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Conhecimento de embarque eletrônico - Solução e segurança nas transações marítimas

quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Atualizado às 09:05

A pandemia de Covid-19 trouxe consigo a necessidade de diminuir as interações físicas entre pessoas e documentos e, com isso acelerou a transformação digital que muitos setores da economia já vinham implantando.

No âmbito doméstico, o Brasil já adota o conhecimento de transporte eletrônico nas operações de cabotagem. Mesmo tratamento, entretanto, não ocorre nas operações de longo curso quando da utilização de conhecimentos de embarque (Bills of Lading ou BL) eletrônicos ou "e-BLs" emitidos no exterior, necessários à importação de bens e mercadorias no país.

Importante esclarecer que e-BL é um documento em formato exclusivamente digital, codificado, que contém as mesmas características e informações do BL convencional, de papel, mudando unicamente sua forma de confecção, armazenamento e transferência. Portanto, ele não se confunde com os BLs digitalizados.

A despeito dos inúmeros avanços do Governo Brasileiro na automatização e digitalização das operações, prestigiando as operações sem papel, o atual processo burocrático, para o caso dos BLs, ainda exige que o conhecimento seja emitido em formato de papel.  Conforme o artigo 553 do Regulamento Aduaneiro (decreto 6.759/2009), a declaração de importação deve ser instruída, dentre outros documentos, com "a via original do conhecimento de carga ou documento de efeito equivalente".

Até o início da pandemia da Covid-19, o conhecimento de embarque emitido ao embarcador era enviado por meio postal ao seu destinatário final, para que a via original pudesse ser utilizada para desembaraço dos bens e liberação da carga pelos terminais ao consignatário.

Com as Notícias Siscomex - Importação 017/2020 e 018/2020, a Secretaria Receita Federal do Brasil ("RFB") passou a aceitar a apresentação de via digitalizada do conhecimento de embarque para os mesmos fins, desde que obedecidos os requisitos do decreto 10.278, de 18 de março de 2020.

Em maio de 2020, a RFB, por meio da Coordenação-Geral de Tributação - COSIT respondeu a Solução de Consulta n° 165 admitindo a fatura comercial em formato nato-digital pelo representante do exportador residente no país, desde que observados os requisitos contidos na legislação relativa à certificação digital, em especial, na MP n° 2.200-2/2001, que permitam garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica do documento.

Assim como a fatura comercial, o conhecimento de embarque eletrônico é necessário para verificação do valor do frete e para compor o valor aduaneiro do bem sobre o qual incidirão os tributos sobre a importação.  Além disso, o conhecimento de embarque indica o consignatário para o qual a carga deve ser liberada e, por isso atualmente a RFB estuda como viabilizar a utilização do e-BL.

Para contribuir com o debate, trazemos aqui o embasamento para a implementação no Brasil do conhecimento de embarque eletrônico, em especial no que tange aos requisitos de validade e segurança do documento emitido no exterior. 

O conhecimento de embarque físico e eletrônico (e-BL)

O conhecimento de embarque (é um instrumento particular, pactuado entre partes privadas para regular determinada operação de transporte, consistindo num subtipo do conhecimento de transporte para as operações realizadas por via marítima. Assim, de acordo com a praxe desse mercado, a emissão do BL, contendo as cláusulas que regerão o transporte contratado, ocorre por ocasião do embarque das mercadorias.

Este documento é emitido pelo Transportador, e uma de suas vias é entregue ao Embarcador, que o remete ao Consignatário, após cumprida sua parte no contrato de compra e venda, para que este ou outrem que o detenha possa, mediante a apresentação dessa via, retirar a carga no porto de destino e instruir a respectiva Declaração de Importação.

Portanto, o BL é um tradicional documento de natureza sui generis que formaliza o transporte, sendo considerado evidência de um contrato privado, recibo, e, principalmente, título de crédito, conferindo ao possuidor do documento o direito de retirar no destino a mercadoria transportada, sendo por isso a prova do direito de posse da carga.

O BL exerce uma função econômica nas relações comerciais de transporte de mercadorias, devendo acompanhar a dinâmica do mercado e a necessidade dos comerciantes em disporem de instrumento juridicamente eficaz e seguro para o transporte de suas cargas.

Aqui, vale salientar que não há qualquer restrição para que um título de crédito seja emitido de forma eletrônica, conforme artigo 889, §3º, do Código Civil.  E tanto é plenamente possível que um título de crédito exista unicamente de forma eletrônica, sem que seja necessária uma via física, que foi promulgada a lei 13.775/2018, que regulamentou a emissão e o trâmite eletrônicos de  duplicatas1.

E, não obstante o Brasil não possuir regulamentação específica para o trâmite do e-BL, é certo que às pessoas físicas e jurídicas é permitido tudo aquilo que não for vedado pelo ordenamento jurídico nacional. E cientes de que atualmente inexiste proibição à emissão e trâmite do Conhecimento de Embarque pela via eletrônica, não haveria, a priori, base legal para o Estado brasileiro se opor a uma postura comercial privada, que visa gerenciar relações igualmente privadas, das quais não emanam efeitos em face dos entes governamentais.

Poder-se-ia dizer, inclusive, que, à luz dos princípios constitucionais da livre iniciativa e da legalidade, o Estado estaria proibido de impedir entes particulares de firmarem livremente seus contratos do modo que entenderem mais pertinente, não havendo óbice à adoção de mecanismos mais modernos e seguros, sobremaneira em não havendo determinação em contrário.

E, seguindo tal lógica, como dito acima, no Brasil, hoje é aceito a via digitalizada do BL emitido em papel para os processos de importação, mas ainda se discute a adoção do e-BL.  No comércio internacional, entretanto, a sua emissão no formato eletrônico - o "e-BL" - já é uma realidade.

A BIMCO (Baltic and International Maritime Council), maior organização privada do ramo do transporte marítimo internacional, demonstrou seu apoio explícito ao conhecimento de embarque eletrônico e, como parte disso, criou uma cláusula exclusiva acerca do tema em 2014.2  

Dos 5 países de onde se originam a maioria das importações brasileiras, 3 deles - EUA, China e Rússia - já operam com o e-BL, o que ratifica que, se o Brasil quer permanecer dentre os principais players do mercado, a utilização do e-BL no País terá de ser uma realidade em breve.

O e-BL, como brevemente mencionado acima, nada mais é do que um arquivo digital emitido por uma plataforma de "Paperless Trading" (como, por exemplo, os sistemas ESS, Bolero, E-Title, edoxOnline, WAVE, Cargo X, TradeLens) que contém as mesmas características e informações do BL convencional, emitido em papel, tendo a mesma função e a validade, sendo a única diferença apenas o seu formato digital.

Destaca-se que o e-BL é aceito inclusive pelo International Group of P&I Clubs ("IGP&I"), composto por treze dos principais clubes de P&I do mundo, que representam aproximadamente 90-95% da tonelagem oceânica em funcionamento ao cobrirem as responsabilidades decorrentes do transporte de carga. O International Group já se manifestou reconhecendo a validade dos conhecimentos eletrônicos por meio de comunicado a todo o setor marítimo e de comércio internacional.

Como vantagens do e-BL temos (i) a segurança, pois se trata de arquivo codificado e criptografado, que não pode ser facilmente modificado, (ii) a agilidade e facilidade para a sua confecção, reduzindo a chance de erros, (iii) a economia de papel, de tinta, de espaço; (iv) a eliminação do risco de extravio, (v) a diminuição de contatos físicos, além, (vi) da facilitação na sua circulação.

Há, contudo, alguns desafios para o uso do documento eletrônico, pois os sistemas que hoje emitem o documento eletrônico não seguem um formato padrão, o que dificulta as certificações dos sistemas e a confiança dos bancos no documento eletrônico para fins das operações de financiamento às importações e exportações. 

Além da BIMCO, o tema é também de interesse da Câmara Internacional do Comércio (ICC) que lançou a "Digital Trade Standards Initiative" no desenvolvimento do livre comércio e padronização das transações no comércio exterior. 

A nosso ver, a ausência do padrão internacional não é por si só um impedimento para a adoção do e-BL no Brasil, desde que os e-BLs sigam como os critérios que permitam o reconhecimento da sua validade e autenticidade.  Importante, ainda, que, assim como a RFB fez em relação à adoção da via digitalizada do BL em papel, oriente-se de forma clara os contribuintes e a própria fiscalização sobre a adoção do documento para evitar entraves ao processo de importação. 

Validade e segurança jurídica no Brasil dos e-BLs emitidos no exterior

Na seara internacional, as organizações que regulam o transporte internacional de carga têm se movimentado para regulamentar a utilização dos documentos eletrônicos, inclusive os e-BLs.

A Comissão das Nações Unidas para o Direito Internacional do Comércio - UNCITRAL, que em 1978 emitiu as Regras de Hamburgo, mais recentemente desenvolveu leis-modelo para transações eletrônicas, comércio eletrônico e documentos eletrônicos a serem emitidas pelos Estados membros na regulamentação no transporte internacional de cargas.

Essas leis modelos se fundamentam em três princípios fundamentais de (i) não discriminação entre o uso de comunicações eletrônicas e de papel ao enviar documentos como os exigidos pelas agências reguladoras; (ii) equivalência funcional entre os documentos emitidos em papel e os documentos e/ou procedimentos eletrônicos; e (iii) neutralidade tecnológica a fim de favorecer o desenvolvimento de novas tecnologias futuras.

Embora signatário das Regras de Hamburgo, o Brasil não ratificou a convenção.  O País também não segue as demais convenções aplicadas ao transporte internacional de carga (Regras de Haia-Visby e a COGSA). 

Nesse sentido, a legalidade e validade jurídica do documento estrangeiro obedece ao previsto nos termos do artigo 9º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei 4.657/1942), que o considera válido se emitido conforme a legislação do país que se constituírem as obrigações. Portanto, se a legislação da jurisdição onde o e-BL é emitido o considera como um documento válido, o mesmo tratamento deve ser reconhecido no Brasil, especialmente posto se tratar de um contrato internacional entre particulares.

Para documentos eletrônicos emitidos no Brasil, a Medida Provisória nº 2.200-2/2001 estabeleceu a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira ("ICP-Brasil"), que é um mecanismo que viabiliza a emissão de certificados digitais para identificação virtual do signatário.  Ademais, referida Medida Provisória traz a possibilidade de utilização de outro meio de comprovação de autoria e integridade de documentos eletrônicos, estabelecendo que a validade de um documento eletrônico não está sujeita ao fato da assinatura nele aposta ser certificada pela ICP-Brasil, bastando ser admitido como válido pelas partes contratantes.

Vale mencionar que diferentemente das notas fiscais, declarações e outros documentos prescritos por normas tributárias, o conhecimento de embarque é um documento estrangeiro regido pela legislação comercial e civil no local onde as obrigações foram contraídas, logo, não há o que se falar em necessidade de assinatura reconhecida pelo ICP-Brasil.

Note que o artigo 4º da Lei 14.063/2020 classifica as assinaturas em três diferentes categorias, conforme o nível de confiança sobre a identidade e a manifestação de vontade de seu titular:  simples, avançada e qualificada.  O certificado do ICP-Brasil somente é exigido quando o documento requer assinatura eletrônica qualificada, o que não é o caso de documentos comerciais e dos contratos entre particulares.

A assinatura qualificada apenas é obrigatória nos atos assinados por chefes de Poder, por Ministros de Estado ou por titulares de Poder ou de órgão constitucionalmente autônomo de ente federativo, nas emissões de notas fiscais eletrônicas, com exceção daquelas cujos emitentes sejam pessoas físicas ou Microempreendedores Individuais (MEIs), nos atos de transferência e de registro de bens imóveis e nas demais hipóteses previstas em lei.

Logo, o Bill of Lading não se enquadra em quaisquer dessas hipóteses, sendo aceito tanto a assinatura simples quanto avançada, posto que é documento utilizado nas interações com ente público de menor impacto e que não envolve informações protegidas por grau de sigilo. Ao contrário, suas informações são públicas.

Nesse contexto, a lei 14.063/2020 e o decreto 10.543/2000 exigem a assinatura eletrônica avançada, onde são admitidos outros meios de comprovação da autoria e da integridade de documentos nos casos em que as partes consideram os documentos como válidos e aceitos e à medida que estejam associados ao signatário de maneira inequívoca.4

Como dito acima, tanto os transportadores marítimos como os clubes de P&I aceitam a utilização dos e-BLs emitidos pelos sistemas com tecnologia blockchain (Bolero by Bolero International Ltd - Rulebook/Operating Procedures September 1999; CargoDocs by Electronic Shipping Solutions; e-titleTM by E-Title Authority Pte Ltd; edoxOnline by Global Share S.A.)4

Importante mencionar ainda que hoje, para o desembaraço da mercadoria e liberação da carga pelos terminais, é exigida a via digitalizada do BL emitido em papel, sem qualquer requisito em relação à verificação ou autenticação de assinatura e/ou qualquer legalização do documento no exterior.  Portanto, nos parece descabida a exigência do reconhecimento da assinatura no documento emitido em forma eletrônica, quando o mesmo rigor não é exigido atualmente aos documentos físicos. 

Não é demais lembrar que, muito embora o BL seja um documento utilizado pela Receita Federal para fins de aferição dos tributos, ele é um documento essencialmente privado, cujas informações e cláusulas neles constantes são acordadas entre particulares. Ademais, embora nele devam constar algumas informações específicas, ele possui forma livre e seus requisitos são flexibilizados diante da praxe comercial. Afinal, seu objetivo final é permitir as trocas comerciais de maneira célere.

Na linha do acima exposto a fatura comercial deixou de ser necessária a sua apresentação na forma física no final de 2020, por meio do decreto 10.550/2020 que trouxe alterações aos artigos 557 e 562 do Regulamento Aduaneiro, possibilitando que a RFB disponha, dentre outros requisitos, sobre a forma de assinatura do documento eletrônico emitido no exterior. 

Com as referidas alterações, foi conferida à RFB poderes específicos para disciplinar sobre as formas de assinatura da fatura comercial (assinatura mecânica ou eletrônica, permitida a confirmação de autoria e autenticidade do documento, inclusive na hipótese de utilização de blockchain), bem como a dispensa de assinatura ou de elementos referidos no artigo 557 do Regulamento Aduaneiro. 

A nosso ver, a RFB tem igual poder para proceder em relação ao e-BL diante do parágrafo único do artigo 554 do Regulamento Aduaneiro, que autoriza a RFB a não exigir o conhecimento de carga no processo de importação, se assim ela bem entender, visto a fatura comercial, tal como o conhecimento de embarque ser um documento privado e de cunho comercial, que se emitido pela legislação estrangeira e aceito pelas partes e clubes de P&I, não teria motivo para ser rejeitado pelas autoridades aduaneiras.

*Alice Moreira Studart é advogada do escritório KINCAID | Mendes Vianna Advogados.

**Fernanda Martinez Campos Cotecchia é advogada do escritório KINCAID | Mendes Vianna Advogados.

***Patricia de Albuquerque de Azevedo é advogada do escritório KINCAID | Mendes Vianna Advogados.

 

****Lucas Leite Marques é sócio do escritório KINCAID | Mendes Vianna Advogados.

__________

1 Corroborando o acima mencionado, trazemos o determinado pela lei 13.775/2018 que regulamentou a emissão e o trâmite eletrônico da duplicada, um documento com natureza de título de crédito.

2 Disponível aqui. For the purpose of Sub-clause (a) the Owners shall subscribe to and use Electronic (Paperless) Trading Systems as directed by the Charterers, provided such systems are approved by the International Group of P&I Clubs. Any fees incurred in subscribing to or for using such systems shall be for the Charterers' account.

3 I.e., à medida que utilizem dados para a criação de assinatura eletrônica cujo signatário pode, com elevado nível de confiança, operar sob o seu controle exclusivo; estejam relacionados aos dados a ela associados de tal modo que qualquer modificação posterior é detectável.

4 Disponível aqui.