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Os efeitos da decisão do tribunal marítimo no processo arbitral

terça-feira, 30 de abril de 2024

Atualizado em 29 de abril de 2024 13:47

A arbitragem especializada em direito marítimo, portuário e aduaneiro assume papel de crescente relevância no cenário nacional, em especial, pelo grau de tecnicidade das controvérsias e pelo seu vulto econômico.

Há tempos, estou dentre aqueles que afirma inexistir qualquer concorrência entre as portas do Poder Judiciário e da Arbitragem, em um sistema de jurisdição multiportas em que cabe à parte optar pelo método de solução que lhe for mais conveniente, estando ambos com capacidade de entregar uma solução à altura de sua expectativa1.

Nesse cenário, assume elevada importância analisar os efeitos da decisão do Tribunal Marítimo no processo arbitral.

O Tribunal Marítimo, com jurisdição em todo o território nacional, é órgão autônomo da Administração Federal, auxiliar do Poder Judiciário2, competente para jugar os acidentes e os fatos da navegação, sediado na Capital do Rio de Janeiro.

É formado por Magistrados especialistas em Direito Marítimo, Direito Internacional, Armação e Navegação, mas também por Capitães de Longo Curso, de Mar e Guerra e de Fragata do Corpo de Engenheiros da Marinha, que são responsáveis por afirmar a natureza e a extensão dos acidentes ou fatos da navegação, indicando a causa determinante de cada um deles e, se o caso, impor sanções de caráter meramente administrativo.

A prova produzida no âmbito do Tribunal Marítimo está sob o crivo do contraditório, tendo a Corte o dever de imparcialidade.

O Tribunal Marítimo julga os fatos e acidentes da navegação, em processo contencioso, com aplicação de normas técnicas e jurídicas compatíveis à solução do conflito e aplicabilidade subsidiária dos códigos de processo, e adota o mesmo procedimento de qualquer outro tribunal3.

Dois pontos merecem destaque quando o tema é estudar os efeitos da decisão do Tribunal Marítimo, quais sejam:

  1. a autonomia do Tribunal Marítimo;
  2. a composição plural da Corte.

Quanto ao primeiro ponto - autonomia -, a ausência de vinculação no ato de julgar com qualquer órgão da administração, somado ao dever de imparcialidade, faz com que as decisões pronunciadas pela Corte Marítima sejam consideradas isentas e independentes, fundadas em critérios eminentemente técnicos, próprios da especialidade da matéria sob a sua competência.

Já no que tange ao segundo ponto - composição plural -, as variadas visões de cada um dos julgadores, especialistas em área específica da navegação, com larga experiência, permite que todos os pontos necessários ao melhor julgamento estejam colocados à mesa quando do debate, produzindo um acórdão representativo da melhor técnica para a solução da controvérsia.

A Arbitragem constitui, sem dúvida, um microssistema próprio do exercício da jurisdição, fundado na autonomia da vontade das partes e na confiança na pessoa do Árbitro, pilares que lhe são essenciais enquanto instituto privado de solução de controvérsias. Mas, penso eu, não está isolada dentro do sistema de jurisdição.

Na arbitragem de direito, é dever do Árbitro julgar conforme a legislação convencionada pelas partes na convenção de Arbitragem.

No recorte necessário ao espaço limitado deste texto, convém anotar que estaremos a tratar da hipótese em que foi convencionado pelas partes a arbitragem de direito, com opção pelo direito brasileiro.

A primeira controvérsia, nesse processo de interação entre Tribunal Marítimo e Tribunal Arbitral, diz com a necessidade de se implementar a suspensão da arbitragem até o julgamento do mesmo fato pelo Tribunal Marítimo, bem como a existência ou não de limitação temporal.

Sobre esse ponto, relevante para a nossa análise, o disposto no artigo 19, da lei 2180/544 5 porquanto exige a juntada da decisão definitiva do Tribunal Marítimo quando, em juízo, sem qualquer distinção quanto ao judicial ou arbitral, estiver em discussão matéria de competência daquela Corte.

A regra é clara!

A juntada da decisão do Tribunal Marítimo é exigência legal quando, em juízo, arbitral ou judicial, houver controvérsia sobre matéria de sua competência.

Porém, permanecem as seguintes dúvidas:

  1. o momento da juntada da decisão definitiva; 
  2. o prazo de suspensão do processo arbitral para a juntada da decisão definitiva que venha a ser proferido pelo Tribunal Marítimo.

A aplicação das disposições Código de Processo Civil ao processo arbitral, questão assaz controvertida, merece, ao meu sentir, a devida superação, a partir da necessidade prática da solução de questões internas, exigidas para o regular andamento do processo arbitral, ao menos com a utilização, pelos Árbitros, da razão jurídica que inspira seus artigos, como razão de decidir.

Nesse caso, reputo como necessária a aplicação da regra ou da razão jurídica da regra do artigo 313, inciso VII, do Código de Processo Civil6, implementando-se a suspensão do processo arbitral até a decisão da Corte do Mar.

Como visto, o artigo 19, da lei 2180/54, menciona a juntada no processo, judicial ou arbitral, da decisão definitiva do Tribunal Marítimo, sempre que a questão controvertida couber nas suas atribuições técnicas. Por outro lado, regra ou a razão jurídica da regra do artigo 313, inciso VII, do Código de Processo Civil, apenas afirma a necessidade de suspensão do processo quando a questão envolver a competência do Tribunal Marítimo, sem qualquer delimitação temporal.

É verdade que, sobre o ponto da limitação temporal, o julgamento no Tribunal Marítimo configura verdadeira prejudicialidade externa, o que faria, em princípio, atrair o prazo e a consequência previstos na regra ou na razão jurídica da regra do artigo 313, inciso V, alínea "b", §§ 4º e 5º, todos do Código de Processo Civil7.

O risco de decisões conflitantes, dentro de um mesmo sistema de direito, a partir do julgamento de uma ação fundada no mesmo fato, no Tribunal Arbitral e ao mesmo tempo no Tribunal Marítimo, é evidente. Veja-se, a propósito, que não seria razoável, mas possível sem a suspensão, que um Tribunal Arbitral decida pela existência de responsabilidade e o Tribunal Marítimo decida pela sua ausência.

Ainda que os juízos, arbitral e marítimo, definam a responsabilidade pelo evento para consequências diferentes, não se pode ignorar que a premissa, responsabilidade pelo mesmo fato, é essencial para ambos.

Não se pode desconsiderar, ainda, o fato de que o artigo 19, da lei 2180/54, estabelece em seu texto "a juntada definitiva da sua decisão", a indicar que o processo arbitral deverá permanecer suspenso até a conclusão do processo no Tribunal Marítimo, independentemente da limitação temporal de 01 (um) ano prevista no Código de Processo Civil.

A possibilidade de que o processo arbitral prossiga e, se o caso, até antes da sua sentença, implemente-se a suspensão para juntada da decisão definitiva do Tribunal Marítimo, atendendo ao texto legal, não é a melhor solução.

Isso porque a decisão da Corte Marítima é de extrema importância para o próprio curso da instrução do processo, trazendo evidente prejuízo às partes caso somente venha a ser juntada ao final da instrução, até antes da sentença, sem mencionar o prejuízo para a economia processual, caso alguma prova tenha de ser refeita a partir da conclusão trazida aos autos pelo julgado do Tribunal Marítimo.

Além disso, é medida de todo consentânea com a segurança jurídica, a suspensão do processo arbitral antes do início da fase de instrução, visando cumprir o ideal do melhor julgamento de mérito possível, constituindo dever do Árbitro produzir uma decisão justa e exequível.

Uma outra questão geradora de controvérsia nessa interação entre Tribunal Marítimo e Tribunal Arbitral é a que diz respeito à eficácia da decisão pronunciada pela Corte do Mar.

A questão está disciplinada na atual redação do artigo 18, da lei 2180/54, que lhe foi conferida pela lei 9578/978.

Na atual redação do artigo 18 da lei 2.180/54, não se pode afastar a ideia de que as conclusões estabelecidas pelo Tribunal Marítimo em seus acórdãos são suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário em toda a sua extensão, mesmo que, quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação, tenham valor probatório, presumindo-se certas por força de lei.

A mesma conclusão haverá de ser prestigiada no processo arbitral em que o Árbitro exerce jurisdição, sendo Juiz de fato e de direito.

O Acórdão do Tribunal Marítimo não possui o valor probatório de uma prova comum. Há uma valoração prévia estabelecida pelo legislador. Há uma presunção de certeza estabelecida na lei.

Nessa trilha, a presunção legal de certeza estabelecida no artigo 18, da lei 2.180/54, impõe ao Painel Arbitral esforço argumentativo excepcional, fundado em critério técnico equivalente ao posto no Acórdão da Corte do Mar, capaz de afastar a conclusão do texto legal expresso que afirma "se presumem certas".

E esse esforço argumentativo que se exige do Árbitro não é o esforço comumente utilizado para afastar a tese das partes ou mesmo um singelo parecer técnico produzido pelos assistentes técnicos ou perito do juízo.

Para além da presunção legal estabelecida em favor da decisão do Tribunal Marítimo, é preciso, a partir do conhecimento sobre a formação e funcionamento da Corte, admitir que o Acórdão por ela produzido, pronunciado por um colegiado plural de especialistas na matéria, somente poderá ser afastado, no reexame do seu mérito, com critério técnico equivalente, sendo excepcional essa hipótese.

O Acórdão do Tribunal Marítimo não é parecer técnico.

A juntada do Acórdão definitivo do Tribunal Marítimo no processo arbitral entrega ao Árbitro a cognição ampla, sendo-lhe lícito a análise tanto dos seus aspectos formais, quanto do próprio mérito da conclusão, observada, todavia, a valoração prévia da prova estabelecida pelo legislador.

Nunca é demais repetir, como já afirmei em outro ponto deste artigo, que a conclusão do Tribunal Marítimo posta em seu Acórdão não é singelo parecer técnico, porquanto decorre da lei a sua presunção de certeza, impondo ao julgador, quanto ao mérito, esforço argumentativo excepcional para o seu afastamento, no que somente reputo preenchido esse esforço com prova técnica equivalente àquela que nasce da composição plural da Corte do Mar.

Um ponto a merecer a nossa consideração é o de que, na Arbitragem, os Árbitros, escolhidos pelas partes, são - ou deveriam ser - especialistas na matéria em julgamento e, portanto, com conhecimento pleno para decidir a controvérsia sem a necessidade de qualquer decisão do Tribunal Marítimo.

No entanto, se o ponto colocado é verdadeiro, no caso, há imposição legal para a juntada da decisão definitiva do Tribunal Marítimo em qualquer juízo, repito, sem distinção pelo legislador quanto ao judicial ou arbitral, tendo o seu acórdão, por força de lei, presunção de certeza quando a matéria for de sua competência.

Ademais, para além da imposição legal, convenhamos, mesmo para juristas experientes ou profissionais do setor, é sobremaneira complexo definir se uma arribada de embarcação foi justificada ou se um determinado evento constitui avaria grossa, não se podendo desconsiderar a expertise de Magistrados que diariamente julgam esses temas, a partir de um colegiado de composição plural, que lhes permite um olhar panorâmico da controvérsia em julgamento.

Poder-se-ia, ainda, objetar as conclusões do texto com o argumento de que a celeridade do julgamento é essencial ao processo arbitral e, portanto, seria descabido falar em suspensão para aguardar decisão de outro Tribunal.

Sem dúvida, a celeridade é essencial na Arbitragem.

Porém, ao processo arbitral impõe-se conviver em harmonia com um sistema de jurisdição único, fundado em multiportas, no qual a segurança jurídica decorrente do respeito à lei é valor constitucional para todas elas.

Permitir que o processo arbitral vinculado ao direito brasileiro desconsidere o texto da legislação em vigor, a partir da pura e simples busca da celeridade, é criar uma verdadeira jurisdição extraterrestre, um direito alienígena, capaz de colocar a decisão arbitral sobre o mérito da controvérsia em uma linha de produção, na busca pela agilidade a qualquer custo.

Nesse exato momento, arbitralistas devem estar a imaginar que o pensamento exposto é fruto da convicção de alguém que, por integrar o Poder Judiciário, possui opinião adernada em relação a Arbitragem.

Digo-lhes que se enganam! Sou um verdadeiro fã da Arbitragem enquanto método adequado de solução de conflitos. Apenas não a enxergo como isolada dentro de um sistema de jurisdição fundado no respeito à lei e tendo a segurança jurídica como valor constitucional.

Para longe de estabelecer proposições definitivas, o propósito do texto, de conteúdo polêmico para a Arbitragem, reconheço, é tão somente convidar os operadores do direito a um, conhecer a composição e o funcionamento do Tribunal Marítimo, para dois, propor reflexões sobre os efeitos das suas decisões no processo arbitral, contribuindo para julgamentos de mérito consentâneos com as melhores técnicas da navegação, dentro da busca pelo ideal da segurança jurídica.

________________

1 Em 27 de novembro de 2023, o Tribunal de Justiça de São Paulo criou um núcleo especializado para julgamento da competência marítimo, portuário e aduaneiro em todo o território do Estado, o Núcleo de Justiça 4.0 - Direito Marítimo.

2 Na leitura da função de auxiliar do Poder Judiciário do Tribunal Marítimo haverá de se compreender a sua função como auxiliar de qualquer tribunal que exerça jurisdição, inclusive o formado na Arbitragem.

3 Direito Marítimo. Estudos em homenagem aos 500 anos da circum-navegação de Fernão de Magalhães. Marcelo David Gonçalves, O Tribunal Marítimo e a Eficácia dos seus Acórdãos, p. 353.

4 Artigo 19- Sempre que se discutir em juízo uma questão decorrente de matéria da competência do Tribunal Marítimo, cuja parte técnica ou técnico-administrativa couber nas suas atribuições, deverá ser juntada a sua decisão definitiva. 

5 Observe-se que a regra do artigo 19, da Lei 2180/54, não faz qualquer ressalva quanto ao tipo de juízo, estatal ou arbitral, sendo verdade que, quando da sua edição, em que pese ser possível reconhecer a existência da Arbitragem, inexistia a atual Lei de Arbitragem.

6 Artigo 313- Suspende-se o processo: (...) VII- quando se discutir em juízo questão decorrente de acidentes e fatos da navegação de competência do Tribunal Marítimo.  

7 Artigo 313- Suspende-se o processo: V - quando a sentença de mérito: a) depender do julgamento de outra causa ou da declaração de existência ou de inexistência de relação jurídica que constitua o objeto principal de outro processo pendente; b) tiver de ser proferida somente após a verificação de determinado fato ou a produção de certa prova, requisitada a outro juízo; § 4º O prazo de suspensão do processo nunca poderá exceder 1 (um) ano nas hipóteses do inciso V e 6 (seis) meses naquela prevista no inciso II. § 5º O juiz determinará o prosseguimento do processo assim que esgotados os prazos previstos no § 4º.

8 Artigo 18- As decisões do Tribunal Marítimo quanto à matéria técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se presumem certas, sendo, porém, suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário.