Navegando por mares jurisprudenciais: Parte XVI - Força maior
quinta-feira, 11 de dezembro de 2025
Atualizado em 10 de dezembro de 2025 11:37
O Direito Marítimo é ramo autônomo do Direito que disciplina, entre outras matérias, as operações relacionadas ao transporte marítimo de cargas e passageiros, abrangendo atividades essenciais que não podem ser interrompidas nem mesmo em períodos de grande adversidade, como se viu durante a pandemia.
De natureza internacional e vital para o País, o setor responde pelo transporte de 97,2% do volume total de importações e exportações por meio dos portos brasileiros1, realidade que, embora fundamental, por vezes possa passar despercebido ao cidadão comum.
Diante de tamanha relevância, buscaremos desenvolver uma coletânea de artigos dedicados a tratar os mais diversos aspectos de Direito Marítimo, à luz da Jurisprudência dos Tribunais Brasileiros, abordando tópicos de Direito Marítimo retratados na obra de "Jurisprudência Marítima"2 e enfrentados em lides forenses, denotando a complexidade e especialização da matéria.
Entre os temas mais recorrentes na jurisprudência marítima, a aplicação da força maior e do caso fortuito se destaca como instrumento de contenção da responsabilidade objetiva do transportador. Ainda que o art. 750 do Código Civil estabeleça que "a responsabilidade do transportador pelo dano ou extravio de mercadorias começa no momento do recebimento da coisa e termina quando ela é entregue ao destinatário", a própria norma admite a exclusão da responsabilidade quando ocorre eventual dano decorre de evento fortuito, irresistível, imprevisível e inevitável, alheio à vontade das partes.
Na prática, os tribunais brasileiros têm oscilado entre interpretações estritas e flexíveis do conceito de irresistibilidade, sobretudo quando o evento, embora previsível, apresente efeitos de grau imprevisível e não controlável dentro da natureza intrinsecamente arriscada da navegação. Essa distinção é essencial para evitar a banalização do fortuito, que poderia desvirtuar o regime de responsabilidade previsto no Código Civil, mas também para reconhecer os limites físicos e técnicos da operação marítima.
A seguir, destacam-se dois julgados paradigmáticos que ilustram como os tribunais vêm aplicando, de forma criteriosa, o conceito de força maior para excluir a responsabilidade do transportador, preservando o equilíbrio entre proteção do contratante e realismo operacional no comércio marítimo internacional.
Primeiro Julgado:
DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL DO TRANSPORTADOR. OCORRÊNCIA DE FORÇA MAIOR. EXCLUSÃO. AÇÃO DE REGRESSO DA SEGURADORA CONTRA O TRANSPORTADOR. INVIABILIDADE. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. IMPOSSIBILIDADE. ÓBICE DAS SÚMULAS N. 5 E 7 DO STJ. DECISÃO MANTIDA. 1. A responsabilidade do transportador é objetiva, nos termos do art. 750 do CC/2002, podendo ser elidida tão somente pela ocorrência de força maior ou fortuito externo, isto é, estranho à organização da atividade. 2. O recurso especial não comporta o exame de questões que impliquem revolvimento do contexto fático-probatório dos autos, a teor do que dispõe a Súmula n. 7/STJ. 3. No caso, o Tribunal de origem, com base na prova dos autos, concluiu que o naufrágio da embarcação e o extravio da mercadoria transportada se deu em virtude da ocorrência de caso fortuito, alheio à esfera de previsibilidade do comandante da embarcação. Alterar tal entendimento é inviável em recurso especial. 4. Agravo regimental a que se nega provimento.
(STJ - AgRg no REsp: 1285015 AM, Relator: Ministro Antonio Carlos Ferreira, Quarta Turma, DJe 18/06/2013)
Segundo Julgado:
TRANSPORTE MARITIMO. PERDA DA CARGA. SUB-ROGAÇÃO DA SEGURADORA. TEMPORAL. CASO FORTUITO. Entendido que enfrentando o navio imprevisto temporal com forca 8 e 9 (escala de Beaufort) na costa alemã com balanço e adernamento de cerca de 32 graus, submetido o porta container a rajadas na escala 9 e 10, provado mais que a Meteorologia germânica subestimou a possibilidade da borrasca que sobre a nau se abateu, justifica-se a sua derrota com a perda de alguns containers como caso fortuito ou a chamada fortuna do mar que desobriga o armador de indenizar o segurador que pagou o prejuízo pela perda da carga segurada porque imprevisível e intempérie que se abateu sobre a nau no meio do seu curso.
(Tribunal de Alçada Cível SP, Apelação Cível nº 1993.001.11052, Relator: Rudi Loewenkron, 2ª Câmara, Data de Julgamento: 02/12/93)
No primeiro caso, o Superior Tribunal de Justiça analisou ação regressiva proposta por seguradora, que buscava o ressarcimento dos valores pagos ao segurado em razão do extravio da carga decorrente do naufrágio da embarcação. As instâncias ordinárias haviam reconhecido que o sinistro resultou da ocorrência de caso fortuito, absolutamente alheio à esfera de controle do transportador, e fora totalmente imprevisível ao comandante da embarcação.
A Corte Superior manteve esse entendimento ao apreciar o agravo regimental. Destacou que a responsabilidade do transportador pode ser afastada quando se comprova a presença de força maior ou de fortuito externo, isto é, de evento estranho à organização da atividade e impossível de ser evitado mesmo com o emprego das técnicas próprias da navegação. Segundo o Tribunal, a conclusão das instâncias ordinárias sobre a existência de força maior estava firmemente ancorada nas provas dos autos, circunstância que impedia qualquer revisão em sede de recurso especial.
A decisão ganha relevo por reafirmar que a responsabilidade objetiva no transporte marítimo não se converte em responsabilidade integral. Demonstrado que o naufrágio decorreu de intempérie súbita e irresistível, e não de falha na condução da embarcação, o nexo causal se desfaz e desaparece o dever de indenizar, ainda que o pedido seja formulado pela seguradora sub-rogada.
O segundo precedente, por sua vez, enfrentou situação típica da chamada fortuna do mar. A embarcação, em viagem pela costa alemã, foi surpreendida por intenso temporal, com ventos entre força 8 e 9 na escala de Beaufort e rajadas que atingiram os níveis 9 e 10, provocando balanço e adernamento superiores a 30 graus. As provas revelaram, ainda, que a meteorologia local havia subestimado a formação da borrasca que efetivamente atingiu o navio, o que reforçou os efeitos imprevisíveis do fenômeno.
Diante desse cenário, o Tribunal concluiu que a perda dos contêineres, arremessados ao mar em razão da violência das ondas e do acentuado adernamento, configurava caso fortuito externo. Ainda que a embarcação estivesse em rota regular e observasse as práticas náuticas habituais, a intensidade da intempérie ultrapassou qualquer possibilidade de contenção, revelando quadro de inevitabilidade absoluta.
O acórdão sublinhou que a responsabilidade objetiva não é ilimitada e que o transportador não pode ser responsabilizado por eventos extraordinários, fora de seu domínio técnico e operacional. Mesmo com a evolução tecnológica da navegação, subsistem riscos naturais inerentes à atividade marítima que não podem ser neutralizados. Em tais situações, a exclusão de responsabilidade preserva o equilíbrio contratual, reafirma a boa-fé objetiva e resguarda a segurança jurídica.
A análise dos precedentes evidencia que a força maior e o caso fortuito desempenham papel essencial no regime jurídico do transporte marítimo. Longe de representarem permissivo ao descumprimento contratual, tais excludentes funcionam como instrumentos de justiça distributiva, ajustando a responsabilidade ao risco efetivamente assumido pelo transportador.
Ainda no âmbito de caso fortuito e força maior, é importante destacar que, quando o transportador é surpreendido por roubo cometido com emprego de arma de fogo, tal circunstância, a depender do contexto fático, pode vir a ser equiparada a fortuito, não sendo razoável exigir qualquer reação do transportador diante de ameaça de tal gravidade, uma vez adotadas as cautelas naturais. Existem, inclusive, diversos julgados que discutem especificamente situações de roubo e furto de carga, tema que será aprofundado em um próximo artigo desta coluna.
As decisões examinadas, provenientes de tribunais distintos e analisadas sob múltiplos prismas, convergem ao reconhecer que a inevitabilidade e a imprevisibilidade não são abstrações teóricas, mas critérios concretos que devem ser aferidos conforme as circunstâncias específicas da navegação. Quando o dano decorre de evento irresistível, alheio às possibilidades humanas e técnicas de prevenção, o nexo causal se rompe, afastando-se legitimamente o dever de indenizar.
Nesse contexto, o Direito reafirma seu papel de compreender o risco, e não de eliminá-lo. No mar, assim como na jurisprudência, estabilidade não significa ausência de ondas, mas capacidade de navegar por elas com segurança. O reconhecimento criterioso da força maior fortalece a racionalidade do sistema, resguarda a previsibilidade contratual e preserva a confiança que sustenta a atividade marítima.
Os julgados mencionados, assim como diversos outros envolvendo temas relacionados, estão disponíveis no Livro de Jurisprudência Marítima, que reúne diversos acórdãos de grande relevância para o direito marítimo.
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