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"Sim, nós chegamos até aqui e viemos para ficar: Uma carta aberta a todas as meninas e mulheres negras"

segunda-feira, 11 de março de 2024

Atualizado às 10:14

Às vésperas do Dia Internacional da Mulher, comemorado no dia 8 de março, o Tribunal Regional do Trabalho da 3ª região, realizou um evento inédito, chamado "Com a palavra, as mulheres negras do TRT3", que contou com a participação de duas magistradas, uma estagiária, uma funcionária terceirizada e duas servidoras do tribunal, todas negras.

Mesmo não acreditando em coincidências, não se pode deixar de reconhecer que iniciativas como essas nos mostram que se tem inaugurado uma nova era, em que todos nós necessitaremos encarar nossos preconceitos e construir uma nova perspectiva em relação as pessoas que, de algum modo, são vítimas de preconceito e discriminação, por isso compus aceitei compor a mesa como uma daquelas duas magistradas no evento.

O racismo se encontra fortemente enraizado em nossa sociedade e seus reflexos são também sentidos no nosso Poder Judiciário. Os dados nacionais que constam do Diagnóstico Étnico-Racial no Poder Judiciário revelam que 83,9% de magistrados brancos e 14,5% de pretos e pardos; 68,3% de servidores brancos e 29,1% de servidores pretos e pardos. Se comparados aos dados do IBGE, em que a população brasileira é composta de 56% de negros, chegamos à conclusão de que o racismo estrutural não é apenas uma expressão utilizada aleatoriamente por ativistas negros, mas uma dura e cruel realidade que necessita urgentemente ser modificada.

Para que as necessárias mudanças ocorram, o primeiro passo é que nós, como sociedade e como integrantes do Poder Judiciário, admitamos não apenas que o racismo existe no Brasil, abandonando de vez o mito da democracia racial, como também que vivemos em uma sociedade racialmente estruturada, em que pessoas negras, até os dias de hoje, são vistas como inferiores, na imagem persistente que anima o imaginário coletivo de que determinados lugares na sociedade devem ser naturalmente ocupados por pessoas brancas.

Essa ideia resistente e persistente remonta à época da colonização e da escravização, em que por interesses econômicos, os europeus sequestraram e escravizaram milhares de africanos por quase 400 anos e justificaram a forma desumana com que implantaram a submissão violenta de seres humanos a partir de teorias e conceitos sobre raça, apropriados e mal adaptados da zoobotânica. Criou-se e propagou-se por séculos a teoria da inferioridade da raça negra, teoria essa que não encontra respaldo científico e que só se manteve como verdade até os dias de hoje, inicialmente por interesses puramente econômicos e, posteriormente, para também manter a estrutura de privilégios construída pela chamada branquitude.

Se é bem verdade que ninguém nasce racista. Torna-se racista ao longo dos anos. Igualmente, ninguém nasce sabendo-se e sentindo-se negro, torna-se um ao longo da vida.

Como mulher e negra, já fui vítima do machismo e do racismo ao longo da minha carreira de juíza em inúmeras oportunidades, desde a forma mais sutil até aquela mais evidente e agressiva, o que mostra que a ascensão social de uma pessoa negra não lhes blinda do racismo.

Só me descobri "diferente" por volta dos 5 ou 6 anos, quando fui levada para alisar o cabelo pela primeira vez. Ali comecei a perceber que meu cabelo, de fato, era "feio", "duro" e "ruim", como tantas vezes ouvi na escola. Era preciso dar um jeito para que ele ficasse "liso", "sedoso" e "comportado", atendendo aos padrões vigentes. Antes disso, já sofria com os penteados que pretendiam domesticá-lo. O ritual era cansativo, sobretudo para uma criança. Horas no salão, queimaduras no couro cabeludo, secador de cabelo, bobes, toucas, cremes inadequados. E bastava agir como uma criança, suar ou entrar na piscina, para o efeito transformador desaparecer.

Quando a televisão tornou-se companheira das tardes após a escola, tive a certeza absoluta de que ter a minha aparência, com traços da minha ancestralidade africana, não era algo bom, nem de que eu devesse me orgulhar. Novelas, programas infantis e propagandas reforçavam o fenótipo ideal doutrinado diariamente e durante anos, sempre o mais próximo da "raça" branca. As mocinhas das telenovelas, as crianças e apresentadores dos programas infantis, os apresentadores dos telejornais, os ricos e poderosos das novelas, todos eles eram invariavelmente brancos. Os negros ocupavam as posições inferiores e tinham por função apenas servir.

A primeira novela que acompanhei foi "A Escrava Isaura". Uma protagonista branca escravizada, boa moça, que tocava piano e ganhou os corações de dois senhores de engenho. Nem mesmo a escravizada que teve um final feliz na novela era negra.

Como não internalizar o sentimento de menor valor? O mundo ao redor parecia apontar-me o dedo gritando: "você é inferior porque é negra".

Na escola, desde sempre, era evidente a discriminação e o tratamento negativamente diferenciado concedido aos alunos afrodescendentes. A invisibilidade era patente. Sem contar que ao longo da minha vida escolar foram poucas as professoras negras (me lembro de somente duas), sendo quase impossível ter como referência positiva alguém como eu e minha família.

Em casa, o tema racismo não era abordado e a mensagem subliminar repassada era a de que a cor da pele definia o nosso destino: deveríamos ser simpáticos, agradáveis e gratos àqueles que nos aceitavam e nos davam oportunidades de crescimento.

Indignação, revolta e questionamento sobre o estado das coisas não pareciam saídas possíveis até há bem pouco tempo. O trabalho de desvalorização, inferiorização e subalternidade, feito por séculos, foi muito bem-sucedido e levou anos para ser, por mim, uma mulher negra, percebido, questionado e contestado.

Agarrei-me aos estudos com toda determinação. O conhecimento seria minha tábua de salvação. Por meio dele, ganhei confiança e alcancei um espaço um pouco mais visível. Se não era notada naturalmente, passei a sê-lo  por meu desempenho escolar.

Sobrevivi, não sem cicatrizes e feridas que vez por outra se abrem. Só agora, passados tantos anos, pude compreender os meandros do racismo e suas consequências nefastas. Cheguei a acreditar durante muito tempo que a discriminação que eu sofria decorria de minha classe social, para mascarar a dor profunda causada pelo sentimento coletivo de que existem raças superiores e raças inferiores.

Foi com muita resiliência e determinação que superei os percalços da vida e cheguei até aqui. O fato de ser afrodescendente e todas as suas implicações, tornou, sim, o meu caminho, muito mais longo e difícil.

A intelectual e ativista negra Lélia Gonzalez, afirmou que os negros vão sofrendo um branqueamento ao ascenderem na vida. Segundo ela, quanto mais o negro ocupa espaços antes destinados exclusivamente aos brancos, mais solitário em termos raciais ele fica, sofrendo influência direta do universo da branquitude e deixando de lado suas raízes. Ela própria reconheceu que entrou em um ciclo de embranquecimento a partir do ingresso na faculdade, dele saindo apenas após ser chamada à realidade por um episódio grave de racismo.

Como mulher negra, eu tenho que concordar com ela. E no meu caso, também, foi um episódio doloroso que permitiu o resgate das minhas origens e a vontade de lutar, para que outras meninas afrodescendentes de cabelos crespos não tenham que passar pelo que eu passei.

A luta das mulheres negras no Poder Judiciário e em tantos ambientes não é uma luta baseada na vitimização, embora seja evidente que, sim, somos vítimas do sistema racialmente estruturado, mas é a luta altiva daquelas que reconhecem sua ancestralidade, dela tem orgulho e reivindicam o direito de ocupar todo e qualquer espaço.

Sim, nós chegamos até aqui e viemos para ficar."