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Violência psicológica e as recentes inovações legislativas na debutante Lei Maria da Penha

segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Atualizado às 07:49

A violência de gênero, na medida em que está intimamente ligada a relação da mulher com o masculino, e seu papel (desigual) dentro do sistema social, constitui-se uma violação dos direitos humanos.

Nesse contexto, a violência de gênero pode ser revelada sob diversas formas, desde que se envolva como paradigma o papel social culturalmente e historicamente relegado a mulher, a exemplo da violência doméstica, violência obstétrica, violência sexual, tráfico de mulheres e assédio sexual.

Com efeito, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, o que pode ocorrer no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregada. Família, nos termos da Lei Maria da Penha, pode ser compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa.

A violência doméstica pode ser caracterizada, ainda, em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação e tais relações pessoais independem de orientação sexual.

A lei 11.340. de 7 de agosto de 2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha, possui em seu corpo o acolhimento dos tratados internacionais de direitos humanos das mulheres com a conceituação da violência das mulheres como violência de gênero e completa, neste mês de agosto, 15 anos de existência.

É bem de ver que a referida lei representa uma das maiores conquistas do movimento de mulheres, contudo, sofreu inúmeras críticas por supostamente provocar a expansão da perspectiva punitivista, valendo-se do Direito Penal, instrumento de perspectiva patriarcal que, por vezes, menospreza e revitimiza mulheres em situação de violência. Sem dúvida é um tema que ainda divide a comunidade jurídica e os movimentos feministas.

Mas será que é possível renunciar à reprimenda penal sem incorrer em violações de direitos fundamentais para realizar o enfrentamento da violência, tida como um fenômeno que vitimiza mulheres globalmente?

Vale lembrar, nesse sentido, que o fundamento da dignidade da pessoa  humana deve ser um paradigma imprescindível para se operar no âmbito do Sistema Penal no enfrentamento a  violência doméstica.

Conforme bem pontua a doutrina especializada, não se está simplesmente diante de uma tensão entre o direito de punir do Estado e o direito de liberdade do réu. Com efeito, a partir da Lei Maria da Penha, edificou-se mecanismos que levaram para o Sistema de Justiça a necessária proteção à mulher vítima de violência doméstica, tornando assim as demandas dessa natureza muito mais complexas, vez que se tem de um lado o direito de punir do Estado, de outro os direitos fundamentais do réu investigado, e, ainda, os direitos fundamentais da vítima.1

O fato é que a Lei Maria da Penha é um diploma legal originado pelo triunfo da luta de movimentos feministas que levaram até o âmbito internacional o pleito de condenação do Estado Brasileiro pela grave violação de direitos humanos ocorridas no caso concreto que envolveu a pessoa Maria da Penha. Ao longo desse tempo, diversas alterações legislativas foram realizadas com o objetivo de aperfeiçoar o seu escopo, bem como adaptar o texto às atuais demandas sociais e políticas.

Dentre as alterações legislativas mais recentes no corpo textual desta Lei, podemos citar as seguintes: a lei 13.827/19 estabeleceu  a adoção de medidas protetivas de urgência e o afastamento do agressor do lar pela autoridade policial, delegada ou delegado de polícia,  bem como a possibilidade do registro da medida protetiva de urgência ser realizada no banco de dados mantido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ); a lei 13.836/19 tornou obrigatório informar quando a mulher vítima de agressão doméstica ou familiar é pessoa com deficiência; as leis 13.882/19 e 13.880/19 incluíram a garantia de matrícula dos dependentes da mulher vítima de violência doméstica e familiar em instituição de educação básica mais próxima de seu domicílio, bem como determinou a apreensão de arma de fogo sob posse de agressor em casos de violência doméstica; a lei 13.894/19, por sua vez,  previu a competência dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher para a ação de divórcio, separação, anulação de casamento ou dissolução de união estável e também estabeleceu a prioridade de tramitação para os feitos judiciais em que figure como parte vítima de violência doméstica e familiar.

Convém destacar que a lei 13.984/20 estabeleceu a obrigatoriedade do agressor em frequentar centros de educação e reabilitação, bem como realizar acompanhamento psicossocial. Trata-se de uma relevante medida que busca meios alheios ao Direito Penal para a abordagem do agressor, com o fito de estabelecer uma recomposição dos danos.

Por fim, em 2021, foram editadas  quatro alterações importantes:  a lei 14.132/21, que incluiu artigo no Código Penal (CP) para tipificar os crimes de perseguição (stalking);  a lei 14.149/21, que institui o Formulário Nacional de Avaliação de Risco, com o intuito de prevenir feminicídios; a lei 14.164/21 que alterou  a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional para incluir conteúdo sobre a prevenção à violência contra a mulher nos currículos da educação básica, além de instituir a Semana Escolar de Combate à violência contra a Mulher, a ser celebrada todos os anos no mês de março.

A mais recente alteração legislativa foi proporcionada pela lei 14.188/2021, sancionada em julho deste ano, a qual, além de definir o programa de cooperação Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica como uma das medidas de enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher e instituir medida protetiva em face da  violência psicológica no texto da Lei Maria da Penha, trouxe importantes inovações legais  no âmbito do nosso Código Penal Brasileiro.

É cediço que a Lei Maria da Penha não possui delitos instituídos, a maioria das condutas reprimidas penalmente estão previstas na legislação comum do CPB. Neste contexto, no corpo do Código Penal, a primeira alteração que merece destaque é a inclusão do § 13º no art. 129 que  alterou a modalidade da pena da lesão corporal simples cometida contra a mulher por razões da condição do sexo feminino,  de modo que a pena passa agora  a ser de  reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro anos).

Para a interpretação correta deste dispositivo, considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve a violência doméstica e familiar, bem como menosprezo ou discriminação à condição de mulher, tal como ocorre na definição da ocorrência do feminicídio. Trata-se, portanto, de uma ferramenta analítica para estabelecer uma análise gendrada da conduta delitiva.

A outra alteração, muito esperada pela comunidade feminista, bem como pelas mulheres vitimadas por tal prática, é a tipificação da violência psicológica.

Sabemos que dentre as formas de violência doméstica abrangidas, além da violência psicológica, estão a violência física propriamente dita, a violência sexual, violência patrimonial e a violência moral.

A violência psicológica, nos termos exatos da Lei Maria da Penha, é aquela  entendida como qualquer conduta que  cause dano emocional e diminuição da autoestima da vítima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação.

Este conceito já existia na LMP desde o seu advento, tendo havido uma alteração legislativa deste conceito em 2018 para inclusão da violação da intimidade como mais uma faceta deste tipo de violência.Agora, possuímos um dispositivo penal que tipifica a conduta  de violência psicológica contra a mulher.

Este delito está inserido no capítulo de crimes contra a liberdade individual e encontra-se no rol de delitos de menor potencial ofensivo por conta da sua pena máxima cominada. Convém, relembrar, contudo, que a suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha, ainda que estejam no texto do Código Penal, nos termos da súmula 536 do STJ.

Vejamos o que informa o texto:

"Violência psicológica contra a mulher

Art. 147-B. Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação:

Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave."

Podemos verificar, deste modo, que o artigo 147-B dispõe sobre variadas práticas que possuem o condão de perturbar o pleno desenvolvimento da mulher e violam a sua dignidade de pessoa humana. Em um contexto anterior a esta inovação legislativa, os delitos de Ameaça, Injuria, Calunia e Difamação já eram anteriormente entendidos como modalidades de violência psicológica. Hoje, com a tipificação, temos um dispositivo próprio com outras variadas condutas que podem se amoldar a esta modalidade de violência de gênero.

 A violência psicológica é uma  prática que,  apesar de ser extremamente danosa, nem sempre é facilmente identificável, afinal, comportamentos questionadores em relação às mulheres estão enraizados estruturalmente na sociedade brasileira, ainda predominantemente misógina e machista

Por vezes, a mulher vítima desta prática prefere silenciar para evitar maiores conflitos, incorrendo em dúvida sobre a sua sanidade mental, tendo sua autoconfiança minada de maneira sutil e gradual. Trata-se de um tipo de violência de gênero difícil de caracterizar e materializar em forma de denúncia, eis que o liame de prova muitas vezes encontra-se circunscrito à esfera de subjetividade da vítima.

Além do exemplo clássico encontrado no cotidiano da convivência afetiva nos relacionamentos ditos amorosos, para exemplificar a prática também é possível pensar numa situação de abuso psicológico, em que comumente as atitudes da vítima são postas à prova.De modo que há um menosprezo e invisibilidade do sofrimento psíquico de mulheres que são vítimas da violência psicológica.

Por vezes, a mulher vítima deste tipo de abuso informa ser constrangida no que toca a sua liberdade sexual, sendo compelida pelo parceiro a ter relações sexuais através de cobranças incisivas;  outras relatam críticas e humilhações em relação a sua forma física, inclusive sendo submetidas a constrangimentos para que realizem procedimentos estéticos ou façam atividades físicas a contragosto. Outra modalidade muito denunciada pelas mulheres é a proibição de ver ou conversar com os amigos e familiares, o que inclui, ainda,  o controle de senhas de celulares, e-mails, redes sociais, bem como invasão de privacidade com o monitoramento de conversas privadas. Existe também a proibição de usar vestimentas.

Estes são exemplos de práticas corriqueiras em relacionamentos abusivos, de modo que em muitos contextos dificilmente a mulher consegue identificar a situação em que se encontra, ou possui abertura para pedir socorro.Os abusadores costumam chamar as parceiras de loucas ou minam a sua autoestima afirmando que as vítimas são pessoas de trato difícil, manipulando, inclusive a opinião de familiares. Contam com a cumplicidade de uma sociedade machista e patriarcal, que minimiza a importância de valorizar a saúde mental e qualidade de vida da mulher.

A busca da rede que envolve o Sistema de Justiça para obter acolhimento e prestação jurisdicional ou administrativa para esse tipo de conflito nem sempre é exitosa. A tendência é desacreditar e não dar continuidade às investigações sobre questões que permeiam o universo psíquico e íntimo da vítima.

Conforme pontua a criminologia feminista2, é bem de ver que a preocupação com as vítimas origina respostas criminológicas ou políticas criminais que apregoam, por um lado, a negação do uso do sistema penal, e por outro sua utilização de forma conectada às necessidades da Comunidade ou, ainda, seu uso para por fim à violência de gênero.

Contudo, historicamente, a luta feminista incorporada ao universo jurídico trouxe como pauta a união e diálogo entre as esferas pública e privada.  A experiência prática vivenciada no cotidiano de enfrentamento às violências de gênero evidenciou a necessidade de tornar político o que antes pertencia à esfera pessoal e subjetiva das mulheres ou que estariam sujeitas ao controle social da família, a exemplo dos conflitos domésticos. Esse tipo de controle, ainda residual na nossa estrutura social, sedimenta a dificuldade de levar a questão para o âmbito da rede de enfrentamento à violência pois trata-se de um delito considerado invisível, justamente pela sua natureza ontológica que consiste em desacreditar a narrativa apresentada pela pessoa violentada psicologicamente.

A tipificação da prática constitui-se em um avanço, na medida em que materializa e exemplifica condutas abusivas que antes estavam relegadas a um limbo de invisibilidade.

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1 Nicolitt, André; ABDALA, Mayara Nicolitt; SILVA, Lais Damasceno. Violência Doméstica: Estudos e comentários à Lei Maria da Penha- Belo Horizonte. Editora D' Plácido.

2 Campos, Carmen Hein de. Criminologia feminista: teoria feminista e crítica às criminologias. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2017.