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8 de janeiro e os branco-golpistas: Como o racismo organiza e sustenta a democracia brasileira

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

Atualizado às 07:38

Não importa o que o preto porta
Pele preta é porta
Pra porrada, pro porrete, pro projétil
Polícia prende
Policia preme
E pode até pisotear
Porte o preto o que portar
Precisa apenas ser preto

Vinícius Assumpção

Cena 01. Dierson Gomes da Silva foi enterrado no cemitério da Pechincha, doída ironia para alguém cuja vida tem valor nenhum - aos olhos do Estado. "Portava" um pedaço de madeira pendurado numa bandoleira, instrumento afetivo que lhe acompanhava e ajudava a lidar com a dura realidade de trabalhador da reciclagem, me permito supor. Sentindo-se ameaçada durante mais uma operação "contra o tráfico" na Cidade de Deus, a polícia (e tanta gente antes; tanta gente depois) puxa o gatilho e mata Dierson, atirando pelas costas. Difícil não recordar que outros artefatos igualmente perigosos já foram confundidos com armas letais e despertaram a pronta reação policial; foram eles: vassoura, macaco hidráulico, furadeira, skate, guarda-chuva, e muleta1.

Como toda tragédia é pouca pra nosso povo, o atestado de óbito de Dierson foi emitido sem carimbo ou assinatura médicos2; assim, o sepultamento, adiado pelo descuido e descaso, coincidiu com o aniversário do seu filho mais velho, que lamentou a perda: "Eu sinto dor, não sei explicar a dor que sinto. Tudo que um filho espera é passar o aniversário com os pais. E tiraram isso de mim, mataram meu pai por um pedaço de madeira". Sua outra declaração é um lugar-comum entristecedor que expõe a violência sistemática que nos abate: "Fizeram uma covardia dessas com um homem que nunca teve envolvimento nenhum. Ele ainda estava de costas"3. É a rotineira e injusta explicação que precisamos dar, contando, na mídia sensacionalista que não enxuga nossas lágrimas, que mais uma pessoa preta vitimada pela polícia era inocente, não tinha passagem, não tinha antecedentes. Lida do avesso, a mensagem é que, se fossem ligadas ao crime, a execução seria seu destino certo - embora a pena de morte seja formalmente vedada no Brasil.

Cena 02.  Vestem um verde e amarelo incompatível com a exortação renitente à nação estadunidense e aos seus vínculos genealógicos com a aristocracia italiana, portuguesa, espanhola e afins. Dizem ser patriotas e assim marcham, pelas vias públicas, exclamando "Deus, Pátria, família e liberdade", uma mescla de lema integralista, que deveria causar alarde e preocupação, com pedido de salvo-conduto - prontamente atendido pela Polícia Militar. Ela que os permitiu caminhar despreocupadamente pelo plano-piloto; mais: os escoltou e assegurou tranquila chegada a seu destino4. Houve, inclusive, agentes da lei - tão estruturalmente condicionados à repressão viril - que pararam para conversar e fotografar os "manifestantes"5.

Os três Poderes foram atingidos violentamente, imagética e materialmente. Como se não bastasse, em si mesma, a nefasta simbologia da invasão ao Planalto e ao Congresso, a turba fez questão de depredar Cavalcanti, Giorgi, Brecheret..6. "A crise é também estética", não há dúvidas. E no Supremo Tribunal Federal, confirmando que o bordão "Deus acima de tudo" sempre foi um conclame autoritarista, e não uma declaração de fé, arrancaram até mesmo a imagem de Cristo. Cidadãos de bem acima de tudo.

Em terra de "bandido bom é bandido morto", é a cor da pele que dita quem pode morrer. Este arremedo de democracia em que estamos imersos - bom a ponto de não querermos pior e insuficiente para a dignidade do viver negro - esteve exposto (uma vez mais) no último 8 de janeiro. Os  cidadãos de bem, figura mitológica tão presente, tripudiaram das "sólidas instituições", ostentando ao mundo o manto da imunidade que acompanha o ser branco. A novidade está no extremo, no acinte supremo, na prepotência de saberem-se acima da lei mesmo quando não há argumento que justifique seus atos de vandalismo, depredação, tentativa de ruptura com o Estado democrático. Puro capricho e demonstração de força.

Clamarão por direitos humanos e o escárnio estará também aí, em usufruírem daquilo a que são contrários, ao que dizem ser "cartilha dos bandidos", "benefício aos comunistas" e outros espantalhos retóricos que quase escondem suas vísceras autoritário-racistas. Os socorrerá o privilégio de serem vítimas7, de se dizerem maltratados e serem ouvidos, algo que falta amiúde nas audiências de custódia, na favela, nas delegacias e salas de espancamento neste Brasil.

O racismo organiza e sustenta a democracia brasileira. Os atos branco-golpistas desnudam ainda mais sua consciência de um poder pretensa e possivelmente ilimitado, capaz de deixar ilesas mais de mil pessoas que dilapidam o patrimônio publico e carcomem a civilidade, enquanto Dierson jaz no túmulo da barbárie naturalizada contra nós, negros e negras.

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Vassoura, muleta, guarda-chuva, skate: enganos que viraram tragédias.

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7 Ana Flauzina e Felipe Freitas, sempre ela e ele, em "Do paradoxal privilégio de ser vítima".