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O caso do navio Professor Wladimir Besnard

quinta-feira, 15 de junho de 2023

Atualizado às 07:52

O navio Professor Wladimir Besnard foi uma importante embarcação da oceanografia brasileira, batizada em homenagem ao cientista russo-francês trazido ao Brasil para coordenar o Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo - USP. O navio esteve em operação durante 40 anos, sendo responsável pela primeira expedição oficial brasileira à Antártida, realizada entre 1982 e 1983, além de ter possibilitado a realização de diversas outras pesquisas em águas nacionais e internacionais. Em 2008, no entanto, a embarcação sofreu um incêndio que danificou seu sistema de navegação, levando ao encerramento de suas atividades.

O navio Professor W. Besnard, pioneiro em estudos oceanográficos no Brasil, foi doado pela Universidade de São Paulo - USP à prefeitura de Ilhabela, que pretendia afundá-lo para transformá-lo em um recife artificial. Contudo, em 2019, o Município optou por transferir a embarcação ao Instituto do Mar, que visava transformá-la em museu flutuante ou em um navio-escola. Ocorre que, até o presente momento, nenhuma destinação foi dada à embarcação, que se encontra atracada no cais do Porto de Santos, em situação precária de conservação.

Em 05 de julho de 2018, em uma vistoria realizada pela equipe de controle ambiental e de segurança do trabalho da Companhia Docas do Estado de São Paulo - CODESP, em conjunto com técnicos do IBAMA, foi constatado que o navio já estaria com sua navegabilidade prejudicada e que eventual naufrágio da embarcação poderia afetar diretamente o tráfego aquaviário do porto de Santos, além de causar graves danos ambientais.

Segundo relatórios apresentados pela Codesp, a embarcação teria apresentado sinais de adernamento para boreste, além de ter sido constatada a presença de tambores de óleo a bordo do navio, que poderiam resultar em vazamentos no estuário de Santos, em caso de inobservância dos deveres de conservação por parte do Município de Ilhabela, proprietário do navio. Na hipótese, ainda foi demonstrado que teriam pessoas utilizando o navio como moradia e que a embarcação não possuía geradores e motores em estado operacional, motivo pelo qual estaria sendo abastecida através de ligações elétricas improvisadas, que poderiam pôr em risco a segurança local.

Diante da inércia do Município de Ilhabela em adotar as providências necessárias para a conservação adequada do navio, o caso foi judicializado.

Na ação originária1, que tramitou junto à 1ª Vara da Comarca de Ilhabela, o Órgão Municipal teve sua responsabilidade reconhecida, por ser legítima proprietária da embarcação e, sobretudo, por ter sido comprovado que o navio já não deveria mais estar no cais do Porto de Santos. Por tais motivos, o Município de Ilhabela foi condenado a retirar a embarcação do local, em condições ambientais adequadas, além de: 1. adotar medidas que assegurassem a flutuabilidade do navio, a fim de evitar o adernamento; 2. retirar resíduos oleosos e cessar todas as ligações clandestinas de energia elétrica no local; 3. promover a retirada de eventuais moradores do local. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo negou provimento ao apelo interposto pela requerida2 e confirmou a sentença proferida em primeira instância.

Não obstante a condenação da municipalidade em 2020, a embarcação segue atracada no cais do Porto de Santos, causando alertas ambientais, pelo risco de adernamento completo e possível vazamento de resíduos oleosos nas águas locais. Em fevereiro do ano corrente, mais de 70 mil litros de água e resíduos oleosos foram retirados do navio, em operação emergencial realizada pela equipe técnica da Santos Port Authority (SPA), em parceria do Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), a fim de evitar o naufrágio da embarcação.

No entanto, em recente impugnação apresentada pelo Município de Ilhabela, nos autos do processo de execução, novos argumentos foram ventilados para o não cumprimento da ordem judicial de retirada do navio do cais santista.

Segundo o prefeito de Ilhabela, Antonio Colucci, a remoção da embarcação não seria algo simples, mas sim um procedimento delicado, que requer prévio estudo da destinação da carcaça do navio, além de completa limpeza de motores, portas e móveis apodrecidos. O custo estimado pelo município para afundar o navio seria de cerca de 2 milhões de reais, enquanto os custos para a total recuperação deste poderiam atingir até 50 milhões de reais.

Para além dos custos da operação, sobreveio notícia de que haveria um procedimento de tombamento do navio Professor Wladimir Besnard junto ao Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico Arqueológico, Artístico e Turístico - CONDEPHAAT que estaria dificultando o cumprimento da ordem judicial, o que travou profunda discussão entre a possibilidade de desmantelamento da embarcação e a preservação do patrimônio cultural.

Esse foi o impasse enfrentado pelo Juiz Leonardo Grecco, que reconheceu que o caso se trata de uma verdadeira "escolha de Sofia".

Segundo o magistrado estaríamos diante de um "dilema entre o meio ambiente cultural e o meio ambiente natural, de modo que resguardar um, neste momento, seria colocar em risco o outro". Nesse cenário, posicionou-se o juiz, afirmando que para que o interesse cultural pudesse se sobrepor à preservação do meio ambiente natural, deveriam ter sido, desde o início, adotadas medidas adequadas de conservação da embarcação, com vistas a prevenir os riscos danos ambientais ora enfrentados. Contudo, ante a ausência de providências no passado, prezou o juízo pela preservação do meio ambiente natural.

Os relatórios apresentados pela Codesp não deixam dúvidas de que o Professor W. Besnard, em seu atual estado de conservação, não atende a critérios mínimos de segurança, estrutura e navegabilidade, tendo encerrado por completo seu ciclo de vida útil. Segundo parecer da Capitania dos Portos, a embarcação ainda constitui um risco à navegação, à salvaguarda da vida humana no mar e à ocorrência de poluição hídrica.

Diante do entrave, memorou o magistrado que a definição trazida pela lei 9537/97, que trata de segurança do tráfego aquaviário, estabelece que embarcação é a construção "suscetível de se locomover na água, por seus meios próprios ou não, transportando pessoas ou cargas". "Embarcação que não navega, não é embarcação" - consignou o juiz.

A própria Prefeitura de Ilhabela, nos autos da execução, reconheceu que a "embarcação está em péssimas condições, sendo provável seu afundamento enquanto retirada por rebocamento do Porto".

Aliás, os gastos orçamentários com a manutenção da embarcação pelo município são, no mínimo, consideráveis. Os contratos de licitação apresentados pela municipalidade, demonstram que, somente em 2017, foram despendidos R$250.800,00 (duzentos e cinquenta mil e oitocentos reais) à empresa ECO PRIME SOLUÇÕES AMBIENTAIS LTDA. para 180 dias de guarda e manutenção preventiva do navio Prof. W. Besnard; além de R$204.000,00 (duzentos e quatro mil reais) gastos com a FUNDESPA para realização de projeto de licenciamento ambiental para o afundamento do navio.

Assim é que, segundo o juiz, para o atendimento exato da ordem judicial que determinava a retirada do navio, em condições ambientalmente adequadas, não restaria outra opção senão o desmantelamento da embarcação. Nesse sentido, fundamentou o juízo: "as condições ambientalmente adequadas apenas permitiriam a remoção do navio pelo mar se a navegabilidade deste não estivesse comprometida. Mas está! A flutuabilidade do navio está prestes a se tornar negativa, com um risco imenso ao meio ambiente natural. Logo, se não se navega e não se flutua, há que se retirar a estrutura por terra, permitindo-se seu desmantelamento ou outro procedimento pertinente".

O processo de demolição de embarcações, também denominada de desmantelamento, é uma técnica de descarte dos navios, por meio de reaproveitamento de peças ou extração de matéria-prima, o que, segundo o magistrado, seria a solução mais segura para o meio ambiente e para a própria vida humana, no caso concreto, segundo laudos apresentados pela equipe técnica.

E não apenas o magistrado se posiciona desta maneira. Recente estudo realizado por Juliana Pizzolato F. Senna, junto à revista Porto, Mar e Comércio Internacional Por Elas3, não deixa dúvidas de que o desmonte seja a melhor destinação a ser dada aos navios que encerram o ciclo de vida útil, embora a atividade ainda não seja integralmente explorada em território brasileiro.

Não à toa, a novel lei 10.028 de 26 de maio de 20234, sancionada no estado do Rio de Janeiro, tenha instituído diretrizes para o desenvolvimento de atividades voltadas à geração de emprego, renda, qualidade de vida, arrecadação tributária e políticas públicas advindas da reciclagem de embarcações e demais ativos marítimos offshore, com o fito de estimular a adoção das melhores práticas aplicáveis à indústria naval.

Segundo a autora, atualmente, três países (Índia, Bangladesh e Paquistão) estariam concentrando mais de 90% dos desmontes mundiais, embora o Brasil tenha toda a infraestrutura necessária para o desenvolvimento da atividade em território nacional, em seu entendimento:

"Nosso país hoje conta com estaleiros com dique seco e infraestrutura adequada para embarcações grandes, diferente de muitos estaleiros na Europa, que sofrem com a baixa taxa de ocupação em razão da redução da demanda de novas construções. Adicionalmente, o Brasil tem uma indústria que poderia fazer uso dos materiais reciclados que são gerados com o desmonte."5

Dados trazidos pela autora, indicam, ainda, que o Brasil possui grandes frotas navais de cabotagem com idade média de 15,5 anos, alertando o mercado para um aumento considerável da procura de serviços de desmantelamento de embarcações em um futuro próximo.

Verifica-se, portanto, que a recente decisão judicial proferida nos autos da execução em curso, ao mesmo passo em que prezou pela preservação do meio ambiente natural, também foi ao encontro das novas técnicas ambientais de reaproveitamento e descarte adequado de sucatas navais, por meio da prática do desmantelamento.

Ainda, sob a ótica do magistrado Leonardo Grecco, embora não se questione a importância da embarcação para o patrimônio cultural do país, pairam dúvidas acerca da impossibilidade de demolição deste, considerando os benefícios da minimização dos impactos ambientais e que boa parte da história do navio se encontra preservada pela Universidade de São Paulo - USP, que antes mesmo de realizar a doação do navio ao município de Ilhabela, já teria recolhido "todo material de interesse histórico necessário para compor seu museu".

Certo é que o ordenamento jurídico pátrio não estabelece rígidos critérios para resolução de conflito de interesses ambientais, restando ao magistrado, caso a caso, adotar a posição que pareça mais favorável à preservação do meio, buscando, sempre que possível, um equilíbrio entre o cultural e o natural, tal como verifica no presente caso.

A assertiva decisão proferida parece atender aos princípios da precaução e da prevenção, que visam garantir que as ações antrópicas sejam tomadas de forma racional e cuidadosa para com os recursos naturais, a fim de reduzir riscos de impactos ambientais, previsíveis ou não.

Contudo, da decisão proferida, ainda cabe recurso ao Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que poderá manter ou reformar a ordem judicial de retirada do navio Professor Wladimir Besnard por terra, para fins de desmantelamento.

__________

1 Processo nº 1001253-17.2018.8.26.0247

2 Apelação nº 1001253-17.2018.8.26.0247

3 SENNA, Juliana Pizzolato Furtado. Reciclagem de navios no Brasil. In: VASCONCELOS, Flavia Nico; GUERISE, Luciana Cardoso (Orgs.). Porto, Mar e Comércio Internacional por Elas. Mil Fontes, 2022. Disponível aqui.

4 Disponível aqui.

5 SENNA, Juliana Pizzolato Furtado. Reciclagem de navios no Brasil. In: VASCONCELOS, Flavia Nico; GUERISE, Luciana Cardoso (Orgs.). Porto, Mar e Comércio Internacional por Elas. Mil Fontes, 2022. Disponível aqui.