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Responsabilidade civil do transportador marítimo por perdas e danos de cargas - Uma análise sobre a responsabilidade objetiva e o nexo de causalidade

quinta-feira, 20 de abril de 2023

Atualizado às 08:22

Sempre que se discutir a responsabilidade civil, importa notar que, seja ela objetiva ou subjetiva, demandará três requisitos essenciais à sua existência, quais sejam: o ato ilícito, o dano e o nexo de causalidade. Especialmente em relação ao nexo de causalidade, a ausência de um requisito essencial impede a caracterização da responsabilidade.

Nos casos de responsabilidade objetiva assume extraordinária importância o nexo de causalidade no critério do julgador na determinação do dever de indenizar, de modo que devem estar presentes, além do dano e do exercício de determinada atividade pelo responsável, a comprovação segura do nexo causal entre eles.

A doutrina da responsabilidade civil é clara no sentido de que para a concretização responsabilidade, embora objetiva, é indispensável que se estabeleça uma interligação entre a ofensa à norma e o prejuízo sofrido. Nesse sentido são esses os ensinamentos de Caio Mario da Silva Pereira1:

"Cabe, todavia, não levar a extremo de considerar que todo dano é indenizável pelo fato de alguém desenvolver uma atividade. Aqui é que surge o elemento básico, a que já acima me referi: a relação de causalidade. Da mesma forma que na doutrina subjetiva, o elemento causal é indispensável na determinação da responsabilidade civil, também na doutrina objetiva o fenômeno há de ocorrer. A obrigação de indenizar existirá como decorrência natural entre o dano e a atividade criada pelo agente. O vínculo causal estabelecer-se-á entre um e outro. Num dos extremos está o dano causado. No outro, a atividade causadora do prejuízo".

Nesta mesma direção são as lições de Vicente Greco Filho e Ernane Fidélis dos Santos2:

"O Autor, na inicial, afirma certos fatos porque deles pretende determinada consequência de direito; esses são os fatos constitutivos que lhe incumbe provar sob pena de perder a demanda. A dúvida ou insuficiência de prova quanto ao fato constitutivo milita contra o autor. O juiz julgará o pedido improcedente se o autor não provar suficientemente o fato constitutivo de seu direito"

E fechando o raciocínio, o ensinamento do Prof. Frederico Marques3: 

"A vontade concreta da lei só se afirma em prol de uma das partes se demonstrado ficar que os fatos, de onde promanam os efeitos jurídicos que pretende, são verdadeiros. (....) Claro está que, não comprovados tais fatos, advirão para o interessado, em lugar da vitória, a sucumbência e o não-reconhecimento do direito pleiteado."

Nessa esteira, a responsabilidade do transportador marítimo, embora objetiva e presumida, prescindível a demonstração do nexo causal entre a sua conduta e os danos experimentados para que exista o dever de reparação.

Deste modo, diante da quebra do nexo de causalidade ante a impossibilidade de se aferir, com certeza, que os danos realmente ocorreram durante o transporte marítimo, ausente o dever de indenizar, posto que não houve constituiu o direito de reparação por parte do suposto lesado.

No direito marítimo, a responsabilidade geralmente decorre do inadimplemento contratual (descumprimento de cláusulas contratuais nos contratos de afretamento, transporte, seguros etc.) ou deriva de acontecimentos aleatórios em decorrência de danos por acidentes ou fatos de navegação (colisões, abalroamentos, poluição ou qualquer outro tipo de sinistro).

A responsabilidade do navio ou embarcação transportadora começa com o recebimento da mercadoria a bordo e cessa com a sua entrega à autoridade portuária no porto de destino ao costado do navio (art. 3º do decreto-lei 116/67).

Ademais, considera-se objetiva a responsabilidade do transportador marítimo e de seus agentes e tem início quando recebem a carga para transporte, findando-se após a entrega da mercadoria ao destinatário, nos termos do art. 750 do Código Civil:

Art. 750, CC: A responsabilidade do transportador, limitada ao valor constante do conhecimento, começa no momento em que ele, ou seus prepostos, recebem a coisa; termina quando é entregue ao destinatário, ou depositada em juízo, se aquele não for encontrado.

É cediço que o regime de responsabilidade civil objetiva a princípio, dispensa, unicamente, o exame alusivo à presença de dolo ou culpa do transportador. No entanto, não exonera o lesado de demonstrar a relação de causa e efeito entre a conduta e o evento danoso.

Caso a demonstração do aludido nexo de causalidade fosse ignorada ou mesmo dispensada, significaria adotar o regime do risco integral e automático, o que não encontra respaldo no ordenamento jurídico pátrio. 

O dever de reparação, seja a responsabilidade objetiva ou subjetiva, só existe quando há comprovação segura do nexo de causalidade entre a conduta do transportador (ato) e o prejuízo reclamado (dano). Caso contrário, não há que se falar em responsabilidade. 

Neste sentido é o artigo 373, inciso I, do Código de Processo Civil, segundo deve ser comprovado o nexo de causalidade entre o dano e a atuação da parte demandada, na ocasião dos fatos: 

Artigo 373. O ônus da prova incumbe:

I - o autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito. 

A princípio a responsabilidade contratual do transportador configura uma obrigação de resultado e independe, portanto, de culpa e decorre do risco por ele assumido no contrato de transporte.

De fato, é certo que a responsabilidade do transportador é objetiva, todavia, não é menos correto que a causa do dano há de ser a ele imputada ou, ao menos, há de se evidenciar que o sinistro ocorreu por ocasião do desenvolvimento da atividade do transportado.

Em recente decisão proferida pela 24ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo consolida o entendimento doutrinário de que o dever de reparação só existe quando há comprovação segura acerca do nexo de causalidade entre a conduta do transportador (ato) e o prejuízo reclamado (dano).

APELAÇÃO CÍVEL. Transporte marítimo de mercadoria sem contêineres. Direito de regresso regido pelo Art. 786 do Código Civil. Responsabilidade objetiva do transportador que vai do porto de embarque até o de destino. Instituto que dispensa, unicamente, o exame alusivo à presença de dolo ou culpa do transportador, mas não exonera o lesado de demonstrar a relação de causa e efeito entre a conduta e o evento danoso. Laudo unilateral apresentado pela seguradora, constando molhadura na mercadoria, que foi confeccionado dias após a descarga e o desembaraço aduaneiro. Dispensa da vistoria oficial pela autora que inviabilizou a prova de que as avarias ocorreram durante o transporte marítimo. Prova pericial que também não se prestaria a este fim. A ausência de relatório, laudo ou perícia que comprove as condições do contêiner no exato momento da entrega no porto afasta a presunção de que os danos à mercadoria tenham ocorrido durante o transporte marítimo, podendo ter se dado em momento posterior à descarga. Improcedência mantida, à luz do Art. 373, inciso I, do CPC. RECURSO DESPROVIDO.

(Processo nº. 1011520-39.2019.8.26.0562 - 24ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo - Relator Desembargador Rodolfo Pellizari - Julgamento 23/03/2023)

O referido julgamento seguiu o entendimento já consagrado em julgados anteriores, como segue:

Apelação. Ação de regresso que visa o recebimento de valor pago pela seguradora. Transporte marítimo de cargas. Arguição de ilegitimidade de parte passiva. Inadmissibilidade. CDC. Não incidência. Alegação da autora de que a transportadora marítima deu causa aos prejuízos sofridos pela segurada que teve sua carga avariada. Não comprovação dos fatos constitutivos do seu direito. Preliminar rejeitada. Recurso provido. 

"Não houve prova de que a mercadoria sofreu avaria durante a custódia da transportadora apelante e tampouco de que a transportadora terrestre tivesse recebido a mercadoria com avarias, mormente porque ela assumiu o ônus decorrente da desistência da vistoria aduaneira (fls. 32).

Conclui-se, portanto, que a autora não se desincumbiu de provar que a culpa pela avaria parcial da carga foi do transportador marítimo, ou seja, que a apelante tenha concorrido para a ocorrência do dano causado na carga segurada, conforme alegado na inicial.

Existindo relação jurídica, nos moldes do art. 333, I, do CPC, incumbia à autora comprovar o fato constitutivo de seu direito, ou seja, de que o valor pago à segurada correspondeu aos prejuízos ocorridos na mercadoria transportada e que foi a transportadora marítima quem deu causa aos danos por ela pontados. Ao contrário, limitou-se a afirmar na inicial que após a comunicação do sinistro a indenização paga à sua segurada, sub-rogou-se em todos os seus direitos e ações com relação aos referidos sinistros, conforme recibo de quitação anexo.

Por conseguinte, ausentes os requisitos da configuração do ato ilícito, para a caracterização da responsabilidade civil, eis que necessária a demonstração de culpa ou dolo do agente, bem como do nexo causal, não há como imputar-lhe a obrigação indenizatória."

(AC nº 1003915-12.2015.8.26.003 - 37ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo - Relator Desembargador Pedro Kodama - Julgamento 06/10/2015)

Mister analisar as referidas decisões de forma minuciosa a fim de destacar a sua importância no que tange ao critério estabelecido pelo julgador na determinação do dever de indenizar nos casos de transporte marítimo.

A responsabilidade civil objetiva do transportador marítimo deve decorrer da conjugação dos elementos, ato, dano e nexo causa. Nesse sentido, imprescindível a vistoria pois é elemento necessário para a caracterização da responsabilidade do transportador marítimo. Sem ela não há como responsabilizar o transportador marítimo por qualquer dano (artigo 1º, §§3º e 5º, do decreto-lei 116/67).

Portanto, em que pese a responsabilidade objetiva do transportador marítimo, existem situações que rompem o nexo causal desobrigando-o do dever de indenizar, sendo de fundamental importância a análise dos vários desdobramentos que compõem o quadro fático em que o contrato está contextualizado.

__________

1 Responsabilidade civil | Caio Mario da Silva Pereira; Gustavo Tepedino - 13ª ed., - Rio de Janeiro: Forense,2022 - p.399.

2 Direito Processual Civil Brasileiro | Vicente Greco Filho - v.2 - 21ed., - São Paulo: Saraiva,2009 - p.235.

3 Instituições de Direito Processual Civil, v. 3, p. 379.