COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Olhares Interseccionais >
  4. Dentro de mim, cada vez mais negro*

Dentro de mim, cada vez mais negro*

segunda-feira, 5 de dezembro de 2022

Atualizado às 07:44

"Como se fosse a noite, cê vê tudo preto
Como fosse um blackout, cê vê tudo preto
São meus manos, minhas minas
Meus irmãos, minhas irmãs, yeah
O mundo é nosso, hã
Tipo a noite, cê vê tudo preto
Tipo um blackout, cê vê tudo preto
São cantos de esquinas, de reis e rainhas
Yeah, o mundo é nosso"

(Djonga)

Fui lá. Perdi o medo. Encontrei-me, depois de longo tempo, no espelho que precisava. Ela, mergulhada na tintura reluzente de sua pele, poderia me devolver à beleza da noite. Trêmulo, quase virginal. Apesar de outras experiências, nada me valeria. Nada. Tinha medo de falar comigo mesmo sobre a raça que demarcava meus passos. Naquela ocasião, tudo era negro. Do sentir ao pensar.  Mas a própria recusa de si, escondida em entranhas emocionais ainda indecifráveis, tentaria cumprir o seu papel: afaste-se dos seus e desafie-se para beijar o corpo branco. A "joia rara" da pele branca, de valor autenticamente falso, custa caro a quem se insere, sendo negro/a, na classe média. De alguma maneira, o incenso da brancura parece esfumaçar nossos desejos, embaçar a visão e oferecer uma sensação de pertinência humana que, mais cedo ou mais tarde, se rachará diante de um ato racista. Às vezes, o fogo ultrajante da palavra despretensiosa vem do branco "amigo" ou da branca "amiga", que nos permitiu, na dança inter-racial dos corpos, conhecer uma tatuagem diferente: o toque esperado da mão branca.

Dessa vez não. Disse não ao não. E a lembrança poética que vem daquela juventude descoberta, da negrura nervura sendo exposta, consta no verso: nossos corpos estenderam-se na noite, no breu íntimo de um prazer alegremente negro. A minha boca salivou. Um cheiro nosso, como se nos frequentássemos há mais tempo,  lançava uma pequena e morna pergunta no ar reduzido daquele ambiente: haveria outros momentos  assim? Não posso falar por você, não seria justo. A experiência nos toca diferente. Também havia um abismo de classe que, embora não impedisse o querer daquele momento, definiu trajetórias e desencontros.

Houve ali, porém, uma potencialidade negra germinativa. A experiência sensorial me empurrou para novos encontros, definidos pela regência de nossa pele. Sim, certamente nos embrenhamos em outros lençóis - de pele branca -, mas talvez não haja nisso um mal em si. A questão é desejar sempre que todos os lençóis sejam brancos e acreditar sempre que só lençóis brancos podem ser aveludados e trazer paz ao nosso sono.

Depois disso, chegou até as minhas mãos o livro de Neusa Santos Souza, o Tornar-se Negro1. Há mais de 15 anos que a fotocópia desse livro me levou a conhecer narrativas psicanalíticas sobre experiências que envolvem a subjetividade negra. E no futuro próximo, hoje passado, houve um reencontro com a minha adolescência.  Ela, com quem nada tive, colou as suas mãos pretas, de uma tintura retinta, sobre a enorme barriga de uma das donas da minha cabeça, a minha esposa, grávida de sete meses. Suspeita de parto precipitado. Foi uma agonia aquele dia.  Ainda assim, deu tempo de gravar na memória aquela cena: ela, com um azeviche que parecia soltar de sua pele em direção à minha consciência, me chamou pelo nome, me disse para ficar tranquilo, que teria uma família bonita. Sorriu, me dizendo que era chefe da enfermagem daquele hospital. Pensei sem malícia, resgatando uma história em neblina:  mas por que disse um silencioso não a você naquela época?  Não me doía a história não vivida.  Somos feitos de não vivências. Somos feitos de povoados de imaginações. Engraçado, recordo que, ali no hospital, estava lendo Na Minha Pele, de Lázaro Ramos, esse talento que nos guia sobre muitas possibilidades, inclusive no amor.

O que me doía era saber, mesmo depois de ler Neusa Santos Souza, que minha recusa a viver uma paixão preta simbolizava meu descompasso de viver em um mundo branco. Era o despedaçar sutil e inevitável do meu íntimo Ilê Aiyê, causado por piadas endereçadas ao meu cabelo, à minha cor, além daquela mania constrangedora de brancos quererem predestinar a vida afetiva e sexual de negros, dizendo-lhes: você só pode ficar com preto/as, neguinho/a. A questão estava posta:  quebrar o sistema, conquistando o mundo branco. Impossível! Caminho errado! Ainda bem que consegui visualizar placas de aviso com essas mensagens, instaladas no meu coração por algumas decepções inter-raciais. 

A fundação do desejo humano é originariamente branca.  Consegue visualizar a metáfora do Éden com um Adão e Eva negros?

Por alguma sorte, construí naquela época sólidas amizades negras, todos, coincidentemente, filhos/as de divorciados/as. O prazer de aquilombar-se, embora não conhecesse essa expressão, me fez muito bem. Sentia-me tocado, ao participar de alguns concursos de poesia, pelas lanças sustentadas por Zumbi e Dandara de Palmares. Pode haver vida e esperança na palavra entoada por um negro/a. Do rap, cantigas de roda, a teses de doutorado.

É um papo profundo tudo isso, requer tempo, estômago mental e emocional. Nem por isso deve ser adiado. Nem mesmo o medo de ser mal interpretado deve nos fazer evitar colocar a seguinte pergunta: podemos (re)orientar racialmente nossos afetos-desejos? Não consigo digerir bem a informação de que o amor não tem cor. Ou que negros e brancos, enquanto "opostos", se atraem afetivamente. Nesta última frase o raciocínio binário é uma hipérbole. A questão não é recusar, condenar, abominar nosso desejos-afetos por corpos brancos. Assumi-los talvez seja o primeiro passo de uma redescoberta existencial negra. Aqui no Brasil esses corpos fazem nossas cabeças sim, a mídia é uma das forças responsáveis pelo arquétipo branco de nossas vontades. Apesar de casado com uma negra, já perambulei por avenidas do prazer branco. E ainda posso assim proceder. A sensorialidade branca é um mundo paralelo dentro da cabeça preta.

Algo mudou, e pode mudar mais.

Depois de leituras raciais, dessas e tantas outras experiências que continuam aqui escondidas comigo, sinto que os meus desejos-afetos têm retomado uma vitalidade superlativa que quer abraçar os da minha pele. Dar mais risada com eles/elas. Meus olhos crescem em vida quando veem uma negrura-vida assumir que "a minha pele de ébano é/a minha alma nua/espalhando a luz do sol/espelhando a luz da lua/tem a plumagem da noite/e a liberdade da rua/minha pele é linguagem (...)."2

A tua histórica resistência racial, querida pele preta, é o beijo da insurgência que hoje me fascina.

Que nossa subjetividade permaneça sendo um Ilê Aiyê.  Que a alucinação pela brancura, implantada na memória coletiva, não consiga quebrar a magia preta que nossos encontros afetivos podem favorecer. Acredito que a tomada de consciência racial pode reorientar nossos desejos-afetos, dando-nos lucidez nas escolhas de apertos de mão e abraços prolongados, inclusive os que se debruçam sobre a cama do prazer. Gozar também é uma atitude racial. 

Dentro de mim, cada vez mais negro(s), no desafio constante de nas histórias que chegam compreender a plenitude da palavra ancestral. É assim que meu coração bate. E o seu?

__________

* Advirto ao leitor/a que este texto não pretende estabelecer nenhuma generalização sobre as formas de afetividade entre pessoas negras ou negras e brancas (inter-racialidade). É apenas um texto que revela um ponto de vista do autor sobre o tema da subjetividade inte-relacional negra, a partir de suas experiências de vida e de sua condição de homem negro inserido na classe média. Há questões extremamente complexas que tocam esse tema, em especial quando se aborda a solidão da mulher negra e da pessoa LGBTQIAP+, algo que se agrava emocionalmente nos espaços periféricos da sociedade.

1 Na introdução desse livro, Neusa Santos diz que "uma das formas de exercer a autonomia é possuir um discurso sobre si mesmo. Discurso que se faz muito mais significativo quanto mais fundamentado no conhecimento concreto da realidade. Este livro representa meu anseio e tentativa de elaborar um gênero de conhecimento que viabilize a construção de um discurso do negro sobre o negro, no que tange à sua emocionalidade. Ele é um olhar que se volta em direção à experiência de se ser negro numa sociedade branca. De classe e ideologia dominantes brancas. De estética e comportamentos brancos. De exigências e expectativas brancas. Esse olhar se detém, particularmente, sobre a experiência emocional do negro que, vivendo nessa sociedade, responde positivamente ao apelo da ascensão social, o que implica a decisiva conquista de valores, status e prerrogativas brancos". (SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro. Rio de Janeiro, Zahar, 2021. p. 45.

2 Trecho da música Alegria da Cidade, cuja composição é de Jorge Portugal e Lazzo Matumbi.