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Caso Ever Given - Parte VI: Uma breve reflexão sobre o direito de repatriação na ótica da MLC/06

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Atualizado em 15 de dezembro de 2021 14:58

Embora ocorrido em março de 2021, o encalhe do navio Ever Given no canal do Suez continua a gerar discussões e reflexões para todas as áreas do direito.

Na seara trabalhista, um ponto relevante a ser analisado diz respeito à impossibilidade de ter sido realizada na ocasião a repatriação dos empregados, na medida em que os 25 tripulantes1 indianos foram obrigados a permanecer em país estrangeiro, a bordo da embarcação, por mais de três meses. A embarcação ficou encalhada entre os dias 23 e 29 de março, entretanto, diante da extensão dos prejuízos causados, mesmo depois das bem sucedidas operações de desencalhe, o navio foi impedido de prosseguir viagem2.

Antes de avançar na discussão acerca dos aspectos juslaborais, é necessário refletir sobre qual seria a legislação aplicável ao caso, uma vez que as regras trabalhistas variam a depender do país de aplicação.

Convém rememorar que o navio Ever Given arvorava bandeira panamenha, o proprietário era uma empresa japonesa, o afretador era taiwanês, classificado por uma empresa americana, gerenciada por uma empresa alemã, sua tripulação era de maioria indiana e o encalhe ocorreu em canal no Egito3, durante um transporte marítimo da Ásia para a Europa.

O número de países envolvidos e de legislações potencialmente conflitantes poderia ser um problema para a análise do caso. Entretanto, é comum na área marítima, principalmente na navegação de longo curso, este sortimento de nacionalidades, inclusive entre os próprios tripulantes de uma embarcação.

Também por esse motivo, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) buscou ao longo dos anos, criar convenções internacionais para traçar standards laborais mínimos, a serem ratificados e aplicados aos países signatários4, sendo certo que foram criadas inúmeras convenções especificamente para regulamentar os direitos do trabalhador marítimo.

No ano de 2006, verificando a necessidade de se criar um único documento para tratar de diversos aspectos relacionados ao trabalhador marítimo, a OIT editou a Convenção sobre o Trabalho Marítimo de 2006 (MLC/06 - Sigla em inglês para Maritime Labour Convention 2006), a qual entrou em vigor internacionalmente em 20/8/13. Segundo a própria Organização Internacional do Trabalho, a MLC/06 se consubstancia como regramento firme em direitos e flexível na implementação pelos países membros5.

A convenção foi amplamente adotada e atualmente conta com 98 ratificações, correspondendo a 91% da arqueação bruta mundial6. Inclusive, entre os países signatários da convenção, se encontra o Panamá, país da bandeira do navio Ever Given.

A MLC 2006 é considerada o quarto pilar de regulação internacional da qualidade e segurança na navegação, juntamente com a Convenção Internacional para a Salvaguarda da Vida Humana no Mar (SOLAS); a Convenção Internacional para a Prevenção da Poluição por Navios (MARPOL); e a Convenção Internacional sobre Padrões de Instrução, Certificação e Serviço de Quarto para Marítimos (STCW).

Outrossim, com o intuito de proteger o trabalhador marítimo, a MLC 2006 trouxe em seu escopo diversos requisitos sobre a obrigatoriedade de repatriação do tripulante em situações específicas. Nestes casos, o empregado tem o direito de retornar ao seu país de origem, com todo o auxílio necessário, para que não permaneça desamparado em país estrangeiro, muitas vezes sem sequer conhecer o idioma local e sem ter recursos para seu regresso.

O direito à repatriação possui tamanha relevância na MLC 2006 que a convenção determina que conste expressamente essa garantia no contrato de trabalho7, além de impor a contratação de seguro que assegure a repatriação dos tripulantes em caso de problemas financeiros do armador.8

Caso o armador não arque com os custos relacionados à repatriação, outros poderão ser financeiramente responsáveis, como a autoridade competente do país da bandeira do navio, o país em que o marítimo será repatriado, ou o país em que o marítimo é cidadão. Além disso, o responsável pelo pagamento poderá cobrar pelas despesas realizadas, podendo inclusive, reter ou solicitar a retenção dos navios do armador envolvido9.

Ou seja, o intuito da norma internacional é proteger o empregado, elaborando um método no qual não só o armador, mas outros países também seriam responsabilizados pela efetivação da repatriação, fazendo com que o direito do tripulante prevaleça sobre qualquer questão burocrática ou financeira.

Mesmo diante das garantias acima citadas, relacionadas ao direito de repatriação previsto na MLC/06, que busca amparar o trabalhador em uma situação de fragilidade, questiona-se o motivo pelo qual os tripulantes do navio Ever Given não foram repatriados rapidamente, uma vez que o país da bandeira do navio já havia ratificado formalmente a convenção.

Para resolução da questão é importante analisar os exatos termos da norma contida na MLC/06 sobre a repatriação: 

"1. Todo Membro assegurará que a gente do mar nos navios que arvoram sua bandeira tenha direito a repatriação, nas seguintes circunstâncias: 

a) o contrato de emprego da gente do mar expira enquanto se encontre no estrangeiro; 

b) o contrato de emprego é terminado: 

i - pelo armador; ou 

ii - pela gente do mar, por motivos justificados; e 

c) a gente do mar não está mais em condições de desempenhar as tarefas a que se refere o contrato de emprego ou não é de se esperar que possa desempenhá-las em determinadas circunstâncias."10

Pela leitura do trecho acima, verifica-se que, muito embora a repatriação seja um direito expressamente garantido na MLC/06, é certo que o tripulante só poderá ter assegurado o direito em hipóteses específicas. Ou seja, a repatriação, conforme texto da MLC/06, não ocorre em qualquer hipótese em que o trabalhador permanecer mais tempo do que o esperado em território estrangeiro.

Mesmo após o desencalhe do navio Ever Given do Canal do Suez, a embarcação foi impedida de deixar o local pelas autoridades competentes, resultando na permanência forçada de 25 tripulantes estrangeiros no Egito. Somente após a suspensão da ordem judicial, com a indicação de que foi celebrado acordo entre a autoridade do Canal e o proprietário da embarcação, o que ocorreu cerca de três meses após o encalhe, é que o retorno dos referidos tripulantes foi permitido.

Em que pese tenha sido um evento de ampla repercussão internacional, o caso do Ever Given, evidentemente, não foi o primeiro que resultou no impedimento de saída de embarcação com a permanência de tripulantes estrangeiros a bordo.

Vale lembrar que em situação semelhante um tripulante foi obrigado a permanecer no navio MV Aman durante quatro anos, impossibilitado de retornar ao seu país de origem. O caso também ocorreu no Egito, e a embarcação foi impedida de zarpar pois os documentos de seu equipamento de segurança e certificados de classificação haviam expirado, impedindo o tripulante de se ausentar por ser o responsável pela embarcação. O longo tempo de permanência na embarcação, de forma isolada, sem poder retornar ao seu país, para a sua família, e sem saber ao certo o tempo que permaneceria no Egito, afetou seriamente a saúde mental do tripulante11. O caso do MV Aman retrata bem a relevância ao direito de repatriação previsto na MLC/06, justamente porque busca preservar a saúde mental e física dos aguaviários, e evitar, ainda que de forma limitada, barreiras de retorno ao país de origem.

Apesar da importância da norma, para que o tripulante seja repatriado não basta estar em país estrangeiro. Na verdade, para que seja aplicado o regramento da repatriação é necessário que o tripulante esteja em alguma das situações específicas apresentadas na Convenção.

Outrossim, se verifica que o fato que redundou na permanência dos 25 tripulantes do Ever Given no Egito por mais de três meses não foi, por exemplo, a expiração do contrato de trabalho ou o término do contrato pelo armador ou pelo empregado, nem pelo fato do marítimo não se encontrar em condições de desempenhar as tarefas previstas no contrato12. No caso em análise, a embarcação não pôde prosseguir por ordem das autoridades competentes locais, situação que não se encontra enquadrada entre as premissas contidas na MLC/06 para a repatriação.

Conforme bem ressaltado em artigo anterior publicado pelos i. maritimistas Marcelo Sammarco e Fernanda Azevedo13, infelizmente situações de restrições à repatriação ou de abandono de trabalhadores marítimos estrangeiros vêm ocorrendo com alguma frequência, não apenas no exterior, como também em águas brasileiras14. Logicamente, a questão deverá ser analisada sob a ótica de cada caso concreto para que, a depender das circunstâncias, se possa definir os instrumentos normativos aplicáveis, as autoridades intervenientes e as ações a serem tomadas por cada um dos players potencialmente envolvidos, de forma que a situação possa ser remediada da forma mais breve e efetiva possível.

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1 Informações disponíveis aqui

2 Informações disponíveis aqui

3 Informações disponíveis aqui

4 "As convenções da OIT são tratados normativos abertos à ratificação dos Estados membros. Podem ter caráter regulamentar; adotar apenas princípios para serem aplicados de conformidade com as condições sócio-econômicas dos países (neste caso são aprovadas concomitantemente com recomendações detalhadas); ser do tipo promocional, fixando objetivos cuja consecução se dará por etapas sucessivas. Na verdade, todas as convenções da OIT tratam, lato sensu, de direitos humanos. Entretanto, algumas delas foram classificadas como concernentes a diretos humanos fundamentais" (Cfr. Sussekind, Arnaldo. Direito constitucional do trabalho. 4.ed.- de Janeiro: Renovar, 2010).

5 The Convention seeks to be "firm on rights and flexible on implementation". The MLC, 2006 sets out the basic rights of seafarers to decent work in firm statements, but leaves a large measure of flexibility to ratifying countries as to how they will implement these standards for decent work in their national laws". Disponível aqui

6 Informações retiradas do site da Organização Internacional do Trabalho, disponível aqui.

7 Regra 2.1, Norma A2.1, item 4, "i", da Convenção sobre o Trabalho Marítimo de 2006. Decreto 10.671, de 9 de abril de 2021. Disponível aqui.

8 "Pois bem, diante da apresentação indispensável da garantia financeira, é obrigação do proprietário da embarcação exibir os certificados a bordo emitidos pelo seu clube de P&I ou outro fornecedor de garantia financeira com o intuito de confirmar que os custeios e despesas da repatriação da tripulação em eventual falta do armador serão providenciados pelo seguro." (SAMARCO, Marcelo e AVEZEDO, Fernanda, artigo publicado aqui).

9 Regra 5.2, Norma A2.5.1, item 5, da Convenção sobre o Trabalho Marítimo de 2006. Decreto 10.671, de 9 de abril de 2021. Disponível aqui

10 Regra 5.2, Norma A2.5.1, item 1, da Convenção sobre o Trabalho Marítimo de 2006. Decreto 10.671, de 9 de abril de 2021. Disponível aqui

11 Informações retiradas do site da BBC. Disponível aqui.

12 Regra 5.2, Norma A2.5.1, item 1, da Convenção sobre o Trabalho Marítimo de 2006. Decreto 10.671, de 9 de abril de 2021. Disponível aqui

13 https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-maritimas/355881/trabalhador-maritimo-e-coberturas-de-p-i-sob-a-optica-da-mlc-de-2006

14 A própria IMO - Organização Marítima Internacional dedica especial atenção aos casos de abandono de tripulantes, com análise de dados, casos concretos e estatísticas ao redor do mundo, conforme disponíveis aqui e aqui