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Contratos de afretamento: A importância do comportamento das partes para a eficácia da cláusula arbitral

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Atualizado em 28 de novembro de 2025 13:14

Historicamente, o termo afretamento costuma estar associado ao aproveitamento econômico do navio. De acordo com a Resolução Normativa nº 129/2025 da ANTAQ, o contrato de afretamento é definido como o "contrato por meio do qual o fretador cede ao afretador, por certo período, direito total ou parcial sobre o emprego da embarcação, mediante taxa de afretamento, podendo transferir ou não a sua posse"1. 

A cláusula arbitral, por sua vez, é uma disposição prévia e abstrata inserida em um contrato, por meio da qual as partes se comprometem a submeter eventuais controvérsias oriundas da relação contratual à via arbitral. Nos termos do artigo 4º, § 1º, da Lei nº 9.307/96 ("Lei de Arbitragem"), a referida cláusula tem natureza formal, isto é, "deve ser estipulada por escrito, podendo estar inserta no próprio contrato ou em documento apartado a que ele se refira". 

No âmbito da relação contratual entre fretadores e afretadores, há situações em que um conhecimento de embarque é emitido em decorrência do contrato. Sob o aspecto formal, os chamados Bill(s) of Landing ("BL") normalmente são emitidos de forma simplificada, com informações sucintas, podendo não conter a transcrição de todas as cláusulas contratuais dispostas no contrato de afretamento. Não é incomum, nesse contexto, a verificação das chamadas cláusulas de referência nos conhecimentos de embarque, isto é, "all other terms and conditions as per charter party", em que se menciona genericamente que aquele conhecimento está sujeito às disposições do contrato de afretamento. Nesse particular, podem surgir controvérsias, algumas vezes já abordadas nessa coluna, quanto à vinculação das partes à arbitragem quando, sob o prisma formal, o compromisso arbitral é abrangido apenas pela cláusula de referência. 

A eficácia das cláusulas arbitrais, entretanto, não depende tão somente da vontade formalmente manifestada pelas partes no contrato, sendo igualmente necessário que os contratantes ajam de acordo com a sua disposição, isto é, adequem seus comportamentos de forma congruente à instauração do procedimento arbitral. Em outras palavras, os efeitos da cláusula arbitral não resultam exclusivamente da manifestação expressa e por escrito do pactuado, estando também condicionados ao comprometimento ativo das partes de submeterem a solução do litígio pela arbitragem. 

O Superior Tribunal de Justiça, de fato, já teve a oportunidade de examinar controvérsia surgida em contrato de afretamento, na qual o comportamento das partes foi determinante para se afastar a eficácia da cláusula arbitral regularmente pactuada sob o ponto de vista formal. 

No Recurso Especial nº 1.894.715/MS, a Terceira Turma do STJ concluiu que a propositura de ações judiciais pelo armador contra o afretador perante a Justiça estatal ensejaria a renúncia tácita à cláusula arbitral, notadamente quando a parte contra a qual a demanda foi ajuizada também não arguiu a escolha pela arbitragem. No caso, após ter ajuizado duas ações judiciais contra o afretador da embarcação, o armador pretendeu, em um segundo momento, invocar a cláusula arbitral para ver extinta ação judicial que lhe foi dirigida pelo afretador. Essa conduta foi considerada contraditória e violadora da boa-fé objetiva pelo STJ. Confira-se: 

"RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO MONITÓRIA. CONVENÇÃO DE ARBITRAGEM. ALEGAÇÃO PELA PARTE DEMANDADA QUE ANTERIORMENTE HAVIA PROPOSTO DUAS AÇÕES JUDICIAIS CONTRA A DEMANDANTE. IMPOSSIBILIDADE DE INVOCAÇÃO DA CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA. VEDAÇÃO DERIVADA DO "VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM". CONCREÇÃO DO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA. DEVER DE COERÊNCIA DO CONTRATANTE COM SEUS ATOS ANTERIORES. 1. Controvérsia em torno da validade e eficácia da cláusula compromissória constante de contrato de prestação de serviços de afretamento de embarcações para o transporte fluvial de minério de ferro a granel, tendo a outra parte proposto, anteriormente, ação cautelar de sustação de protesto referente às faturas cobradas na presente ação monitória seguida de ação declaratória de inexigibilidade da dívida. 2. Conduta contraditória da parte recorrida, que, anteriormente, apesar da existência de cláusula compromissória, havia proposto duas demandas conexas perante o Poder Judiciário. 3. Impossibilidade desse contratante invocar a existência da cláusula arbitral, requerendo a extinção de ação monitória proposta pela outra parte, com fundamento no art. 485, VII, do CPC/2015. 4. Aplicação da 'teoria dos atos próprios', como concreção do princípio da boa-fé objetiva, sintetizada no brocardo latino 'venire contra factum proprium', segundo a qual ninguém é lícito pretender fazer valer um direito em contradição com a sua conduta anterior na mesma relação negocial. 5. Precedentes do STJ. 6. RECURSO ESPECIAL PROVIDO0". (REsp n. 1.894.715/MS, relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 17/11/2020, DJe de 20/11/2020.) 

Em outros trechos do acórdão, o STJ destacou também a necessidade de observância dos princípios da confiança, legítima expectativa e da vedação aos comportamentos contraditórios (nemo potest venire contra factum proprium), como um corolário da boa-fé objetiva, exigindo a sua observância ao longo de toda a relação contratual. Mais especificamente, concluiu o STJ que o comportamento anterior do armador fez surgir (surrectio) a legítima expectativa na afretadora de que a disputa havida entre as partes não seria levada à solução pela via arbitral. 

De acordo com o STJ, não seria possível admitir, à luz da boa-fé objetiva, que a armadora ajuizasse ações na Justiça comum e, posteriormente, quando também demandada no Juízo estatal pela afretadora, a armadora invocasse em seu favor a cláusula arbitral por ela própria ignorada anteriormente. O fato de não ter havido uma renúncia expressa à cláusula arbitral por parte da armadora foi considerado irrelevante, vale notar, diante do comportamento por ela adotado de ajuizar ações na Justiça comum em um momento e arguir a cláusula arbitral em outro, conduta considerada contraditória e violadora da legítima expectativa da afretadora. 

Ainda que seja possível argumentar que a renúncia tácita à cláusula arbitral se deu em ação judicial anterior (proposta pelo armador contra a afretadora) e não na nova ação proposta pela afretadora contra o armador, o STJ ponderou que ambas as demandas tratavam e foram ajuizadas a respeito do mesmo contrato. Dessa forma, ao contrário do Tribunal a quo que havia reconhecido a possibilidade de arguição da cláusula arbitral pela armadora quando demandada pela afretadora, a Terceira Turma do STJ entendeu que o princípio da boa-fé objetiva, no caso, vedaria a adoção de comportamentos contraditórios em relação à eficácia da cláusula arbitral.   

O posicionamento do STJ nesse caso, vale notar, foi bastante influenciado pelo fato de se tratar de disputas oriundas do mesmo contrato. Caso os litígios surgidos entre as partes não se originassem da mesma avença, a conclusão do STJ poderia ser diferente. Isso porque, caso se tratasse de outros litígios não relacionados ao mesmo contrato que ensejaram a primeira disputa levada à Justiça comum, ainda que as partes fossem as mesmas, poderia ser reconhecida a validade e obrigatoriedade da cláusula arbitral para solução da nova controvérsia, não relacionado àquele mesmo contrato. 

O posicionamento do STJ, portanto, deixa evidente a necessidade de se aferir in concreto a correspondência positiva entre as disposições contratuais e as condutas das partes contratantes, demonstrando que os Tribunais pátrios vêm levando esse comportamento em perspectiva no plano da eficácia material das cláusulas compromissórias, ainda que validamente pactuadas sob o aspecto formal. Evidentemente, as circunstâncias de cada caso concreto serão relevantes para se chegar à conclusão mais adequada em cada contrato, uma vez que se está tratando, em última análise, de comportamentos adotados pelas partes e seus efeitos na legítima expectativa da parte contrária. 

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1 Art. 2º Para os fins desta Norma consideram-se: II - afretamento: contrato por meio do qual o fretador cede ao afretador, por certo período, direito total ou parcial sobre o emprego da embarcação, mediante taxa de afretamento, podendo transferir ou não a sua posse.