem sobre a obrigação de reparar o dano, culpa objetiva e o risco da atividade, estes não afastam ou flexibilizam a necessidade de comprovar, irrefutavelmente, o nexo de causalidade, pois não basta apenas a prática da conduta ilícita, é necessário que ela seja a causa do dano, ligada a conduta de determinado agente, a se concluir pelo nexo de causalidade daquela ação ou omissão. Assim sendo, no contexto do Transporte Marítimo, o debate frequentemente gira em torno da identificação do autor do dano e sua consequente responsabilidade, somada ao momento da cadeia do transporte marítimo de carga que este dano efetivamente ocorreu. No caso, apesar da responsabilidade objetiva prevista no código civil, tem-se que a sua aplicabilidade depende de, no mínimo, comprovação de que aquele dano foi gerado por determinado agente, não sendo admissível imputar a obrigação de indenização ao transportador quando a relação causal entre a ação e o dano é inexistente, vez que no evento de uma quebra desse requisito, o transportador não pode ser responsabilizado por um prejuízo pelo qual não teve influência. Entretanto, para a análise dos fatos e da relação de causa e efeito, o autor da ação que alega um evento - à luz de nossa discussão, no qual gerou um dano decorrente do transporte marítimo e sustente que a responsabilidade é do transportador, possui o dever de comprovar o nexo de causalidade entre o apontado e o dano gerado, devendo apresentar ao processo provas que demonstrem a responsabilidade do agente perante os danos ocorridos durante o transporte marítimo. Nesse contexto, o doutrinador Humberto Theodoro Junior3 preconiza acerca da matéria: "Diante da regra de distribuição estática do ônus probandi, traduzida no art. 373 do novo CPC, estabelecem-se as premissas de que (i) as partes, uma vez completada a fase postulatória do procedimento de cognição, sabem que fatos haverão de ser provados, e (ii) (...) A regra geral da lei é que, em princípio, quem alega um fato atrai para si o ônus de prová-lo." Considerando a premissa de que o ônus de comprovar o dano recai sobre o autor da demanda, torna-se imperativo que as alegações apresentadas estejam respaldadas pelos documentos anexados. Nesse contexto, recebemos com apreço a recente e precisa decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, onde o Ilustríssimo Desembargador conduziu uma análise minuciosa das evidências apresentadas nos autos. Como previamente mencionado, tais evidências consistiram em laudos e relatórios, elementos que de forma clara sustentam a fundamentação do dano. No caso em questão, a análise do Acórdão, detalhada abaixo, demonstra de maneira inequívoca que a responsabilidade pelo dano não recaiu sobre o agente de cargas em razão da Autora da ação não conseguir demonstrar, de maneira clara e inequívoca, em que momento do transporte marítimo o dano efetivamente ocorreu. Veja: E, ainda que assim não fosse, o que se aventa por mera epítrope, o decreto de improcedência também seria de rigor. O laudo técnico a fls. 114/117, unilateralmente elaborado, cabe ressaltar, dá conta de avarias na carga, mas não do nexo causal com a conduta da transportadora. Mesmo a vistoria realizada pela autora (cf. fls. 119 e seguintes) não comprova deforma irrefutável tal nexo causal e ainda revela questionamentos quanto ao agir da contratante do transporte, confira-se "Após levantamento dos fatos e análise dos documentos concluímos que a carga em algum momento durante o percurso da cadeia logística envolvida, sofreu algum tipo de dano grave com relação a lona protetora externa (rasgo), vindo causar a embalagem a exposição de água em demasia sobre a embalagem (caixa de madeira). (...) Vale, por fim, notar que única vistoria que contou com participação de representante da ré (fls. 144/146) também não atesta o nexo de causalidade entre as avarias e a conduta da transportadora. Desse modo, o que se conclui é que a autora não demonstrou os fatos constitutivos do direito alegado, nos termos art.373, I, do C.P.C. Anote-se que, instada a manifestar-se sobre as provas que eventualmente desejasse produzir, a apelante postulou o julgamento antecipado da lie (cf. fls. 246/250). Nesse contexto, o que se pode concluir é que falta prova acerca do nexo causal entre os danos sofridos e conduta da ré, de forma que a improcedência do pleito indenizatório é de rigor.  Dessa maneira, a conclusão que se pode tirar é que a autora não apresentou os elementos essenciais do direito alegado, conforme estabelecido no art. 373, I, do CPC4, logo, pode-se que não houve evidências suficientes que estabeleçam um vínculo causal entre os danos suportados e as ações da Ré, sendo a improcedência do pedido de compensação, de fato, medida que se impõe. Sobre isso, comprovando que tal decisão está longe de ser inédita, é possível verificar diversos outros julgados na mesma linha de entendimento, constantes no livro de jurisprudência marítima, disponível através do seguinte link: Livro Jurisprudência Marítima (2023) (rlkpro.com). Além disso, vale destacar que o acórdão também afastou qualquer tipo de responsabilidade solidária do agente. Isso porque, não basta a alegação de responsabilidade objetiva para caracterizar o dever de indenizar, devendo ser identificado no caso concreto o nexo de causalidade, elemento imprescindível para a identificação do causador dos danos. Deste modo, sabendo-se que a solidariedade não se presume, decorre da lei ou da vontade das partes, nota-se que caso concreto não havia lei ou manifestação de vontade das envolvidas a fim de estabelecer uma pretensa solidariedade e, ainda que assim não fosse, a comprovação do nexo de causalidade seria medida crucial para condenar determinado agente ao pagamento dos danos causados. Em suma, a jurisprudência analisada e o entendimento da relação entre ônus da prova, solidariedade e o estabelecimento do nexo causal, reforçam a importância da diligência na apresentação de evidências, a fim de afastar qualquer tipo de flexibilização do nexo causal e o instituto da culpa, apenas como forma de garantir que a vítima de indenizada, mesmo não sabendo de fato em que momento o dano ocorreu, ou quem realmente foi o seu causador. Referências Bibliográficas  CAMPOS, Alan Sampaio. A presunção do nexo causal: teorias e reflexões. 3 de novembro de 2021, Artigo Migalhas - Disponível aqui. Data de acesso em 01/09/2023. BAHIA, Carolina Medeiros. NEXO DE CAUSALIDADE EM FACE DO RISCO E DO DANO AO MEIO AMBIENTE: ELEMENTOS PARA UM NOVO TRATAMENTO DA CAUSALIDADE NO SISTEMA BRASILEIRO DE RESPONSABILIDADE CIVIL AMBIENTAL. 07 de março de 2012, Tese de Doutorado da Universidade Federal de Santa Catarina Centro de Ciências Jurídicas Curso de Pós-Graduação em Direito Programa de Doutorado. Disponível em: 302182.pdf (ufsc.br) Data de acesso em 01/09/2023. SANTOLIM, Cesar. NEXO DE CAUSALIDADE E PREVENÇÃO NA RESPONSABILIDADE CIVIL, Dezembro de 2014, Revista de AJURIS, Disponível em: Vista do Nexo de causalidade e prevenção na responsabilidade civil (ajuris.org.br). Data de acesso: 01/09/2023. KRETZMANN, Renata Pozzi, Nexo de causalidade na responsabilidade civil: conceito e teorias explicativas. Disponível em: 900ca64d-nexo-de-causalidade-na-rc-renata-k.pdf (meusitejuridico.com.br). Data de acesso 01/09/2023 SOUZA, Eduardo Nunes de, Nexo causal e culpa na responsabilidade civil: subsídios para uma necessária distinção Civilistica.com.  Rio de  Janeiro,  a.  7, n.  3, 2018.  Disponível aqui. Data de acesso 01/09/2023. __________ 1 O filósofo alemão Johannes Von Kries é reconhecido como o proponente da Teoria da Causalidade Adequada. 2 Digressões sobre concausas nos acidentes marítimos - Migalhas 3 JUNIOR, Humberto Theodoro. Curso de Direito Processual Civil. Editora Forense. P. 1134.  4 Art. 373. O ônus da prova incumbe: I - ao autor, quanto ao fato constitutivo de seu direito; II - ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.
quinta-feira, 14 de setembro de 2023

A margem equatorial e seu potencial azul

I - Introdução: a economia do mar  O potencial econômico dos oceanos e dos recursos naturais presentes no leito marinho são bastante conhecidos, mas ainda reservam surpresas e potenciais inexplorados. Um dos recentes exemplos do aproveitamento desse enorme potencial foi o expressivo e repentino aumento do Produto Interno Bruto (PIB) da Guiana, uma das menores economias da América do Sul. O país atingiu o maior crescimento do mundo no ano de 2022, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), decorrente da exploração de petróleo e gás natural offshore. A expectativa de crescimento nos próximos anos é de impressionantes 25%. No Brasil, o Ministério de Minas e Energia (MME) prevê que a região chamada Margem Equatorial, que será tratada em maior detalhe adiante, tem potencial de gerar US$56 bilhões em investimentos, além de uma arrecadação da ordem de US$200 bilhões e geração de 350 mil empregos. Tais números ajudam a entender como uma nova onda de exploração do potencial econômico dos recursos encontrados no leito marinho podem significar impactos relevantes para a conjuntura atual do país, a exemplo do que ocorreu com o início do desenvolvimento do pré-sal anos atrás. De fato, a economia do mar é de suma importância para o país, não apenas em razão dos recursos naturais presentes em seu leito. Na prática, cerca de 95% de todo o volume de comércio exterior é realizado em Águas Jurisdicionais Brasileiras (AJB), por vias marítimas, realçando a grande importância do setor Marítimo e Portuário no funcionamento amplo da economia marinha e global. Aproximadamente 1.500 navios mercantes navegam em nossas águas todos os dias, dando uma dimensão da quantidade de mercadorias, empregos diretos e indiretos, bem como recursos econômicos que circulam em águas brasileiras. No presente artigo, será abordado, brevemente, o potencial econômico, ainda relativamente desconhecido para os operadores do Direito do Mar, da Margem Equatorial.  II - Margem Equatorial Em 2006, o setor de óleo e gás no Brasil teve seu horizonte expandido para o alto mar de maneira, até então, inimaginável. Com a descoberta do pré-sal, o país viu seus prognósticos de produção aumentarem, sua economia efervescer e sua dependência internacional de importação diminuir. Contudo, apesar de ter correspondido, em fevereiro de 2023, a 78,1% da produção total do país, o pré-sal está longe de ser uma fonte inesgotável - como salientado pelo ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, em recente fala em audiência no Câmara. Essa questão leva o mercado a pensar em como suprir a possível demanda futura de produção. E, nesse cenário de possibilidades, a exploração na Margem Equatorial brasileira desponta como uma das opções. Margem Equatorial, deve-se esclarecer, é o nome dado à região que se estende por mais de 2.200 quilômetros desde o Amapá até o Rio Grande do Norte, e abrange 5 bacias em alto-mar (Bacia Foz do Amazonas, Bacia Pará-Maranhão, Bacia Barreirinhas, Bacia do Ceará e Bacia Potiguar). O potencial petrolífero dessas bacias é considerável, principalmente em razão das recentes descobertas em outras regiões próximas, como é o caso da Guiana, Suriname e Guiana Francesa - que, juntas com a Margem Equatorial Brasileira, formam a Margem Atlântica Equatorial Sul-Americana (MAESA) - e das descobertas na Margem Conjugada Africana, no oeste da África, que possuí o mesmo contexto geológico e também sugere elevado potencial. Confira-se uma ilustração da região: A primeira descoberta na área ocorreu no campo Zaedyus (na Guiana Francesa), em 2011 e na qual já atuam 24 empresas e onde ocorreram 60 descobertas com volume estimado de 11 bilhões de barris. Desde então, as características do óleo e estimativa de volume existente vêm chamando a atenção da indústria. Somente na Guiana, por exemplo, foram aprovadas seis plataformas que atingirão a marca de 1,2 milhão de barris por dia em 2027, valor este que supera o campo de Tupi, maior produtor brasileiro (PAMPLONA). Na porção brasileira, a expectativa transformou-se em números, com as estimativas do Ministério de Minas e Energia (MME) de cerca de 10 bilhões de barris de petróleo na região. Tamanha é a expectativa, que o plano estratégico da Petróleo Brasileiro S.A (Petrobras) para o período de 2023 a 2027 prevê investimentos na casa de US$ 2,9 bilhões na região - valor que supera o investido em novas bacias do Sudeste -, com perfuração de 16 poços a partir do 1º trimestre de 2023.   III - Rodadas ANP e o processo de E&P  No Brasil, como o subsolo, e os recursos naturais dele advindos, são propriedade da União, uma das formas de se explorar petróleo e gás natural é por meio de licitações públicas. Essas rodadas de licitação são processos abertos e competitivos, organizados pela Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Assim, empresas estatais ou privadas adquirem o direito de explorar e produzir nos blocos em que apresentaram ofertas vencedoras nos leilões. Uma vez no bloco que arrematou, a empresa inicia a fase de exploração, responsável pelo estudo de viabilidade exploratória e comercial do bloco, para que depois, em caso de perspectiva positiva, apresente um plano de desenvolvimento à ANP e faça da área obtida um campo produtor de petróleo e/ou gás natural. O debate acerca da exploração da Margem Equatorial remonta à década de 1970, quando ocorreram as primeiras perfurações, sem grandes descobertas - possivelmente pela falta de tecnologia presente à época. Em 2013, na 11ª rodada de licitações, os blocos da bacia foram disputados e acabaram arrematados por um consórcio formado por três empresas, sendo que duas delas desistiram das operações ao longo dos últimos três anos. Atualmente, são 42 blocos exploratórios na região.  IV - Análise Econômica dos oceanos No cenário atual, o maior debate acerca do tema dá-se em relação ao indeferimento do pedido de licença, apresentado pela Petrobras, para exploração do poço FZA-M-59, em maio, por parte do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (IBAMA). Isso porque, à época da negação do pedido, o IBAMA fez algumas observações acerca do tema, como a necessidade de uma Análise Ambiental de Área Sedimentar (AAAS), um estudo que mostre a direção para onde iria o óleo em caso de vazamento e uma análise do efeito do projeto sobre a movimentação do aeroporto do Oiapoque (AP) e os possíveis impactos de todo o processo sobre as comunidades indígenas que vivem na região. A primeira exigência foi superada recentemente, quando a AGU realizou um parecer vinculativo que descartou a necessidade da AAAS para a perfuração de poço exploratório. As demais exigências ainda serão discutidas em um debate técnico previsto para ocorrer na Câmara de Mediação e Conciliação da AGU, que ainda deverá ser convocado.   Contudo, por aqui, nosso objeto de análise, o protagonista da lâmina de nosso microscópio, é o impacto econômico que essa possível exploração, conquanto viável do ponto de vista ambiental e preservativo, pode ensejar na economia azul. Economia azul, segundo o Banco Mundial, é o termo que se refere ao uso sustentável dos recursos oceânicos para o crescimento econômico, a melhoria dos meios de subsistência e do emprego, preservando a saúde do ecossistema. Segundo informações da Marinha, o Brasil possui jurisdição sobre uma área oceânica com cerca de 5,7 milhões de quilômetros quadrados, valor equivalente a mais da metade da nossa massa terrestre e que é origem de 19% do PIB de nosso país. V - Conclusão  Por fim, observamos que, embora ainda gere um debate entre o setor energético e o setor ambiental, a exploração e produção de petróleo na Margem Equatorial brasileira serve como uma forma de reverberarmos uma possível efervescência produtiva no mercado de óleo e gás do país com seus impactos em nossa economia azul, fundamental para um futuro produtivo e sustentável, a fim de vislumbramos quais serão os resultados da confirmação desse grande potencial, até agora, oculto. Bibliografia:  InfoMoney. "Sem novas grandes descobertas de petróleo, Brasil vê pico de produção em 6 anos". Disponível aqui. Ministério de Minas e Energia. "Produção no pré-sal bate recorde e corresponde a 78,1% do total nacional em fevereiro". Disponível aqui. Folha de São Paulo. "Foz do Amazonas já teve 95 poços petrolíferos; entenda região disputada pela Petrobras". Disponível aqui. Gazeta do Povo. "O que é o "novo pré-sal" e por que a Petrobras aposta tanto nele". Disponível aqui. Petrobras. "Nossas novas Fronteiras de Exploração". Disponível aqui. O Globo. "O que é a Margem Equatorial e como a decisão do Ibama pode afetar os planos da Petrobras". Disponível aqui. Valor Econômico. "O que é Margem Equatorial? Veja 10 perguntas e respostas sobre a nova aposta da Petrobras." Disponível aqui.                EPBR. "Margem Equatorial: Que petroleiras ainda têm concessões de óleo e gás na região?". Disponível aqui.  BBC Brasil. "O que é a economia azul e por que ela é importante para a América Latina". Disponível aqui. Marinha do Brasil. "Economia Azul." Disponível aqui. Marinha do Brasil. "Planejamento Espacial Marinho." Disponível aqui. O Eco. "Há 8 anos na Câmara, projeto que cria uma lei para o mar ainda não tem votação à vista." Disponível aqui. Poder 360. "Margem Equatorial pode receber R$ 11 bi para exploração de 42 blocos. Disponível aqui.  
Prosseguindo no debate e exposição das conclusões exaradas no julgamento do Recurso Especial 1.988.894/SP da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, sob a relatoria da eminente Ministra Isabel Gallotti, esse segundo artigo tratará de outro tema relevante enfrentado na ocasião e que merece grande destaque: o efeito e o alcance da sub-rogação operada entre segurador e proprietário da carga. Para melhor compreensão, é importante relembrar a origem do julgamento, uma ação de ressarcimento proposta em decorrência de perdas e danos à carga durante a execução de transporte marítimo internacional, movida pela seguradora sub-rogada nos direitos do contratante do transporte em face do armador-proprietário do navio, do afretador e do agente de carga. Importa ainda, para o tema a ser aqui tratado e em virtude do quanto enfatizado no acórdão, acrescentar que todos os envolvidos pertencem a conglomerados econômicos e que a carga transportada seria utilizada na construção de uma usina hidrelétrica em país vizinho sul-americano. Neste segundo artigo serão pormenorizadas as razões que levaram os ínclitos ministros da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça afastarem a alegação da seguradora, no sentido de que o efeito da sub-rogação seria limitado ao direito material. Conforme alegado, haveria assunção do crédito pelo segurador sub-rogado após o sinistro, sendo inoponíveis questões procedimentais dos contratos firmados entre o transportador e demais players com o tomador do seguro/segurado. A análise sobre o tema é inaugurada no acórdão da lavra da ínclita ministra relatora Isabel Galloti com a afirmação da natureza da sub-rogação em casos como o julgado, ser legal e não convencional, a teor do quanto disposto no artigo 346, inciso III, do Código Civil. Essa afirmação é de curial importância, haja visto implicar na irrelevância da manifestação de plena vontade quanto, a exemplo, a previsão da convenção de arbitragem no contrato primitivo. Partindo dessa compreensão, a ínclita Ministra Relatora excele em distinguir a sub-rogação convencional, isto é, aquela "que decorre de escolha das partes, no exercício da autonomia privada (artigos 421 e 421-A do CC), inclusive quanto à extensão aos efeitos" para a legal, em que, nas palavras do doutrinador Cláudio Luiz Bueno de Godoy, o sub-rogado passa a "ocupar a posição jurídica do segurado". Ao mencionar o entendimento doutrinário de Francisco José Cahali e Viviane Rosolia Teodoro, os quais defendem que, a teor do quanto disposto no artigo 786 e na Súmula n° 188 do Supremo Tribunal Federal, a sub-rogação transmite a integralidade do contrato coberto pela apólice de seguro, tanto em relação ao direito material quanto ao direito de ação - aqui se compreendendo a jurisdição escolhida pelas partes originais do contrato assegurado. A Ministra Relatora complementa a lição doutrinária aludida para afirmar que a "cláusula compromissória não pode ser compreendida como condição personalíssima da parte, justamente por se tratar de instituto legal genérico e comum aplicável a qualquer contratante capaz, não derivando de característica pessoal cuja prestação não poderia ser efetuada por terceiro". Nesse sentido, faz-se menção quanto à ponderação da Ministra Relatora acerca da ciência da existência de compreensão diversa oriunda da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. Importante trazer a lume que um dos precedentes suscitados é de relatoria da eminente Ministra Nancy Andrighi, a qual, recentemente, no julgamento do SEC 14.930/EX pela Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça demonstrou ter alterado o seu entendimento justamente no que tange a questão da natureza não personalíssima das cláusulas compromissórias: "A única limitação reconhecida para a sub-rogação se encontra nas condições personalíssimas do credor. Contudo, uma cláusula deve ser considerada personalíssima apenas se é firmada em razão das condições pessoais do sub-rogado, cuja prestação não pode ser efetuada por outrem. (...) Por suas características próprias, não seria possível afirmar que a cláusula compromissória seja uma condição personalíssima de uma data relação jurídica. Ao contrário, uma vez celebrada, seus termos são genéricos e comuns a todos os contratantes, independentemente da qualidade da parte, podendo ser firmada por todas as pessoas capazes." A esse respeito, cumpre transcrever, ainda, o seguinte trecho do voto declarado pelo Desembargador Castro Figliolia, que compôs o julgamento no Tribunal de Justiça de São Paulo como 3º Julgador: "Na sub-rogação, não há uma ampliação do direito, ou seja, não há exclusão das limitações existentes no direito originário, apenas porque o sub-rogado é terceiro e não aquiesceu. Em verdade, o sub-rogado não tem que aquiescer. Ele se limita a receber o direito existente (.). Justamente porque a sub-rogação se dá quanto ao direito, o sub-rogado não pode ter mais direito do que aquele que o transmitiu. Se o direito transmitido tinha limitação, o sub-rogado o recebe com ela." Na verdade, acaso fosse a intenção do legislador ao elaborar o artigo 786 (ou até mesmo dos excelsos Ministros do Supremo Tribunal Federal na edição da súmula 188), limitar os efeitos da sub-rogação nos casos envolvendo seguradoras, as exceções teriam sido expressas, de modo que os ônus e obrigações não abarcados no translado dos direitos assim estariam dispostos em lei. Exsurge, no debate, o dever legal da seguradora, amparado pelo princípio da mutualidade que rege os contratos de seguro e insculpido no artigo 757 do Código Civil, por ter prévio conhecimento do risco coberto pela apólice de seguros contratada. Nesse aspecto, como bem pontuado pelo Desembargador Tasso Duarte, relator do acórdão originário no Tribunal de Justiça de São Paulo, a previsão contratual de cláusulas compromissórias tal como a arbitral é praxe do mercado de transporte marítimo, não sendo possível a presunção de ciência prévia do segurador quanto a sua incidência em eventuais litígios oriundos desse modal. Baseada nessa premissa, aliás, exceleu novamente a ínclita Ministra ao afirmar que "(...) afastar a sub-rogação na cláusula arbitral, previamente exposta à aprovação da seguradora e de conhecimento de todos, implicaria submeter as partes do contrato de transporte marítimo ao arbítrio da contraparte na livre escolha da jurisdição aplicável à avença, pois depende única e exclusivamente da seguradora escolhida pelo consignatário da carga." Ainda no tocante ao prévio conhecimento da seguradora, os ínclitos Ministros debateram acerca do alcance dos efeitos da sub-rogação à luz do quanto disposto no artigo 786, parágrafo 2º, do Código Civil, o qual reza serem ineficazes os atos do segurado caso estes extingam ou diminuam, em prejuízo do segurador, os direitos aos quais serão sub-rogados pela seguradora. A conclusão exarada no acórdão é primorosa sobre este ponto: "Não há como incidir a mencionada regra quando a disposição contratual integra a unidade do risco objeto da própria apólice securitária, dado que elemento objetivo a ser considerado nos cálculos atuariais efetuados pela seguradora e objeto da autonomia das partes". Aliás, a ínclita Ministra Relatora complementa afirmando que intepretação em sentido contrário permitiria ao segurador, ao seu livre arbítrio, determinar a jurisdição aplicável ao caso em flagrante dissonância à presunção de paridade e simetria entre as partes contratantes. Atentando-se à obrigação legal do segurador ter prévio conhecimento dos riscos acobertados, a qual permite concluir pelo prévio conhecimento dos termos contratuais e das praxes do mercado de transporte marítimo, tem-se, pelo quanto debatido durante o julgamento, que a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça reconheceu que, com a sub-rogação, o sub-rogado recebe todos os direitos de que desfrutava o credor primitivo, bem como todos os privilégios, garantias e obrigações daí decorrentes. Concluindo, o sub-rogado, por força da sub-rogação, não recebe mais direitos e obrigações do que detinha o segurado, isto é, o credor primitivo. Logo, se o segurado não tinha o direito acionar judicialmente, em detrimento da via arbitral, também não terá o sub-rogado. Ao segurado não é possível transferir mais direitos e obrigações ao segurador do que lhe competia originariamente, tendo assim, portanto, que os efeitos das cláusulas compromissórias vinculam a sub-rogação. __________ Diniz, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. São Paulo: Saraivajur, v. 3. Peluso, Cesar. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 7ª ed. Barueri, SP: Manole, 2013. Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil - Teoria Geral das Obrigações. 21ª edição, editada, revista e atualizada por Guilherme Calmon Nogueira de Gama. Forense, 2006. Venosa, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. São Paulo: Atlas, v. 2. Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996, Poder Executivo. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação 1011916-50.2018.8.26.0562. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação 9108101-03.2008.8.26.0000. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1988894/SP. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1424074/SP. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1189050/SP. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no AREsp 2214857/CE.
Caro leitor. Tenho a mais absoluta certeza de que você nunca concebeu que um rato pudesse comer a lua. Essa ideia é estapafúrdia, disparatada e ilógica. E por aqui quero começar este ensaio: pela lógica. A lógica é disciplina afeita à filosofia e nos ajuda a estruturar nosso raciocínio. O raciocínio lógico é formado por premissas, umas maiores, outras menores, as quais levam o pensador às suas conclusões. Vejam. Se todo ser humano é mortal e se o caríssimo leitor dessa coluna é um ser humano, a conclusão funesta e lógica que cai no seu colo é: duas mortes não existem e de uma ninguém se escapa! Esse raciocínio é aquele que chamamos de silogismo. Lógico e verdadeiro. Ocorre que o raciocínio pode não ser perfeito, por simulação da verdade, por conteúdo não veraz das premissas e por outros vieses, fazendo com que tenhamos à nossa frente um raciocínio falso, chamado de sofisma. Alguém poderia nos iludir com poesias que comparam a lua a um lindo queijo iluminado, histórias de navegadores que se orientavam pelo queijo astral que brilhava no céu depois que o sol já tivesse se posto, com resenhas de como os astrólogos comparavam a lua a um queijo parmesão, entre uma olhadela e outra pelo telescópio. Então, depois de todo este cenário criado, o sofista poderia arriscar nos convencer de que, se é verdade que todos os ratos comem queijos e se a lua é um queijo para astrônomos, poetas, navegadores e historiadores, lógico seria concluir que os ratos comeriam a lua. A falsidade está no conteúdo da segunda premissa e leva, por ricochete, à falsidade da conclusão. Mas e se a falsidade de conteúdo da premissa não ficasse tão evidente, a ponto dela nos levar a uma conclusão aparentemente possível, mas realmente falsa? E se o sofisma fosse traçado de propósito para fazer com que o julgador fosse levado a erro, expressão que sói pulular nos processos judiciais? Pois bem. Teríamos um pouco mais de trabalho investigativo, mas conseguiríamos encontrar a falsidade. Este ensaio busca, pois, demonstrar que não é juridicamente lógico ter por legítima a prática do locador de um container de condicionar a devolução dele, depois do free time, ao pagamento integral do valor da sobreestadia. Onde estaria a falsidade de premissa daqueles que entendem de maneira distinta? Mantida a ideia da lógica, agora a jurídica, este artigo propõe fincas nos seguintes silogismos de direito civil e marítimo. Nenhuma multa, taxa ou indenização prefixada em contrato se confunde com preço; Ora, pagamento de sobrestadia de container é multa, taxa ou indenização pré-fixada; Logo, pagamento de sobrestadia não se confunde com preço. Seguindo na construção de raciocínios que este ensaio aborda: O sistema que rege a aplicação das multas, taxa ou indenização pré-fixada é diverso do sistema que rege o pagamento do preço dos contratos; Ora, se pagamento de sobrestadia de container é multa, taxa ou indenização pré-fixada, segue sistema de regras de aplicação de multa, taxa ou indenização pré-fixada; Logo, o pagamento de sobrestadia de container, não segue o sistema de pagamento de preço. Enfim, este artigo propõe ainda que: Toda exceção aos princípios básicos do direito deve ser expressamente prevista em lei ou em contrato; Ora, a autotutela é exceção aos princípios básicos do direito; Logo, a autotutela deve ser expressamente prevista em lei ou em contrato. Se o leitor entendeu que alguma das premissas acima indicadas é falsa em seu conteúdo, daqui para a frente se verá a construção de um ensaio baseado em um raciocínio falso. Por outro lado, se as premissas acima forem confirmadas em sua verdade durante a leitura, não há outra conclusão lógica senão aquela que confirma a conclusão que se pretende deste apanhado de ideias: ser ilegítima a prática de condicionar a devolução do container ao pagamento do valor da sobreestadia. Confiante no silogismo, sigo partindo do primeiro raciocínio. Premissa maior: Nenhuma multa, taxa ou indenização previamente fixada se confunde com preço. Sobre a multa, basta abrir o índice da clássica coleção Sinopses Jurídicas, da Editora Saraiva, do festejado processor Carlos Roberto Gonçalves que já se vê que o preço,  objeto de pagamento, é item do Capítulo Pagamento; do Título Adimplemento e extinção das obrigações, enquanto que a multa é capítulo do título Inadimplemento das obrigações.1 O mesmíssimo esquema é adotado pelo Código Civil, de modo que o preço está contemplado entre os artigos 313 a 326 e a multa, entre os artigos 408 e 416 e dependente da mora, prevista 394 e 401. Taxa é instituto jurídico que não tem previsão específica no Código Civil, mas se encontra alguma menção a ela nos artigos 406 e 407 e não é, data vênia, a melhor das definições para a natureza jurídica do pagamento da sobreestadia. Indenização previamente fixada é forma genérica de purgação de mora, como previsto no artigo 401, I do Código Civil.2 No entanto, qualquer que seja a linha escolhida, uma coisa é certa. Nem multa, nem taxa, nem indenização pré-fixada é preço. Não percamos mais tempo nisso, então. Premissa menor: Pagamento de sobrestadia de container é multa, taxa ou indenização pré-fixada. Quando se assina um contrato de transporte marítimo, arrenda-se um equipamento ou acessório do navio que é o container. Neste contrato, o arrendante se compromete a devolver tal equipamento ou acessório dentro de um determinado prazo, chamado de free time. Caso o arrendante extrapole esse período, deve pagar um valor pré-estipulado que é a sobrestadia ou demurrage.3 Nos precedentes dos tribunais são encontradas menções sobre a natureza jurídica deste valor, alguns chamando de taxa4-5 (de sobrestadia - as vezes tarifa de sobrestadia), outros chamando de indenização previamente fixada6e outros até mesmo de multa. ELAS7 nos ensinam que "(...) não se olvida a existência de duas correntes dominantes que discorrem sobre a natureza jurídica de sobrestadia de contêiner. Uma corrente que entende a cobrança como de natureza indenizatória e outra que se refere à sobreestadia como sendo cláusula penal."8 Como dito na nota de rodapé 2, a maioria dos precedentes jurisprudenciais entende que sobreestadia é indenização pré-fixada. Enfim, a depender da preferência do leitor, pode-se eleger se o valor da sobreestadia é multa, taxa ou indenização pré-fixada.  O que não é possível é entender que - por se consubstanciar em entrega de dinheiro - é preço (vide nota de rodapé numero 2) Eis uma armadilha da lógica. Às vezes os termos são equívocos, fazendo o intérprete se confundir pelo significado diverso de palavras idênticas (sequestro; que pode ser de bens ou de pessoas) e as vezes a confusão vem pela similitude da ação que o termo significa (entregar uma coisa; que pode ser transferência de patrimônio, empréstimo, locação). Isso que acontece com a entrega de dinheiro, que as vezes denota o pagamento de um preço e outras denota o pagamento de uma multa ou indenização pré-fixada, sendo totalmente diverso o sistema de regulação de tal entrega. Ora, se o sujeito entrega dinheiro para pagamento do preço, ao sistema não importa se o valor é alto demais, se as partes acordaram que tal entrega se daria de forma parcelada, se poderia tal valor ser compensado com outra dívida. Mas se o sujeito entrega dinheiro para pagar multa, o valor dela terá limite ou no valor do contrato ou no percentual de lei. Já o pagamento de indenização previamente fixada depende não só da vontade das partes, mas da ocorrência de um inadimplemento da obrigação principal, com incidência de taxas, etc. Este são apenas exemplos que ilustram a diversidade de sistemas de regras que norteiam condutas parecidas na ação, mas diversa na conceituação jurídica. Sei que esta explicação pode soar confusa, mas será melhor detalhada abaixo. Por ora, basta considerar que o pagamento da sobrestadia pode ser tudo, menos pagamento de preço, concluindo-se, assim que: Pagamento de sobrestadia não se confunde com pagamento de preço. Se assim não fosse, os julgados não diriam que o pagamento de sobreestadia só tem lugar após o inadimplemento contratual ou estando em mora o devedor de tal valor. Depois de um copo d'água e uma respirada profunda, o leitor já pode partir para o próximo raciocínio. O sistema que rege a aplicação das multas, taxa ou indenização pré-fixada é diverso do sistema que rege o pagamento do preço dos contratos. Voltemos à lei, já que a havemos. A partir do Livro I, do Título III da Parte Especial do Código Civil, o leitor verá a inúmeras possibilidades de trabalhar com o pagamento do preço. Poderá ver a quem deve pagar, até para não ter que pagar duas vezes, poderá verificar como pagar, onde pagar, como imputar ao pagamento; enfim, se a intenção é verificar o sistema de pagamento da prestação principal do contrato, naquela parte do Código Civil é que estão as regras do jogo. Dentre tais regras está o direito do credor de exigir o pagamento do preço à vista, caso assim esteja estipulado no contrato; como se lê expressamente no artigo 331 do Código Civil9. Mas, repita-se, que tal artigo é uma das regras do sistema de pagamento do preço do contrato e não do sistema de pagamento da multa ou indenização pré-fixada, já que nem uma coisa, nem outra, integram o preço estipulado pelo arrendamento do contêiner. Preço é o que se paga pela locação do cofre, dentro do free time. Para além disso, já não se fala mais de preço e não se usa mais o mesmo sistema de regras. E se a premissa menor do raciocínio é: se pagamento de sobrestadia de container é multa, taxa ou indenização pré-fixada, segue sistema de aplicação de multa, taxa ou indenização pré-fixada, quais seriam as características deste sistema? Aquelas previstas no Título IV, do Livro I da Parte Especial; entre os artigos 398 e 416 do Código Civil. O credor pode cobrar juros e atualização monetária sobre tal valor; o devedor pode alegar ausência de culpa, se a escolha for pela natureza jurídica de cláusula penal (multa); sendo indivisível a obrigação, haverá solidariedade; devendo haver mora para cobrança, haverá as formas de constituição e purgação da mora, entre tantas outras regras que contemplam o pagamento de multa, taxa ou indenização previamente fixada. O que não se pode fazer é cruzar uma regra prevista para pagamento de preço, v.g. Artigo 331, com o sistema de pagamento de multa, taxa ou indenização previamente fixada. E se tivéssemos que sair da Parte Especial do Código Civil para visitar a Parte Geral veríamos também que a exigência de pagamento do valor da sobreestadia como condicionante para devolução do cofre é totalmente irregular. Isso porque um contrato não pode deixar à total mercê do credor as consequências e quantificação do valor do contrato, o que redundaria - não estritamente, mas por analogia - na revelha e conhecida condição puramente potestativa prevista no artigo 122, in fine do Código Civil.10 Inclusive essa limitante estaria presente mesmo se, ao contrário de todo o dito até agora, o valor da sobreestadia fosse o próprio preço, já que até mesmo o valor da prestação principal não pode ficar totalmente a mercê de uma das partes. Ora, alguém poderia dizer que o valor está no contrato. Mas salta aos olhos que se tal valor incide sobre uma hipótese fática (i.é dias de atraso) e o valor final redunda em quantos mais dias, mais caro, se está - repita-se, não propriamente, mas por analogia - diante de uma condição puramente potestativa. O valor final está totalmente nas mãos do credor. Ora, se o contrato de arrendamento do cofre passa a existir e ter validade com sua assinatura e o valor a ser pago aumenta ou diminui puramente ao alvedrio da parte credora, ainda que após o período de free time, a eficácia está viciada por um evento futuro, incerto que é a extrapolação do free time e, a partir daí, pelo puro arbítrio de uma das partes; o credor, em receber de volta o cofre. O leitor poderia insistir. Mas a eficácia da devolução não depende só da vontade do credor. Basta o devedor pagar a dívida e tudo estará resolvido Não é tão simples assim. Se o devedor pagar o preço se fala de extinção do contrato e não do plano de eficácia do contrato, que é o campo no qual o contrato ainda não foi extinto e onde incidem as condições. Mas este não é nosso tema. Haverá outras oportunidades. Mas voltemos ao pagamento da sobreestadia com natureza diversa da do preço. Ainda que não fosse a Parte Geral do Código Civil, os Princípio Gerais de Direito também formariam um sistema próprio a garantir o direito do devedor de devolver o contêiner, ainda que sem o pagamento à vista da sobresstadia. O Princípio da Boa-fé contém o princípio da menor onerosidade ao devedor, não revogado pelo Código Civil de 2002 e que grassa nas relações marítimas. Há precedente do Tribunal de Justiça de São Paulo que cita o mesmo princípio da Boa-fé dizendo que condicionar a devolução do contêiner ao pagamento integral da dívida é "Conduta que viola o princípio da boa-fé objetiva, previsto no art. 422, do Código Civil e afronta o dever de mitigar o prejuízo (duty to mitigate the loss) (..)"11 Aliás, fala-se muito do Princípio da Boa-fé e olvida-se que ele é filho do Princípio da Eticidade que, por sua vez, festeja a equidade e a justa causa. Pergunta-se: qual a justa causa de se recusar a receber o contêiner? O não pagamento do valor da sobrestadia? Fazendo com isso que o valor suba à cada dia e o compila com isso a pagar imediatamente? Não custa lembrar que o valor pela sobreestadia já é um tanto quanto imposto pelo locador, mas quanto a isso não vale a pena a discussão porque "os valores cobrados estão em consonância com os costumes do comercio marítimo (...)"12 e essa é uma tendência consagrada pelos precedentes jurisprudenciais. Assim, se tudo o dito acima é verdade, conclusão lógica é que o pagamento de sobrestadia de container, não segue o sistema de pagamento de preço. E por falar em Princípio da Eticidade, não se pode olvidar que outro dos três princípios norteadores do Código Civil é o Princípio da Socialidade, que prevê que sobre os interesses individuais dos credores estão os interesses de toda a coletividade. Hei de concordar que dentro dos interesses da coletividade está o de prezar pelo cumprimento dos contratos (pacta sunt servanda) e de não permitir a má-fé do devedor ao procrastinar o pagamento de suas dívidas. Exatamente por isso que o Código de Processo Civil de 2015 trouxe tantas medidas atípicas coercitivas para que o Juiz - e não o credor - cuide de não permitir a emulação do devedor no intuito de não pagar suas dívidas. São as previsões do artigo 139, IV daquele diploma legal. Todavia, estender essas assertividades e entregá-las nas mãos do particular é flertar com a autotutela sem previsão legal, o que não se pode ver com bons olhos.   É princípio básico do Direito que ninguém pode buscar suas razões por mão própria e toda exceção aos princípios básicos do Direito deve ser expressamente prevista em lei ou em contrato. Eis, pois, a premissa maior do último silogismo deste ensaio. Nos casos trazidos ao Poder Judiciário, não há previsão legal ou contratual do direito do credor de não receber o contêiner. Se houvesse uma cláusula expressa nesse sentido, faria ruir todo o dito neste artigo. Mas não há. Em verdade, ainda que o artigo 331 do Código Civil contivesse regra típica de sistema de pagamento de multa, taxa ou indenização prévia, ali está escrito que o credor pode exigir o pagamento a vista. Não está escrito que pode se recusar a receber a coisa locada antes de tal pagamento. O contrário sim está previsto em lei, valendo a citação do direito de retenção do artigo 578 do Código Civil e do instituto do right of lien do Direito Estrangeiro. A autotutela deve estar prevista em lei ou em contrato. E escrita expressamente a ponto de a interpretação gramatical não deixar dúvidas. "Vamos descobrir toda uma categoria de direitos aos quais não se poderá aplicar  a ideia de abuso. São os direitos cujo exercício arbitrário a lei permite. (...). Esses direitos são raros, mas existem no entanto."13 Veja-se que desde o início do século passado já se previa a excepcionalidade do exercício arbitrário do Direito e da autotutela. Não por acaso que dois dos mais brilhantes Magistrados do Estado de São Paulo, hoje em dia, deixam claro que só se deve interpretar a lei com base na boa-fé, nos usos e costumes do lugar da celebração ou ainda de acordo com a função social e outros elementos valorativos se a lei der o permissivo para tanto, usando conceitos jurídicos vagos ou indeterminados.14 E para exceções aos princípios do Direito Civil, mesmo tais conceitos vagos não devem grassar. Ainda que assim não fosse, em nenhum lugar, seja na lei, seja no contrato, se encontram termos vagos ou indeterminados donde se possa dessumir espaço para uma interpretação autorizativa para o desmando do credor em só receber o container de volta depois de pago o preço da sobrestadia. Sendo, pois, a autotutela, uma exceção aos princípios básicos do direito ela deve ser expressamente prevista em lei ou em contrato. Assim não sendo, nem mesmo o Juiz pode dar validade a esta providencia. Não nos esqueçamos que a evolução para um Estado sem permissão do exercício da autotutela é conquista que vem desde a Lei de Talião. Finda a apresentação dos raciocínios que me propus neste artigo, há uma questão que precisa ser dita, por franqueza com o leitor. Eu mesmo já aderi à tese ora atacada. Já entendi, em decisão reformada pela 14ª Câmara de Direito Privado, Apelação Cível nº 1001698-55.2021.8.26.0562, que a prática ora trazida à liça seria legítima. Mas depois de analisar com mais detença inúmeros julgados do Tribunal Bandeirante, curvei-me ao entendimento para concluir não ser possível tal conduta. Aliás, a mim parece que mesmo o precedente o Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível 1005951-86.2021.8.26.0562, citado nesta coluna como autorizador da cobrança à vista da sobrestadia, não pretendeu chancelar a recusa em receber o contêiner. Vejam-se o porquê do meu entendimento: Diz o Acórdão: "Todavia, ao menos no caso concreto, ficou cristalino que: a ré não recusou o recebimento dos contêineres ou impôs pagamento prévio, mas sim o agendamento do pagamento para momento posterior à entrega (cessando as sobrestadias); o acolhimento do pedido da autora resultaria em interferência do Poder Judiciário em procedimento comercial da ré adotado com amparo no ordenamento jurídico, especificamente no art. 331 do Código Civil; é facultado à ré exigir o seu crédito imediatamente, quando não existir acordo entre as partes em sentido contrário. (...) Repise-se, partindo-se do pressuposto de que a ré pode, amparada no ordenamento jurídico vigente, exigir o seu crédito de imediato, cabia à autora, querendo interromper as sobrestadias (fls. 120/121), realizar a devolução dos contêineres e, então, invocar o Poder Judiciário para discutir a exigibilidade da fatura emitida como condição à devolução. Dessa maneira, ela preservaria o mesmo bem jurídico (interrupção da incidência das sobrestadias fls. 3/4, 120, 121), contudo, discutindo, no mesmo feito, a exigibilidade dessa verba." (destaquei) A mim parece, com vênias supinas ao subscritor do artigo, que o Acórdão não permitiu que a devolução do contêiner fosse condicionada ao pagamento, mas sim que a devolução do contêiner fosse condicionada a confissão de dívida, consubstanciada pelo "agendamento do pagamento para momento posterior à entrega (cessando as sobrestadias" (vide Acórdão). Aliás, até mesmo a natureza de confissão de dívida de tal agendamento é discutível, já que o julgado diz que mesmo com tal providência, poderia o devedor, além de "interromper as sobrestadias" também discutir "no mesmo feito, a exigibilidade dessa verba." Se tira também do referido Acórdão, normativa da Antaq que também vê com maus olhos a tese do permissivo da condicionante de pagamento a vista do valor do demurrage para recebimento do contêiner. Está no Acórdão: "O mesmo se infere da decisão proferida pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região nos autos da ação anulatória movida pela ré em desfavor da ANTAQ - Agência Nacional de Transportes Aquaviários (fls. 247/251), "a fim de suspender os efeitos da resolução nº 7574 e do acórdão nº 250-2021, ambos da ANTAQ, proferidos nos autos do processo administrativo nº 50300.001825/2020-97, ou qualquer ato decisório que impeça a cobrança imediata da sobrestadia de contêiner na forma do art. 331 do Código Civil" (fl. 248), cujo trecho é transcrito a seguir: (...) "Na espécie, as Autoras estão impedidas de exigir o pagamento de sobrestadias de contêineres antes das devoluções dos equipamentos, até que a Agência promova o julgamento do mérito do respectivo processo administrativo. Observo, contudo, que não há qualquer prova nos autos de que vem ocorrendo a prática de cobrança antecipada de sobrestadias pela parte autora, tendo, inclusive, a própria ANTAQ, em sua manifestação (ID 663366497), reconhecido que o que as Autoras têm exigido no ato de agendamento da devolução é o comprovante de agendamento de pagamento, com vencimento para pagamento de até 24 (vinte e quatro) horas após a efetiva devolução da unidade, o que configura uma forma de cobrança imediata e não antecipada. (...) Por sua vez, a cobrança por atraso na entrega dos contêineres, conhecida como sobrestadia/demurrage, está autorizada e definida pela Resolução Normativa nº 18, de 21 de dezembro de 2017, editada pela ANTAQ, senão vejamos: (...) Portanto, em princípio, tenho que, sendo a prática reconhecida e validada pela ANTAQ e não estando demonstrado que as Autoras a realizam de forma antecipada, a ANTAQ não pode suspender a cobrança imediata da sobrestadia de contêiner, por estar a referida cobrança amparada na lei." (DES. JOSÉ MARRONE, Apelação Civel já citada - destaquei) Análise gramatical insiste em concluir. Cobrar a vista é possível. Condicionar a devolução do contêiner ao pagamento, não é possível. E assim como me curvei diante dos precedentes da Corte Bandeirante e do Superior Tribunal, sempre em nome da segurança jurídica, que se sobrepõe minha opinião pessoal, voltaria a decidir de forma contrária a esta minha opinião, lançada neste ensaio, caso a tendência majoritária da jurisprudência enveredasse para sentido oposto. Entrementes, em nome da mesma segurança jurídica e da lógica que deve grassar para que ela seja alcançada, tenho que concluir que não é lícito ao credor condicionar a devolução do container ao prévio pagamento do valor de sobreestadia do contêiner. Penso, inclusive, que tal recusa poderia ensejar por parte do devedor o depósito em Juízo do cofre, por recusa injustificada do credor de receber a coisa de volta, o que desaguaria num imbróglio processual para o Poder Judiciário. Entre essa circunstância e concluir que os ratos não podem comer a lua, fico com a segunda opção, ainda que a detecção do sofisma seja tarefa que demande um pouco mais de atenção à lógica jurídica. __________ 1 Carlos Roberto Gonçalves in Sinopses Jurídicas, volume 05, Editora Saraiva 2 A natureza de indenização previamente fixada para o demurrage é a adotada pela maioria esmagadora dos precedentes, que também sempre citam a expressão 'mora' ou 'inadimplemento contratual', como fato gerador, comprovando que não se confunde com a prestação principal. No sentido vide C. Superior Tribunal de Justiça (REsp 1286209/SP, Relator Ministro João Otávio de Noronha, 3ª Turma, v.u., j. em 08/03/2016, neste com menção a outros - REsp n. 678.100/SP, Terceira Turma, relator Ministro Castro Filho, DJ de 5.9.2005; REsp n. 526.767/PR, Primeira Turma, relatora Ministra Denise Arruda, DJ de 19.9.2005; REsp n. 908.890/SP, Segunda Turma, relator Ministro Castro Meira, DJ de 23.4.2007; AgRg no Ag n. 932.219/SP, Primeira Turma, relator Ministro Teori Zavascki, DJ de 22.11.2007; e AgRg no Ag n. 950.681/SP, Primeira Turma, relator Ministro José Delgado, DJe de 23.4.2008 - REsp n. 1.295.900/PR, Primeira Turma, relator Ministro Benedito Gonçalves, DJe de 19.4.2013 e REsp 1554480/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T. v.u., j. 17/10/2017. No mesmo sentido, o E. TJSP: Apelação Cível nº 1022016-25.2022.8.26.0562, Apelação Cível nº 1017610- 92.2021.8.26.0562, o Apelação Cível nº 1006690-93.2020.8.26.0562 3 "A unidade de carga deve ser devolvida após do decurso do prazo de devolução e isenção fixado contratualmente. Denomina-se free time o prazo de isenção de demurrage , a contar do primeiro dia útil seguinte ao dia em que o container é posto à disposição do consignatário" (OCTAVIANO MARTINS, Eliane M. in Curso de Direito Marítimo - Volume III, Ed. Manole, pag. 536. Ed. 2015) 4 Idem 5 STJ - Resp 1.192.847/SP 6 TJSP - Autos 1019827-16.2018.8.26.0562 7 Flávia Morais Lopes Takafashi e Luciana Vaz Pacheco de Castro 8 In Porto, Mar e Comércio Internacional POR ELAS, Wista Brazil, pag. 173/174 9 Art. 331. Salvo disposição legal em contrário, não tendo sido ajustada época para o pagamento, pode o credor exigi-lo imediatamente 10 Art. 122. São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes; entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes. 11 Apelação Cível nº 1001698-55.2021.8.26.0562 12 TJSP Autos 1019827-16.2018.8.26.0562 13 RIPERT, Georges in A Regra Moral nas Obrigações Civis, Bookseller, pag. 182/183 14 TOSTA, Jorge e BENACCHIO, Marcelo in Negócio Jurídico - A interpretação dos Negócios Jurídicos  - Ed. Quartier Latin - Coordenação Armando Sérgio Prado de Toledo.
Em 1912, o naufrágio do Titanic, o navio mais imponente da época e então considerado como "inafundável", foi um evento que marcou o começo de uma série de mudanças no que tange à regulamentação internacional da segurança marítima. De início, as questões relativas à segurança dos tripulantes e passageiros, como a obrigatoriedade de uma quantidade de coletes e botes salva-vidas superior ao número de pessoas a bordo, foram implementadas internacionalmente. Posteriormente, em 1974, foi editada a Convenção Internacional para a Salvaguarda da Vida Humana no Mar (SOLAS), que em seguida sofreu sucessivos aprimoramentos. Além da SOLAS, as convenções internacionais que embasam esses compromissos incluem a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM, Jamaica 1982) e a Convenção Internacional de Busca e Salvamento Marítimo (Hamburgo, 1979). O recente caso do submarino Titan, cujos tripulantes buscavam alcançar exatamente o naufrágio do Titanic, deu início a novas discussões relativas às normas aplicáveis a esse tipo de embarcação. No presente texto, pretende-se analisar brevemente a regulamentação sobre submersíveis tripulados no Brasil, abordando também sucintamente as normas de salvaguarda nacionais em relação a buscas e salvamentos marítimos, que costumam ser empregadas nesses acidentes. Primeiramente, no âmbito militar, vale mencionar que, em 1914, o Brasil adquiriu seus três primeiros submarinos da classe Foca, projetados e construídos na Itália. Nos anos seguintes, o país adquiriu mais de vinte outros submarinos, possuindo, atualmente, cinco submarinos em operação. Em 2008, foi criado o Programa de Desenvolvimento de Submarinos (PROSUB), por meio de parceria entre o Brasil e França, visando o desenvolvimento de submarinos convencionais e de propulsão nuclear, com objetivo de fortalecer a capacidade de monitoramento e ampliação da atuação do país em operações marítimas de defesa. Confira-se a foto do maior submarino brasileiro existente, o Tikuna S-34: Visando à construção de submarinos de guerra nucleares, no ano de 2020, foi editada a lei 13.976/2020, alterando dispositivos da lei 6.189/74, para dispor sobre a competência do Comando da Marinha para promover o licenciamento e a fiscalização dos meios navais e suas plantas nucleares embarcadas para propulsão e do transporte de combustível nuclear. Em 2021, essa lei foi revogada pela Lei nº 14.222/21, que criou a Autoridade Nacional de Segurança Nuclear (ANSN), ampliando o controle e fiscalização do tema. Fora do âmbito militar, as Normas da Autoridade Marítima (NORMAM) -- conjunto de regulamentos emitidos pela Marinha do Brasil para estabelecer normas e procedimentos relacionados à segurança da navegação, segurança operacional, salvaguarda da vida humana no mar e proteção do meio ambiente marinho - contêm previsões específicas sobre submersíveis tripulados para turismo/diversão, como se verifica da NORMAM 01, capítulo 14. Vale notar inicialmente que, já nos primeiros itens da norma, datada de 2005, é afirmado que a "a operação de submersíveis tripulados para turismo/diversão é inteiramente nova, não se dispondo de larga experiência nessa atividade. Em decorrência, buscou-se reunir informações disponíveis em normas oficiais estrangeiras e em requisitos estabelecidos pelas Sociedades Classificadoras que, aliados à experiência adquirida pela Diretoria de Engenharia Naval na construção e na manutenção de submarinos militares, resultaram nestas Normas básicas." Em seguida, a NORMAM estabelece diversos requisitos a serem observados em relação a tais embarcações, valendo destacar os seguintes: A responsabilidade da operação em caso de socorro e salvamento do submersível é de seu proprietário/armador, que pode ser responsabilizado de forma penal por qualquer ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência que cause violação de direitos ou prejuízos à integridade física ou ao patrimônio de terceiros; A área de operação do submersível precisa ser aprovada pela Capitania dos Portos da área de jurisdição e deve respeitar a profundidade máxima igual ou inferior à sua profundidade máxima de operação; A Licença de Construção, concedida por uma Sociedade Classificadora, é requisito fundamental para a bandeira nacional em submersíveis construídos no Brasil ou no exterior; O submersível só poderá operar no período diurno, isto é, do nascer ao pôr do sol, em condições de mar e vento até força 2 na escala Beaufort e com visibilidade mínima de duas milhas; Após a construção, para obtenção da inscrição, o submersível deverá ser submetido a uma Vistoria Inicial pela Sociedade Classificadora reconhecida. Após aprovados por essa Sociedade Classificadora, os resultados dos testes e inspeções realizados durante a Vistoria Inicial deverão ser encaminhados à DPC; Para garantir que a operação do submersível esteja sendo realizada dentro dos limites de segurança, deverá ser estabelecido para o submersível um programa de manutenção preventiva periódica. Este programa deverá fazer parte de um Manual de Manutenção que apresente todas as rotinas de manutenção que deverão ser cumpridas; e A operação comercial só poderá ser iniciada após uma avaliação operacional do submersível realizada pela DPC. Além disso, a norma também estabelece requisitos mais específicos em relação à segurança. Confira-se: É obrigatória a contratação de seguro de danos pessoais causados por embarcações, de forma a possibilitar indenizações por morte, invalidez permanente e despesas de assistência médica e suplementares, nos valores que o Conselho Nacional de Seguros Privados fixar; A embarcação de apoio, primordial para a condução de operação de submersíveis, deverá ter a responsabilidade pela coordenação das operações de resgate no local, até ser substituída por autoridade de responsabilidade superior, não abandonando, em qualquer hipótese, o local do sinistro; O Manual de Operações, enviado à Sociedade Classificadora com cópia física a bordo do submersível, deverá conter, de forma clara e objetiva, todos os procedimentos a serem cumpridos no caso de ocorrência de situações de emergência, inclusive aquelas que impeçam o submersível de voltar à superfície e um procedimento detalhado para reflutuação e/ou içamento do submersível; e O armador/proprietário deve ter equipamentos e pessoal qualificado, permanentemente mobilizado, para eventuais necessidades de assistência e salvamento do submersível por içamento ou reflutuação. Tais recursos devem constar de um Plano de Salvamento. Apesar da existência dessas normas, a construção e desenvolvimento de submarinos tripulados para diversão ou turismo no Brasil ainda é muito rara, uma vez que tais embarcações, em razão do seu alto custo e complexidade, têm sido construídas por estaleiros e indústrias especializadas em parceria com as Marinhas e forças navais de outros países. O lamentável acidente com o Titan, entretanto, acende um alerta quanto à necessidade de observância da regulação sobre o assunto. De fato, com o rápido avanço tecnológico, mostra-se também necessária a revisão e aprimoramento das normas existentes prevendo requisitos atualizados de segurança quanto a essas embarcações, bem como novos certificados e demais inspeções necessárias, a fim de, senão afastar completamente, reduzir os riscos de segurança inerentes a esses equipamentos e atividades exploratórias, sejam com fins comerciais ou turísticos. Nos Estados Unidos, há também regras específicas para a operação de submersíveis dentro e fora dos portos e em águas dos EUA, como aquelas estabelecidas no Título 46 do "Código de Leis dos Estados Unidos", no "Navigation And Vessel Inspection Circular NO. 5-93", assim como no Capítulo 1, do Título 33, do "Code of Federal Regulations" e no "Federal Requirements and Safety Tips for Recreational Boats". Mesmo assim, o diretor do filme Titanic, James Cameron, que é membro da pequena, mas unida comunidade de submersíveis ou indústria de veículos submarinos tripulados (MUV), defendeu, após o acidente com o Titan, a criação de regulações mais específicas e rígidas que exijam certificados de conformidade para operação e utilização dessas embarcações para fins turísticos. No entanto, para que tais regulações sejam eficazes, seria necessário também a aprovação e implementação em todos os países onde submarinos são operados, bem como em águas internacionais, de onde o Titan, como noticiado, foi lançado. Já no âmbito das atividades de Busca e Salvamento (SAR) marítimo, conforme estabelecido em convenções internacionais das quais o país é signatário, a Marinha implementou e opera o Serviço de Busca e Salvamento Marítimo, que tem como objetivo responder a emergências relacionadas à salvaguarda da vida humana no mar, tanto em águas oceânicas quanto em vias navegáveis interiores. O Serviço de Busca e Salvamento Marítimo do Brasil, então, segue as regras estabelecidas nessas convenções, regulamentadas pela Organização Marítima Internacional (IMO), incluindo (i) a operação do Sistema Marítimo Global de Socorro e Segurança (GMDSS), (ii) a divulgação de Informações de Segurança Marítima (MSI), o estabelecimento de uma Região de Busca e Salvamento (SRR), (iii) a existência de Centros de Coordenação SAR (MRCC/RCC) conforme necessário, (iv) a disponibilidade de meios adequados para atender a emergências SAR e (v) a organização de um Sistema de Informações de Navios. Além disso, quando necessário, há coordenação com o Sistema de Busca e Salvamento Aeronáutico. Por exemplo, após o desaparecimento do voo AF447 em junho de 2009, foi iniciada uma operação de busca e resgate coordenada pelo SALVAMAR BRASIL (MRCC BRAZIL), com o emprego de navios de patrulha e resgate, além de aeronaves de busca e helicópteros, além de terem sido utilizados submarinos no processo de busca que perdurou mais de dois anos. De modo geral, a supervisão das atividades do Serviço de Busca e Salvamento Marítimo é responsabilidade do SALVAMAR, localizado na cidade do Rio de Janeiro. Devido às dimensões da SRR Marítimo do Brasil, ela foi dividida em sub-regiões sob a responsabilidade dos Centros de Coordenação SAR regionais. Confira abaixo: Assim, em caso de perigo ou emergência, os marítimos que estiverem navegando nessas regiões têm a opção de solicitar ajuda utilizando os recursos do GMDSS disponíveis a bordo ou entrar em contato diretamente com o SALVAMAR BRASIL ou, dependendo de sua localização, com os respectivos Centros de Coordenação SAR regionais. Em resumo, ao longo dos anos, a regulação internacional de segurança marítima passou por transformações significativas, impulsionadas por eventos trágicos, como o naufrágio do Titanic. A implementação da Convenção SOLAS e outras convenções internacionais resultou em melhorias na segurança dos tripulantes e passageiros, estabelecendo obrigações e normas para prevenir acidentes e proteger vidas no mar. Acidentes como o ocorrido com o submarino Titan, profundamente lamentáveis e chocantes, conferem uma oportunidade e demandam que a regulação de segurança aplicável a embarcações especializadas, como submarinos tripulados, seja aprimorada, revista ou ampliada, visando diminuir ao máximo possível os riscos existentes em relação a equipamentos submarinos que, embora fascinantes sob o ponto de vista marítimo, são cada vez mais arrojados. Referências  Personal Submersibles Organization. "US Federal Government Submersible". Disponível aqui. Marinha do Brasil. "Meios Navais". Disponível aqui. Marinha do Brasil. "Convenção SOLAS". Disponível aqui. Marinha do Brasil. "NORMAM - Normas da Autoridade Marítima". Disponível aqui. Marinha do Brasil. "Salvamar". Disponível aqui. Reuters. "Titanic sub: How is submersible tourism regulated and what's next for industry?" Disponível aqui. Curbed. Why Was OceanGate's Titan Submarine So Unregulated? Disponível aqui.
Imagine-se, caro leitor, diante de uma complexa causa envolvendo apuração de responsabilidades no Direito Marítimo e você tendo que se preparar psicologicamente para atuar nela; seja como advogado ou juiz. Tomemos agora como exemplo desta causa complexa o encalhe do Navio Ever Given no Canal de Suez, caso exaustivamente citado e explicado nesta mesma coluna pelos doutores Lucas Marques, Marcelo Muniz e Wellington Camacho1. No momento que você é profissional do Direito destacado para atuar num caso deste naipe, antes mesmo da análise dos autos, é importante você esperar que um acidente desta envergadura terá várias causas a culminar no infausto. O aparato tecnológico dos navios modernos, o cuidado com o volume de carga e cifras envolvidas, o profissionalismo das pessoas imiscuídas no deslocamento de milhares de contêineres, o custo da utilização de vias de navegação importantes como é o Canal de Suez e a consequente influencia mundial do tráfego de comodities, pressupõem que várias causas tenham que estar consorciadas para que a teia de segurança seja superada e o acidente ocorra. Para o Direito, quando várias causas estão envolvidas no evento danoso, deve-se  considerar a utilização da teoria das concausas para deslinde jurídico da questão. Na Apelação nº 1029615-59.2015.8.26.0562, o Desembargador Franciso Giaquinto, do Tribunal de Justiça de São Paulo assim procedeu quando - ao julgar um caso concreto - considerou que "(...) a inicial é clara ao estabelecer concausas para o evento danoso noticiado pela autora, consignando que os danos poderiam advir não apenas de erro durante a operação de ova das bobinas, mas também de provável alocação inadequada do contêiner dentro do navio." Se a teoria das concausas é utilizada para danos menores em acidentes e fatos da navegação, vale também para casos de monta monstruosa, como é o do Even Given no Canal de Suez. Relatório recente capitaneado pela autoridade marítima do Canal do Panamá sobre o acidente ocorrido no Canal de Suez com o N/V Even Given2, identificou as (con)causas do acidente da navegação em comento, concluiu que várias circunstâncias estiveram ligadas ao encalhe do navio e aos prejuízos que vieram dele. Aliás, para ser mais preciso, cabe notar que referido relatório indicou que vários fatores e eventos foram os causadores do encalhe. O relatorio indica que 'durante a navegação do M/V Ever Given no Canal de Suez, em 23 de março de 2021, uma série de eventos e fatores influenciaram para o encalhe do navio'3, todos eles desaguando na causa principal que foi a perda de manobrabilidade da embarcação. Fatores como velocidade e direção do vento e efeitos hidrodinâmicos da navegação do canal se consorciaram a fatores como babelismo entre Práticos, Tripulantes e Capitão na torre de comando do navio, que dificultou a comunicação entre eles e, por consequência, a compreensão de ordens, além da má avaliação das condições climáticas e dimensionamento da embarcação no momento da travessia do canal e ausência de equipamentos preventivos do navio contra condições climáticas adversas, entre outras. Pontes de Miranda, se vivo fosse, talvez dissesse que o encalhe do Ever Given tenha se dado por uma confluência de atos, fatos e atos-fatos jurídicos. As autoridades marítimas deram a atribuição de eventos e fatores, linguagem que deve ser traduzida para termo unívoco nos argumentos e fundamentos jurídicos; seja nas razões das partes, seja na fundamentação do julgamento. E nesta altura do artigo, o leitor deve estar se preguntando o que o queijo suíço tem a ver com tudo isso. A ciência da segurança[4] procura informar a tomada geral de decisões e neste processo apresenta o Modelo do Queijo Suíço como ferramental para a boa decisão. Segundo este modelo, os buracos de uma fatia de queijo suíço são os eventos e fatores que se podem encontrar numa situação potencialmente danosa. O container enferrujado que pode causar dano à carga, a peação indevida do container, a falta de equipamentos para enfrentar uma tempestade, enfim cada uma dessas causas significa um buraco em uma fatia de queijo suíço. Para que se atinja a segurança da navegação não se espera que a aventura no mar seja sem furos - aliás, se assim fosse não seria uma aventura. O que se espera no Modelo do Queijo Suíço é que ao colocar várias dessas fatias, uma ao lado da outra, os furos não vão estar na mesma posição, a ponto de se poder ver entre todas as fatias sobrepostas. Sempre haverá um pedaço maciço de queijo a garantir o vácuo do buraco da fatia anterior. Muitas cargas e passageiros chegam a seu destino depois de uma fatia de queijo ter resguardado a segurança que outra fatia falhou em garantir, por ter nascido com um buraco. É a previsibilidade humana tomando em conta a falibilidade humana ou ocorrência de fatos da natureza. Para que um sinistro ocorra depois de um processo de segurança tão grande, há que se pressupor uma infeliz confluência de sobreposição de todos os buracos, de todas as fatias de queijo, a ponto de uma linha reta passar, ao mesmo tempo, entre todos eles. Como se fosse uma haste de madeira da desventura passando por todos os buracos, sem encontrar barreiras. Eis a teoria das concausas explicada pela ciência da segurança. E como o jurista estará preparado para lidar com tudo isso? Entendendo de antemão que o advogado pretenderá indicar que o furo da fatia de queijo de seu cliente deve ser analisado sem que se perca de vista o furo da fatia de queijo de outro player da aventura marítima; entendendo ainda que compete ao Juiz dar a cada fatia de queijo o que é seu e responsabilizar cada fatia de queijo pelo furo que lhe pertence, será atingido o julgamento a contento da questão. A complexidade e a vultuosidade econômica das causas marítimas não permitem a credulidade dos juristas de que haverá facilidade de provar a causa única do sinistro ou chance de sentenciar o processo de forma simplória, condenando apenas a fatia detentora de um dos furos. Se a infeliz coincidência da sobreposição de furos houve, a sintonia fina de encontrar as várias causas do fastidioso evento é que mostrará o profissional do direito preparado para o deslinde justo da questão. Em momentos de lazer, naqueles que supostamente queremos fazer tudo que não seja pensar em trabalho, talvez nos puséssemos a ler The Perfect Storm5de Sebastian Junger sem nos darmos conta de que a tempestade perfeita em questão foi também uma confluência de fatores naturais que geraram uma das mais devastadoras tragédias naturais da América do Norte. Ora, se até mesmo as forças da natureza confluem seus infaustos, por que o Direito não deveria considerar tais confluências para um julgamento justo? O Direito mimetiza a vida de forma muito parecida com a arte. Deste modo, a justiça de se trazer para as barras dos tribunais as Desventuras em Série6 de uma aventura marítima e a fineza de toque de considerar as minúcias e sutilizas dessas questões faz descortinar o preparo psicológico e jurídico do jurista destacado para um caso desta envergadura. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Tradução livre e sem destaques o original 4 STOOP, John; DE KROES, Jan; HALE, Andrew in Safety Science, a fouding father's retrospection. Consultado aos 18 de julho de 2023. S0925753517300589. 5 Em português: A Tormenta 6 Referência à obra de Daniel Handler.
A sobre-estadia é instituto próprio do direito marítimo e há muito integra a chamada Lex Mercatoria, podendo ser definida como o valor devido quando do atraso na devolução do contêiner, após esgotado o período livre concedido, conhecido como "franquia" ou "free time". Trata-se de uma espécie de indenização previamente estabelecida, na medida em que seu valor está estabelecido em tabela própria do armador, em geral, de caráter progressivo.  Assim, considerando que o transportador utiliza-se das unidades de contêiner para realizar seus contratos de transportes, não é demasiado concluir que a permanência prolongada do equipamento na custódia do consignatário gera desequilíbrio econômico, já que a atividade principal do transportador é vender frete, e frete representa espaço disponível no navio. Em se tratando de navio de carga conteinerizada, indispensável a reutilização do equipamento1. A controvérsia posta, para delimitação do tema, está na possibilidade ou não da chamada cobrança "à vista" da sobre-estadia e no alegado impedimento para devolução do contêiner, sem o seu pagamento.  Primeiramente, para encaminhamento do raciocínio, convém anotar que inexiste, no caso, como regra, relação de consumo ou parte hipossuficiente. A relação jurídica é de insumo e não de consumo.  Sequer haverá de se cogitar de parte hipossuficiente a justificar a aplicação da chamada Teoria Finalista Mitigada, reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça no CC 92.519/SP. Aqui, as partes estão acostumadas com as práticas comerciais do transporte marítimo de cargas e cientes dos riscos e consequências do negócio. Não há ingênuos nesse ramo empresarial. Portanto, estamos a tratar de um contrato empresarial de lucro, sem relação de consumo e sem partes hipossuficientes, a atrair o disposto nos artigos 421, § Único, e 421-A, incisos II e III, ambos do Código Civil. Isso significa que, estando as partes cientes dos riscos alocados no negócio, habituadas que estão com a obrigação empresarial assumida, ao Estado impõe-se o dever de intervenção mínima na relação jurídica, apenas excepcional. Repito, por ser importante, está-se diante uma relação empresarial privada e, como regra, imune à intervenção estatal que, se efetivada, estará a desestabilizar toda uma cadeia globalizada e precificada segundos riscos conhecidos e assumidos. Não há espaço para o que chamo de "Estado Babá". Afirmado isso em preliminar, digo que, ao meu sentir, é possível a cobrança à vista da sobre-estadia, na medida em que a obrigação de pagar passou a existir imediatamente após a superação do período livre contratualmente ajustado entre as partes e independentemente de qualquer ato jurídico do credor para fins de constituição em mora. A cobrança à vista da sobre-estadia está prevista em lei, mais precisamente no artigo 331, do Código Civil2. Existindo a obrigação, não tendo sido ajustado pelas partes prazo para pagamento, nem havendo disposição legal em sentido contrário, constitui faculdade do credor exigir o seu pagamento de imediato, sem qualquer ato prévio de constituição em mora ou providência jurídica semelhante. Nessas condições, é direito potestativo do credor exigir o pagamento imediato, não havendo, na lei, qualquer ato do devedor capaz de obstar ou reduzir essa prerrogativa que assiste ao credor da obrigação. Aliás, importante destacar o emprego do vocábulo "imediato" pelo legislador, a reforçar ideia da força do direito que assiste ao credor. Além da previsão legal, também é importante o destaque no sentido de que, no mais das vezes, a cobrança à vista decorre do próprio ajuste de vontades das partes, instrumentalizado no contrato de transporte. Contratos são celebrados para ser cumpridos. Portanto, não cumprida a obrigação no prazo ajustado, está em mora o devedor, facultando ao credor exigir o seu pagamento imediato, não representando a mera insatisfação com a forma de cobrança da sobre-estadia qualquer hipótese do seu afastamento, permanecendo ela - mora - até a efetiva devolução dos contêiners. Portanto, penso eu, é incorreto afirmar que houve o que se convencionou propositadamente chamar de "cobrança antecipada" de sobre-estadia, para travestir de ilícito o que é lícito, na medida em que houve tão somente cobrança à vista - imediata nos termos da lei -, em consonância com o disposto no artigo 331, do Código Civil e, eventualmente, com o ajustado em contrato. Havendo amparo na lei e no contrato, não há recusa injustificada no recebimento dos contêineres sem o pagamento da sobre-estadia. Por honestidade intelectual com o leitor, cito jurisprudência do Tribunal de Justiça de São Paulo3 a respeito da possibilidade da cobrança à vista da sobre-estadia, fundada no artigo 331, do Código Civil, e no contrato, porém é possível encontrar outras em sentido contrário a essa mesma tese. Se o leitor me permitir, ainda sobre esse tema, pretendo ir mais além. Pretendo lançar ao debate dois institutos de relevo para nossa reflexão, a saber: i) a autotutela, com a proposta de um olhar para o presente; e ii) o abuso do direito, com uma vertente para o direito de ação e seu desvirtuado uso como forma de perpetuar a inadimplência.  Sobre o primeiro - autotutela -, de saída, repito, que não se trata de meio forçado de cobrança implementado pelo credor. Isso porque se coloca o fato descrito, propositadamente, travestido com essa natureza, visando transformar o lícito em ilícito, porém não é disso que se trata.  Admito que é tênue a linha que separa o exercício regular do direito e o exercício arbitrário das próprias razões, mas não pode ser arbitrário o que decorre de previsão legal e contratual, protegendo a boa-fé do credor da obrigação em detrimento da má-fé do devedor que prefere a inadimplência ao pagamento.  Ainda que assim não fosse, com os holofotes voltados para um olhar do estado atual das relações sociais, é interessante registrar que a autotutela não se trata de instituto desconhecido do direito brasileiro.  Veja-se os seguintes casos no Código Civil: i) a legítima defesa e o estado de necessidade (Código Civil, art. 188); ii) a legítima defesa e desforço imediato na proteção possessória (Código Civil, art. 1.210, § 1º); iii) a autotutela de urgência nas obrigações de fazer ou não fazer (Código Civil, art. 249 § único e art. 251, § único); e iv) o direito de retenção de bens (Código Civil, arts. 578, 644, 1.219, 1.433, II, 1.434). Quando falo de olhar para o presente, estou a me referir ao fato de que a inexistência de previsão específica para a situação da sobre-estadia se justifica porquanto as normas citadas são repetições de anterior previsão já contida no Código Civil de 1916, quando não se concebia o transporte marítimo de carga via contêiner com a pujança dos dias atuais, muito menos se cogitava de uma cultura permissiva da inadimplência, invertendo-se os polos da boa-fé. Interessante é verificar que, na hipótese da autotutela decorrente do direito de retenção de bens, a retenção, nos termos da lei civil, existe como forma de garantia do pagamento da obrigação assumida. Na hipótese do desforço imediato, nas relações possessórias, a garantia é do direito de posse do bem. E possível citar, ainda, inúmeras outras relações contratuais atuais que trazem em seu conteúdo previsões típicas de autotutela, a título de exemplo, os contratos bancários, os contratos de locação de veículo e os chamados smart contracts, a revelar a plena aceitação do instituto mesmo sem previsão legal expressa. Aliás, de arremate, com base nas regras de experiência comum, confira-se o procedimento da locação de veículos, em que as operadoras, de posse prévia do cartão de crédito do locatário, na hipótese de devolução com atraso, cobram "à vista", - de imediato -, os valores dos dias excedidos. Aqui, sequer se cogita de agendamento ou procedimento parecido. Devolveu com atraso, pagou! É a autotutela em seu grau máximo.  No tocante ao segundo ponto - abuso do direito -, afirmo que no cenário ideal das relações empresariais, sequer haveria de se cogitar de qualquer mecanismo para imposição de obrigações contratuais regularmente assumidas. O contratante, acredita-se, não contrai obrigação para descumprir. O cumprimento voluntário da obrigação assumida é o caminho natural no universo da boa-fé. Nem tudo são flores! Nas relações contratuais, assume hoje papel de destaque, como vetor de conduta, a boa-fé objetiva do artigo 4224, do Código Civil e a teoria do abuso do direito, do artigo 1875, do mesmo Código Civil. Sobre a teoria do abuso do direito, Flávio Tartuce, ao falar sobre a responsabilidade civil, afirma que "... a construção, atualmente, tem duas pilastras, estando aqui a principal alteração estrutural da matéria de antijuridicidade civil no estudo comparativo das codificações brasileiras. Frise-se que a modificação também atinge a responsabilidade contratual, pois o art. 187 do CC/2002 também pode e deve ser aplicado em sede autonomia privada..."6. Sem destaques no original. Os conceitos de boa-fé-objetiva e abuso do direito estão intimamente relacionados, bastando para tanto observar a menção expressa que faz da boa-fé o disposto no artigo 187, do Código Civil. Rubens Limongi França conceitua o abuso do direito como sendo um "ato jurídico de objeto lícito, mas cujo exercício, levado a efeito sem a devida regularidade, acarreta um resultado que se considera ilícito"7.  É o ato lícito no objeto, mas ilícito por seu modo de execução. No cotidiano forense, assiste-se a perpetuação da inadimplência das obrigações, no mais das vezes, valendo-se o devedor de ações judiciais habilmente manejadas para esse fim, colocando ele, devedor, na posição de soberano no reino da inadimplência, restando ao credor ser mero súdito. Os princípios da boa-fé objetiva e da vedação ao abuso do direito, inclusive o de ação, devem ser conjugados para obstar tal modo de agir. No que ordinariamente acontece, a partir da análise empírica dos fatos, o devedor se vale do presente tipo de ação, exclusivamente, para, a partir da devolução do contêiner, sem o pagamento da sobre-estadia, perpetuar a sua inadimplência, valendo-se também de mecanismos de blindagem patrimonial. A ação judicial está à serviço do não cumprimento da obrigação. É preciso, portanto, um novo olhar a partir da ideia de boa-fé objetiva, reveladora de standards positivos de conduta na relação contratual (antes, durante e depois), bem como a partir da vedação ao exercício abusivo do direito de ação com o fim de perpetuar a inadimplência, em evidente desvio de finalidade da previsão constitucional do artigo 5º, inciso XXXV, da CF8.  Em conclusão, me permito afirmar que: 1- A sobre-estadia é instituto inerente ao direito marítimo; 2- Nas relações decorrentes do transporte marítimo de carga não há, como regra, relação de consumo ou imposição de regras contratuais decorrentes de típico contrato de adesão; 3- A cobrança da sobre-estadia à vista tem previsão legal no Artigo 331, do Código Civil, ainda que não prevista na relação contratual; 4- A cobrança da sobre-estadia pode ter previsão contratual, decorrente do ajuste de vontades das partes quanto à essa forma de cobrança; 5- O instituto da autotutela não é desconhecido do direito brasileiro e está a exigir um novo olhar a partir de novas práticas empresariais e do estado atual das relações sociais; 6- O direito constitucional de ação não pode ser exercido de modo abusivo com vistas à perpetuação da situação de inadimplência; 7- Ao senso de justiça comum, a obrigação é para ser cumprida conforme convencionada, sob pena de violação da boa-fé objetiva. __________ 1 GIBERTONI. Carla Adriana Comitre. Teoria e Prática do Direito Marítimo. 3ª Edição. 2014. Ed. Renovar. p. 447. 2 Salvo disposição legal em contrário, não tendo sido ajustada época para o pagamento, pode o credor exigi-lo imediatamente. 3 Legitimidade para a causa - Ação de obrigação de fazer c.c. indenização por danos morais Transporte marítimo Autora que é proprietária da carga armanezada nos contêineres de propriedade da ré, sendo parte legítima para pleitear judicialmente a devolução das unidades de armazenamento Preliminar suscitada pela ré afastada. Ação de obrigação de fazer c.c. indenização por danos materiais Transporte marítimo. Suposta recusa da ré em receber os contêineres vazios antes do pagamento do valor relativo às sobrestadias Sentença de procedência da ação Pedido de reforma Cabimento Alegado condicionamento do recebimento dos contêineres ao prévio pagamento das sobrestadias não demonstrado Sistema da ré que exige, para que o portador do contêiner agende a sua devolução, o comprovante de agendamento do pagamento das sobrestadias, com vencimento para até 24h da efetiva devolução da unidade de carga Prática que não se confunde com a negativa de recebimento dos contêineres sem o prévio pagamento das sobrestadias - Contraprestação relativa à sobrestadia de contêiner que é devida, sempre que escoado o período de "free time" Exigência da ré que tem amparo no art. 331 do CC - Autora que não fez pedido expresso acerca de eventual inexigibilidade do valor relativo às sobrestadias, nem negou ter excedido o "free time" vigente para os contêineres que estavam em sua posse Autora que se limitou a afirmar que, de sua parte, não houve pacto acerca do "free time" e dos termos da cobrança Irrelevância na hipótese vertente Autora que, ao portar os contêineres, tornando-se parte legítima para pleitear a sua devolução, deve inteirar-se das condições em que se dá a sua utilização, as quais constaram do conhecimento de transporte Desnecessidade de ajuste expresso para se exigir a contraprestação pela sobrestadia de contêineres - Contratos de transporte marítimo que revelam forte influência dos usos e costumes da região que são entabulados Recusa da ré em proceder ao agendamento da devolução do contêiner nos termos pretendidos pela autora que não se revelou ilegítima Pedido obrigacional da autora rejeitado. (TJSP, Apelação Cível nº 1005951-86.2021.8.26.0562, da Comarca de Santos, 23ª Câmara de Direito Privado, São Paulo, 26 de abril de 2023, Relator Desembargador José Marcos Marrone). Grifei. 4 Artigo 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. 5 Artigo 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. 6 Manual de Direito Civil, Flávio Tartuce, p. 517, Editora Método. 7 Enciclopédia Saraiva de Direito, p. 45, Ed. Saraiva. 8 Artigo 5º... XXXV a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
No último dia 5 de julho o Tribunal Marítimo celebrou 89 anos da sua criação. A data chama a oportunidade de algumas considerações. Poucos tribunais administrativos no Brasil são assim longevos. Dentre os de sua espécie talvez os únicos que lhe superem a existência sejam os Tribunais de Contas ¾ o da União remontando sua instituição à Constituição de 1891, e, no âmbito estadual, o Tribunal de Contas de São Paulo, nascido em 1924. Como frequentemente lembrado, a motivação para o estabelecimento de um Tribunal Marítimo no Brasil foi o trágico incidente com o navio "BADEN", no ano de 1930. A fagulha inicial no direito positivo para que o órgão viesse a ser criado se deu através do decreto 20.829/1931, sem, todavia, que o Tribunal fosse, de fato, desde logo instalado, suas atribuições definidas e respectivas atividades iniciadas. Foi afinal somente com o decreto 24.585 de 5 de julho de 1934, o qual criou o Regulamento do Tribunal Marítimo, que aconteceu o sopro a insuflar vida naquele corpo jurídico até então meramente abstrato, despido de força vital. Daí porque essa veio a ser a data de partida do aniversário que hoje celebramos. E desde então o Tribunal Marítimo surgiu no quadro jurídico-institucional brasileiro como órgão administrativo especializado dedicado a duas funções centrais: (i) ao inédito julgamento dos acidentes e fatos da navegação, com a determinação das suas causas, apuração das responsabilidades e imposição de penalidades em caso de condenação, e, simultaneamente; (ii) ao registro da propriedade marítima, que era anteriormente conferido, pasme-se, a uma variedade completamente díspar e descentralizada de órgãos, a saber, pela ordem, primeiramente aos Arsenais de Marinha das capitais, depois às Capitanias dos Portos onde não houvesse arsenais, a seguir às Alfândegas e Mesas de Renda onde não existissem repartições das Capitanias, e, finalmente, às Delegacias do Tesouro na ausência de Capitanias e repartições aduaneiras. Essa breve nota histórica ressalta, do ponto de vista jurídico, a absoluta inovação, a intensa transformação, introduzida no Direito brasileiro com o advento do Tribunal Marítimo. Uma mudança radical, criando, de um lado, atividade de polícia administrativa onde antes o Estado se fazia ausente, e, por outro, centralizando assentos que até então se mostravam dispersos e caóticos. Só por isso a criação do Tribunal Marítimo já estaria plenamente justificada à luz do ordenamento jurídico brasileiro. Mas, uma vez nascido, o Tribunal seguiu, como seria de se esperar, sua própria trajetória em função das competências que lhe foram legalmente designadas. Muito se tem escrito e falado, não sem interesse, sobre o Tribunal Marítimo sob a perspectiva de sua criação e atribuições. Mas, neste breve artigo, gostaríamos de propor uma perspectiva diferente, uma visão prospectiva da sua caminhada, falar das transformações pelas quais este órgão singular tem passado, porém enquanto plataforma para o seu futuro. Nota-se que frequentemente passam despercebidas à comunidade marítima sucessivas mudanças que vêm sendo introduzidas no Tribunal Marítimo, sem solução de continuidade, ao longo de diversas gestões, com o objetivo de conduzi-lo rumo à modernidade. Tais transformações nada obstante têm sido de significativa importância, merecendo destaque, sobretudo em data tão expressiva. Ilustrativamente, podem ser mencionados: 1) os anos e anos de seguidos cuidados com a estrutura quase bicentenária do prédio que abriga o Tribunal, com introdução de diversas adaptações e melhorias físicas necessárias, a citar a modernização das salas das audiências e de sessão plenária; 2) a instituição dos processos integralmente eletrônicos relativos a acidentes e fatos da navegação; 3) a realização de sessões e sustentações on-line, permitindo o fácil acesso aos julgamentos pelos administrados e seus advogados em todo o país; 4) a significativa ampliação do acervo da biblioteca do Tribunal Marítimo com a possibilidade de consultas também on-line; 5) a recente instituição de um plenário virtual para a mais célere apreciação da admissibilidade de representações; 6) e melhorias procedimentais internas refletindo-se em prazos menores pela Divisão de Registros para a prática de atos e de emissão de certidões. Todas essas transformações, ressalte-se, sempre realizadas em prol da maior eficiência, celeridade e duração razoável dos procedimentos de competência legal do Tribunal. Em suma: mudanças a serviço da sociedade, traduzindo-se em desfrute de cidadania pelos administrados que vêm ao Tribunal Marítimo na busca do seu direito aos serviços públicos que a lei cometeu a esta Casa prestar aos brasileiros. E como a roda da vida não para, novas mudanças se prenunciam num futuro já ao alcance da mão. Exemplificativamente, em breve sobrevirá a necessidade de regulamentação interna dos atos registrais cabíveis sob a nova política para a navegação, a BR do Mar. Ademais, espaço ainda existe para a introdução de tecnologia e modernização nos procedimentos na Divisão de Registro do Tribunal. E, de resto, avanços tecnológicos incessantes trazem, a todo o dia, os correspondentes desafios de sabermos utilizá-los de forma segura no âmbito jurídico-processual. Portanto, em um balanço geral, como se pode constatar, a trajetória do Tribunal Marítimo tem sido virtuosa, infensa à inércia, estagnações ou equívocos de rota. Sua contínua evolução tem sido um trabalho voltado a que o futuro repita esse presente virtuoso com suas próprias marcas. Neste Brasil onde, na condição de cidadãos, tantos pleitos e reclamos ainda temos quanto ao funcionamento da Administração Pública em suas três esferas, constitui sem dúvida motivo de satisfação constatar o Tribunal Marítimo como parte integrante dos territórios verdadeiramente funcionais da coisa pública nacional. E que o Tribunal Marítimo siga em frente nessa trajetória meritória de vem adotando. Pois navegar é preciso.
No corrente mês, o Egrégio Tribunal Marítimo completa oitenta e nove anos de atividade. Assim, nesse momento de celebração, impõe-se a realização de uma reflexão sobre o relevantíssimo papel desempenhado pela Corte Marítima e sobre o prestígio que sempre foi concedido ao advogado maritimista militante nos belos corredores do histórico prédio situado na praça XV no Rio de Janeiro. O Tribunal Marítimo é um órgão administrativo autônomo, vinculado ao Ministério da Marinha, que tem como função precípua analisar e julgar os fatos e acidentes da navegação, após a conclusão do inquérito administrativo pela Capitania dos Portos com jurisdição sob o local do evento. Com efeito, uma retrospectiva histórica faz-se necessária para entender como a justiça marítima alcançou a configuração que possui hoje. Após o caso envolvendo o navio Baden, em 21.12.1931 - o qual já foi objeto de artigo anterior nesta coluna1 - por meio do Decreto nº 20.829, foi criada a Diretoria da Marinha Mercante, órgão diretamente subordinado ao Ministério da Marinha, e planejada a criação dos chamados Tribunais Marítimos Administrativos (denominação empregada à época), subordinados à essa nova Diretoria. Todavia, imperioso salientar que o referido decreto implementou tão somente o funcionamento do Tribunal Marítimo Administrativo do Rio de Janeiro - à época Distrito Federal - tendo lhe sido atribuída jurisdição sobre todo o território nacional. Estrutura esta que ia de encontro ao anteprojeto elaborado por Hugo Gutierrez Simas, José Domingos Rache e José Figueira de Almeida, que previa a criação de seis tribunais marítimos. Subsequentemente, em 1933, através do Decreto 22.900, o Tribunal Marítimo Administrativo foi desvinculado da Diretoria da Marinha Mercante, passando à subordinação do Ministro da Marinha. Contudo, a criação da Corte Marítima considera-se como tendo ocorrido apenas em 1934, uma vez que seu Regulamento apenas foi criado pelo Decreto nº 24.585, promulgado em 5 de julho de 1934. A Justiça Marítima do Brasil, naquela data, lançava sua pedra fundamental, recebendo virtuoso impulso. Nas palavras do Vice-Almirante Henrique Aristides Guilhem, Ministro da Marinha à época, em seu relatório ao Presidente da República datado de março de 1937, o Tribunal era uma demanda da sociedade, em especial daqueles que atuavam no comércio sobre águas: "Há muito, todos os que tinham interesses ligados ou dependentes da nossa Marinha Mercante, do transporte sobre agua no Brasil, reclamavam a creação de um órgão technico para a apreciação rápida e segura de toda a sorte de acidentes da navegação no nosso imenso litoral e vias navegáveis. Este órgão foi creado ao impulso do espirito de renovação que ultimamente atingiu a Administração Brasileira." (texto extraído do original, na língua portuguesa vigente à época) Coincidente, apenas alguns anos antes, nascia a Ordem dos Advogados do Brasil, por via do Decreto 19.408 de 1930, de lavra do Presidente Getúlio Vargas e do Dr. Oswaldo Aranha, na qualidade de Ministro da Justiça. Logo, é possível perceber que tanto no Decreto que fez instalar o Tribunal Marítimo, como naquele que criou a Ordem dos Advogados, o espírito de renovação e modernização da sociedade brasileira se faziam presentes. Com efeito, deve-se ressaltar que as histórias das duas instituições se entrelaçam por esses quase 90 anos de história, sempre tendo sido resguardado um grande prestígio pelo Tribunal Marítimo aos advogados que nesta corte atuam. A maior expressão deste prestígio encontra-se na obrigatoriedade de necessidade da capacidade postulatória para exercer a defesa dos Representados perante a Corte Marítima, questão esta que foi expressamente positiva no artigo 31 da Lei 2.180/54, mas que remonta desde os primórdios da criação do Tribunal Marítimo. Isso porque, o processo no Tribunal Marítimo, nos termos do seu Regulamento de 1934, em seu revogado artigo 49, previa a possibilidade de interposição de Recurso Extraordinário para o Supremo Tribunal Federal em face da decisão proferida pela Corte Administrativa. Ademais, em que pese o Regulamento não previsse de forma expressa a respeito da atuação dos advogados e solicitadores para a representação da parte no Tribunal, a norma trazia também uma interessante alusão à possibilidade de um procurador representar a parte interessada em audiência no TM desde que "constituído por instrumento bastante" (artigo 33) o que, claramente, denota que os advogados poderiam - e deveriam - atuar neste Tribunal desde a sua instalação, seja para participação em audiências ou até mesmo para a interposição de Recurso Extraordinário. Apenas pela análise deste prisma, já é possível perceber a estreita relação entre os advogados e o Tribunal Marítimo desde os primórdios de sua instalação. Sem prejuízo ao exposto acima, faz-se mister enaltecer todo o aprimoramento que a legislação passou a receber, a partir da promulgação da Lei n° 2.180 de 1954, que elevou este Egrégio Tribunal à condição de "órgão auxiliar ao poder judiciário", tendo sido feitas duas fundamentais referências aos advogados e à OAB, quais sejam: o artigo 31 que aduz ser "privativa dos advogados inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil o patrocínio de causas no Tribunal Marítimo", assim como no artigo 2°, parágrafo 4°, que assegura uma vaga na banca examinadora de concurso para Juiz do Tribunal Marítimo um especialista em Direito Marítimo ou Direito Internacional Público escolhido pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Portanto, não há como dissociar os dois órgãos - OAB e Tribunal Marítimo. Isto porque também não há como dissociar os advogados e os juízes - pois a relação entre eles é visceral. Sem o advogado a pedir e suplicar, expondo as razões de seu cliente, pouco terá o Tribunal a fazer; seu motivo de existir passa a inexistir. Em decorrência da salutar e profícua relação mutualística entre Tribunal Marítimo e a classe dos advogados, havia de ser realizada, através da breve retrospectiva histórica deste texto, uma singela deferência à Corte Marítima ,que completa mais um ano de existência, devendo-se ressaltar a incólume postura e conduta dos seus nobres Juízes, da Procuradoria Especial da Marinha e de todo o corpo funcional, sempre solícito e gentil com os advogados e estagiários que que pautam a sua atuação profissional dentro desta Corte, seja na divisão contenciosa de processos, como na divisão registral de embarcações. __________ 1 Disponível aqui.
Introdução: os GEE e a mudança climática Na condição de espectadores, que hoje somos, de grandes tragédias ambientais - dentre as mais evidentes, o derretimento das calotas polares, o aumento do nível dos oceanos e a inundação permanente de áreas outrora secas - torna-se impossível negar o impacto negativo das atividades humanas no nosso planeta. Desde a revolução industrial, a civilização vem produzindo um volume cada vez maior de gases do efeito estufa (GEE), seja por meio do desmatamento de florestas, ou da queima de combustíveis fósseis.  A alta concentração desses gases na atmosfera afeta a forma como a radiação solar deveria ser naturalmente retida, aumentando o efeito estufa e elevando a temperatura média global, causando mudanças no clima. Assim, o excesso de chuva ou a seca prolongada há muito deixaram de ser obra da divina providência: as estações do ano vêm sendo afetadas pelo aquecimento global.  Cientistas vêm registrando um aumento na frequência de eventos climáticos extremos, tais como tempestades, enchentes, ondas de calor, secas, nevascas, furacões etc. A ONU e a IMO Em 2015, durante a COP-21, foi firmado o Acordo de Paris, no qual os países signatários estabeleceram uma série de compromissos, dentre eles a redução da emissão de gases do efeito estufa, de modo a limitar o aquecimento global. A tarefa de aplicar esses compromissos à indústria marítima ficou a encargo da IMO. Em 2018, foi publicada a Estratégia Inicial da IMO para Redução das Emissões de GEE por Navios, cujo texto propõe, dentre outras, metas de redução de emissões anuais de GEE em 50% até 2050 (comparadas aos níveis de 2008). Em 1° de novembro de 2022, entrou em vigor o Capítulo 4 ao Anexo VI da MARPOL, que já tratava de emissões de gases prejudiciais a camada de ozônio. Novas regras da MARPOL O Capítulo 4 estabeleceu alterações técnicas e operacionais para que os navios melhorem a sua eficiência energética e, assim, reduzam as emissões de GEE. Dentre as alterações, inclui-se a exigência de redução da intensidade de carbono, que tem como base índices técnicos e operacionais, mais precisamente, o Índice de Eficiência Energética de Navios Existentes (Energy Efficiency Existing Ships Index - EEXI); e o Índice de Intensidade de Carbono Operacional (Carbon Intensity Indicator - CII). Neste contexto, desde 1º de janeiro de 2023 tornou-se obrigatória a medição, por todos os navios, do EEXI e do CII, cujo objetivo é a redução da intensidade de carbono da navegação internacional, trabalhando para atingir os níveis estabelecidos na Estratégia Inicial da IMO. O EEXI tem por base fatores técnicos do navio, como o tipo de combustível comportado e até mesmo detalhes do design da embarcação. Este índice é calculado a partir do equacionamento da potência e consumo do motor principal, consumo dos motores auxiliares e o fator de conversão entre o combustível e a massa de dióxido de carbono correspondente. A partir do cálculo do EEXI - obrigatório para embarcações com arqueação bruta a partir de 400 toneladas - sua classificação se dará a partir de um valor de referência estabelecido pela IMO com base nas características do navio e expresso como uma percentagem relativa à linha de base do Índice de Eficiência Energética de Projeto (EEDI). Em outras palavras, o EEXI indica a eficiência energética de um navio em comparação com uma linha de base, a partir da relação entre a quantidade de emissões do projeto da embarcação e a sua capacidade de transporte e velocidade de serviço. O valor EEXI calculado para cada navio individual deve estar abaixo do EEXI exigido - cujos limites serão reduzidos a cada 5 anos - para garantir que o navio atenda a um padrão mínimo de eficiência energética. De outra via, caso esteja acima do limite, será necessária a implementação de um plano de melhorias, que pode redundar na limitação da potência do motor e, consequentemente, gerar uma redução na velocidade operação do navio. O CII (Indicador de Intensidade de Carbono), por sua vez, está vinculado à operação do navio e determina o fator de redução anual necessário para que a intensidade de carbono operacional de um navio seja continuamente aprimorada dentro de um nível de classificação concreto. Seu cálculo é obrigatório para as embarcações com arqueação bruta acima de 5000 toneladas e o valor efetivamente alcançado deverá ser registrado e comparado à intensidade anual exigida para que se seja feita a classificação. A partir da CII anual alcançada, os navios serão classificados dentro de uma escala alfabética de A a E, sendo "A" a melhor classificação. Caso um navio seja classificado na categoria "D" por três anos consecutivos ou na categoria "E", deverá desenvolver um plano de ações corretivas para atingir a um nível que seja equivalente, ao menos, à classificação "C", definida como ponto médio. Outra importante previsão obrigatória é a elaboração do Plano de Gestão da Eficiência Energética do Navio (Ship Energy Efficiency Management Plan - SEEMP). O SEEMP é uma ferramenta voltada à gestão do desempenho do navio quanto à eficiência energética ao longo do tempo e deve ser desenvolvido sempre visando as melhores práticas de uma operação eficiente, sendo de fundamental importância para que fretador e afretador possam monitorar e aprimorar constantemente tecnologias e práticas para otimizar o desempenho do navio. Impactos Operacionais Para atendimento das novas regras da MARPOL, os navios deverão observar limites cada vez mais rigorosos de emissão de gases de efeito estufa, com especial atenção ao dióxido de carbono (CO2). Consequentemente, será necessário adequar as embarcações existentes para atendimentos dos limites fixados, como motores mais eficientes e combustíveis verdes, sistemas de recuperação de calor, otimização do design das hélices, dentre outros. A título ilustrativo, pensemos que para um melhor rendimento com relação ao índice EEXI, é possível a instalação de dispositivos que reduzam a potência dos motores de combustão ou do eixo de propulsão; ou ainda a equipagem do navio com baterias, auxílio alternativo de propulsão, dentre outros dos quais da utilização não resulta a emissão de gases. Como mencionado, o EEXI está relacionado a características técnicas dos navios e as adaptações principais, em suma, estão relacionadas à potência dos motores e sistemas que auxiliem a contornar a necessidade de sua limitação a fim de evitar que a velocidade de operacional do navio seja afetada. Belo exemplo é o graneleiro "Sea Zhoushan", pioneiro na utilização de velas rotativas e que passou recentemente pelo porto do Rio de Janeiro.  O sistema de propulsão auxiliar é composto por cinco rotores cilíndricos, as velas, que permitem a utilização da força do vento para impulsionar o navio, aumentando a eficiência da embarcação, com a consequente redução nas emissões de carbono. Partindo-se para possíveis adequações operacionais e alternativas para a manutenção de adequados índices de CII, temos a utilização de combustível com baixo teor de carbono, otimização das programações de viagem dos navios, ou instalação de geradores de energia e combustíveis alternativos. Muito importante também, para este fim, a correta manutenção dos cascos para melhor desempenho hidrodinâmico, dentre outros. Impactos nos Contratos de Afretamento Evidentemente, tecnologias e adequações para redução de emissões poderão demandar investimentos significativos, e por consequência, aumentar os custos operacionais dos navios, impactando não apenas os contratos em curso como também os futuros. E aqui chegamos ao cerne de nossa reflexão, qual seja, como estas regulações impactam os contratos de afretamento - já existentes e futuros. É preciso considerar, por exemplo, que nos casos em que a redução da propulsão for necessária para atingimento das metas, as viagens podem ser tornar mais demoradas, assim como em decorrência da necessidade constante de ajuste das programações para controle do CII. Ilustra bem o presente cenário o fato de que, recentemente foram publicadas pela BIMCO as cláusulas EEXI e CII, que tratam da alocação de responsabilidades e custos paras implementação das modificações para adequação às novas regras. A Cláusula EEXI é recomendada para os casos de redução da potência dos motores de combustão do eixo de propulsão.  Já a Cláusula CII prevê a definição de um limite para o CII por meio da programação das viagens pelo afretador. Neste ponto, cabe frisar que, de acordo com as disposições atuais, a responsabilidade pelo atingimento das metas de eficiência adequadas recai sobre o operador do navio, de modo que a transparência no compartilhamento de dados entre fretador e afretador torna-se primordial, sendo mesmo possível o estabelecimento de cláusulas indenizatórias como ônus ao afretador que deixar de observar os limites fixados. Possíveis Penalidades Vale ressaltar, no entanto, que o descumprimento destas novas determinações pode resultar em ações corretivas, que incluem a possibilidade de exigência de redução da potência e velocidade do motor a fim de cumprir o EEXI, como mencionado acima, ou mesmo a obrigatoriedade de redução da quantidade de carga dos navios. Na prática, não vislumbramos como se dará a imposição das "penalidades" acima previstas, pois a norma não detalhou o assunto.  Notamos, todavia, que há previsão de revisão da nova regulamentação em 2026, quando será analisada, dentre outros aspectos, a necessidade de reforço das medidas corretivas e do próprio mecanismo de execução do regulamento. ____________ *Flavia Melo tem mais de 20 anos de experiência em Direito Marítimo, atuando para clientes brasileiros e estrangeiros, em acidentes de navegação, disputas de carga, arresto de navios, poluição ambiental, reclamações de terceiros e questões de seguro decorrentes. *Iasmim de Oliveira é advogada especializada em Direito Processual, e com relevante experiência nas áreas de Direito Marítimo e de Seguros.
Recentemente, em maio de 2023, a 4ª turma do Superior Tribunal de Justiça proferiu julgamento emblemático, que demandou a análise pormenorizada de vários temas relativos a sinistros marítimos e ainda controvertidos na jurisprudência brasileira. Trata-se do julgamento do Recurso Especial 1.988.894/SP, realizado pela 4ª turma do STJ sob a relatoria da eminente Ministra Isabel Gallotti, tendo por origem uma ação de ressarcimento decorrente de perdas e danos de carga durante a execução de transporte marítimo internacional, movida por seguradora sub-rogada nos direitos do contratante do transporte em face do armador-proprietário do navio, do afretador e do agente de cargas. Dentre os diversos temas enfrentados no julgamento, destacam-se, em especial, a natureza jurídica do contrato de transporte evidenciado pelo conhecimento marítimo; o efeito e alcance da sub-rogação operada entre segurador e proprietário da carga; e a eficácia da cláusula de arbitragem inserida no Bill of Lading perante o segurador sub-rogado nos direitos do contratante do transporte marítimo. Considerando o alcance e a multiplicidade de temas importantes tratados no referido julgamento, inauguramos, neste arrazoado, uma série de três artigos para análise de cada uma das teses discutidas no respectivo acórdão, bem como o possível impacto na jurisprudência nacional. Neste primeiro artigo, nos debruçaremos sobre o item do acórdão que tratou de analisar especificamente a natureza jurídica dos contratos de transporte quando representados e regidos pelas cláusulas expressas no conhecimento emitido pelo provedor do transporte marítimo. Neste caso, em particular, a autora da ação, seguradora sub-rogada nos direitos do contratante do transporte, defendeu que as cláusulas inseridas no conhecimento de carga não teriam aplicabilidade por representar, ao seu ver, um contrato de adesão e, consequentemente, não carregando em si a efetiva manifestação de vontade do contratante, o que levou a uma ampla discussão nos autos sobre a higidez das cláusulas estabelecidas neste documento. Nesse aspecto, o acórdão faz menção ao entendimento doutrinário mais moderno no sentido de que a presença de condições gerais, cláusulas padronizadas ou "pré-redigidas" isoladamente não caracterizam um contrato de adesão. A este respeito, o voto-relator conduzido pela Ministra Isabel Gallotti repercutiu as lições dos autores Caio Mário da Silva Pereira e Maria Helena Diniz no tocante à caraterização dos contratos de adesão: "O contrato de/por adesão, portanto, traz consigo ideia oposta aos contratos paritários, justamente em razão da ausência de liberdade plena de convenção, em que há exclusão da possibilidade "de qualquer debate e transigência entre as partes, uma vez que um dos contratantes se limita a aceitar as cláusulas e condições previamente redigidas e impressas por outro" (DINIZ, Maria Helena. "Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais - v.3". 39ª edição. São Paulo: Saraivajur, 2023. Pág. 86). Depreende-se, com efeito, que a totalidade ou ao menos a parte mais relevante da substância do contrato de adesão seja composta por cláusulas contratuais gerais, aplicáveis indistintamente a qualquer aderente em razão da predisposição de seu conteúdo".  Seguindo essa linha de raciocínio pautada na doutrina especializada, os Ministros da 4ª turma do STJ consideraram, ainda, por analogia, o conceito de contrato de adesão fixado no artigo 54 do Código de Defesa do Consumidor, que estabelece a impossibilidade de discutir ou modificar o conteúdo das respectivas cláusulas. Adicionalmente, foi analisada eventual hipossuficiência técnica e econômica dos contratantes. No caso vertente, estavam reunidas todas as particularidades clássicas de sinistros marítimos de grandes proporções: empresas estrangeiras de grande porte econômico e plenamente habituadas com as dinâmicas do comércio e transporte marítimo de mercadorias, carga transportada de elevado valor agregado e apólice de seguro com limite de cobertura milionário. Diante dessas características, que se repetem com alguma frequência nas ações de ressarcimento embasadas em seguros marítimos, a 4ª turma Superior Tribunal de Justiça entendeu que a paridade entre as partes contratantes do transporte marítimo descaracteriza a condição de adesão, inclusive quando o contrato de transporte se encontra amparado no Bill of Lading.   A conclusão é de extrema relevância, na medida em que afasta, tanto do ponto de vista fático quanto jurídico, a alegação de que empresas de grande porte econômico, muitas vezes afretadoras de embarcações inteiras, sejam hipossuficientes nos aspectos técnico e econômico de modo a ensejar a proteção típica e especial de um consumidor comum. Neste tocante, cabe citar, pelo brilhantismo, trecho do voto convergente proferido pelo eminente Desembargador Antonio Figliolia, do Tribunal de Justiça de São Paulo, quando do julgamento da apelação proferido neste mesmo caso: "Nesse contexto, ninguém era forçado a contratar. Todos tinham opções. Muitas opções. Os interesses econômicos de todos os envolvidos na contratação era enorme. Transportadores, importadores, fabricantes, adquirente e a seguradora de tudo isso. Não havia indefesos, nem hipossuficientes, por mais que se distenda o alcance do conceito. Não houve imposição. Tudo foi negociado. Destarte, no caso dos autos, a forma do contrato de transporte pode parecer a de um contrato de adesão em sentido lato - aquele destinado ao consumo massivo ou imposto por uma das partes em detrimento da outra, presumidamente mais fraca, mas o conteúdo não é". Seguindo essa mesma linha, o voto-relator proferido pela Ministra Isabel Gallotti, seguido unanimemente pelos demais pares e refletido na própria ementa do acórdão, ao analisar as características particulares de um Bill of Lading, assentou o seguinte entendimento: "(...) a circunstância de o contrato ser materializado por formulário e a existência de cláusulas padronizadas não implica a necessária conclusão de se tratar de contrato de adesão. Para tanto, cumpre esteja presente a característica de contratualidade meramente formal, vale dizer, que a parte não responsável pela prévia determinação uniforme do conteúdo do contrato tenha meramente aderido ao instrumento, sem aceitar efetivamente as suas cláusulas".      Sobre esse ponto específico, o voto condutor do acórdão proferido no caso em análise também fez menção ao entendimento já estabelecido no âmbito do STJ acerca das características dos contratos de adesão: "Não é diferente o entendimento desta Corte, de que "o contrato de adesão tem como principal característica o fato de ser desprovido de fase pré-negocial, porquanto é elaborado unilateralmente, cabendo à outra parte contratante, que figura na condição de aderente, apenas aceitar as cláusulas padronizadas ali contidas, de modo que não lhe é assegurada interferência no conteúdo do ajuste" (REsp 1.424.074/SP, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, DJe de 16/11/2015.)" Dessa forma, emprestando o conceito fixado no artigo 54 do Código de Defesa do Consumidor, e com arrimo nos preceitos da doutrina aqui já mencionada, os Ministros da 4ª turma do STJ concluíram que a caracterização de um contrato de adesão depende do preenchimento dos seguintes requisitos: uniformidade, imutabilidade e rigidez. Além disso, também levaram em consideração eventual hipossuficiência técnica e econômica do contratante do transporte. Nesse ponto, concluiu a turma julgadora que, embora as cláusulas tenham sido estabelecidas em formulário, ou seja, no Bill of Lading, isto não necessariamente representava um impedimento de negociá-las, com possibilidade, por exemplo, de alteração ou exclusão de cláusulas de jurisdição, arbitragem ou mesmo limitação por perdas e danos de carga durante a execução do transporte.  Tal conclusão foi extraída das particularidades do caso, notadamente pelo fato de que a contratante do transporte e respectiva seguradora eram empresas integrantes de conglomerados econômicos multinacionais de grande porte e que operam regularmente no transporte internacional de mercadorias, afastando qualquer presunção de hipossuficiência técnica ou econômica diante do transportador contratado para fins de negociação, modificação ou exclusão de cláusulas.  Especialmente neste aspecto, o acórdão proferido pelo STJ fez menção expressa ao conteúdo do julgamento realizado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo ainda na fase de apelação, que observou atentamente a condição das partes contratantes no caso concreto: (...) Retomando o caso em debate, observo que a Corte estadual inferiu do contexto fático-contratual que houve possibilidade de discussão a respeito das cláusulas contratuais, notadamente a arbitral, visto que "o segurado da Apelada, E. S. P. EPM, não pode ser considerado economicamente hipossuficiente frente às transportadoras, pois se trata de sociedade de grande porte controlada pelo Município de Medelín e integrante um dos maiores conglomerados empresariais da América Latina, com atuação em 6 (seis) países (Colômbia, Chile, México, Guatemala, El Salvador e Panamá) na geração, transmissão e distribuição de energia elétrica, fornecimento de água, gestão de águas residuais, gestão de resíduos sólidos e gás natural Dessa forma, não haveria que se falar em "hipossuficiência do segurado da Apelada que certamente sabia da cláusula compromissória e anuiu com a submissão de eventuais conflitos decorrentes do contrato à arbitragem". A referida conclusão é reforçada não somente pela parte aderente, empresa estadual da Colombiana, mas também pelo objeto da avença: "transporte marítimo internacional entre os portos de Santos(Brasil) e Barranquilla (Colômbia) de componentes de turbinas e geradores de usina hidroelétrica exportados por Alstom Energias Renováveis Ltda.", que perfaziam a quantia de "US$ 4.217.345,72 (quatro milhões, duzentos e dezessete mil, trezentos e quarenta e cinco reais e setenta e dois centavos), valor equivalente a R$14.141.603,67 (quatorze milhões, cento e quarenta e um mil, seiscentos e três reais e sessenta e sete centavos) na data do pagamento da indenização" (fl. 1.854). Dessa forma, o Tribunal de origem, a partir do contexto fático, entendeu tratar-se de contrato paritário, com cujas cláusulas ambas as partes anuíram, o que o descarateriza, em sua essência, como contrato de adesão". Finalmente, a 4ª turma do STJ considerou a diferenciação entre contrato de adesão e contrato tipo, afastando o mito de que Conhecimentos Marítimos são formas de contratação por adesão. Nesse sentido, o acórdão faz menção aos ensinamentos de Caio Mario da Silva Pereira: (...) "A título elucidativo, visto que não é objeto do presente recurso a distinção do contrato de adesão com suas figuras correlatas, pontuo que a mera previsão de "cláusulas padrões" ou "pré-redigidas" não é suficiente para reconhecer a natureza jurídica de uma avença como de adesão, tendo em vista a necessidade de verificação dos seus elementos distintivos: "Sem nos referirmos a outras classificações de contratos, que não nos parece mereçam a honra de uma especial menção, aludimos em derradeira voz ao chamado contrato-tipo ou por formulário, que se aproxima do contrato coletivo e do contrato por adesão, deles distinguindo-se contudo. Dá-se quando uma das partes já tem, em fórmula impressa, policopiada ou datilografada, o padrão contratual que a outra se limita a subscrever, aceitando-lhe as cláusulas previamente redigidas. Distingue-se do coletivo, em que já constitui o esquema concreto de contrato, gerador de efeitos diretos, enquanto o coletivo formula as condições abstratas, a que o contratante individual deve obediência. Do contrato de adesão a separação é mais sutil, e a doutrina não a formula com segurança. A nós, parece-nos mais simples dizer que o contrato-tipo não resulta de cláusulas impostas, mas simplesmente pré-redigidas, às quais a outra parte não se limita a aderir, mas que efetivamente aceita, conhecendo-as, as quais, por isso mesmo, são suscetíveis de alteração ou cancelamento, por via de outras cláusulas substitutivas, que venham manuscritas, datilografadas ou carimbadas. (PEREIRA, Caio Mário da Silva. "Instituições de direito civil: contratos". 25ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2022. Pág. 71) Ainda mais esclarecedora é a doutrina de Orlando Gomes, que diferencia contratos de adesão e contratos tipos, apontando para a conclusão de que os Conhecimentos Marítimos ou Bill of Ladings se encaixam na categoria de contratos tipos, o que reforça a validade e eficácia das respectivas cláusulas: "(...) O contrato de adesão distingue-se do contrato-tipo, quer este se considere subespécie do contrato normativo, quer seja o contrato cujo instrumento é um módulo ou formulário. Na última conceituação "não é mais do que a expressão de uma fórmula externa e puramente formal da técnica contratual". Esse modo de formalizar o contrato não é incompatível com o contrato de adesão, constituindo antes a forma usual de alguns, como o seguro, o transporte e contratos bancários. A circunstância de ser impresso, incorporando-se no instrumento todas as cláusulas do contrato, carece de transcendência jurídica".   Em conclusão, a 4ª turma do Superior Tribunal de Justiça afastou a tese de que o conhecimento marítimo se equipara a um contrato de adesão e firmou entendimento de que se trata de contrato tipo e paritário, o que torna plenamente válidas e aplicáveis as respectivas cláusulas, às quais os contratantes plenamente anuíram previamente. Nestes termos, o julgamento proferido no recurso especial aqui destacado constitui importante precedente no sentido de que o simples fato de o contrato de transporte estar amparado em Conhecimento Marítimo, por sua vez materializado em formulário, não o caracteriza como instrumento de adesão e não retira a validade das cláusulas nele inseridas, exceto nas hipóteses excepcionais em que houver comprovação de hipossuficiência técnica e econômica do contratante que lhe possa restringir ou impedir a condição de negociação para modificação ou exclusão de cláusulas junto ao provedor do serviço. Este entendimento confere novos contornos no tocante à interpretação de regras contratuais estabelecidas nos Bill of Ladings, especialmente cláusulas típicas de operações de transporte internacional de cargas, como cláusula de jurisdição, arbitragem e limitação de responsabilidade. O amplo debate promovido pelos Ministros durante o julgamento aqui analisado carrega a expectativa de pacificação do tema em futuro próximo no âmbito do Superior Tribunal de Justiça. ---------- Diniz, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Teoria das Obrigações Contratuais e Extracontratuais. São Paulo: Saraivajur, v. 3 Venosa, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. São Paulo: Atlas, v. 2 Lei 9.307, de 23 de setembro de 1996, Poder Executivo. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação 1011916-50.2018.8.26.0562 Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação 9108101-03.2008.8.26.0000 Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1988894/SP Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1424074/SP Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1189050/SP Superior Tribunal de Justiça. Agravo Interno no AREsp 2214857/CE
O processo de apuração e julgamento de acidentes e fatos da navegação (AFN), de competência do Tribunal Marítimo (TM), é ainda pouco conhecido da comunidade jurídica brasileira. Num esforço para difundir este conhecimento para além da comunidade marítima, o tema já foi objeto de vários textos desta Coluna, que permitem ter uma visão geral dessa relevante função exercida pela Corte do Mar. Neste contexto, e como forma de manter os leitores atualizados, o texto de hoje tratará de duas alterações recentes no procedimento do processo marítimo, com alguns comentários do ponto de vista de quem advoga junto àquela Corte. A Resolução TM nº 61/2023, de 13/04/2023 (entrou em vigor em 02/05/2023) alterou dispositivos do Regimento Interno Processual do Tribunal Marítimo (RIPTM), na parte que trata das sessões de julgamento, enquanto a Resolução 62/2023, de 01/06/2023 (entrará em vigor em 03/07/2023) instituiu a possibilidade de julgamento em plenário virtual, por ora, apenas da admissibilidade das representações. Para melhor contextualizar o tema, para o leitor menos familiarizado com o processo marítimo, este se inicia com o oferecimento de uma representação, que é uma peça de natureza acusatória, em regra pela Procuradoria Especial da Marinha (PEM) e, excepcionalmente, por terceiros interessados (a representação privada ou de parte, objeto de texto específico desta Coluna1).  A representação é incluída em pauta para apreciação de sua admissibilidade, pelo Colegiado do TM (sete juízes).  Se recebida, o processo prossegue com a fase probatória e as alegações finais das partes, sendo então incluído em pauta para nova sessão de julgamento, agora para decisão sobre o mérito. As alterações recentes tratam dos procedimentos específicos a serem seguidos nessas sessões.  A Resolução 62, como já dito, teve por objeto a instituição do plenário virtual, para a apreciação da admissibilidade, como dispõe seu art. 1º2.  Os parágrafos do mesmo dispositivo tratam da sessão virtual de modo muito semelhante ao já existente em Tribunais judiciais (em especial o Supremo Tribunal Federal), especialmente quanto à inserção de relatório e voto, ao prazo de cinco dias para manifestação dos demais Juízes, e à retirada automática do plenário virtual em caso de "destaque", isto é, de manifestação de possível divergência, quanto ao voto do Relator, por um dos demais juízes3.  O mesmo não ocorre, todavia, no caso de pedido de vista, em que o processo poderá ser devolvido para julgamento no próprio plenário virtual, sem o envio necessário para sessão presencial4. É digno de nota, ainda, que o julgamento virtual pode ser adotado tanto nas representações da PEM quanto nas oferecidas por parte (representação privada).  De fato, parece não se justificar qualquer distinção entre as duas espécies, já que, em ambas, há o exercício da função pública do munus acusatório. A Resolução 62, portanto, teve por escopo adaptar o processo marítimo ao que dispõe o Código de Processo Civil (CPC) sobre a prática eletrônica de atos processuais, com o consequente ganho de eficiência, celeridade e duração razoável do processo, todos princípios referidos nos consideranda do ato. Entendo que, de fato, a medida é benéfica, e não traz prejuízos ao direito de defesa. No julgamento da admissibilidade da representação, não há sustentação oral, de modo que a presença dos advogados ocorre apenas para fins de acompanhamento, sem a possibilidade de intervenção.  Nada obstante, tempo substancial das sessões é consumido com a leitura integral do relatório, manifestações dos juízes, voto e proclamação do resultado.  Passar estas providências para o ambiente virtual pode contribuir para um andamento mais rápido de todos os processos do TM, pois o tempo de cada Juiz é único, e tem que ser dividido entre a participação nas sessões e audiências e a apreciação, em seus gabinetes, dos processos. Sobre possíveis prejuízos à defesa, como já antecipado, também me parece que não ocorrem.  Eventuais questões de fato que mereçam explicação mais detalhada, ou mesmo a apresentação de elementos não-textuais (vídeos, cartas náuticas ou croquis de situação) sempre poderão ser objeto de memoriais e de despachos com os Juízes do Tribunal.  E, como os advogados que militam junto ao TM bem sabem, os Juízes recebem os advogados sem dificuldades ou maiores formalidades, sempre com grande cortesia e atenção.   A Resolução 61, por sua vez, revoga o art. 140 do RITPM, ao mesmo tempo em que insere o art. 140-A, dando novo tratamento para os procedimentos nas sessões de julgamento do mérito das representações, isto é, daquelas que decidem, efetivamente pela absolvição ("exculpação", no vocabulário próprio do processo marítimo) ou pela condenação dos representados, atribuindo-lhes culpa pelo acidente ou fato da navegação. A principal alteração da Resolução 61 foi a redução do tempo de sustentação oral pelas partes, de 30 (trinta) para 15 (quinze) minutos, com o declarado intuito - explicitado em um dos seus consideranda - de harmonizar esta disposição com o CPC. Entendo que, embora seja sempre positiva a harmonização dos procedimentos do TM com o processo civil comum, a questão merece apreciação mais detida.  O tempo de 30 minutos para a peroração de cada parte, de fato, pode parecer excessivo para um observador externo.  Na verdade, mesmo colegas experientes na advocacia costumam se espantar quando comento sobre esse "longo tempo" que um advogado pode (na verdade, podia) ter a palavra na tribuna da Corte do Mar.  Na maioria dos casos, que envolvem acidentes mais corriqueiros, realmente os 15 minutos podem ser suficientes, ou até excessivos. Todavia, alguns acidentes da navegação são bastante complexos do ponto de vista fático e técnico, especialmente quando envolvem múltiplas causas ou múltiplos agentes envolvidos na operação.  Nestes casos, a explicação de cada um destes aspectos pode demandar um tempo maior, mesmo que o relatório tenha se esmerado na sua exposição. O advogado tem a difícil tarefa, nestes casos, de correlacionar - ou dissociar - cada um destes conceitos técnicos com a causalidade do fato que está em julgamento. Apesar dessa ressalva, entendo que há soluções, relativamente simples, compatíveis com a lei processual.  A primeira delas, inspirada na arbitragem, seria a possibilidade de, a requerimento das partes ou por determinação do Juiz relator, de ofício, ser designada uma audiência de exposição do caso, em que os advogados das partes - e eventualmente assistentes técnicos - pudessem explicar, ao relator, estas peculiaridades, inclusive com o uso de recursos de mídia, como vídeos ou apresentações. Obviamente, tal iniciativa deveria observar fielmente a igualdade entre as partes, inclusive quanto à possibilidade técnica e material de participarem desta audiência em condições similares ("paridade de armas"). Uma segunda possibilidade, inspirada no instituto do negócio jurídico processual (art. 190 do CPC5), seria o acordo entre as partes para que um tempo maior de sustentação oral (20 ou 30 minutos, mas obviamente igual para ambas as partes) fosse admitido, mediante requerimento conjunto e fundamentado ao Juiz relator, que poderia deferi-lo, desde que convencido da fundamentação. Em conclusão, estas recentes alterações parecem bastante positivas para maior celeridade processual no Tribunal Marítimo, beneficiando os jurisdicionados e advogados que militam junto àquela Corte. __________ 1 "Representação privada no processo do tribunal marítimo: uma leitura à luz da Constituição". Migalhas Marítimas, 08/12/2022. 2 Art. 1º. As representações da Procuradoria Especial da Marinha (PEM) e as representações de parte poderão ser apreciadas, a critério do Juiz Relator e com a concordância do Juiz Revisor, no plenário virtual, no Sistema Eletrônico de Informações do Tribunal Marítimo (SEI-TM). 3 Art. 1º. (...) § 1º. O Juiz Relator inserirá o relatório e o voto no ambiente do plenário virtual e encaminhará os autos ao Juiz Revisor com pedido para ser apreciado em plenário virtual. Concordando com o Juiz Relator, o Juiz Revisor inserirá o seu voto e encaminhará os autos à Secretaria-Geral para inclusão em pauta de plenário virtual. § 2º. Os relatórios e os votos inseridos no ambiente do plenário virtual serão disponibilizados no sistema durante a sessão virtual e os demais juízes terão até cinco dias corridos para se manifestarem. Art. 4º. Não serão apreciadas em sessão do plenário virtual as representações com pedido de destaque feito por qualquer juiz de forma justificada. Parágrafo único. No caso previsto neste artigo, o Juiz Relator solicitará a retirada do processo da pauta da sessão do plenário virtual e o encaminhará à Secretaria-Geral para inclusão em pauta da sessão presencial. 4 Art. 5º. A apreciação de representação com pedido de vista será suspensa e, a critério do juiz que pediu vista, poderá ser devolvido para prosseguimento em plenário virtual, oportunidade em que os demais juízes poderão manter ou alterar os votos já proferidos. 5 Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo. Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte se encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.
quinta-feira, 15 de junho de 2023

O caso do navio Professor Wladimir Besnard

O navio Professor Wladimir Besnard foi uma importante embarcação da oceanografia brasileira, batizada em homenagem ao cientista russo-francês trazido ao Brasil para coordenar o Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo - USP. O navio esteve em operação durante 40 anos, sendo responsável pela primeira expedição oficial brasileira à Antártida, realizada entre 1982 e 1983, além de ter possibilitado a realização de diversas outras pesquisas em águas nacionais e internacionais. Em 2008, no entanto, a embarcação sofreu um incêndio que danificou seu sistema de navegação, levando ao encerramento de suas atividades. O navio Professor W. Besnard, pioneiro em estudos oceanográficos no Brasil, foi doado pela Universidade de São Paulo - USP à prefeitura de Ilhabela, que pretendia afundá-lo para transformá-lo em um recife artificial. Contudo, em 2019, o Município optou por transferir a embarcação ao Instituto do Mar, que visava transformá-la em museu flutuante ou em um navio-escola. Ocorre que, até o presente momento, nenhuma destinação foi dada à embarcação, que se encontra atracada no cais do Porto de Santos, em situação precária de conservação. Em 05 de julho de 2018, em uma vistoria realizada pela equipe de controle ambiental e de segurança do trabalho da Companhia Docas do Estado de São Paulo - CODESP, em conjunto com técnicos do IBAMA, foi constatado que o navio já estaria com sua navegabilidade prejudicada e que eventual naufrágio da embarcação poderia afetar diretamente o tráfego aquaviário do porto de Santos, além de causar graves danos ambientais. Segundo relatórios apresentados pela Codesp, a embarcação teria apresentado sinais de adernamento para boreste, além de ter sido constatada a presença de tambores de óleo a bordo do navio, que poderiam resultar em vazamentos no estuário de Santos, em caso de inobservância dos deveres de conservação por parte do Município de Ilhabela, proprietário do navio. Na hipótese, ainda foi demonstrado que teriam pessoas utilizando o navio como moradia e que a embarcação não possuía geradores e motores em estado operacional, motivo pelo qual estaria sendo abastecida através de ligações elétricas improvisadas, que poderiam pôr em risco a segurança local. Diante da inércia do Município de Ilhabela em adotar as providências necessárias para a conservação adequada do navio, o caso foi judicializado. Na ação originária1, que tramitou junto à 1ª Vara da Comarca de Ilhabela, o Órgão Municipal teve sua responsabilidade reconhecida, por ser legítima proprietária da embarcação e, sobretudo, por ter sido comprovado que o navio já não deveria mais estar no cais do Porto de Santos. Por tais motivos, o Município de Ilhabela foi condenado a retirar a embarcação do local, em condições ambientais adequadas, além de: 1. adotar medidas que assegurassem a flutuabilidade do navio, a fim de evitar o adernamento; 2. retirar resíduos oleosos e cessar todas as ligações clandestinas de energia elétrica no local; 3. promover a retirada de eventuais moradores do local. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo negou provimento ao apelo interposto pela requerida2 e confirmou a sentença proferida em primeira instância. Não obstante a condenação da municipalidade em 2020, a embarcação segue atracada no cais do Porto de Santos, causando alertas ambientais, pelo risco de adernamento completo e possível vazamento de resíduos oleosos nas águas locais. Em fevereiro do ano corrente, mais de 70 mil litros de água e resíduos oleosos foram retirados do navio, em operação emergencial realizada pela equipe técnica da Santos Port Authority (SPA), em parceria do Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), a fim de evitar o naufrágio da embarcação. No entanto, em recente impugnação apresentada pelo Município de Ilhabela, nos autos do processo de execução, novos argumentos foram ventilados para o não cumprimento da ordem judicial de retirada do navio do cais santista. Segundo o prefeito de Ilhabela, Antonio Colucci, a remoção da embarcação não seria algo simples, mas sim um procedimento delicado, que requer prévio estudo da destinação da carcaça do navio, além de completa limpeza de motores, portas e móveis apodrecidos. O custo estimado pelo município para afundar o navio seria de cerca de 2 milhões de reais, enquanto os custos para a total recuperação deste poderiam atingir até 50 milhões de reais. Para além dos custos da operação, sobreveio notícia de que haveria um procedimento de tombamento do navio Professor Wladimir Besnard junto ao Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Arqueológico, Artístico e Turístico - CONDEPHAAT que estaria dificultando o cumprimento da ordem judicial, o que travou profunda discussão entre a possibilidade de desmantelamento da embarcação e a preservação do patrimônio cultural. Esse foi o impasse enfrentado pelo Juiz Leonardo Grecco, que reconheceu que o caso se trata de uma verdadeira "escolha de Sofia". Segundo o magistrado estaríamos diante de um "dilema entre o meio ambiente cultural e o meio ambiente natural, de modo que resguardar um, neste momento, seria colocar em risco o outro". Nesse cenário, posicionou-se o juiz, afirmando que para que o interesse cultural pudesse se sobrepor à preservação do meio ambiente natural, deveriam ter sido, desde o início, adotadas medidas adequadas de conservação da embarcação, com vistas a prevenir os riscos danos ambientais ora enfrentados. Contudo, ante a ausência de providências no passado, prezou o juízo pela preservação do meio ambiente natural. Os relatórios apresentados pela Codesp não deixam dúvidas de que o Professor W. Besnard, em seu atual estado de conservação, não atende a critérios mínimos de segurança, estrutura e navegabilidade, tendo encerrado por completo seu ciclo de vida útil. Segundo parecer da Capitania dos Portos, a embarcação ainda constitui um risco à navegação, à salvaguarda da vida humana no mar e à ocorrência de poluição hídrica. Diante do entrave, memorou o magistrado que a definição trazida pela lei 9537/97, que trata de segurança do tráfego aquaviário, estabelece que embarcação é a construção "suscetível de se locomover na água, por seus meios próprios ou não, transportando pessoas ou cargas". "Embarcação que não navega, não é embarcação" - consignou o juiz. A própria Prefeitura de Ilhabela, nos autos da execução, reconheceu que a "embarcação está em péssimas condições, sendo provável seu afundamento enquanto retirada por rebocamento do Porto". Aliás, os gastos orçamentários com a manutenção da embarcação pelo município são, no mínimo, consideráveis. Os contratos de licitação apresentados pela municipalidade, demonstram que, somente em 2017, foram despendidos R$250.800,00 (duzentos e cinquenta mil e oitocentos reais) à empresa ECO PRIME SOLUÇÕES AMBIENTAIS LTDA. para 180 dias de guarda e manutenção preventiva do navio Prof. W. Besnard; além de R$204.000,00 (duzentos e quatro mil reais) gastos com a FUNDESPA para realização de projeto de licenciamento ambiental para o afundamento do navio. Assim é que, segundo o juiz, para o atendimento exato da ordem judicial que determinava a retirada do navio, em condições ambientalmente adequadas, não restaria outra opção senão o desmantelamento da embarcação. Nesse sentido, fundamentou o juízo: "as condições ambientalmente adequadas apenas permitiriam a remoção do navio pelo mar se a navegabilidade deste não estivesse comprometida. Mas está! A flutuabilidade do navio está prestes a se tornar negativa, com um risco imenso ao meio ambiente natural. Logo, se não se navega e não se flutua, há que se retirar a estrutura por terra, permitindo-se seu desmantelamento ou outro procedimento pertinente". O processo de demolição de embarcações, também denominada de desmantelamento, é uma técnica de descarte dos navios, por meio de reaproveitamento de peças ou extração de matéria-prima, o que, segundo o magistrado, seria a solução mais segura para o meio ambiente e para a própria vida humana, no caso concreto, segundo laudos apresentados pela equipe técnica. E não apenas o magistrado se posiciona desta maneira. Recente estudo realizado por Juliana Pizzolato F. Senna, junto à revista Porto, Mar e Comércio Internacional Por Elas3, não deixa dúvidas de que o desmonte seja a melhor destinação a ser dada aos navios que encerram o ciclo de vida útil, embora a atividade ainda não seja integralmente explorada em território brasileiro. Não à toa, a novel lei 10.028 de 26 de maio de 20234, sancionada no estado do Rio de Janeiro, tenha instituído diretrizes para o desenvolvimento de atividades voltadas à geração de emprego, renda, qualidade de vida, arrecadação tributária e políticas públicas advindas da reciclagem de embarcações e demais ativos marítimos offshore, com o fito de estimular a adoção das melhores práticas aplicáveis à indústria naval. Segundo a autora, atualmente, três países (Índia, Bangladesh e Paquistão) estariam concentrando mais de 90% dos desmontes mundiais, embora o Brasil tenha toda a infraestrutura necessária para o desenvolvimento da atividade em território nacional, em seu entendimento: "Nosso país hoje conta com estaleiros com dique seco e infraestrutura adequada para embarcações grandes, diferente de muitos estaleiros na Europa, que sofrem com a baixa taxa de ocupação em razão da redução da demanda de novas construções. Adicionalmente, o Brasil tem uma indústria que poderia fazer uso dos materiais reciclados que são gerados com o desmonte."5 Dados trazidos pela autora, indicam, ainda, que o Brasil possui grandes frotas navais de cabotagem com idade média de 15,5 anos, alertando o mercado para um aumento considerável da procura de serviços de desmantelamento de embarcações em um futuro próximo. Verifica-se, portanto, que a recente decisão judicial proferida nos autos da execução em curso, ao mesmo passo em que prezou pela preservação do meio ambiente natural, também foi ao encontro das novas técnicas ambientais de reaproveitamento e descarte adequado de sucatas navais, por meio da prática do desmantelamento. Ainda, sob a ótica do magistrado Leonardo Grecco, embora não se questione a importância da embarcação para o patrimônio cultural do país, pairam dúvidas acerca da impossibilidade de demolição deste, considerando os benefícios da minimização dos impactos ambientais e que boa parte da história do navio se encontra preservada pela Universidade de São Paulo - USP, que antes mesmo de realizar a doação do navio ao município de Ilhabela, já teria recolhido "todo material de interesse histórico necessário para compor seu museu". Certo é que o ordenamento jurídico pátrio não estabelece rígidos critérios para resolução de conflito de interesses ambientais, restando ao magistrado, caso a caso, adotar a posição que pareça mais favorável à preservação do meio, buscando, sempre que possível, um equilíbrio entre o cultural e o natural, tal como verifica no presente caso. A assertiva decisão proferida parece atender aos princípios da precaução e da prevenção, que visam garantir que as ações antrópicas sejam tomadas de forma racional e cuidadosa para com os recursos naturais, a fim de reduzir riscos de impactos ambientais, previsíveis ou não. Contudo, da decisão proferida, ainda cabe recurso ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que poderá manter ou reformar a ordem judicial de retirada do navio Professor Wladimir Besnard por terra, para fins de desmantelamento. __________ 1 Processo nº 1001253-17.2018.8.26.0247 2 Apelação nº 1001253-17.2018.8.26.0247 3 SENNA, Juliana Pizzolato Furtado. Reciclagem de navios no Brasil. In: VASCONCELOS, Flavia Nico; GUERISE, Luciana Cardoso (Orgs.). Porto, Mar e Comércio Internacional por Elas. Mil Fontes, 2022. Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 SENNA, Juliana Pizzolato Furtado. Reciclagem de navios no Brasil. In: VASCONCELOS, Flavia Nico; GUERISE, Luciana Cardoso (Orgs.). Porto, Mar e Comércio Internacional por Elas. Mil Fontes, 2022. Disponível aqui.
Os primeiros grandes navegadores da história, como se sabe, guiavam-se nos mares utilizando instrumentos que, embora bastante funcionais e avançados para a época, possuíam as funções mais elementares à atividade da navegação. Bússolas, astrolábios e cartas náuticas, que permitiam uma estimativa da latitude e da direção, muitas vezes aproximada, em mares ainda inexplorados, eram os instrumentos indispensáveis à expansão das rotas comerciais e marítimas. Os avanços tecnológicos ocorridos especialmente a partir da revolução industrial transformaram drasticamente a relação humana com as embarcações. Desde a comunicação via rádio e telégrafo, o desenvolvimento de radares, satélites, GPS, câmeras e sensores, até o reconhecimento de imagem, análise de dados e machine learning, a navegação esteve e ainda está em constante processo de inovação e evolução. Nesse contexto, um dos mais surpreendentes avanços nesse campo, assim como em tantos outros, tem sido o desenvolvimento da inteligência artificial ("IA"). Em diversos setores da indústria, a IA vem promovendo alterações nas relações de trabalho e jurídicas. O setor marítimo não é exceção, o que justifica uma breve análise dos avanços da IA nessa área. Dentre os diversos exemplos que já podem ser citados, possivelmente os projetos de navios autônomos são um dos mais ou o mais impactante exemplo da inteligência artificial aplicada ao setor da navegação, sendo necessário iniciar um debate sobre as repercussões que as novas tecnologias possuem no campo jurídico. Esse tema já foi, inclusive, objeto de artigo anterior nesta coluna1. Os navios autônomos, em sua maioria ainda em fase de testes, são considerados como potenciais criadores de um novo mercado competitivo no setor de transporte marítimo, em especial de curta distância. Essas embarcações, que podem prescindir inteiramente de tripulação, tem potencial para inaugurar uma nova era da navegação, mais eficiente, tecnológica e com menor impacto ambiental, ao mesmo tempo em que podem reduzir a dependência de outros modais, em especial o rodoviário, mais suscetível a atrasos e mais poluente2. No momento, cabem mais questionamentos do que respostas. Essa "navegação do futuro", já não tão distante assim, será capaz de otimizar viagens especialmente no que tange aos custos e segurança? A dispensa de tripulação diminuirá significativamente a quantidade de investimentos necessários em mão de obra, recursos esses que poderão ser realocados ao aprimoramento das tecnologias utilizadas na própria embarcação, por exemplo3? Em relação à segurança, estimativas apontam que mais de 75% dos acidentes com embarcações decorrem de erro humano4, de modo que o emprego de embarcações autônomas, em tese, tenderá a reduzir sensivelmente o custo com seguros, caso a redução de incidentes se torne uma realidade em uma futura indústria de navios com tripulação reduzida ou até mesmo completamente autônomos. Já a dispensa da tripulação pode não ser possível em extensão tão ampla como se imagina, uma vez que, ainda que a navegação seja realizada de forma autônoma, em diversas outras atividades a embarcação ainda requererá a atuação de tripulantes. Há de se questionar, ainda, se essa nova realidade pode alterar a forma de responsabilização dos agentes envolvidos em um eventual acidente da navegação de uma embarcação sem tripulação, bem como a reparação dos danos causados por algoritmos, e de que forma a regulamentação da Marinha, e a atuação do Tribunal Marítimo, seria adaptada para acompanhar e absorver essas mudanças. As normas atualmente existentes são suficientes ou estão adequadas a essa nova realidade? Novamente, há mais questionamentos do que respostas no momento. Notadamente, apenas a título de exemplo, pode-se antever a necessidade de desenvolvimento de novas normas ou a revisão, por exemplo, das Normas da Autoridade Marítima Para Inquéritos Administrativos Sobre Acidentes e Fatos da Navegação ("IAFN" - NORMAM 09) e de outras normas que regulam acidentes e fatos da navegação para contemplar essa nova realidade. Não por acaso, essas preocupações já são alvo de discussão no Poder Legislativo. Em 06.12.2022, o Senado Federal recebeu o relatório final da comissão de juristas constituída para elaboração de proposta de regulação da inteligência artificial no Brasil - um substitutivo aos projetos de lei 5.051/2019, 21/2020 e 872/20215. O texto substituto proposto, ainda sob avaliação, possui considerações interessantes e relevantes ao direito marítimo, a exemplo da classificação de inteligência artificial de alto risco aos sistemas de veículos autônomos (com potencial de gerar riscos à integridade física de pessoas), além de disposições específicas quanto à responsabilidade civil dos fornecedores e operadores de sistema de inteligência artificial que causem dano, com previsão de responsabilidade objetiva para os sistemas de alto risco (e também aos classificados como risco excessivo).   Essa proposta de legislação brasileira segue em linha com a iniciativa da União Europeia de criar um marco legal aplicável a diversos setores6. Há, todavia, intensa crítica na literatura sobre os desafios enfrentados na aplicação de uma norma geral a setores específicos, detendo cada um suas particularidades, como o comércio marítimo, cujas especificidades passam também por discussões variadas, tais como questões regulatórias locais, coleta e armazenamento de dados, combate a ameaças de cibersegurança7, dentre outras. Outro aspecto relevante refere-se à infraestrutura dos portos, que precisará evoluir de forma concomitante para estar apta a receber essas embarcações de forma integrada - o conceito de smart ports8. A tecnologia do setor portuário vem avançando com a introdução de plataformas digitais e com a coordenação de logística portuária para transporte multimodal de carga, podendo evoluir ainda além com a inteligência artificial. Para citar algumas possibilidades, as seguintes tecnologias são atualmente discutidas: utilização de drones, robôs autônomos e robôs oceânicos com o potencial de transformar atividades de inspeção no mar, segurança, combate à criminalidade, entregas entre porto-embarcação; coleta e análise remota de dados sobre operação de embarcações; desenvolvimento de plataformas aptas a prever cenários operacionais futuros; auxílio às autoridades portuárias com a antecipação de potenciais incidentes, atrasos e gargalos, por meio de algoritmos que fornecem suporte no processo decisório e no processamento de dados; e controle da infraestrutura portuária por meio de coleta de dados e realização de previsões e estimativa de fluxo de cargas.9 A inteligência artificial, ao que tudo indica, tem um potencial enorme para otimizar as capacidades tanto do setor portuário como marítimo, sendo uma ferramenta capaz de melhorar a eficiência e eficácia dos processos logísticos, decisórios, fiscalizatórios e outros, para todas as partes envolvidas na cadeia de suprimento. O tema é novo e certamente complexo. É importante, assim, que o setor de navegação esteja a par das discussões e os stakeholders envolvidos, especialmente a Marinha do Brasil, o Tribunal Marítimo e a Agência Nacional de Transportes Aquaviários, participem do debate público para fomentar estratégias regulatórias aptas a acompanhar os avanços tecnológicos, especialmente da inteligência artificial, no setor de navegação e portuário. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 30.05.2023. 2 Disponível aqui. Acesso em 29.05.2023 3 Ibid. 4 Disponível aqui. Acesso em 24.05.2023. 5 Disponível aqui. Acesso em 24.05.2023. 6 Disponível aqui. Acesso em 24.05.2023. 7 Chuah, J. C. T. (2022). Forward Planning - Regulation of Artificial Intelligence and Maritime Trade (City Law School Research Paper 2022/04). London, UK: City Law School. Disponível aqui. Acesso em 24.05.2023. 8 el Makhloufi, A. (2023). AI Application in Transport and Logistics: Opportunities and Challenges. (2023 ed.) CoE City Net Zero, Faculty of Technology, Amsterdam Univeristy of Applied Sciences. 9 Ibid.
A especialização de varas judiciais tem sido cada vez mais adotada pelo sistema judiciário brasileiro, em prol das vantagens que se observam com sua adoção. No sistema jurídico contemporâneo, o acúmulo de processos e a morosidade na resolução de conflitos são desafios constantes enfrentados pelos tribunais, gerando não apenas insegurança jurídica, como também impactos econômicos e sociais. Nesse contexto, a especialização surge como uma abordagem promissora, buscando agilizar o trâmite processual, aprimorar a qualidade das decisões e reduzir o número de litígios. Ao designar-se juízes especializados para lidar com áreas específicas do direito, é possível se obter um maior domínio técnico, uma compreensão aprofundada das questões envolvidas e, consequentemente, uma maior eficiência na entrega da justiça, contribuindo, inclusive, para o aprimoramento do trabalho do próprio advogado. Essa tendência vem sendo demonstrada de diversas formas pelo judiciário, mas destaca-se a Resolução do CNJ nº 385, que autoriza os chamados "Núcleos de Justiça 4.0", que nada mais são do que varas especializadas com competência sobre toda a área territorial da jurisdição do tribunal que os instituíram. Em agosto de 2022, o primeiro Núcleo Especializado de Justiça 4.0 foi criado no TJSP com competência para processar e julgar as ações referentes às demandas de trânsito/DETRAN. A ação se provou um sucesso, demonstrando que com pouco tempo de funcionamento o volume de sentenças foi significativamente alto e o tempo para sua prolação reduzido consideravelmente. Já o que se busca centralizar com essa breve exposição, diz respeito à louvável ordem do Exmo. Sr. Presidente do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no Processo nº 2022/00132753, lavrando no último dia 02/05/23, a proposta de criação do Núcleo Especializado de Justiça 4.0, com competência para processar e julgar as ações referentes às demandas de Direito Marítimo, Portuário e Aduaneiro. A iniciativa é acertada ao expor a grande relevância do modal aquaviário e das operações portuárias para o transporte de mercadorias ao redor do mundo, ressaltando os portos que se localizam no estado. O Porto de Santos, inclusive, deve ser destacado por sua grande relevância internacional, que, conforme citado na decisão, no ano de 2022 movimentou 162,4 milhões de toneladas de carga, representando um aumento de cerca de 10,5% em relação ao ano de 2021. Atualmente o que se observa dentro da seara do direito marítimo em âmbito nacional é uma ausência de uniformidade nos entendimentos relativos à matéria, o que se relaciona de forma direta com a pulverização de competências para julgar estes litígios. Até porque, a alta especificidade e complexidade das matérias que se correlacionam com o tema e a limitada abordagem da temática em muitas grades curriculares e nos exames para magistratura, acaba por dificultar um aprofundamento técnico sobre a matéria para determinados Juízos que possuem competência para julgamento de um leque de causas de naturezas muito diversas. Nesse sentido, há que ressaltar que a demonstração das especificidades e complexidades das matérias envolvidas na proposta de criação deste novo Núcleo é fruto de um trabalho coletivo com esforços de muitos estudiosos e entusiastas, conta com o apoio de autoridades e magistrados afetos ao tema, e sobretudo uma destacada atuação da Seção de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil e de sua Comissão de Direito Marítimo, Portuário e Aduaneiro que, inclusive, foi responsável pelo protocolo do ofício que impulsionou a valorosa decisão. Resta evidente que a criação do Núcleo, tanto pelos resultados positivos que já vem sendo demonstrados em experiências similares, como as bem sucedidas varas empresariais especializadas no Rio de Janeiro - as quais já foram objeto de assunto específico aqui nesta coluna1 -, quanto pelas consequências inerentes à sua criação, proporcionaria efeitos sistemáticos em todo o processo jurisdicional que envolve tais matérias, inclusive através da prevenção de litígios judiciais. Através de juízos especializados, uma maior harmonização de decisões sobre determinadas teses, com robusta fundamentação técnica e amplo conhecimento das práticas do setor, certamente contribuirá para enaltecer a segurança jurídica e fomentar investimentos econômicos no setor e na região, como consequentemente, prevenir litígios, desencorajar demandas aventureiras, teses ultrapassadas e, ainda, contribuir ao próprio aprimoramento do trabalho do advogado militante no setor. O primado princípio da segurança jurídica garante a previsibilidade, coerência e estabilidade das decisões jurídicas, o que de forma global assegura o direito em si. De outro lado, a ausência de uniformidade quanto a matérias especificas e a existência de decisões conflitantes e divergentes sobre um mesmo tema confunde quem atua no setor e estimula a judicialização de controvérsias, quando não se sabe qual a melhor conduta a ser tomada ou qual a melhor aplicação do direito ao caso. Inclusive, na proposta proferida pelo Presidente do TJSP é citado o fato de que "decisões proferidas por varas especializadas têm maior probabilidade de serem mantidas por tribunais superiores". Conclui-se, portanto, que a proposta de criação do Núcleo Especializado de Justiça 4.0, a ser composto por três juízes, com competência para processar e julgar as ações referentes às demandas de Direito Marítimo, Portuário e Aduaneiro no Estado de São Paulo é uma grande conquista não apenas para os operadores e julgadores da matéria, como para todo o setor econômico envolvido e consequentemente a própria sociedade. A proposta seguirá para análise e apreciação da Corregedoria Geral da Justiça, esperando restar favorável e implantada a iniciativa ainda este ano. __________ 1 Disponível aqui.
Não restam dúvidas de que hoje o principal instrumento de movimentação de cargas, por via marítima, é o contêiner. Todavia, seu uso deve ser restrito, de forma que não atrapalhe a atividade comercial do armador, evitando o uso do cofre como um pequeno armazém. Consequência disso, foi de extrema necessidade a implantação de um período para uso da unidade de carga e, por razões óbvias, uma indenização para aquele que não cumprisse o prazo concedido.   Essa indenização é um valor ajustado pelos players do transporte, com natureza jurídica pré-indenizatória e há tempos era cobrada a prazo, gerando um histórico de grande evidência de inadimplência, provocando o armador a recorrer ao Poder Judiciário, repercutindo um alvoroço burocrático desnecessário. O modelo hoje praticado por um único armador no Brasil não é novidade no exterior e, ao contrário do que muito foi dito, não há nenhuma ilegalidade ou ilicitude para a cobrança à vista da demurrage. Da mesma forma que o valor e a franquia da demurrage são negociados e de ciência dos players do transporte, assim é a cobrança à vista, inclusive detalhada em termo e condições de uso do contêiner que é indissociável ao Conhecimento Marítimo. "[...] O conhecimento de embarque nada mais é do que um contrato e se as partes contrataram dessa forma, nada podem reclamar, até porque, no seu anverso há cláusula específica prevendo a cobrança da multa relativa à sobreestadia, bem como cláusula responsabilizando o comerciante:[..] 3. INCORPORAÇÃO DE TARIFA - Os termos das tarifas aplicáveis do Transportador são aqui incorporados. Particular atenção é dada aos termos aqui relacionados com a sobreestadia do container e sobrestadia de veículos (...). Pela leitura da aludida cláusula 3, acima transcrita, que expressamente prevê a cobrança da sobreestadia, em conjunto com os documentos de fls. 42/43, que também de maneira expressa, preveem prazo livre de 10 (dez) dias e na 'tabela anexa' (Tarifas Demurrage Brasil),estão os respectivos valores; não resta dúvida acerca da impossibilidade da recorrente de se eximir da responsabilidade pelo pagamento das taxas de sobrestadia ou 'demurrage', não havendo, portanto erro na fundamento da r. sentença guerreada. (TJSP - 24.ª Câmara de Direito Privado - Apelação Cível 7031147-8 - Rel. Des. Roberto Nussinkis MacCracken - Deram provimento parcial, v.u. - j. 17.08.2006) Ademais, se assim não fosse, o artigo 331 do Código Civil dá total guarida legal a prática narrada. Vejamos: Art. 331. Salvo disposição legal em contrário, não tendo sido ajustada época para o pagamento, pode o credor exigi-lo imediatamente. O Bill of Lading evidencia o que foi contratado e que as partes que o compõem contrataram dessa forma, nada tem nada a reclamar posteriormente. É preciso grifar que a relação contratual em comento se dá entre partes totalmente conhecedoras dos trâmites e praxes do transporte marítimo, de tal forma que chega a ser inusitado alegar desconhecimento dos documentos e cláusulas nele previstas. Nesta linha de raciocínio, essencial que se observe o que prevê o parágrafo único do artigo 421 do Código Civil, com relação ao princípio da intervenção mínima e excepcionalidade da revisão contratual. Art. 421.  [...].  Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual.  No universo das relações empresariais, sequer deveria se cogitar ação judicial para imposição de obrigações contratuais, pois se a parte contratante anui e aceita os termos do Conhecimento Marítimo, não há margem que lhe permita impugná-lo mormente quando se torna inadimplente. Se, por exemplo, a consignatária compreende que não tem aptidão para a prática, que negocie e faça constar no contrato de transporte marítimo que a cobrança será, excepcionalmente, a prazo. Na realidade o procedimento de cobrança à vista é simples, todavia, por razões lógicas os devedores encontram e criam óbices para que essa cobrança não ocorra, vejamos posições de renomados desembargadores a respeito do assunto: Defiro o efeito suspensivo pleiteado pelo agravante, porquanto a documentação apresentada nessa oportunidade demonstrou, inequivocamente, que ausentes a verossimilhança das alegações e o fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação invocados pela agravada em sua exordial, a fortiori porque não se trata de relação de consumo stricto sensu, sendo de prevalecer a máxima pacta sunt servanda, com cobrança à vista/imediata pela Agravante ex vi do conhecimento marítimo e do artigo 331 do Código Civil. (AI 2280321-09.2020.8.26.0000 - TJSP 03/12/2020 - Des Rel Décio Rodrigues) De todo modo, caberá à GAC, concomitantemente, efetuar o pagamento do débito pelo atraso na devolução dos containers e, com a indicação do local, devolver os baús ao verdadeiro dono. Não cabe à devedora condicionar a devolução da coisa à sua maneira. Cabe-lhe pagar, primeiro, e devolver, depois, no local a ser indicado. (AI 2079584-87.2020.8.26.0000 - TJSP 26/10/2020 - Desembargador Relator Virgilio de Oliveira Junior, v.u.) (grifo nosso) Explanados temas cruciais sobre o assunto, necessário abordar o formato do procedimento. Por óbvio não seria possível praticar a cobrança à vista que conhecemos no nosso dia a dia, entrega do dinheiro e entrega da coisa em momento simultâneo, por essa razão houve um estudo envolvendo possibilidades e permissivos legais e assim, foi planejado uma "troca" de agendamentos, permitindo inclusive que o pagamento não seja exatamente à vista, mas até 24 horas após a devolução da unidade de carga. Uma vez excedido o período de free time, o consignatário envia uma mensagem eletrônica ao armador agendando uma data para a devolução do contêiner, ato posterior o armador calcula o quanto é devido a título de sobrestadia, tornando líquida a quantia e envia a fatura ao consignatário da carga. Nesse passo lhe é exigido o agendamento do pagamento da demurrage para até depois  de 24 horas da efetiva entrega. Importante observar que a partir do término do período de free time a demurrage já é devida, valendo doravante o princípio "once on demurrage, always on demurrage". O que torna a cobrança da sobrestadia na modalidade à vista plenamente lícita. Vejamos ainda que não há recusa por parte do transportador em receber o contêiner de volta e muito menos cobrança prévia da demurrage. O que há na verdade é uma distorção dos fatos por devedores inescrupulosos que tendem a todo tempo desvirtuar o que foi contratado. O cenário real é que há desídia por duas vezes pelo consignatário da carga, a primeira ao não devolver o contêiner no período da franquia e a segunda ao discordar em realizar procedimento que no início não lhe gerou qualquer descômodo. Fácil é verificar que o transportador condicionou a devolução do contêiner tão somente ao agendamento do pagamento da sobrestadia nas hipóteses em que a demurrage já é devida, ou seja, quando já ultrapassado o período de free time e não devolvida a unidade de carga. A controvérsia quanto à possibilidade da cobrança à vista é de simples resolução, pois encontra respaldo contratual nas cláusulas do Bill of Lading ao qual anuiu o consignatário da carga, ao passo que o respaldo legal é dado pelos artigos 331 e 421, parágrafo único, ambos do Código Civil, somando-se a isso a total inexistência de proibição a tal prática no sistema jurídico, o que legitima a cobrança na modalidade à vista. Como sabiamente dito pelo Ilustre Magistrado da 4ª Vara Cível da Comarca de Santos, Dr. Frederico Messias, "a ação judicial está a serviço do não cumprimento da obrigação. É preciso um novo olhar a partir da ideia de boa-fé objetiva, reveladora de standards positivos de conduta na relação contratual (antes, durante e depois), bem como, a partir da vedação ao exercício abusivo do direito de ação com o fim de perpetuar a inadimplência".  O que se nota em muitos casos são devedores que acionam o Poder Judiciário para perpetuar a sua inadimplência, pois o procedimento da cobrança à vista da demurrage possibilita o pagamento do valor devido de forma imediata, sem a incidência de demais encargos.  Como muito bem explanado em recentíssima decisão da 23ª Câmara de Direito Privado do Estado de São Paulo "aquele que ao portar os contêineres, tornando-se parte legítima para pleitear a sua devolução, dever inteirar-se das condições em que se dá a sua utilização, as quais constaram do conhecimento de transporte". O atraso na devolução também expõe o transportador ao risco de cancelamento de negócios pela falta de contêineres disponíveis no porto de origem, caso não seja possível a reposição em tempo hábil e, nesse limiar, é preciso analisar com cautela o princípio da mitigação do dano, usado comumente em defesas contra a cobrança à vista da demurrage. É preciso notar que a ideia da mitigação do dano não pode significar a transferência do dano em desfavor de apenas uma das partes, a quebrar a lógica da boa-fé que impõe ao devedor cumprir com as obrigações que regularmente assume. Não há violação da boa-fé e nem mesmo um ato de má-fé por parte do credor, na qual teria por fim provocar indevidamente um aumento significativo do encargo de seu devedor, pois o valor devido se deu exatamente porque o consignatário não cumpriu o contratado em entregar o container no prazo da franquia. Evidentemente, o dever geral de mitigar o próprio prejuízo não é absoluto, nem exige que a parte lesada pelo inadimplemento adote toda e qualquer medida abstratamente capaz de reduzir os danos sofridos. Nesse sentido, o STJ vem reconhecendo que o credor não está obrigado a se prejudicar tentando reduzir seus prejuízos, nem a agir contrariamente à sua atividade empresarial. No caso concreto, receber os cofres de carga inviabiliza a cobrança à vista. No mais, a insatisfação do consignatário da carga com a modalidade de cobrança da qual já tinha conhecimento, não inibe a mora gerada por desídia da própria parte. Não é demais lembrar que a própria ANTAQ determina de forma clara quando se encerra a responsabilidade do consignatário pela demurrage (Resolução Normativo 62 - 29/11/2021): Artigo 21 - A responsabilidade do usuário, embarcador ou consignatário pela sobre-estadia termina no momento da devida entrada do contêiner cheio na instalação portuária de embarque, ou com a devolução do contêiner vazio no local acordado, no estado em que o recebeu, salvo deteriorações naturais pelo uso regular. É preciso notar que o armador em momento algum recusa o recebimento do contêiner ou ainda impõe pagamento prévio ou adiantado, isso inexiste. O que é exigido é o agendamento do pagamento para momento posterior à devolução da unidade, pagamento de valor incontroversamente devido, do qual o consignatário tinha conhecimento de que seria cobrado se ultrapassado free time. Alguns trechos do Acórdão proferido nos autos a Apelação Cível 1005951-86.2021.8.26.0562 pela 23ª Câmara de Direito Privado do TJSP em 26/04/2023 são de grande valia para melhor compreensão da licitude do procedimento: Ação de obrigação de fazer c.c. indenização por danos materiais - Transporte marítimo - Suposta recusa da ré em receber os contêineres vazios antes do pagamento do valor relativo às sobrestadias - Sentença de procedência da ação -  Pedido de reforma - Cabimento - Alegado condicionamento do recebimento dos contêineres ao prévio pagamento das sobrestadias não demonstrado - Sistema da ré que exige, para que o portador do contêiner agende a sua devolução, o comprovante de agendamento do pagamento das sobrestadias, com vencimento para até 24h da efetiva devolução da unidade de carga - Prática que não se confunde com a negativa de recebimento dos contêineres sem o prévio pagamento das sobrestadias - Contraprestação relativa à sobrestadia de contêiner que é devida, sempre que escoado o período de "free time" - Exigência da ré que tem amparo no art. 331 do CC - Autora que não fez pedido expresso acerca de eventual inexigibilidade do valor relativo às sobrestadias, nem negou ter excedido o "free time" vigente para os contêineres que estavam em sua posse Autora que se limitou a afirmar que, de sua parte, não houve pacto acerca do "free time" e dos termos da cobrança - Irrelevância na hipótese vertente - Autora que, ao portar os contêineres, tornando-se parte legítima para pleitear a sua devolução, deve inteirar-se das condições em que se dá a sua utilização, as quais constaram do conhecimento de transporte - Desnecessidade de ajuste expresso para se exigir a contraprestação pela sobrestadia de contêineres - Contratos de transporte marítimo que revelam forte influência dos usos e costumes da região que são entabulados - Recusa da ré em proceder ao agendamento da devolução do contêiner nos termos pretendidos pela autora que não se revelou ilegítima - Pedido obrigacional da autora rejeitado - Ressarcimento dos valores despendidos pela autora com o armazenamento dos contêineres em terminal privado Descabimento - Recusa da ré em proceder ao agendamento da devolução dos contêineres sem que a autora agendasse o pagamento das sobrestadias que não se mostrou ilícita - Despesas com o armazenamento dos contêineres em terminal privado que, nesse contexto, decorreu de escolha da própria autora que deve custeá-las - Pleito indenizatório que não pode prevalecer - Sentença Reformada - Decretada a improcedência da ação - Apelo da ré provido, com observação. Esse acórdão demonstra que o Poder Judiciário está atento às práticas atuais do mercado e a tendência é que a modalidade de cobrança à vista da demurrage venha a se consolidar entre os transportadores dada a sua simplicidade, legalidade e efetividade, tanto no cumprimento das obrigações quanto no próprio recebimento dos valores devidos. Não há lei ou tese que obrigue ou proíba o armador a adotar a prática da cobrança à vista. Entretanto, o que foi estipulado contratualmente deve ser respeitado. Além disso, a desídia inicial em não cumprir o período free time não dá ao consignatário da carga o direito de exigir qual será sua forma de cobrança ou mesmo impor a sua maneira em cumprir a obrigação, ficando numa posição mais favorável que a do próprio credor e nesse sentido, é válido novamente mencionar o Ilustre Juiz da 4ª Vara Cível de Santos, Dr. Frederico Messias, que em recente sentença recitou: "No cotidiano forense, assiste-se a perpetuação da inadimplência das obrigações, no mais das vezes, valendo-se o devedor de ações judiciais habilmente manejadas para esse fim, colocando ele, devedor, na posição de soberano no reino da inadimplência, restando ao credor ser mero súdito." Não há erro e nem mesmo qualquer ilicitude que impeça a cobrança da demurrage na modalidade à vista, o que certamente há são devedores que se acostumaram comodamente com a cobrança a prazo da sobrestadia, realizando o pagamento meses ou anos após a sua ocorrência, ou quando melhor lhes aprouver. Ser contra a cobrança à vista é beneficiar o mau pagador e ainda ignorar o contrato firmado entre as partes e a lei vigente.
Diversos autores1 fazem referência ao incidente ocorrido em 1930 com o navio alemão Baden, que teria motivado a criação de uma corte para apreciação dos acidentes e fatos da navegação.  Este fato, sem dúvida, tem grande importância histórica e já foi muito tratado na literatura jurídica e também nesta Coluna.                  O propósito do texto de hoje, porém, é examinar a origem e evolução do Tribunal Marítimo (TM), sob o aspecto normativo, ou seja, como seu surgimento ocorreu no direito positivo e sua evolução ao longo do tempo. Assim, em que pese a importância histórica do "caso Baden", a primeira referência a um tribunal marítimo, do ponto de vista estritamente normativo, veio no Decreto 20.829, de 21/12/1931, que tinha a seguinte ementa: "Cria a Diretoria de Marinha Mercante e dá outras providências". Seu art. 5º tinha o seguinte teor2: Art. 5º Os Tribunais Marítimos Administrativos, que ora ficam creados pelo presente decreto sob a jurisdição do Ministério da Marinha, terão a organização e atribuições determinadas no regulamento a ser expedido para a Diretoria da Marinha Mercante.  O mesmo Decreto já proveu sobre um período de transição, "enquanto as necessidades do serviço (...) não demonstrarem a conveniência da divisão do território nacional em circunscrições marítimas", em que funcionaria um único Tribunal, no Distrito Federal, conforme § 1º desse dispositivo. Os demais parágrafos delineavam as atribuições do "Tribunal Marítimo Administrativo": § 5º Alem da multa pecuniária, este Tribunal só poderá impor as penas de inaptidão para a profissão e suspensão das respectivas funções. § 6º Tratando-se de crimes ou contravenções, os respectivos inquéritos serão remetidos à justiça ordinária para os efeitos de ordem pública, após sobre eles se pronunciar o Tribunal Marítimo Administrativo do Distrito Federal. § 7º Caberá recurso para o Supremo Tribunal Federal de todas as decisões deste Tribunal que impuserem a pena de inaptidão para a profissão ou contrariarem a jurisprudência interpretativa da Constituição ou das leis federais. Nos demais casos, o recurso será interposto junto ao próprio Tribunal, uma única vez. § 8º Vigorará para o Tribunal Marítimo Administrativo do Distrito Federal o mesmo regimento de custas do Supremo Tribunal Federal. Já em 1933, este perfil veio a ser modificado, pelo Decreto 22.900, que desvinculou os Tribunais da Marinha Mercante, subordinando-os diretamente ao Ministro da Marinha, e determinando a criação, em 30 dias, do regulamento do Tribunal do Distrito Federal.  Confira-se: Art. 1º Os Tribunais Maritimos Administrativos, creados pelo decreto n. 20.829, de 21 de dezembro de 1931, passam, a partir desta data, a ser autonomos, sob a jurisdição diréta do ministro da Marinha, ficando os seus serviços desincorporados dos que, na fórma do art. 2º do supra mencionado decreto, integram a Diretoria de Marinha Mercante.  Art. 2º Nos termos do art. 5º e seus paragrafos do aludido decreto, o Ministerio da Marinha fará expedir, no aprazo de trinta dias o regulamento para o Tribunal Maritimo Administrativo do Distrito Federal, que, até ulterior deliberação, exercerá suas atribuições sôbre toda a costa, mares interiores e vias navegaveis da República. Esse Regulamento, todavia, só veio a lume em 05/07/1934, com o Decreto 24.585, o qual, no entanto, passou a se referir a um único tribunal, com jurisdição em todo o País.  Seus arts. 10 e 11 estabeleciam suas funções: Art. 10. Ao Tribunal Maritimo Administrativo, com jurisdicção sobre toda a costa, mares interiores e vias navegaveis da Republica, compete fixar a natureza e extensão dos accidentes da navegação, examinando a sua causa determinante e circumstancias em que se verificarem, uma vez que taes accidentes tenham occorrido: Art. 11. Compete, outrosim, ao Tribunal: a) solucionar, quando indicado pelas partes, as questões de soldadas, accidentes no trabalho, litigios entre pessôas vinculadas á navegação e oriundos de serviços ou trabalhos dessa actividade; b) conhecer e decidir sobre os litigios oriundos da má prestação de serviços maritimos em todas as suas modalidades, desde que não se trate de materia da competencia dos juizes e tribunaes ordinarios; c) manter em sua secretaria o "registro geral de propriedade marítima"; e) determinar toda a especie de diligencias necessarias a elucidação dos factos que forem trazidos ao seu julgamento; f) decidir sobre os embargos que forem oppostos ás suas decisões finaes; g) receber e fazer subir os recursos especiaes interpostos ás suas decisões para os juizos e tribunaes competentes; h) remetter á justiça ordinaria os respectivos processos, em traslado, depois de sobre os mesmos se haver pronunciado, sempre que se trate de crime ou contravenção; l) applicar as penas e multas estabelecidas neste regulamento; Em que pese algumas funções que hoje pareceriam exóticas, como a competência para decidir sobre matéria trabalhista (alínea "a" do art. 11), a função principal, tal como se consolidaria nas décadas seguintes, já estava razoavelmente delineada no art. 10: "fixar a natureza e extensão dos acidentes da navegação, examinando a sua causa determinante e circunstâncias em que se verificarem", ou seja, julgar os acidentes e fatos da navegação.  Também a função registral já estava claramente delineada, na alínea "c" do art. 11. Somente após esse Decreto, o Tribunal Marítimo foi efetivamente instalado.  Conforme ressalta Matusalém Pimenta: "(...) registrando-se como primeiro acórdão o relativo ao processo nº 29/34, sobre o encalhe do "Hiate Vênus". O processo nº 1 só foi julgado no dia 13 de dezembro de 1935 e tratava do naufrágio do "Constantinopla"3. Nos estertores do Estado Novo, o Decreto-Lei 7.675, de 27/06/1945, sem revogar os Decretos anteriores4, reorganizou parcialmente o TM, merecendo destaque os seguintes dispositivos: Art. 1º O Tribunal Marítimo Administrativo, órgão integrante do Ministério da Marinha, com sede no Distrito Federal, criado pelo Decreto nº 20.829, de 29 de dezembro de 1931, passa a denominar-se Tribunal Marítimo e tem por finalidade: I - definir a natureza, a extensão e a causa determinante dos acidentes e fatos da navegação; II - fixar as responsabilidades em todos os acidentes e fatos da navegação e punir, administrativamente, os responsáveis; III - aplicar as penalidades estabelecidas nesta Lei; IV - manter o Registro Geral da Propriedade Marítima, da Hipoteca Naval e de outros ônus previstos em lei sôbre embarcações brasileiras. Art. 5º Nas causas relativas aos acidentes da navegação definidos nesta lei, as perícias de natureza técnica são privativas do Tribunal Marítimo, cujas decisões em matéria de fato se presumem verdadeiras e sòmente quando incidirem em êrro manifesto poderão ser revistas pelos órgãos do Poder Judiciário. Tem-se aí o ponto inicial da expressão "acidentes e fatos da navegação", que viria a sintetizar, em toda a legislação posterior, a principal função do TM.  O art. 5º, por sua vez, deu início à longa controvérsia, ainda hoje intensa, sobre o valor das decisões do TM perante o Poder Judiciário. Com o fim do Estado Novo e a redemocratização do País, consolidada na Constituinte de 1946, veio a primeira e única menção constitucional ao Tribunal Marítimo, no art. 17 das disposições transitórias daquela Carta: Art 17 - O atual Tribunal Marítimo continuará com a organização e competência que lhe atribui a legislação vigente, até que a lei federal disponha a respeito, de acordo com as normas da Constituição. Em cumprimento a essa determinação, em 1954, foi promulgada a Lei 2.180, que deu melhor sistematização ao tema. Logo em seu art. 1º, reiterou claramente a vinculação do TM ao Ministério da Marinha, ou seja, ficando clara sua inserção no Poder Executivo: Art. 1º O Tribunal Marítimo, órgão vinculado ao Ministério da Marinha, com sede na Capital da República e jurisdição em todo o território nacional, compor-se-á de sete juízes. Além de incorporar as inovações do DL 7.675, definindo uma nova composição com juízes permanentes (e não mais com investidura limitada no tempo, como ocorria no regime anterior), a nova Lei tratou em dispositivos distintos sobre a jurisdição (art. 10) e competência (art. 13) do Tribunal Marítimo, valendo transcrever este último, que define suas funções: Art. . 13. Compete ao Tribunal Marítimo: I - julgar os acidentes e fatos da navegação; a) definindo-lhes a natureza e determinando-lhes as causas, circunstâncias e extensão; b) indicando os responsáveis e aplicando-lhes as penas estabelecidas nesta lei; c) propondo medidas preventivas e de segurança da navegação; II - manter o registro geral: a) da propriedade naval; b) da hipoteca naval e demais ônus sôbre embarcações brasileiras; c) dos armadores de navios brasileiros. (não destacado no original) O art. 16 da Lei trouxe ainda outras funções, merecendo transcrição as seguintes alíneas: Art. . 16. Compete ainda ao Tribunal Marítimo: a) determinar a realização de diligências necessárias ou úteis à elucidação de fatos e acidentes da navegação; b) delegar atribuições de instrução; c) proibir ou suspender por medida de segurança o tráfego de embarcações, assim como ordenar pelo mesmo motivo o desembarque ou a suspensão de qualquer marítimo; d) processar e julgar recursos interpostos nos têrmos desta lei; f) funcionar, quando nomeado pelos interessados, como juízo arbitral nos litígios patrimoniais consequentes a acidentes ou fatos da navegação; i) executar, ou fazer executar, as suas decisões definitivas; Como se percebe, foi mantida a função principal, agora enunciada com maior clareza, a de "julgar os acidentes e fatos da navegação" (art. 13,I), bem assim a função registral (art. 13,II) e outras funções administrativas de menor interesse ao objeto deste estudo.  Uma novidade muito interessante - mas jamais posta em prática - foi a possibilidade de exercer a função arbitral "nos litígios patrimoniais consequentes" (alínea "f" do art. 16). O dispositivo mais importante da Lei 2.180 talvez seja o art. 18, objeto de muitos debates e tema central deste trabalho, que sucedeu ao art. 5º do DL 7.675/ 45, e, em sua redação original, tinha o seguinte teor: Art. . 18. As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário sòmente quando forem contrárias a texto expresso da lei, prova evidente dos autos, ou lesarem direito individual. Corolário desse dispositivo, o art. 19 deixa clara aquela que, neste trabalho, será chamada de função instrutória. Sua redação original era a seguinte: Art. 19. Sempre que se discutir em juízo uma questão decorrente de acidente ou fato da navegação sôbre água cuja parte técnica ou técnico-administrativa couber nas atribuições do Tribunal Marítimo, deverá ser junta aos autos a sua decisão definitiva. A lei 2.180, ainda em vigor, sofreu várias outras alterações, que não modificaram substancialmente a estrutura, nem as funções do TM, mas que merecem referência, como se passa a fazer. Menos de cinco anos após a sua promulgação, um primeiro conjunto de alterações foi efetuado pela Lei 3.543, de 11/02/1959.  A maior parte destas alterações se referia à composição do Tribunal e ao regime jurídico-funcional de seus juízes civis e militares.  No que interessa ao objeto do presente estudo, destaca-se a alteração do art. 1º, que passou a ter a seguinte redação: Art. 1º O Tribunal Marítimo, com jurisdição em todo o território nacional, é órgão autônomo, auxiliar do Poder Judiciário na apreciação dos acidentes e fatos da navegação sôbre água, vinculando-se ao Ministério da Marinha no que se refere ao provimento de recursos orçamentários para pessoal e material destinados ao seu funcionamento. A comparação com a redação anterior mostra uma evolução importante: a caracterização do TM como "órgão auxiliar do Poder Judiciário", expressão que até hoje permanece na Lei, ao mesmo tempo em que se esclarece que sua vinculação ao então Ministério da Marinha (Poder Executivo) concernia à atividade-meio (recursos orçamentários). A lei 5.056, de 29/06/66, promoveu grandes mudanças na parte administrativa e de organização do TM, além de modificar, novamente, a forma de provimento dos cargos de Juiz.  Naquilo que interessa ao presente trabalho, também foram modificados os dispositivos mais importantes, ou seja, os arts. 1º, 18 e 19, que passaram a ter a seguinte redação: Art. 1º O Tribunal Marítimo, com jurisdição em todo o território nacional, órgão, autônomo, auxiliar do Poder Judiciário, vinculado ao Ministério da Marinha no que se refere ao provimento de pessoal militar e de recursos orçamentários para pessoal e material destinados ao seu funcionamento, tem como atribuições julgar os acidentes e fatos da navegação marítima, fluvial e lacustre e as questões relacionadas com tal atividade, especificadas nesta Lei. Art. 18. As decisões do Tribunal Marítimo, nas matérias de sua competência, tem valor probatório e se presumem certas, sendo suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário sòmente nos casos previstos na alínea a do inciso III do art. 101 da Constituição. Art. 19. Sempre que se discutir em juízo uma questão decorrente de matéria da competência do Tribunal Marítimo, cuja parte técnica ou técnico-administrativa couber nas suas atribuições, deverá ser juntada aos autos a sua decisão definitiva. O art. 1º sofreu apenas uma ligeira alteração, para dar maior clareza ao texto, ao especificar "navegação marítima fluvial e lacustre" (em vez de "navegação sobre a água"), acrescentando ainda às competências do TM as "questões relacionadas a tal atividade". A nova redação do art. 18 restringiu sobremaneira as hipóteses de reapreciação judicial da matéria julgada pelo TM, o que já foi objeto de análise em outros textos desta Coluna. Já a alteração do art. 19 limitou-se a dar maior clareza ao texto, mantendo a determinação de juntada da decisão do TM ao processo judicial em que se discuta matéria de sua competência. Finalmente, a lei 9.578, de 19/12/1997, promoveu nova alteração do art. 18, ampliando as hipóteses de reexame, pelo Poder Judiciário, da matéria julgada pelo TM: Art. 18. As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo porém suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário. Registre-se, apenas para completar a narrativa, que outros diplomas legais promoveram alterações na redação original da Lei 2.180/54, mas que não serão objeto de exame, sob tal aspecto, neste breve artigo, a saber: - Lei l3.747, de 14/04/1960; - Decreto-leil 25, de 01/11/1966; - Decreto-lei 383, de 26/12/1968; - Lei 5.742, de 01/12/1971; - Lei 7.642, de 18/12/1987; - Lei 7.652, de 03/02/1988; - Lei 8.391, de 30/12/1991; - Lei 8.969, de 28/12/1994 e - Lei 9.527, de 10/12/1997. Como se percebe, a atual configuração do Tribunal Marítimo, com suas principais funções (registral, sancionatória e instrutória) não surgiu de uma única vez, mas foi resultado de uma longa evolução histórico-normativa.  O conhecimento dos detalhes dessa evolução é relevante para a correta interpretação de cada uma destas funções e, sobretudo, dos seus limites e possibilidades de revisão judicial. __________ 1 Por todos, com a mais detalhada descrição do incidente, veja-se PIMENTA, Matusalém. Processo Marítimo: formalidades e tramitação, 2ª ed. Barueri: Manole, 2013, p. 1-5.  Também fazem referência a este fato histórico, geralmente com a simples repetição de informações constantes do site do TM na internet: Eliane Octaviano MARTINS (Curso de Direito Marítimo, vol. III. Barueri: Manole, 2015, p. 276); Ingrid Zanella Andrade CAMPOS (Direito Constitucional Marítimo. Curitiba: Juruá, 2011, p. 93-94); João Luís Aguiar de MEDEIROS e Luis Cláudio Furtado FARIA (O Tribunal Marítimo, 06/05/2015. Disponível aqui, acesso em 13/02/2016) e Ruy de Mello MILLER (Poder Judiciário e Tribunal Marítimo: independência, harmonia e efetividade das decisões judiciais, 11/03/2015, disponível aqui, acesso em 13/02/2016). 2 Ao longo deste texto, a transcrição da legislação respeita a grafia original da publicação de cada ato normativo.  Do mesmo modo, não há trechos sublinhados nem destacados no original, sendo tais ênfases acrescentadas na transcrição. Em alguns casos, deixou-se de transcrever todos os incisos, alíneas, ou parágrafos dos dispositivos, mantendo-se apenas as que interessam ao presente artigo. 3 PIMENTA, Matusalém Gonçalves. Processo Marítimo: formalidades e tramitação, 2ª ed. Barueri: Manole, 2013, p. 8. 4 Na verdade, o DL 7.675 não apenas deixou de revogar, como continha dispositivo que manteve expressamente a vigência dos referidos Decretos: Art. 19. Continuam em vigor os dispositivos do Decreto nº 20.829, de 29 de dezembro de 1931 e do Regimento aprovado pelo Decreto nº 24.585, de 5 de julho de 1934, que, explícita ou implìcitamente, não contrariem os do presente Decreto-lei.
Como se sabe, a unificação promovida pelo Código Civil de 2002, reunindo no mesmo diploma o direito civil clássico e o direito comercial (antes regido pelo Código de 1850), acabou tendo reflexos na organização judiciária e no processamento e julgamento das causas afetas à atividade empresarial. Basta ver que a própria jurisdição se unificou, com a extinção dos antigos Tribunais de Comércio e a expansão da competência da justiça comum, que passou a alcançar também os conflitos relativos ao direito comercial. Muito embora essa unificação (no código e na jurisdição) tenha encontrado, de formal geral, a recepção calorosa da crítica, em razão da sua proposta simplificadora, a verdade é que, na prática, ela trouxe um enorme desafio, em particular para a magistratura. Afinal, a competência das varas de direito civil, que já era enciclopédica, passou a absorver todas as demandas empresariais.   De um lado, esse movimento levou a uma resistência de comercialistas, os quais, discordando da visão teórica, passaram a advogar pelo retorno da codificação apartada. O resultado mais claro disso foi a retomada dos projetos de novo código comercial, de que é exemplo o projeto de lei do Senado (PLS) 487, de 2013. De outro lado, e no que importa mais diretamente ao tema aqui, houve uma significativa mobilização, tanto externa quanto internamente ao Poder Judiciário, no sentido da especialização dos órgãos jurisdicionais. A ideia era que ela poderia contribuir para a resolução adequada dos inúmeros conflitos de natureza empresarial, incluindo, é claro, aqueles relacionados ao direito marítimo (objeto desta coluna). Essa mobilização gerou resultados concretos pelo país, com destaque para o Rio de Janeiro. A experiência desse estado tem sido rica, especialmente no que respeita à aceitação da competência das varas especializadas para o julgamento das causas de direito marítimo. Além disso, muito recentemente, o TJ/RJ houve por bem operar a especialização de competência em segunda instância, por meio da Resolução OE 01/23. Pela importância do estado e recente inovação de sua organização judiciária, vale olhar, ainda que de forma panorâmica, para o caso do Rio de Janeiro. O ponto de partida é a Resolução 19, de 2001, editada pelo Órgão Especial do Tribunal. Essa resolução ampliou a competência das antigas varas de Falências e Concordatas da comarca da capital, passando a englobar outras matérias relativas ao direito comercial (incluindo o direito marítimo). Nesse sentido, ela estabeleceu as conhecidas "varas empresariais, de falências e concordatas" (depois transformadas, pela Resolução 16/02, nas simples "varas empresariais" de hoje). Pela Resolução 19/01, os juízes de direito das novas varas empresariais passaram a ter competência funcional para o processamento e julgamento das causas relativas a direito marítimo. Veja-se o antigo art. 91, I, do Código de Organização Judiciária - CODJERJ: "Compete aos Juízes de Direito, especialmente em matéria de falências e concordatas: I - Processar e julgar: (...) g) as causas relativas a Direito Marítimo, especialmente nas ações: a. que envolverem indenização por falta, extravio ou avarias, inclusive às relativas a sub-rogações; b. relativas à apreensão de embarcações; c. ratificações de protesto formado a bordo; d. relativas à vistorias de carga; e. relativas à cobrança de frete e sobrestadia". Estava fora de dúvida, portanto, que os conflitos oriundos das relações comerciais envolvendo a navegação e o trânsito por águas (marítimas, fluviais e lacustres) atrairia, a partir de então, a competência das varas empresariais. É verdade que, até pela abertura do artigo visto acima, surgiu uma controvérsia inicial sobre a natureza do rol trazido (se taxativa ou exemplificativa). Ou seja, passou-se a discutir se a competência dos juízes das varas empresariais estaria ou não restrita às 5 hipóteses elencadas. Isso muito embora a redação do dispositivo se valesse do advérbio "especialmente", que já dá a entender que os magistrados são competentes para o todo (i.e., para todas as "causas relativas a direito marítimo"), com destaque (ou "especialmente") para as principais causas da área, indicadas na alínea "g".  Felizmente, a matéria já se pacificou, há tempo, no sentido de que a competência é ampla (ou, dito de outra forma, o rol é exemplificativo). "APELAÇÃO CÍVEL. DECLARAÇÃO DE INEXIGIBILIDADE DE MULTA. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE APOIO MARÍTIMO RELATIVO À EMBARCAÇÃO. ATRASO NA ENTREGA. SENTENÇA DE PARCIAL PROCEDÊNCIA. PRESCRIÇÃO QUINQUENAL. PRINCÍPIO DA ACTIO NATA. INCIDÊNCIA DO DISPOSTO NO ART. 206, § 5º, I DO CÓDIGO CIVIL. LIQUIDEZ DO CRÉDITO. ALEGAÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE CLÁUSULAS DE CONTRATO DE AFRETAMENTO. DISCIPLINA ESPECÍFICA DO DIREITO MARÍTIMO É DA COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA VARA EMPRESARIAL, À LUZ DO ARTIGO 50, INCISO I, ALÍNEA "H", DA LEI DE ORGANIZAÇÃO E DIVISÃO JUDICIÁRIAS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - LODJ, CUJO ROL É EXEMPLIFICATIVO. INADIMPLEMENTO QUE RESTOU INCONTROVERSO NOS AUTOS. ICIDÊNCIA DA MULTA CONTRATUAL. PRINCÍPIO PACTA SUNT SERVANDA. CLAUSULA CONTRATUAL PREVENDO A EXCLUSÃO DA MULTA SOBRE A ¿PARCELA PARA TRIPULAÇÃO DA EMBARCAÇÃO". SENTENÇA QUE MERECE SER MANTIDA NA SUA INTEGRALIDADE. RECURSOS CONHECIDOS E DESPROVIDOS". (TJ/RJ, 12ª CC, AC n. 0183277-21.2017.8.19.0001, Rel. Des. Jaime Dias Pinheiro Filho, j. 02.04.2019). *** "Agravo de Instrumento. R. Decisão a quo concedendo parcialmente a tutela de urgência requerida pela Agravada para restringir a cobrança do valor relativo à multa ao montante de R$237.237,17, determinando que as Agravantes não descontem da Autora qualquer valor acima até a ultimação do contraditório, sob pena de multa de R$50.000,00 (cinquenta mil reais) por descumprimento. I - Afaste-se a prefacial de incompetência absoluta suscitada, porquanto fundada em sofisma, na medida em que alega não versar a presente ação sobre direito marítimo, mas sim acerca de relação contratual, atraindo a competência das varas cíveis, na forma do artigo 50, inciso I, alínea "h" do CODJERJ. II - Em verdade, a vexata quaestio diz respeito às multas impostas em razão do inadimplemento de avença de afretamento marítimo firmada pelos Litigantes, sendo certo que as referidas sanções são consectário lógico do contrato regido pelo Direito Marítimo, ou seja, dele acessórios. Rol do artigo 50 do CODJERJ não é exaustivo, mas sim exemplificativo, como se denota da expressão "especialmente" contida no dispositivo legal. (...) VI - Recurso conhecido em relação a preliminar, negando-lhe provimento. Não conhecimento do Agravo de Instrumento quanto ao seu mérito, ante a ausência de dialeticidade das razões recursais com o fundamento do R. Decisum combatido". (TJ/RJ, 4ª CC, AI n. 0057060-96.2018.8.19.0000, Rel. Des. Reinaldo Pinho Alberto Filho, j. 05/12/18) Assim, a jurisprudência se encarregou de solucionar o problema. Aliás, o próprio CODJERJ, a partir da atualização promovida em 2015 pela Lei nº 6956, ampliou o rol referido no dispositivo (atual art. 50, I, "h"), para incluir determinadas operações marítimas (como o salvamento) e disputas oriundas do agenciamento de embarcações. Ou seja, confirmou a natureza exemplificativa do elenco. Veja-se a redação dada hoje ao atual art. 50, I, "h" (antigo art. 91, I, "h"): "Art. 50 Compete aos Juízes de Direito em matéria empresarial:   I - processar e julgar: (...) h) ações relativas a direito marítimo, especialmente as de: 1. indenização por falta, extravio ou avarias, inclusive às relativas a sub-rogações; 2. apreensão de embarcações; 3. ratificações de protesto formado a bordo; 4. vistoria de cargas; 5. cobrança de frete e sobrestadia; 6. operações de salvamento, reboque, praticagem, remoção de destroços, avaria grossa; 7. lide relacionada a comissões, corretagens ou taxas de agenciamento de embarcação;" Portanto, no cenário atual, é certo que são os juízes das varas empresariais que devem processar e julgar todos os conflitos afetos ao direito marítimo, incluindo aqueles que não estejam indicados expressamente na lei (como, por exemplo, as disputas contratuais oriundas de contratos de afretamento de embarcações). Veja-se, a título meramente ilustrativo, as ementas dos seguintes julgados: "Ação de Cobrança. Sociedade empresária autora que pertence a um grupo brasileiro, atuando nas áreas de apoio marítimo, portuário, construção naval e proteção ambiental, fornecendo a embarcação MALAVIYA TWENTY NINE, de bandeira da Índia, em contrato de afretamento entabulado com a ré, Petrobrás. Alegação de prejuízo e violação contratual, culminando na cobrança da quantia de mais de dois milhões de reais em face da ré. Sentença de procedência. Apelo da ré (Petrobrás). Preliminar de incompetência do Juízo afastada. A vexata quaestio é referente a contrato de afretamento de navio, típico de direito marítimo, logo, a matéria afigura-se inserida na competência funcional (ratione materiae) do juízo das varas empresariais. Art. 50, I, h, da LODJ. No mérito, o período de inoperância do navio pertencente à autora, durante o processo de renovação do CCA (Certificado de Autorização de Afretamento), bem como o período de bloqueio por priorização do navio de bandeira nacional, não caracteriza indisponibilidade, para fins contratuais. Inteligência da lei 9.432/15. Contrato contendo cláusula clara, no sentido de que a responsabilidade de providenciar a Autorização de Afretamento e o Certificado de Autorização de Afretamento (CAA) incumbe à Petrobrás. Observância ao princípio do pacta sunt servanda. Fato previsível pela ré/ apelante, que confeccionou os contratos unilateralmente. Reconhecimento do caráter indevido da cobrança pela ré, do combustível consumido pela embarcação, nos períodos em que esteve aguardando a renovação de seus CAAs e o desbloqueio por priorização, bem como da supressão de pagamento de diárias até o termo final dos contratos. Precedentes deste Tribunal. Sentença correta. Honorários recursais incidentes à hipótese. DESPROVIMENTO DO RECURSO." (TJ/RJ, 13ª CC, AC 0310104-77.2017.8.19.0001, Rela. Desa. Sirley Abreu Biondi, j. 25/11/20) *** "APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO MARÍTIMO. AÇÃO DE COBRANÇA. AFRETAMENTO. ADITIVO CONTRATUAL PARA A APOIO À OPERAÇÃO DE RESGATE DE EMBARCAÇÃO DA MARINHA DO BRASIL QUE HAVIA AFUNDADO EM MARES DO CONTINENTE ANTÁRTICO. ALEGAÇÃO DE PETROBRÁS NÃO RESTITUIU AS DESPESAS REALIZADAS DURANTE A PRESTAÇÃO DO SERVIÇO ADICIONAL, ASSIM COMO VEM REALIZANDO DESCONTOS DE VALORES DEVIDOS, SEGUNDO A PETROBRÁS, EM RAZÃO DO CONSUMO DE COMBUSTÍVEL, MAS QUE TAMBÉM SE REFEREM AO SERVIÇO DE RESGATE. COMPETÊNCIA DAS VARAS EMPRESARIAIS PARA O PROCESSAMENTO E JULGAMENTO DE CAUSA QUE ENVOLVAM DIREITO MARÍTIMO. ART. 50, I, ALÍNA H, DA LODJ. PREJUDICIAL DE PRESCRIÇÃO AFASTADA. DÍVIDA LÍQUIDA CONSTANTE DE DOCUMENTO PARTICULAR. PRAZO PRESCRICIONAL DE CINCO ANOS NÃO ESGOTADO QUANDO DA PROPOSITURA DA DEMANDA. NO MÉRITO, VERIFICA-SE QUE AS DÍVIDAS FORAM INDEVIDAMENTE COBRADAS DA PARTE AUTORA. CARTA-PROPOSTA VEICULADA EM QUE RESTOU EXPRESSAMENTE DISPOSTO O CUSTEIO DE TODAS AS DESPESAS ORDINÁRIAS COM A OPERAÇÃO DE RESGATE, INCLUSIVE QUANTO AO CINSUMO DE COMBUSTÍVEL. COMPROVAÇÃO DE QUE AS DÍVIDAS IMPUGNADAS FORAM CONSTITUÍDAS DURANTE A VIGÊNCIA DO CONTRATO. SENTENÇA DE PROCEDÊNCIA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO." (TJ/RJ, 6ª CC, AC 0030499-66.2017.8.19.0001, Rela. Desa. Teresa de Andrade Castro Neves, j. 11/3/20) Vê-se, a partir do panorama oferecido até aqui, que a especialização da jurisdição, em especial no campo do direito marítimo, tornou-se uma realidade. E bem-vinda. De fato, desde os "considerandos" da Resolução 19/01, já era sabida, nos termos do ato, a "conveniência técnica" de especializar os juízos, particularmente em matéria de direito marítimo.  A conveniência da especialização se justifica por suas inúmeras vantagens. Em resumo, a lógica é simples. A especialização leva a uma maior familiaridade dos juízes com a matéria, estimulando o refinamento do conhecimento e da técnica acerca do tema. A partir disso, com o domínio da matéria, os julgamentos se dão de forma mais rápida. O apuro técnico e a celeridade, combinados, traduzem, justamente, a eficiência da prestação jurisdicional. De modo que as vantagens da especialização poderiam ser resumidas, grosso modo e para fins unicamente didáticos, nesta equação: técnica + celeridade = eficiência.   É claro que existem outros benefícios que derivam dessa estrutura básica. Assim é que, por exemplo, olhando para o Poder Judiciário, não há dúvida de que esse movimento contribui para a uniformização da jurisprudência, para a resolução ágil das disputas (desafogando os órgãos) e para a qualificação dos outros profissionais envolvidos nos julgamentos (servidores, advogados etc.). De outro lado, mirando os efeitos externos, a consistência técnica, aliada à uniformização jurisprudencial, leva certamente a uma maior segurança jurídica, o que contribui para a atração de investimentos (nacionais e estrangeiros) e, em última instância, para o desenvolvimento socioeconômico. Assim, parece ser inquestionável a adequação desse movimento pela especialização dos juízos. No plano concreto, isso já tem sido quase que unanimemente percebido por diferentes agentes, além de estar se refletindo na eficiência dos tribunais do país. Veja-se, por exemplo, que, de acordo com pesquisa de Opinião realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2020, acerca das vantagens das câmaras especializadas, 95,3% dos magistrados, 89,4% dos servidores e 76,5% dos advogados entenderam que a especialização contribui na melhoria dos serviços prestados pelo Poder Judiciário. Isso porque auxilia na capacitação, qualificação e compreensão dos temas jurídicos, além de colaborar na gestão das equipes e no interesse do trabalho realizado. Em termos práticos, no primeiro ano de atuação da 21ª Câmara Cível Especializada do TJMG (fevereiro de 2022 a janeiro de 2023), a Câmara superou a meta estipulada pelo Tribunal, julgando 80% dos colegiados em até 100 dias1. Após a instalação, também houve maior celeridade na tramitação dos processos, apresentando uma média de 80 dias de tempo decorrido entre a data da distribuição e a data do julgamento. Foi seguindo nesse mesmo caminho que o TJ/RJ implementou recentemente o critério de especialidade em suas câmaras, por meio da nova Resolução OE 01/23. Essa resolução dispõe sobre a especialização de competências na segunda instância, a fim de disciplinar as questões transitórias referentes à transformação das câmaras Cíveis em câmaras de Direito Privado e de Direito Público e a criação das câmaras de Direito Empresarial. A Resolução sucede a deliberação conduzida pelo Tribunal Pleno, com a sessão realizada no dia 12 de setembro de 2022, e entrou em vigor no dia 07 de fevereiro de 2023. As câmaras Cíveis foram transformadas nas câmaras de Direito Privado ou de Direito Público, com o intuito de proporcionar maior celeridade e qualidade nos julgamentos da matéria. A especialização, como dito, tem sido uma nova realidade adotada por diversos Tribunais. Especificamente no TJ/RJ, as câmaras adotaram o critério de ordem de antiguidade de cada Órgão Julgador. No total, foram instituídas 22 câmaras de Direito Privado e 6 câmaras de Direito Público, as quais ficaram alinhadas da seguinte forma: I - Câmaras de Direito Público: 1ª Câmara de Direito Público - 28ª Câmara Cível; 2ª Câmara de Direito Público - 10ª Câmara Cível; 3ª Câmara de Direito Público - 6ª Câmara Cível; 4ª Câmara de Direito Público - 7ª Câmara Cível; 5ª Câmara de Direito Público - 16ª Câmara Cível; 6ª Câmara de Direito Público -> 21ª Câmara Cível. II - Câmaras de Direito Privado: 1ª Câmara de Direito Privado - 8ª Câmara Cível; 2ª Câmara de Direito Privado - 3ª Câmara Cível; 3ª Câmara de Direito Privado - 18ª Câmara Cível; 4ª Câmara de Direito Privado - 5ª Câmara Cível; 5ª Câmara de Direito Privado - 24ª Câmara Cível; 6ª Câmara de Direito Privado - 13ª Câmara Cível; 7ª Câmara de Direito Privado - 12ª Câmara Cível; 8ª Câmara de Direito Privado - 17ª Câmara Cível; 9ª Câmara de Direito Privado - 2ª Câmara Cível; 10ª Câmara de Direito Privado - 1ª Câmara Cível; 11ª Câmara de Direito Privado - 27ª Câmara Cível; 12ª Câmara de Direito Privado - 14ª Câmara Cível; 13ª Câmara de Direito Privado - 22ª Câmara Cível; 14ª Câmara de Direito Privado - 9ª Câmara Cível; 15ª Câmara de Direito Privado - 20ª Câmara Cível; 16ª Câmara de Direito Privado - 4ª Câmara Cível; 17ª Câmara de Direito Privado - 26ª Câmara Cível; 18ª Câmara de Direito Privado - 15ª Câmara Cível; 19ª Câmara de Direito Privado - 25ª Câmara Cível; 20ª Câmara de Direito Privado - 11ª Câmara Cível; 21ª Câmara de Direito Privado - 19ª Câmara Cível; 22ª Câmara de Direito Privado - 23ª Câmara Cível. Além da transformação das câmaras Cíveis em câmaras de Direito Privado ou de Direito Público, foram criadas 2 câmaras de Direito Empresarial, com competência exclusiva para apreciar matérias de Direito Empresarial, assim entendidas aquelas elencadas no artigo 50 da Lei de Organização e Divisão Judiciárias do Estado do Rio de Janeiro (lei estadual 6.956/15), excetuadas as especificadas nas alíneas "c" e "d" do inciso I daquele dispositivo legal2. Assim, ao todo, são 22 câmaras de Direito Privado, 6 câmaras de Direito Público e 2 câmaras de Direito Empresarial, além das 8 câmaras Criminais já existentes, que continuarão em atividade. A competência das câmaras Direito Privado, de Direito Público e de Direito Empresarial é fixada em função da natureza da relação jurídica litigiosa. A exceção é na hipótese em que figurar como parte ou interessado o Estado ou Município, assim como uma de suas autarquias, empresas públicas e fundações públicas, casos em que a competência será das câmaras de Direito Público. Esses são, em um panorama geral, os pontos centrais da Resolução OE 01/23, a mais recente inovação na organização judiciária do TJ/RJ. Espera-se que ela, sendo mais um tijolo nessa construção histórica da especialização dos juízos, possa reforçar, ainda mais, as vantagens do movimento, em particular a eficiência na prestação jurisdicional. Que assim seja. ---------- 1 A meta do Tribunal era julgar 70% dos processos colegiados em até 100 dias. Assim, a 21ª Câmara Cível superou 10 pontos percentuais acima do objetivo. 2 Art. 50 da Lei de Organização e Divisão Judiciárias do Estado do Rio de Janeiro (Lei estadual nº 6.956/2015): I - processar e julgar: a) falências, recuperações judiciais e os processos que, por força de lei, devam ter curso no juízo da falência ou da recuperação judicial; b) execuções por quantia certa contra devedor insolvente, bem como pedido de declaração de insolvência; e) as ações relativas ao direito societário, especialmente: 1- quando houver atividade fiscalizadora obrigatória da Comissão de Valores Mobiliários; 2- quando envolvam dissolução de sociedades empresariais, conflitos entre sócios cotistas ou de acionistas dessas sociedades, ou conflitos entre sócios e as sociedades de que participem; 3- liquidação de firma individual; 4- quando envolvam conflitos entre titulares de valores mobiliários e a sociedade que os emitiu, ou conflitos sobre responsabilidade pessoal de acionista controlador ou dos administradores de sociedade empresarial, ou, ainda, conflitos entre diretores, membros de conselhos ou de órgãos da administração e a sociedade; f) ações relativas a propriedade industrial, direito autoral e nome comercial; g) ações em que a Bolsa de Valores for parte ou interessada; h) ações relativas a direito marítimo, especialmente as de: 1. indenização por falta, extravio ou avarias, inclusive às relativas a sub-rogações; 2. apreensão de embarcações; 3. ratificações de protesto formado a bordo; 4. vistoria de cargas; 5. cobrança de frete e sobrestadia; 6. operações de salvamento, reboque, praticagem, remoção de destroços, avaria grossa; 7. lide relacionada a comissões, corretagens ou taxas de agenciamento de embarcação; i) ações diretamente relacionadas às sentenças arbitrais e que envolvam as matérias previstas neste artigo; j) as ações diretamente relacionadas à recuperação de ativos desviados de sociedades empresariais em razão de fraude e/ou lavagem de dinheiro; II - cumprir precatórias pertinentes à matéria de sua competência.
Segundo os dados históricos, embora as primeiras tentativas de encontrar petróleo no Brasil remontem aos tempos imperiais, foi somente em 1897, mais precisamente no município de Bofete, Estado de São Paulo, que o primeiro poço de petróleo no país foi, enfim, perfurado. Embora os registros históricos indiquem que a perfuração tenha sido pouco exitosa, iniciou-se naquele momento uma jornada que ainda hoje se encontra em constante evolução.1 Nos anos vindouros, foram criados o Conselho Nacional do Petróleo, em 1938, a Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobras), em 1953, e, passados mais alguns anos, em 1968, o primeiro projeto para extração de petróleo em águas profundas. No mesmo ano, tornou-se realidade também a primeira plataforma construída no Brasil, a Petrobras 1 (P-1), que iniciou as atividades de perfuração em Sergipe2. Confira-se uma fotografia dessa pioneira plataforma em águas brasileiras: Passados mais de 50 anos, o desenvolvimento e multiplicação dessas estruturas complexas trouxeram uma séria de questões técnicas, mas também jurídicas que merecem ser objeto de exame mais detalhado. Especificamente para o fim do presente estudo, existe uma grande discussão, nacional e internacional, quanto ao enquadramento das plataformas como embarcação, navio ou ilha artificial. O debate passa pela navegabilidade das plataformas e pela sua estrutura fixa ou móvel, categoria em que se encontram as plataformas flutuantes do tipo Floating Production Storage and Offloading (FPSO), o que gera diversas implicações jurídicas, especialmente regulatórias. O Decreto nº 87.648/82 definia que "O termo 'embarcação', empregado neste Regulamento, abrange toda construção suscetível de se locomover na água, quaisquer que sejam suas características" (art. 10). Esse decreto, porém, foi revogado pelo Decreto nº 2.596/98, que não reproduziu a mesma definição. A Lei nº 9.537/97, que trata da segurança do tráfego aquaviário, trouxe um novo conceito de embarcação, que expressamente incluiu as plataformas flutuantes: "Embarcação - qualquer construção, inclusive as plataformas flutuantes e, quando rebocadas, as fixas, sujeita à inscrição na autoridade marítima e suscetível de se locomover na água, por seus meios próprios ou não, transportando pessoas ou cargas".  No presente texto, será objeto de análise como a Marinha do Brasil qualifica as plataformas flutuantes para fins de enquadramento da regulação, bem como quais as distinções entre as plataformas flutuantes de bandeira brasileira e as de bandeira estrangeira. Primeiramente, destacam-se duas Normas da Autoridade Marítima (NORMAM), que dispõem sobre as plataformas móveis, distinguindo o tratamento dispensado pela Marinha às plataformas brasileiras (NORMAM-01) e às estrangeiras (NORMAM-04). Na NORMAM-01, a Marinha tratou de incluir as plataformas flutuantes no conceito de embarcação3, exatamente em linha com o que dispõe a lei 9.537/1997. Por esse motivo, essas plataformas, assim como as demais embarcações brasileiras, estão sujeitas à inscrição nas Capitanias dos Portos (CP), Delegacias (DL) ou Agências (AG), o que gera a atribuição de nome à plataforma e do número de inscrição, que constarão no Título de Inscrição de Embarcação (TIE) emitido. Adicionalmente, é necessário o registro da embarcação no Tribunal Marítimo4, a quem compete manter o registro geral de propriedade naval, nos termos da lei 2.180/1954. Esse registro tem por objetivo estabelecer a nacionalidade, validade, segurança e publicidade da propriedade da embarcação, e culmina com a expedição da Provisão de Registro de Propriedade Marítima (PRPM). O prazo para a realização dos trâmites de inscrição e registro de embarcação brasileira é de quinze dias, a contar da data (i) do termo de entrega pelo construtor, quando construída no Brasil; (ii) de aquisição da embarcação ou do direito e ação, no caso de promessa de compra e venda; ou (iii) de sua chegada ao porto onde será registrada, quando adquirida ou construída no exterior. Por outro lado, as plataformas estrangeiras estão sujeitas à regulação distinta, pois o registro da sua propriedade dever ser realizado no país da sua bandeira. Para que possa operar em águas jurisdicionais brasileiras (AJB), entretanto, a Marinha exige, por meio da NORMAM-04, que embarcações estrangeiras se inscrevam temporariamente perante a Autoridade Marítima. Para obter o Atestado de Inscrição Temporária (AIT), o armador, afretador ou representante legal da embarcação estrangeira deverá solicitar à DPC ou à CP/DL, antes da chegada da embarcação em AJB, a autorização para operar. A emissão do AIT depende da realização de uma perícia técnica por peritos navais a bordo da embarcação para verificação de cumprimento à legislação brasileira e às convenções internacionais ratificadas pelo governo brasileiro. No caso de FPSOs estrangeiras, a validade da inscrição temporária está atrelada ao prazo da portaria de concessão da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis do Brasil (ANP) para exploração, desenvolvimento e produção de petróleo e gás natural, ou ao prazo do contrato de afretamento da FPSO - o que tiver o menor prazo de validade. Essas são as diferenças essenciais quanto à propriedade e registro das plataformas flutuantes brasileiras e estrangeiras perante a Marinha. Mas há também uma distinção quanto às declarações que são periodicamente emitidas pela Marinha ao longo da operação das plataformas no Brasil para atestar a regularidade e o cumprimento das normas aplicáveis - as chamadas Declarações de Conformidade. Tanto a NORMAM-01 como a NORMAM-04 exigem que plataformas flutuantes, sejam brasileiras, sejam estrangeiras, se submetam à perícia técnica da Marinha para que seja verificado o cumprimento das normas vigentes sobre segurança da navegação, salvaguarda da vida humana no mar e prevenção da poluição no meio hídrico. Como resultado desse procedimento, será emitida a Declaração de Conformidade para Operação de Plataforma, sem a qual não pode operar regularmente. Esse documento possui a validade de um (1) ano, a contar da data da realização da perícia, e deve ser renovado mediante a realização de um novo exame pericial naval. Há, ainda, uma segunda declaração que é exigida apenas de embarcações estrangeiras, chamada de Declaração de Conformidade para Operação em Águas Jurisdicionais Brasileiras. Essas embarcações devem se submeter à mesma perícia inicial exigida para emissão do AIT, mas a diferença é que a validade da Declaração de Conformidade para operação em AJB é de dois anos, sendo necessário, portanto, se submeter a uma nova perícia a cada biênio para renovação dessa declaração específica. Além disso, não se pode descartar a possibilidade de os peritos navais encontrarem alguma deficiência no decorrer da perícia. Diante disso, tanto a NORMAM-01 quanto a NORMAM-04 estabelecem a figura da Declaração Provisória, tanto para Operação de Plataforma, como para Operação em AJB. A provisoriedade é caracterizada pela validade de noventa dias dessa declaração, período em que deverão ser corrigidas as deficiências apontadas pela perícia. A Declaração Provisória para Operação em AJB somente será emitida caso as deficiências apontadas não representem risco para a plataforma. Já quanto à Declaração Provisória para Operação de Plataforma, a Marinha ressalta que ela somente será emitida caso o risco apontado para a embarcação seja moderado. Nos casos de avarias que exijam análises mais aprofundadas, a unidade não é autorizada a operar até que (i) seja emitido um parecer específico sobre a discrepância apontada por parte da Sociedade Classificadora e, em seguida, (ii) ocorra a análise do parecer pelo Capitão dos Portos ou Delego, que determinará a conveniência de se emitir o documento de autorização ou se determinar a correção dos problemas apontados. De todo modo, Sociedade Classificadora emitirá um relatório atestando a correção e saneamento das deficiências e/ou da confirmação a bordo pelo perito, para que, então, a operação seja liberada. Caso uma declaração provisória seja emitida, a Marinha afixará à declaração as ações de monitoramento e controle que devem ser implementadas dentro do período de validade da declaração provisória, de noventa dias, com intuito de corrigir essas deficiências e possibilitar a emissão da Declaração de Conformidade para Operação de Plataforma com validade de um ano, ou da Declaração de Conformidade para Operação em AJB, com validade de dois anos. Essas são as principais diferenças no que tange à fiscalização periódica da Marinha sobre plataformas brasileiras e estrangeiras. É importante frisar ainda que, para as plataformas estrangeiras, há três autorizações que precisam ser emitidas pela Marinha, independentes entre si e com períodos de validade distintos. Por mais que seja possível realizar uma única perícia inicial para emissão da AIT, da Declaração de Conformidade para Operação de Plataforma e da Declaração de Conformidade para Operação em AJB, todas necessárias para o início da operação da plataforma estrangeira em AJB, será necessário realizar uma nova perícia próxima a cada data de vencimento das declarações - com especial atenção à validade, relativamente curta, das declarações provisórias e a necessária correção das deficiências apontadas. Por fim, um último aspecto de distinção diz respeito ao encerramento da operação das plataformas flutuantes brasileira e estrangeira. No caso de necessidade de permanência em AJB após o término da autorização de operação, a embarcação de bandeira estrangeira deverá solicitar à Marinha uma autorização específica, disciplinada pela NORMAM-04, que prevê as hipóteses em que embarcações estejam aguardando contrato comercial, em processo de mudança de bandeira, em reparos ou sub judice. Outro procedimento, não expressamente indicado na NORMAM-04 e que pode demandar a permanência em AJB, é o descomissionamento da plataforma, que já foi objeto de estudo anterior nessa coluna5. A Marinha autorizará a permanência em AJB pelo prazo de noventa dias, suscetível à renovação sob avaliação da DPC. Como o controle e registro das embarcações brasileiras é feito por meio do Título de Inscrição de Embarcação (TIE) e da Provisão de Registro de Propriedade Marítima (PRPM), e não por inscrição temporária, não é necessário que se requeira uma autorização específica para permanência em AJB após o término da operação. Em resumo, o que se verifica é que, por mais que possa existir uma certa insegurança jurídica nacional e internacional quanto à natureza das plataformas flutuantes, não há, perante a Marinha do Brasil, discussão quanto à classificação de plataformas flutuantes como embarcação para fins regulatórios, em linha com a legislação vigente sobre segurança de tráfego aquaviário (Lei nº 9.537/97). Já as diferenças tratadas neste artigo quanto à regulação das plataformas pela Marinha do Brasil decorrem da bandeira da embarcação, se brasileira ou estrangeira, o que implica em diferentes regras para o registro e operação de plataformas flutuantes no Brasil, que precisam ser atentamente observadas para que se tenha segurança jurídica nessas operações que, geralmente, envolvem investimentos e riscos bastante elevados. Referências ARLOTA, Alexandre Sales Cabral. CARDOSO; Camila Mendes Vianna. A Natureza Jurídica Das Plataformas Marítimas Petrolíferas - Um Estudo Da Indústria Offshore. Revista Brasileira de Direito do Petróleo, Gás e Energia. Rio de Janeiro, v. 4, p. 23 - 36, 2013. SCARANELLO, Tatiana. Plataforma de petróleo e sua natureza jurídica definida como navio - Oil rig and its legal set to ship. Meu Site Jurídico - Editora JusPodivm. Disponível aqui. __________ 1 ALESP. "Petrobras: 50 anos de história". Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 "Embarcação - qualquer construção, inclusive as plataformas flutuantes e, quando rebocadas, as fixas, sujeita à inscrição na Autoridade Marítima e suscetível de se locomover na água, por meios próprios ou não, transportando pessoas ou cargas" (grifos nossos - NORMAM-01/DPC). Disponível aqui. Acesso em 14.04.2023. 4 Essa obrigação é imposta a toda embarcação com arqueação bruta superior à 100, nos termos da NORMAM-01, item 0201. 5 Disponível aqui.
Sempre que se discutir a responsabilidade civil, importa notar que, seja ela objetiva ou subjetiva, demandará três requisitos essenciais à sua existência, quais sejam: o ato ilícito, o dano e o nexo de causalidade. Especialmente em relação ao nexo de causalidade, a ausência de um requisito essencial impede a caracterização da responsabilidade. Nos casos de responsabilidade objetiva assume extraordinária importância o nexo de causalidade no critério do julgador na determinação do dever de indenizar, de modo que devem estar presentes, além do dano e do exercício de determinada atividade pelo responsável, a comprovação segura do nexo causal entre eles. A doutrina da responsabilidade civil é clara no sentido de que para a concretização responsabilidade, embora objetiva, é indispensável que se estabeleça uma interligação entre a ofensa à norma e o prejuízo sofrido. Nesse sentido são esses os ensinamentos de Caio Mario da Silva Pereira1: "Cabe, todavia, não levar a extremo de considerar que todo dano é indenizável pelo fato de alguém desenvolver uma atividade. Aqui é que surge o elemento básico, a que já acima me referi: a relação de causalidade. Da mesma forma que na doutrina subjetiva, o elemento causal é indispensável na determinação da responsabilidade civil, também na doutrina objetiva o fenômeno há de ocorrer. A obrigação de indenizar existirá como decorrência natural entre o dano e a atividade criada pelo agente. O vínculo causal estabelecer-se-á entre um e outro. Num dos extremos está o dano causado. No outro, a atividade causadora do prejuízo". Nesta mesma direção são as lições de Vicente Greco Filho e Ernane Fidélis dos Santos2: "O Autor, na inicial, afirma certos fatos porque deles pretende determinada consequência de direito; esses são os fatos constitutivos que lhe incumbe provar sob pena de perder a demanda. A dúvida ou insuficiência de prova quanto ao fato constitutivo milita contra o autor. O juiz julgará o pedido improcedente se o autor não provar suficientemente o fato constitutivo de seu direito" E fechando o raciocínio, o ensinamento do Prof. Frederico Marques3:  "A vontade concreta da lei só se afirma em prol de uma das partes se demonstrado ficar que os fatos, de onde promanam os efeitos jurídicos que pretende, são verdadeiros. (....) Claro está que, não comprovados tais fatos, advirão para o interessado, em lugar da vitória, a sucumbência e o não-reconhecimento do direito pleiteado." Nessa esteira, a responsabilidade do transportador marítimo, embora objetiva e presumida, prescindível a demonstração do nexo causal entre a sua conduta e os danos experimentados para que exista o dever de reparação. Deste modo, diante da quebra do nexo de causalidade ante a impossibilidade de se aferir, com certeza, que os danos realmente ocorreram durante o transporte marítimo, ausente o dever de indenizar, posto que não houve constituiu o direito de reparação por parte do suposto lesado. No direito marítimo, a responsabilidade geralmente decorre do inadimplemento contratual (descumprimento de cláusulas contratuais nos contratos de afretamento, transporte, seguros etc.) ou deriva de acontecimentos aleatórios em decorrência de danos por acidentes ou fatos de navegação (colisões, abalroamentos, poluição ou qualquer outro tipo de sinistro). A responsabilidade do navio ou embarcação transportadora começa com o recebimento da mercadoria a bordo e cessa com a sua entrega à autoridade portuária no porto de destino ao costado do navio (art. 3º do decreto-lei 116/67). Ademais, considera-se objetiva a responsabilidade do transportador marítimo e de seus agentes e tem início quando recebem a carga para transporte, findando-se após a entrega da mercadoria ao destinatário, nos termos do art. 750 do Código Civil: Art. 750, CC: A responsabilidade do transportador, limitada ao valor constante do conhecimento, começa no momento em que ele, ou seus prepostos, recebem a coisa; termina quando é entregue ao destinatário, ou depositada em juízo, se aquele não for encontrado. É cediço que o regime de responsabilidade civil objetiva a princípio, dispensa, unicamente, o exame alusivo à presença de dolo ou culpa do transportador. No entanto, não exonera o lesado de demonstrar a relação de causa e efeito entre a conduta e o evento danoso. Caso a demonstração do aludido nexo de causalidade fosse ignorada ou mesmo dispensada, significaria adotar o regime do risco integral e automático, o que não encontra respaldo no ordenamento jurídico pátrio.  O dever de reparação, seja a responsabilidade objetiva ou subjetiva, só existe quando há comprovação segura do nexo de causalidade entre a conduta do transportador (ato) e o prejuízo reclamado (dano). Caso contrário, não há que se falar em responsabilidade.  Neste sentido é o artigo 373, inciso I, do Código de Processo Civil, segundo deve ser comprovado o nexo de causalidade entre o dano e a atuação da parte demandada, na ocasião dos fatos:  Artigo 373. O ônus da prova incumbe: I - o autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito.  A princípio a responsabilidade contratual do transportador configura uma obrigação de resultado e independe, portanto, de culpa e decorre do risco por ele assumido no contrato de transporte. De fato, é certo que a responsabilidade do transportador é objetiva, todavia, não é menos correto que a causa do dano há de ser a ele imputada ou, ao menos, há de se evidenciar que o sinistro ocorreu por ocasião do desenvolvimento da atividade do transportado. Em recente decisão proferida pela 24ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo consolida o entendimento doutrinário de que o dever de reparação só existe quando há comprovação segura acerca do nexo de causalidade entre a conduta do transportador (ato) e o prejuízo reclamado (dano). APELAÇÃO CÍVEL. Transporte marítimo de mercadoria sem contêineres. Direito de regresso regido pelo Art. 786 do Código Civil. Responsabilidade objetiva do transportador que vai do porto de embarque até o de destino. Instituto que dispensa, unicamente, o exame alusivo à presença de dolo ou culpa do transportador, mas não exonera o lesado de demonstrar a relação de causa e efeito entre a conduta e o evento danoso. Laudo unilateral apresentado pela seguradora, constando molhadura na mercadoria, que foi confeccionado dias após a descarga e o desembaraço aduaneiro. Dispensa da vistoria oficial pela autora que inviabilizou a prova de que as avarias ocorreram durante o transporte marítimo. Prova pericial que também não se prestaria a este fim. A ausência de relatório, laudo ou perícia que comprove as condições do contêiner no exato momento da entrega no porto afasta a presunção de que os danos à mercadoria tenham ocorrido durante o transporte marítimo, podendo ter se dado em momento posterior à descarga. Improcedência mantida, à luz do Art. 373, inciso I, do CPC. RECURSO DESPROVIDO. (Processo nº. 1011520-39.2019.8.26.0562 - 24ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo - Relator Desembargador Rodolfo Pellizari - Julgamento 23/03/2023) O referido julgamento seguiu o entendimento já consagrado em julgados anteriores, como segue: Apelação. Ação de regresso que visa o recebimento de valor pago pela seguradora. Transporte marítimo de cargas. Arguição de ilegitimidade de parte passiva. Inadmissibilidade. CDC. Não incidência. Alegação da autora de que a transportadora marítima deu causa aos prejuízos sofridos pela segurada que teve sua carga avariada. Não comprovação dos fatos constitutivos do seu direito. Preliminar rejeitada. Recurso provido.  "Não houve prova de que a mercadoria sofreu avaria durante a custódia da transportadora apelante e tampouco de que a transportadora terrestre tivesse recebido a mercadoria com avarias, mormente porque ela assumiu o ônus decorrente da desistência da vistoria aduaneira (fls. 32). Conclui-se, portanto, que a autora não se desincumbiu de provar que a culpa pela avaria parcial da carga foi do transportador marítimo, ou seja, que a apelante tenha concorrido para a ocorrência do dano causado na carga segurada, conforme alegado na inicial. Existindo relação jurídica, nos moldes do art. 333, I, do CPC, incumbia à autora comprovar o fato constitutivo de seu direito, ou seja, de que o valor pago à segurada correspondeu aos prejuízos ocorridos na mercadoria transportada e que foi a transportadora marítima quem deu causa aos danos por ela pontados. Ao contrário, limitou-se a afirmar na inicial que após a comunicação do sinistro a indenização paga à sua segurada, sub-rogou-se em todos os seus direitos e ações com relação aos referidos sinistros, conforme recibo de quitação anexo. Por conseguinte, ausentes os requisitos da configuração do ato ilícito, para a caracterização da responsabilidade civil, eis que necessária a demonstração de culpa ou dolo do agente, bem como do nexo causal, não há como imputar-lhe a obrigação indenizatória." (AC nº 1003915-12.2015.8.26.003 - 37ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo - Relator Desembargador Pedro Kodama - Julgamento 06/10/2015) Mister analisar as referidas decisões de forma minuciosa a fim de destacar a sua importância no que tange ao critério estabelecido pelo julgador na determinação do dever de indenizar nos casos de transporte marítimo. A responsabilidade civil objetiva do transportador marítimo deve decorrer da conjugação dos elementos, ato, dano e nexo causa. Nesse sentido, imprescindível a vistoria pois é elemento necessário para a caracterização da responsabilidade do transportador marítimo. Sem ela não há como responsabilizar o transportador marítimo por qualquer dano (artigo 1º, §§3º e 5º, do decreto-lei 116/67). Portanto, em que pese a responsabilidade objetiva do transportador marítimo, existem situações que rompem o nexo causal desobrigando-o do dever de indenizar, sendo de fundamental importância a análise dos vários desdobramentos que compõem o quadro fático em que o contrato está contextualizado. __________ 1 Responsabilidade civil | Caio Mario da Silva Pereira; Gustavo Tepedino - 13ª ed., - Rio de Janeiro: Forense,2022 - p.399. 2 Direito Processual Civil Brasileiro | Vicente Greco Filho - v.2 - 21ed., - São Paulo: Saraiva,2009 - p.235. 3 Instituições de Direito Processual Civil, v. 3, p. 379.
O Tribunal Marítimo, com jurisdição em todo o território nacional, é órgão autônomo da Administração Federal, auxiliar do Poder Judiciário, competente para jugar, no que interessa ao presente artigo, os acidentes e os fatos da navegação. É formado por Magistrados especialistas em Direito Marítimo, Direito Internacional, Armação e Navegação, mas também por Capitães de Longo Curso, de Mar e Guerra e de Fragata do Corpo de Engenheiros da Marinha, que são responsáveis por afirmar a natureza e a extensão dos acidentes ou fatos da navegação, indicando a causa determinante de cada um deles e, se o caso, impor sanções de caráter meramente administrativo. Como bem lembrado pelo especialista na matéria, Paulo Henrique Cremoneze (Prática de Direito Marítimo, 3ª edição, São Paulo, Aduaneiras, 2015), a criação do Tribunal Marítimo data de 1931; hoje sua função é apenas administrativa, estando vinculado à União e ao Ministério da Defesa, e cuja competência delimita-se pelos atos e fatos inerentes à navegação. Cabe ao Tribunal Marítimo processar e julgar administrativamente os casos que envolvam sinistros diretamente vinculados à navegação1. No Tribunal Marítimo os peritos são os próprios Magistrados. A prova produzida no âmbito do Tribunal Marítimo está sob o crivo do contraditório, tendo a Corte o dever de imparcialidade.  O Tribunal Marítimo julga os fatos e acidentes da navegação, em processo contencioso, com aplicação de normas técnicas e jurídicas compatíveis à solução do conflito e aplicabilidade subsidiária dos códigos de processo, e adota o mesmo procedimento de qualquer outro tribunal2. Dois pontos merecem destaque especial quando o tema é estudar a eficácia da decisão do Tribunal Marítimo no processo judicial, a saber: i) a autonomia do Tribunal Marítimo; ii) a composição plural da Corte. Quanto ao primeiro ponto - autonomia -, a ausência de vinculação no ato de julgar com qualquer órgão da administração, somado ao dever de imparcialidade, faz com que as decisões pronunciadas pela Corte Marítima sejam consideradas isentas e independentes, fundadas em critérios eminentemente técnicos próprios da especialidade da matéria sob a sua competência. Já no que tange ao segundo ponto - composição plural -, as variadas visões de cada um dos julgadores, especialistas em área específica da navegação, permitem que todos os pontos necessários ao melhor julgamento estejam colocados à mesa quando do debate, produzindo um acórdão representativo da melhor técnica.   Dito isso, diante de um acidente ou fato da navegação, o Tribunal Marítimo fará o seu julgamento para definição sobre a sua natureza e consequência, revelando a sua causa determinante e identificando os respectivos responsáveis, encaminhando o Acórdão ao Poder Judiciário, na sua função de tribunal auxiliar. Importante o destaque desde logo de que, ao contrário do Tribunal Marítimo, de composição técnica plural, o Poder Judiciário é formado por Magistrados sem o domínio da técnica da navegação, no que o Acórdão encaminhado por aquela Corte representa subsídio de grande importância na solução judicial da causa. Avançando no estudo, a primeira controvérsia, nesse processo de interação entre Tribunal Marítimo e Poder Judiciário, diz com a necessidade de se implementar a suspensão do processo judicial até o julgamento pelo Tribunal Marítimo, bem como a existência ou não de limitação temporal. Sobre esse ponto, dois dispositivos legais devem ser analisados, o artigo 19, da Lei 2180/54 e o artigo 313, inciso VII, do Código de Processo Civil3. É verdade que, no tocante à necessidade de suspensão do processo judicial, a questão, ao meu sentir, está resolvida com a previsão expressa no Código de Processo Civil4. Porém, ainda remanescem controvertidas duas questões interligadas, quais sejam: i) o momento da juntada do Acórdão do Tribunal Marítimo; e ii) o prazo de suspensão do processo judicial. Como visto, o artigo 19, da Lei 2180/54, menciona a juntada no processo judicial da decisão definitiva do Tribunal Marítimo sempre que a questão controvertida couber nas suas atribuições técnicas. Por outro lado, o artigo 313, inciso VII, do Código de Processo Civil, apenas afirma a necessidade de suspensão do processo judicial quando a questão envolver a competência do Tribunal Marítimo, sem qualquer delimitação temporal. É verdade que, sobre o ponto da limitação temporal, o julgamento no Tribunal Marítimo configura verdadeira prejudicialidade externa, o que faria, em princípio, atrair o prazo e a consequência previstos no artigo 313, inciso V, alínea "b", §§ 4º e 5º, todos do Código de Processo Civil5, no que ter-se-ia a limitação temporal peremptória de 01 (um) ano, devendo o Juiz, após o decurso desse prazo, prosseguir com o curso da ação judicial sem aguardar o Acórdão do Tribunal Marítimo. Todavia, não se pode desconsiderar o fato de que a lei 2180/54 possui natureza especial em relação ao Código de Processo Civil e, ao estabelecer em seu texto "a juntada definitiva da sua decisão", indica que o processo judicial deverá permanecer suspenso até a conclusão do processo no Tribunal Marítimo, independentemente da limitação temporal de 01 (um) ano. Ressalto, aqui, que não comungo da tese de que o processo judicial poderia prosseguir e, se o caso, até antes da sua sentença, implementar-se a suspensão para juntada da decisão definitiva do Tribunal Marítimo. Isso porque a decisão da Corte Marítima é de sobremaneira importância para o próprio curso da instrução do processo judicial, trazendo evidente prejuízo às partes caso somente venha a ser juntada ao final da instrução, até antes da sentença, sem mencionar o prejuízo para a economia processual, caso alguma prova tenha de ser refeita a partir da conclusão trazida aos autos pelo julgado do Tribunal Marítimo. Além disso, ainda sobre a suspensão do processo judicial até decisão definitiva do Tribunal Marítimo, como afirmado alhures, na Corte do Mar os Magistrados são os próprios peritos da causa, sendo de todo salutar que o Juiz do processo judicial, sem o conhecimento técnico a respeito dos acidentes e fatos da navegação, suspenda o processo antes do início da fase de instrução e aguarde a vinda da decisão definitiva daquela Corte, no que estará subsidiado para cumprir o ideal do melhor julgamento de mérito possível. A segunda questão geradora de controvérsia nessa interação entre Tribunal Marítimo e Poder Judiciário é a que diz respeito à eficácia da decisão pronunciada pela Corte do Mar nos processos judiciais. Ultrapassada a evolução legislativa histórica, em face da limitação do espaço deste artigo, a questão está disciplinada na atual redação do artigo 18, da lei 2180/54, que lhe foi conferida pela lei 9578/976.  Cabe, aqui, o destaque de que, no projeto do atual Código de Processo Civil (2015), o Acórdão do Tribunal Marítimo, relativo aos acidentes e fatos da navegação, estava estabelecido como sendo título executivo judicial, conforme previsão do vetado inciso X, do artigo 515. Constou como razão para o veto o fato de que ao atribuir natureza de título executivo judicial às decisões do Tribunal Marítimo, o controle de suas decisões poderia ser afastado do Poder Judiciário, possibilitando a interpretação de que tal colegiado administrativo passaria a dispor de natureza judicial. Aliás, não custa dizer, que em países como a França, os julgados do Tribunal Marítimo fazem coisa julgada para o Poder Judiciário. Mas bem se sabe que o sistema de contencioso administrativo na França é bastante diferente do sistema Brasileiro (em cujo ordenamento inexiste), de modo que se entende a distinção. No Brasil, exige-se a revisão das decisões do Tribunal Marítimo pelo Poder Judiciário, também considerando nesta revisão a hipótese de chancela-la para o deslinde da causa7. A decisão do Tribunal Marítimo, no âmbito do processo judicial, haverá de ser recebida pelo Juiz como prova de elevada técnica, relativamente à conclusão sobre os acidentes e fatos da navegação, estando muito distante de configurar mero parecer técnico sobre a questão controvertida8. Portanto, da atual redação do artigo 18 da lei 2.180/54, não se pode afastar a ideia de que as conclusões estabelecidas pelo Tribunal Marítimo em seus acórdãos são suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário em toda a sua extensão, mesmo que, quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação, tenham valor probatório, presumindo-se certas por força de lei. As decisões do Tribunal Marítimo possuem eficácia apenas no âmbito administrativo, razão pela qual suas conclusões podem ser revistas pelo Judiciário. Por conseguinte, ainda que as conclusões técnicas do Tribunal Marítimo devam ser valoradas da mesma forma que a prova judicial, o julgamento realizado no âmbito administrativo não condiciona a análise à lesão de direito realizada no âmbito do Judiciário9. Não estou entre os que pensam que o Acórdão do Tribunal Marítimo possui o valor probatório de uma prova comum do processo judicial, havendo de ser valorado pelo Juiz com os mesmos critérios dos demais meios de prova. Nessa trilha, a presunção legal de certeza estabelecida no artigo 18, da lei 2.180/54, impõe ao Juiz esforço argumentativo excepcional, fundado em critério técnico equivalente ao posto no Acórdão da Corte do Mar, capaz de afastar a conclusão do texto legal expresso que afirma "se presumem certas". E esse esforço argumentativo que se exige do Juiz não é o esforço comumente utilizado para afastar a tese das partes ou mesmo um singelo parecer técnico. Para além da presunção legal estabelecida em favor da decisão do Tribunal Marítimo, é preciso, a partir do conhecimento sobre a formação e funcionamento da Corte, admitir que o Acórdão por ela produzido, pronunciado por um colegiado plural de peritos na matéria, somente poderá ser afastado, no reexame judicial do seu mérito, com critério técnico equivalente, sendo excepcional essa hipótese. O Acórdão do Tribunal Marítimo não é parecer técnico. Calha dizer, por oportuno, que o Juiz, por maior expertise que possua na área da navegação, não poderá, por si próprio, afastar a conclusão técnica de mérito do Tribunal Marítimo, presumidamente certa pelo critério legal, porquanto a composição plural de especialistas daquela Corte exige conclusão técnica equivalente, o que não virá de uma só cabeça, ainda que seja aquela a quem caiba decidir o processo judicial. Por fim, sobre o valor e a extensão como meio de prova, há controvérsia se o reexame pelo Poder Judiciário do Acórdão pronunciado pelo Tribunal Marítimo estaria limitado com aspectos formais, sem possibilidade de revisão quanto ao mérito, ou, ao contrário, o Juiz poderia rever o mérito da sua conclusão, desde que, repita-se, com a devida fundamentação técnica. A juntada do Acórdão definitivo do Tribunal Marítimo no processo judicial entrega ao Juiz a cognição ampla, sendo lícito ao Magistrado a análise tanto dos seus aspectos formais, quanto do próprio mérito da conclusão. Ao se admitir uma análise restrita, somente dos aspectos formais, estar-se-ia criando uma espécie de coisa julgada formada em tribunal administrativo - Corte do Mar - vinculante em processo judicial, o que não se pode admitir, sob pena de afronta ao artigo 5º, inciso XXV, da Constituição Federal10. Nunca é demais repetir, como já afirmei em outro ponto deste artigo, que a conclusão do Tribunal Marítimo posta em seu Acórdão não é singelo parecer técnico, porquanto decorre da lei a sua presunção de certeza, impondo ao Juiz do processo judicial, quanto ao mérito, esforço argumentativo excepcional para o seu afastamento, no que somente reputo preenchido esse esforço com prova técnica equivalente àquela que nasce da composição plural da Corte do Mar, não sendo suficiente a conclusão individual do Magistrado, ainda que especialista em navegação e ainda que seja a quem caiba decidir o processo judicial. Em conclusão, afirmamos que: 1) O Tribunal Marítimo é órgão independente no âmbito da Administração Federal, com competência em todo o território nacional, para julgar os acidentes e fatos da navegação, definindo responsabilidades e causas determinantes; 2) A composição do Tribunal Marítimo é plural, com especialistas em várias áreas da navegação, permitindo-se afirmar que os Magistrados são os próprios peritos, elevando a credibilidade dos seus julgamentos; 3) O processo no Tribunal Marítimo é de natureza contenciosa, com estrita observância dos princípios do devido processo legal; 4) Na interpretação conjunta dos artigos 19, da Lei 2180/54 e 313, inciso VII, do Código de Processo Civil, o Juiz do processo judicial, ante a natureza especial do primeiro dispositivo, deve implementar a suspensão da ação antes do início da instrução - na fase de saneamento -, até a vinda da decisão definitiva do Acórdão do Tribunal Marítimo, permitindo às partes participar da instrução da causa com conhecimento sobre a conclusão técnica da Corte do Mar, bem como evitando a necessidade de repetição de provas, o que poderá vir a ocorrer após o seu conhecimento. Em nenhuma hipótese, o Juiz do processo judicial deverá prosseguir no julgamento da causa sem a juntada nos autos da decisão definitiva do Tribunal Marítimo; 5) O Acórdão do Tribunal Marítimo, relativamente aos acidentes e fatos da navegação, possui valor probatório e presunção de certeza, sujeito ao reexame pelo Poder Judiciário em cognição ampla - forma e mérito -, impondo ao Juiz do processo judicial esforço argumentativo excepcional para o afastamento das suas conclusões, exigindo-se, para isso, prova técnica equivalente àquela que decorre da composição plural e especializada da Corte do Mar; 6) O Juiz, mesmo que especialista em navegação, não poderá, por decisão sua, de natureza individual, afastar a conclusão do Acórdão do Tribunal Marítimo, posto que sua composição plural de especialistas exige critério técnico equivalente, para além da visão individual do julgador, ainda que caiba a este, em última análise, o julgamento do processo judicial.  A proposta do presente artigo, para longe de esgotar a matéria ou mesmo estabelecer proposições definitivas, é convidar os operadores do direito a, um, conhecer a composição e o funcionamento do Tribunal Marítimo, para, dois,  propor reflexões sobre a eficácia das suas decisões no processo judicial, contribuindo para julgamentos de mérito consentâneos com as melhores técnicas da navegação, dentro da busca pelo ideal da segurança jurídica. __________ 1 TJSP, 14ª Câmara de Direito Privado - Apelação nº 1011453-50.2014.8.26.0562 - Santos - Desembargador Relator CARLOS ABRÃO. 2 Direito Marítimo. Estudos em homenagem aos 500 anos da circum-navegação de Fernão de Magalhães. Marcelo David Gonçalves, O Tribunal Marítimo e a Eficácia dos seus Acórdãos, p. 353. 3 Artigo 19- Sempre que se discutir em juízo uma questão decorrente de matéria da competência do Tribunal Marítimo, cuja parte técnica ou técnico-administrativa couber nas suas atribuições, deverá ser juntada a sua decisão definitiva. Artigo 313- Suspende-se o processo: (...) VII- quando se discutir em juízo questão decorrente de acidentes e fatos da navegação de competência do Tribunal Marítimo.   4 "REPARAÇÃO DE DANOS. Acidente marítimo. Produção antecipada de provas. Tribunal Marítimo. Sentença transitada em julgada em 2009. Prescrição afastada. O processo administrativo suspende o processo reparatório. Artigo 20 da Lei nº 2.180/54. RECURSO PROVIDO para anular a sentença, afastando a extinção decretada, e determinar o prosseguimento do feito na Instância de origem." (TJSP. Apel. Cível nº 0044903-40.2010.8.26.0562 j. 30.06.2015, Relator Desembargador Alexandre Marcondes).   5 Artigo 313- Suspende-se o processo: V - quando a sentença de mérito: a) depender do julgamento de outra causa ou da declaração de existência ou de inexistência de relação jurídica que constitua o objeto principal de outro processo pendente; b) tiver de ser proferida somente após a verificação de determinado fato ou a produção de certa prova, requisitada a outro juízo; § 4º O prazo de suspensão do processo nunca poderá exceder 1 (um) ano nas hipóteses do inciso V e 6 (seis) meses naquela prevista no inciso II. § 5º O juiz determinará o prosseguimento do processo assim que esgotados os prazos previstos no § 4º.   6 Artigo 18- As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo, porém, suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário.   7Processo 1028563-18.2021.8.26.0562, TJSP. Foro de Bertioga, 1ª Vara, Juiz Leonardo Grecco.   8 STF AI 62811-RJ, Relator Ministro Bilac Pinto.    9 STJ. CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. TRIBUNAL MARÍTIMO. As decisões do Tribunal Marítimo podem ser revistas pelo Poder Judiciário; quando fundadas em perícia técnica, todavia, elas só não subsistirão se esta for cabalmente contrariada pela prova judicial. Recurso especial conhecido e provido. (REsp 38.082/PR, Rel. Ministro ARI PARGENDLER, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/05/1999, DJ 04/10/1999 p. 52). 10 Artigo 5º- XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.
quinta-feira, 6 de abril de 2023

O naufrágio hipotético

Diante do convite para contribuir com a nobre coluna Migalhas Marítimas, que manifesto ser leitor ávido de todas as publicações, venho agradecer ao Dr. Sergio Ferrari por proporcionar espaço aos maritimistas, assim como, dedico momento para agradecer aos meus gestores drs. Franklin Barreto e sra. Elaine Nazareth que não poupam esforços para garantir o avanço da advocacia e aos membros da Comissão de Direito Marítimo ao qual presido com muita dedicação. Honrado, venho apresentar como contribuição para uma explicação aos não maritimistas da parte conceitual, de forma direta, a ocorrência de um acidente específico da navegação, para que assim, seja possível entender como acontece, o que acarreta e como é tratado em nossa legislação. Como ponto inicial elenco quais eventos a legislação brasileira indica como acidentes da navegação com base na lei 2180/541, temos em seu artigo 14: Art. 142. Consideram-se acidentes da navegação: a) naufrágio, encalhe, colisão, abalroação, água aberta, explosão, incêndio, varação, arribada e alijamento; b) avaria ou defeito no navio nas suas instalações, que ponha em risco a embarcação, as vidas e fazendas de bordo. Dentre os mencionados, o acidente da navegação a ser conceituado e exemplificado hoje será o naufrágio, com destaque ao fato de que o naufrágio pode afetar tanto a pequena embarcação quanto a um navio de grande porte, contudo, além dos envolvidos, é muito comum que haja comoção social para tentar entender o que esta acontecendo e o que vai acontecer, pois aos olhos do publico sempre clama atenção a presença e envolvimento da marinha, no caso, com a figura da capitania dos portos e delegacias, que ocorre nos locais de acidente noticiados mesmo nos casos que não tenham a ocorrência de vítimas. Assim, temos no artigo 14 da lei 2180/543 a inclusão do naufrágio como acidente da navegação que será julgado pelo Tribunal Marítimo, mas é na NORMAN 09 que encontraremos a definição do Naufrágio conceitualmente. Segundo a NORMAN 094 em seu item 0106, a, 1, alinha I, temos a definição de naufrágio como sendo: I) naufrágio - afundamento total ou parcial da embarcação por perda de flutuabilidade, decorrente de embarque de água em seus espaços internos devido a adernamento, emborcamento ou alagamento; Caracterizada a perda da flutuabilidade chegamos ao evento naufrágio, então, veremos a quem compete, a quem afeta e qual o devido processo legal ao julgamento do naufrágio. Em uma situação hipotética, uma traineira que passava comunicou à capitania dos portos o avistamento de uma embarcação de lazer adernando, assim, buscou-se imediatamente resgatar os tripulantes e passageiros que clamavam por socorro, contudo, nada pode ser feito para evitar o naufrágio da embarcação. No caso exemplificado temos algo muito comum, que é ocorrência da observação de outras embarcações que podem auxiliar ou as vezes somente buscar socorro via rádio, cabendo providencias à Capitania dos Portos e Delegacias por atribuição dada pela Marinha do Brasil para iniciar processo inquisitório de investigação do acidente da navegação para verificar as razões do ocorrido para que posteriormente o Tribunal Marítimo venha a julgar quais sanções serão aplicadas ou se cabe absolvição. O direito marítimo no Brasil é regulamentado pela Constituição Federal Brasileira, bem como por uma série de leis e regulamentos nacionais. A legislação Marítima Brasileira, por exemplo, é um quadro legal abrangente que governa todos os aspectos do direito marítimo no país, desde o registro de embarcações e a certificação de marinheiros até a segurança marítima e a proteção ambiental. A jurisdição marítima do Brasil se estende até 200 milhas náuticas a partir de sua costa, de acordo com a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS5). Dentro dessa zona, o Brasil tem direitos exclusivos para explorar os recursos naturais e regular as atividades marítimas que ocorrem. Eventos de naufrágio podem ser devastadores para qualquer embarcação, tripulação e carga envolvidas. O Brasil, sendo uma das maiores nações marítimas do mundo, com larga extensão de costa, possui um abrangente conjunto de leis em vigor para lidar com eventos de naufrágio que ocorram em suas águas territoriais. Se uma embarcação afundar em águas territoriais brasileiras, a primeira prioridade sempre será garantir a segurança da tripulação e dos passageiros. A Marinha do Brasil, como autoridade marítima, tem o poder de tomar todas as medidas necessárias para resgatar e ajudar os afetados pelo evento de naufrágio. Uma vez concluída a operação de resgate, o próximo passo é investigar a causa do naufrágio. No direito brasileiro se prevê dois tipos de responsabilidade em caso de evento de naufrágio, sendo, objetiva e subjetiva mediante apuração de dolo ou culpa. A responsabilidade objetiva é imposta ao proprietário do navio, independentemente de ele ter sido ou não responsável pelo naufrágio. Esse tipo de responsabilidade é limitado ao valor do navio e sua carga no momento do naufrágio. Como é possível verificar no Art. 750 do Código Civil: Art. 750. A responsabilidade do transportador, limitada ao valor constante do conhecimento, começa no momento em que ele, ou seus prepostos, recebem a coisa; termina quando é entregue ao destinatário, ou depositada em juízo, se aquele não for encontrado. A responsabilidade baseada em culpa, por outro lado, é imposta à parte ou partes responsáveis pelo evento de naufrágio. Esse tipo de responsabilidade pode se estender além do valor do navio e sua carga e pode incluir compensação por lesões pessoais, perda de vida e danos ao meio ambiente. Voltando ao acidente da navegação, no processo inquisitório serão apuradas violações previstas na LESTA6 e RLESTA7 que podem ter dado causa ao naufrágio, como da mesma forma, será aferido se houve poluição causada pelo acidente. Durante esta parte do procedimento poderão ser colhidos depoimentos dos envolvidos, observadores e até mesmo perícia da embarcação por profissionais altamente qualificados. Os procedimentos seguidos pela Capitania dos Portos e Delegacias terão base nas NORMAM-09 em sua última atualização. O procedimento descrito é nomeado como Inquérito Administrativo sobre Acidentes e Fatos da Navegação (IAFN), que, compete as Delegacias e Capitanias dos portos por atribuição do Art. 33 da lei 2180/548, que define: Art. 33. Sempre que chegar ao conhecimento de uma capitania de portos qualquer acidente ou fato da navegação será instaurado inquérito. § 1º Será competente para o inquérito: a) a capitania em cuja jurisdição tiver ocorrido o acidente ou fato da navegação; b) a capitania do primeiro porto de escala ou arribada da embarcação; c) a capitania do porto de inscrição da embarcação; d) qualquer outra capitania designada pelo Tribunal. § 2º Se qualquer das capitanias a que se referem as alíneas a, b e c, do parágrafo precedente não abrir inquérito dentro de cinco dias contados daquele em que houver tomado conhecimento do acidente ou fato da navegação, a providência será determinada pelo Ministro da Marinha ou pelo Tribunal Marítimo, sendo a decisão deste adotada mediante provocação da Procuradoria, dos interessados ou de qualquer dos juízes. Conforme determinação da NORMAM em seu item 0209, teremos ao final a elaboração da minuta do Relatório da Investigação de segurança Marítima, onde, em um resumo, por se tratar de documento complexo, será formado relatório que pretende indicar provas obtidas na fase inquisitória. Logo, é possível indicar que a investigação terá o resultado, mas não significará o final das apurações do naufrágio, pois o procedimento sairá de sua fase inquisitório para o procedimento administrativo no Tribunal Marítimo. Com procedimento regulado pela Lei 2180/54, teremos, a pedido da Procuradoria Especial da Marinha, a distribuição do procedimento administrativo que poderá culminar no recebimento da denúncia, que no ponto indicado neste artigo, tratar-se-á de apuração das causas de um naufrágio com aplicação de agravantes e atenuantes. Por ser considerado como acidente gravíssimo da navegação o Tribunal Marítimo abrirá ao denunciado para que exerça ampla defesa e contraditório antes da aplicação das penalidades diante do naufrágio noticiado. Com Jurisdição que abrange todo território brasileiro, o Tribunal Marítimo será responsável por julgar o naufrágio hipotético que poderá resultar em multas, reparações a vítimas, suspensão de habilitação e cancelamento da habilitação, sem prejuízo de sanções cíveis na esfera do Poder Judiciário. Cabe salientar que o procedimento no Tribunal Marítimo suspenderá o andamento do processo Judicial até o seu término por força do Art. 313, VII, do CPC, onde vemos: Art. 313. Suspende-se o processo: VII - quando se discutir em juízo questão decorrente de acidentes e fatos da navegação de competência do Tribunal Marítimo; Assim, será oportunizada a ampla defesa e produção de provas em exercício do contraditório para após se sentenciar o caso por voto colegiado com 7 magistrados, sendo, a composição definida pelo Art. 2 da lei 2180/54: Art. 2º O Tribunal Marítimo compor-se-á de sete juízes a saber: (Redação dada pelo decreto-lei 25, de 1966) a) um Presidente, Oficial-General do Corpo da Armada da ativa ou na inatividade; (Redação dada pela lei 8.391, de 1991) b) dois Juízes Militares, Oficiais de Marinha, na inatividade; e (Redação dada pela lei 8.391, de 1991) c) quatro Juízes Civis. (Redação dada pelo decreto-lei 25, de 1966) Diante da sentença caberá, em fase recursal, a interposição de embargos de nulidade ou infringentes, agravo e embargos de declaração, conforme Art. 105 da lei 2180/54. Art. 105. Os recursos admitidos são os seguintes: a) embargos de nulidade ou infringentes; b) agravo; c) embargos de declaração. Ao condutor da embarcação hipotética que naufragou ou dono desta caso o naufrágio tenha ocorrido por problemas de manutenção, quando considerado culpado, ultrapassados os recursos administrativos, poderá recorrer de sua condenação no Poder Judiciário, contudo, deve se considerar que deve ser feita a juntada da sentença dos autos que correram em competência do Tribunal Marítimo, como versa o Art. 19 da lei 2180/54: Art. 19. Sempre que se discutir em juízo uma questão decorrente de matéria da competência do Tribunal Marítimo, cuja parte técnica ou técnico-administrativa couber nas suas atribuições, deverá ser juntada aos autos a sua decisão definitiva. (Redação dada pela lei 5.056, de 1966) Em conclusão, o tribunal marítimo é um tribunal especializado que desempenha um papel crucial na resolução de disputas legais relacionadas ao direito marítimo. O tribunal tem uma história rica que remonta ao antigo direito marítimo com seus princípios legais que regem o funcionamento do tribunal marítimo derivados de uma base com origem na combinação de direito nacional e internacional. Finalizada a simplificação do andamento de um naufrágio hipotético, logo, sem a necessidade de preocupação com possível exposição de caso concreto e informações privadas de envolvidos, com limitação das possibilidades, tanto de penalizações indicadas, quanto para opções de andamento, sem necessitar de maiores complexidades, foi permitido dar um panorama do início ao fim de um caso muito comum na esfera marítima para o leitor que inicialmente se pergunta como funciona o Direito Marítimo. Porém, se faz necessário esclarecer que este andamento é uma mera gota no mar de atribuições do cotidiano do advogado Maritimista, vez que, a matéria legal possui aderência e procedimentos que dariam espaço para mais de uma dezena de artigos, onde, geralmente o profissional cria um nicho e se especializa no tema ou a ele é exigido ser atuante de forma multidisciplinar para ocupar vagas em conglomerados empresariais do setor que precisam de liderança ágil diante do arcabouço legal complexo do mercado brasil __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Lei 9.537, de 11 de dezembro de 1997. Dispõe sobre a segurança do tráfego aquaviário em águas sob jurisdição nacional e dá outras providências.  7 Decreto 2.596, de 18 de maio de 1998 regulamenta a lei 9.537, de 11 de dezembro de 1997, que dispõe sobre a segurança do tráfego aquaviário em águas sob jurisdição nacional. 8 Disponível aqui. 
Em 1º de novembro de 2022 entraram em vigor as emendas à Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição por Navios ("MARPOL") Anexo VI, as quais foram acordadas e definidas, em 2018, com pela Organização Marítima Internacional ("IMO") no âmbito da Estratégia Inicial sobre a Redução de Emissões de Gases de Efeito Estufa ("GEE"), por meio de emendas técnicas e operacionais, que requerem sejam promovidas medidas de otimização das embarcações no que tange à eficiência energética no curto prazo e, consequentemente, atingindo a redução de suas emissões de GEE1. Tal providência tem como finalidade inserir medidas para promover a redução das emissões de gases pela navegação internacional para o atingimento dos principais objetivos de desenvolvimento sustentável ("ODS") emitidas pela ONU, em especial, as ODS 13, que versa sobre as ações contra a mudança climática. Cumpre mencionar que a IMO é agência especializada das Organização das Nações Unidas ("ONU") responsável pela regulamentação do transporte marítimo, atuante na regulamentação dos padrões de proteção e segurança para esse modal com papel fundamental na prevenção da poluição dos oceanos causada por embarcações. A introdução de EEXI, Energy Efficiency Existing Shipping Index, e CII, Carbon Intensity Indicator, obrigatórios, ocorre no âmbito da Estratégia Inicial da IMO para Redução de Emissões de GEE de Navios, adotada em 2018, a qual definiu medidas de curto, médio e longo prazo, com intuito de reduzir a intensidade de carbono do transporte marítimo internacional em 40% (quarenta por cento) até 2030, em comparação com 2008. As medidas EEXI e CII estão enquadradas dentre as propostas de curto prazo da Estratégia. Cabe salientar que as alterações do Anexo VI da MARPOL foram aprovadas por meio de um Protocolo de 1997, sendo certo que as emendas desde então foram adotadas sob o processo de "aceitação tácita", exceto se número específico de Partes se oponha. Atualmente, o Anexo VI da MARPOL tem 105 Partes, representando 96,81% da frota mercante mundial por tonelagem.2 De acordo com o Regulamento 1 do Anexo VI da MARPOL, as disposições de tal Anexo devem ser aplicadas a todos os navios, exceto quando expressamente disposto em contrário3. Por sua vez, os regulamentos sobre a intensidade de carbono do transporte marítimo internacional no Capítulo 4 do Anexo VI da MARPOL se aplicam a todos os navios com arqueação bruta igual ou superior a 400 toneladas. Contudo, cabe salientar que as disposições do Capítulo 4 não se aplicam a navios engajados exclusivamente em viagens em águas sujeitas à soberania ou jurisdição do Estado cuja bandeira o navio está autorizado a arvorar. Contudo, cada Estado Parte da MARPOL deve assegurar, por meio da adoção de medidas que entender cabíveis e na medida do possível e razoável, que tais navios sejam construídos e funcionem de maneira compatível com os requisitos do referido Capítulo 44. Enquanto o EEXI, de modo geral, se aplica a navios de arqueação bruta igual ou superior a 400 toneladas, o CII se aplica a navios de arqueação bruta igual ou superior 5.000 toneladas. Note que as embarcações com arqueação bruta igual ou superior a 400 toneladas deverão ser inspecionadas e, posteriormente, emitidos os respectivos certificados5. Nesse sentido, a partir de 1º de janeiro de 2023, passou a ser mandatório para as embarcações com arqueação bruta referida acima para, seja elas empregadas no transporte de passageiros ou de cargas, calcular seu Índice de Eficiência Energética Existente ("EEXI") para verificar sua eficiência energética e, assim, dar início à coleta de dados para emissão de relatório de Indicador Operacional Anual de Intensidade de Carbono ("CII") e verificação de Classificação CII ("CII rating)". O EEXI é uma medida técnica para alcançar a eficiência energética com base no projeto de um navio. Sua fórmula relaciona a quantidade de emissões de CO2 do projeto do navio com a sua capacidade de transporte e a velocidade de serviço. O processo de cálculo e verificação de eficiência energética da embarcação funciona da seguinte forma: obtido o EEXI do navio, este será comparado com um Índice de Navio Existente de Eficiência Energética exigido com base em um fator de redução aplicável expresso como uma porcentagem em relação à linha de base do Índice de Projeto de Eficiência Energética ("EEDI"). O valor de EEXI obtido, calculado para cada navio individual, deve estar abaixo do EEXI exigido, garantindo, assim, o atendimento a um padrão mínimo de eficiência energética. Por seu turno, o CII mede a eficiência com que uma embarcação com arqueação bruta superior a 5.000 toneladas que transporta mercadorias ou passageiros e é dado em gramas de CO2 emitido por capacidade de transporte de carga e distância navegada. A unidade CII é "gramas de CO2 emitidos por capacidade de transporte de carga e milha náutica", em que a capacidade de carga é porte bruto ou toneladas brutas, dependendo do tipo de navio. O procedimento de cálculo e verificação de CII, envolve, inicialmente, o cômputo e documentação do CII Operacional Anual real, para que este seja comparado com o CII Operacional Anual exigido, o qual determina o fator de redução anual necessário para garantir a melhoria contínua da intensidade de carbono operacional de um navio dentro de um nível de classificação específico. Isso permite que a classificação operacional de intensidade de carbono seja determinada. Portanto, o primeiro relatório anual de CII será concluído em 2023 e deverá ser entregue até 31 de março de 2024, com classificações CII iniciais fornecidas em 2024, devendo ter sido calculadas duas classificações: (i) EEXI alcançado para determinar sua energia eficiência e (ii) seu CII Anual e respectiva Classificação CII. Tais valores deverão ser calculados para navios de arqueação bruta igual ou superior a 400 toneladas, de acordo com os diferentes valores estabelecidos para tipos de embarcações e categorias. Consequentemente, com base no CII de um navio, o nível de performance é classificado como A (major superior), B (minor superior), C (moderate), D (minor inferior) ou E (inferior) (onde A é o melhor), indicando nível de desempenho da embarcação. Tal nível de desempenho deverá ser registrado em uma "Declaração de Conformidade" a ser aprofundada no Plano de Gerenciamento de Eficiência Energética do Navio ("SEEMP"). Deste modo, um navio classificado como nível D por 3 (três) anos consecutivos, ou E por 1 (um) ano, terá o dever de apresentar um plano de ação corretiva para mostrar como o índice exigido de C ou superior a este será alcançado. Quanto à diferença entre EEXI e CII, destaca-se que o EEXI é uma certificação única equivalente ao EEDI (Energy Efficiency Design Index) referente aos parâmetros de projeto das embarcações, ao passo que o CII é indicador operacional anual, a ser avaliado a partir de 2023, com limites de emissão anuais mais rígidos. Apesar de o EEXI e o CII serem aplicáveis aos mesmos tipos de navios, as Classificações CII serão aplicadas a navios com arqueação bruta igual ou superior a 5.000 toneladas, independentemente do tipo de propulsão. Como medidas possíveis para a redução da emissão de carbono por embarcações que utilizam combustível fóssil, a IMO aponta as seguintes providências: (i) limpeza do casco para redução do arrasto; (ii) otimização de velocidade e roteirização; e (iii) instalação de energia auxiliar solar/eólica, entre outros medidas. Não obstante, novos combustíveis serão cruciais para descarbonizar o setor marítimo. Neste tocante, em 21 de outubro de 2022, a IMO realizou o Segundo Simpósio da IMO sobre combustíveis de baixo e zero carbono para transporte marítimo, cujo tema era "Garantindo uma transição justa e inclusiva para o transporte de baixo carbono"6, com enfoque, em especial aos países em desenvolvimento, analisando formas de se atingir uma transição justa e equitativa. Considerando que os navios abrangidos incluem graneleiros, petroleiros, embarcações transportadoras de gás e de GNL, porta-contentores, navio de carga geral, transportador de GNL, navio de carga e de passageiro, ro-ro, navio de passageiros de cruzeiro, dentre outros, fato é que armadores e afretadores devem adotar novas formas de arranjos, assim como novas cláusulas nos contratos de afretamento para que sejam atingidas as metas estabelecidas. Consequentemente, grande parte da frota global deverá necessitar de ajustes técnicos para atender ao novo contexto da MARPOL, objeto da presente explanação.  Nesse contexto, a BIMCO7 verificou que os contratos de afretamento por tempo ("TCP"), nos moldes existentes até então, não previam meios de lidar com o novo regime estabelecido. Assim, em 2021, a BIMCO trouxe o modelo de cláusula "EEXI TRANSITION CLAUSE FOR TIME CHARTER PARTIES 20218, na qual endereça a conformidade com EEXI e aloca responsabilidade e custos para a implementação de modificações dessas modificações. De acordo com a BIMCO, ao divulgar a cláusula em questão, mencionou tanto que Cláusula de Transição EEXI pode ser inserida em TCPs já firmados e em TCPs futuros, como, inclusive, afirmou ser aconselhável sua utilização para navios construídos recentemente e já em conformidade com os parâmetros de Energy Efficient Design Index ("EEDI"), mas que ainda podem demandar etapas de aperfeiçoamento e ajustes para atender ao limite de conformidade do EEXI. Considerando que a maior parcela das embarcações necessitará passar por modificações para atendimento do regulamento em questão, a BIMCO afirma que, de modo geral, estes provavelmente serão baseados em (i) limitação de potência do motor ("EPL") e/ou (ii)limitação de potência do eixo ("SHAPOLI"). Consequentemente, a associação em questão concentrou-se em desenvolver dispositivos que abarquem detalhadamente tais tipos de modificações. Não obstante, para alcançar a conformidade pretendida, a cláusula comporta a adoção outras medidas técnicas de economia de energia, estando estas sujeitas a acordo entre as partes para sua determinação. A BIMCO ainda afirma que o princípio fundamental por trás da cláusula é a necessidade de cooperação e colaboração entre as partes visando obter conformidade e atendimento da sua premissa maior de ações contra a mudança climática. Nesse mesmo sentido, em 2022, a BIMCO propôs a inserção de Cláusula de Operações CII para o modelo de TCP, que busca fornecer ferramentas para que as embarcações sejam operadas em conformidade com as novas regras referentes a CII.  Assim, a "CII OPERATIONS CLAUSE FOR TIME CHARTER PARTIES 2022" tem o fito de promover a colaboração, transparência e flexibilidade entre as partes do TCP, notadamente em situações envolvendo atividades comerciais e emprego de um navio que possam ter um impacto direto e significativo na emissão de carbono promovida pela embarcação afretada. Nesta cláusula, é trazida previsão acerca do papel exercido pelos fretadores na manutenção da eficiência energética do navio, assim como dos afretadores. Logo, a redução da emissão de GEE passa a ser uma responsabilidade compartilhada que precisa ser refletida claramente em um contexto de TCP9. Em lógica semelhante à aplicada à interpretação e implementação da EEXI TRANSITION CLAUSE FOR TIME CHARTER PARTIES 2021, para que as previsões contratuais referentes a CII funcionem, a BIMCO afirma que deve haver atenção a princípios fundamentais subjacentes à cláusula, quais sejam a eficiência energética do navio e flexibilidade na operação e no emprego da embarcação. Cabe destacar que a BIMCO, ao trabalhar na elaboração da referida cláusula, a fez com o intuito de torná-la uma cláusula autônoma, podendo, sem prejuízo dos termos originais do contrato, ser incorporada TCP já em vigor. Ainda, apesar de ser proposto um modelo, é possível e aconselhável que as partes verifiquem o formato que melhor se adeque ao contrato e segmento comercial em que se insere. No mesmo sentido das alterações promovidas ao modelo de TCP da BIMCO, outros modelos contratuais virão a ser adaptados a fim de que sejam atingidas as metas e cumpridos os requisitos estabelecidos pela nova regulamentação. Portanto, é possível prever que o atendimento das Estratégias da IMO para atendimento das ODS da ONU, demandará um esforço conjunto do mercado, tanto dos armadores, dos afretadores, com a participação dos gerentes, brokers e agentes, das instituições do setor, associações e da própria IMO na implementação e análise da efetividade das medidas implementadas vis a vis os resultados pretendidos. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Application. "The provisions of this Annex shall apply to all ships, except where expressly provided otherwise." 4 MARPOL Annex VI Regulation 19 "Application 1. This chapter shall apply to all ships of 400 gross tonnage and above." 5 MARPOL Annex VI Regulation 5 "Surveys 1. Every ship of 400 gross tonnage and above and every fixed and floating drilling rig or other platform shall..be subject to the surveys specified (.)." 6 Disponível aqui. 7 A BIMCO é uma das maiores associações internacionais de navegação que representam os armadores, que representa cerca de 60% (sessenta por cento) da tonelagem de navios mercantes do mundo e possui membros em mais de 130 (cento e trinta) países. 8 EEXI Transition Clause for Time Charter Parties 2021 (bimco.org) 9 CII Operations Clause for Time Charter Parties 2022 (bimco.org)
Navios à vela são embarcações milenares datadas por volta de 1000 a.C. Utilizadas inicialmente pelos fenícios para percorrer o Mediterrâneo, até as grandes navegações e o imperialismo europeu, essas embarcações foram responsáveis por moldar o mundo da forma como conhecemos hoje. A partir dos avanços tecnológicos, o navio à vapor tomou lugar dos navios à vela e, com advento da Segunda Revolução Industrial, o carvão foi substituído pela utilização de combustíveis fósseis derivados do petróleo, como o bunker, com objetivo de tornar as longas viagens cada vez mais rápidas. O problema dessa evolução surge, porém, quando os navios passam a ser uma fonte relevante de emissão de dióxido de carbono (CO2). Atualmente, o transporte marítimo é responsável pelo movimento de mais de 90% do comércio internacional e corresponde a 3% da emissão de gases de efeito estufa (GEE), incluindo o CO2, segundo dados da Organização Marítima Internacional (OMI) e da Comissão Europeia. Esses números correspondem aos 50 mil navios mercantes de mais de 150 países em funcionamento ao redor do mundo e, caso nenhuma mudança ocorra, a porcentagem de emissão de poluentes poderá aumentar para 10-13% da emissão de GEE em algumas décadas. Na atualidade, esses números geram cada vez mais preocupação. Afinal, o meio ambiente há muito deixou de ser um fator acessório ou de menor relevância para se tornar, frequentemente, central em muitos negócios. E o impacto que as emissões de GEE têm no comércio internacional pode afetar negativamente os produtos transportados e a cadeia de consumo em um mundo cada vez mais ligado à abordagem ESG. A emissão de GEE e a sua redução é pauta atual relevante. No Brasil, o tema é tratado pela lei 12.187/2009, que instituiu a Política Nacional sobre Mudança do Clima, que busca, dentre outros objetivos, compatibilizar o desenvolvimento econômico-social com a proteção do sistema climático e reduzir as emissões antrópicas de gases de efeito estufa. O decreto 8.874/2017, ao seu turno, trata do incentivo ao financiamento de projetos de infraestrutura com benefícios ambientais e sociais, listando como prioritários os projetos de investimentos nos setores de logística e transporte, energia, dentre outros. Também nessa esteira, o PL 327/2021 prevê a criação de política para regular transição energética no Brasil. Dentre as diretrizes do PL, estão a promoção do uso eficiente da energia por meio de projetos sustentáveis e a mitigação do aquecimento global. Especificamente sobre a descarbonização no transporte marítimo, o Acordo de Paris abrangeu o tema, visando o atingimento das metas de redução de emissões globais. A questão também é objeto da agenda de 2023 dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas - ONU, por meio da promoção de tecnologias de energia limpa e eficiência energética para combater as mudanças climáticas. No entanto, certo é que o setor de transporte marítimo ainda não tem metas estabelecidas e obrigações concretas para a redução das emissões de GEE, o que não gera demanda suficiente para o desenvolvimento de medidas de mitigação das emissões. Mesmo a Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição por Navios (MARPOL), que tem como objetivo principal minimizar a poluição do meio ambiente marinho, incluindo a água e o ar, causada pelas atividades dos navios, estabelecendo padrões obrigatórios para o controle da poluição gerada pelo lixo, substâncias perigosas, óleo e outras substâncias nocivas transportadas pelos navios, ainda não traz metas específicas para a redução de emissões de GEE para o setor. Mais recentemente, em 2021, a Organização Marítima Internacional - IMO aprovou uma emenda ao Anexo VI da Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição por Navios (MARPOL) exigindo que os navios reduzam as suas emissões de gases de efeito estufa (MEPC 76). Essas alterações, que entraram em vigor em novembro de 2022, buscam incentivar a melhoria da eficiência energética dos navios e, ao mesmo tempo, obter dados importantes para futuras medidas de redução dos GEE. Nesse contexto, em um interessante movimento de retorno aos primórdios da navegação, algumas empresas especializadas têm dado início à modernização dos navios à vela como uma possível solução para a redução das emissões de CO2. Essa atualização (ou retorno ao passado) parte da ideia das caravelas, ou seja, utilizar os ventos como fonte motora dos navios, em conjunto com as tecnologias atuais, resultando na redução do consumo de combustíveis fósseis e, consequentemente, da emissão de CO2 no setor de transporte marítimo. A ilustração abaixo de um projeto desses navios é bastante surpreendente: A corrida em busca do lançamento do primeiro grande navio à vela moderno tem se dado, inicialmente, entre as empresas Veer Voyage, que obteve autorização do American Burreau of Shipping (ABS) para a construção da embarcação no fim de 2022, e Windcoop, que já planeja o início das operações do seu novo navio à vela na rota entre França e Madagascar no ano de 2025. Há, ainda, um número considerável de outros projetos em andamento. A Wallenius, por exemplo, vem desenvolvendo, desde 2020, o OceanBird, que pretende diminuir as emissões de gás carbônico em até 90%. O projeto da empresa, que ainda está em fase de testes, ganhou o apoio do fundo Horizonte Europa com uma quantia de 9 milhões de euros. A previsão é que o início das operações se dê entre 2026 e 2027. Por sua vez, a empresa japonesa Mitsui O.S.K. Lines (MOL) pretende utilizar um navio com velas capazes de absorver energia dos ventos fortes para a produção de hidrogênio. Já as empresas Berge Bulk, BAR Technologies e Yara Marine Technologies pretenderiam instalar as chamadas WindWings, velas de asa grande e sólidas, capazes de reduzir as emissões de CO2 em até 30% por meio de uma combinação de propulsão eólica e otimização de rotas, a bordo do graneleiro 210 DWT Berge Olympus. No cenário brasileiro, existe a expectativa de que o navio mineraleiro Newcastlemax, da Vale, por meio de uma parceria com a MOL, será equipado com um sistema de propulsão eólica. A expectativa é que as velas rotativas reduzam o consumo de combustível e as emissões de CO2 em cerca de 6 a 10%, e que as instalações sejam concluídas no primeiro semestre de 2024. A empresa já havia realizado testes, em 2021, com o navio mineraleiro da categoria Guaibamax e obteve aprovação da Approval in Principle - AIP - no que tange à viabilidade técnica do projeto, com a indicação de que não existem obstáculos significativos à sua realização, sendo possível a implementação deste sistema em outras embarcações, como a Newcastlemax. Considerando que os navios à vela modernos ainda estão em fase de projeto ou experimental, fica a pergunta se a sua utilização em maior escala no setor de transporte será, de fato, viável. De qualquer forma, os projetos mostram que, algumas empresas do setor marítimo já estão se preocupando com o tema. E o que se espera é que os navios à vela modernos sirvam de inspiração ou sejam o primeiro passo para o desenvolvimento de novas tecnologias para a descarbonização do setor. Sem dúvida, para que mais iniciativas como essas dos navios à vela modernos surjam no setor, faz-se necessário o avanço da regulação internacional e nacional, com a criação de obrigações concretas, específicas e mandatórias para a redução da emissão de CO2. Apenas assim, será possível criar uma demanda efetiva e, consequentemente, espaço para o desenvolvimento de novas tecnologias em substituição aos navios atuais, movidos a combustível fóssil. Referências European Comission. "Emissions-free sailing is full steam ahead for ocean-going shipping". Disponível aqui. Full Energy. "Pesquisa aponta soluções para reduzir emissões de CO2 no transporte marítimo". Disponível aqui. IMO. "International Convention for the Prevention of Pollution from Ships (MARPOL)". Disponível aqui. IMO. "Prevention of Air Pollution from Ships". Disponível aqui. IMO. "Rules on ship carbon intensity and rating system enter into force". Disponível aqui. Jornal da USP. "Fontes complementares de energia reduzem emissões de gás carbônico no transporte marítimo". Disponível aqui. Jornal da USP. "O transporte marítimo e o uso sustentável do oceano". Disponível aqui. Life of Sailing. "History of Sailing & Boat Types". Disponível aqui. Marina Industry News. "Navio Berge Bulk vai navegar com WindWings em 2023". Disponível aqui. Marinha do Brasil. "MARPOL". Disponível aqui. Notícias de Mineração Brasil. "Vale e armador japonês Mol usarão vento para impulsionar navio mineraleiro". Disponível aqui. Parlamento Europeu. "Reduzir as emissões dos aviões e navios: as ações da UE explicadas". Disponível aqui. Portos e Navios. "Os benefícios dos navios de carga à vela para a descarbonização prevista no acordo de Paris". Disponível aqui. Proinde. "IMO 2020: more about scrubbers in Brazil". Disponível aqui. RFI. "Transporte marítimo tem longo caminho até zerar as emissões de CO2". Disponível aqui. Safety 4 Sea. "MOL, Vale agree to install rotor sails on bulk carrier". Disponível aqui. The Maritime Executive. "Oceanbird Prepares for Full Scale Tests of Rigid Sail" Disponível aqui. Vale. "Vale avança em projeto pioneiro para a adoção de combustíveis de baixo carbono na navegação". Disponível aqui. Yara Marine. "Berge Bulk vessel to sail with WindWings in 2023". Disponível aqui.