COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas

PI Migalhas

Temas relativos à Propriedade Intelectual.

Luciano Andrade Pinheiro
segunda-feira, 16 de maio de 2016

A tutela do esforço pelo Direito Autoral

Luciano Andrade Pinheiro No último dia 6 de maio, o sítio do Tribunal Superior do Trabalho na internet divulgou notícia de um julgamento ocorrido na Terceira Turma do Tribunal, que envolveu uma discussão interessante na seara do Direito Autoral. Travou-se no processo uma celeuma sobre o que caracteriza uma obra intelectual protegida pelo direito de autor e o que confere ao titular as prerrogativas inerentes à autoria. Narra a notícia, que uma trabalhadora do ramo editorial de apostilas pleiteava na Justiça do Trabalho a condenação de sua empregadora por danos materiais e morais advindos de seu alegado trabalho intelectual na organização de apostilas. Segundo a notícia, que pode ser conferida aqui, o trabalho dela era coletar as apostilas dos professores e reuni-las em uma publicação. Entendeu a empregada, que era titular do direito de ter seu nome publicado na veiculação das obras e ainda uma compensação financeira pela venda da compilação. O Tribunal Regional do Trabalho da 9ª região confirmou a sentença, que julgou improcedente o pedido, entendendo que a reclamante desenvolveu trabalho eminentemente técnico, não reunindo, em outras palavras, esforço intelectual para caracterizá-la com autora ou co-autora das obras. O Tribunal Superior do Trabalho, por sua vez, no ponto específico do recurso de revista que discutia o Direito Autoral, não conheceu do apelo por entender que a modificação da decisão era vedada pela súmula 126, posto que importaria em revolvimento de fatos e provas. O caso chama atenção pela precisão conceitual que foi decidido. Apesar de incomuns na Justiça do Trabalho, os processos envolvendo direito autoral do trabalhador encerram discussões interessantes. Neste, como visto, o debate é qual o tipo de "trabalho" torna a pessoa titular de direito autoral. Ou melhor, qual o tipo de esforço é capaz de conceber uma obra e gerar direito. Vale como reforço para a aprendizagem, relembrar uma decisão da Suprema Corte Americana que é paradigmática para o Direito Autoral. Trata-se do caso julgado em 1991 envolvendo duas empresas do ramo de telefonia, conhecido nos Estados Unidos e no resto do mundo que se interessa pelo direito de autor como Feist v. Rural Telephonic. A Rural Telephonic Service Company publicava um catálogo com nome, endereço e números de telefone da zona rural de uma determinada área no estado do Kansas nos Estados Unidos. A Feist Publications, empresa que atuava no mesmo mercado com abrangência geográfica maior, tentou obter licença de uso da lista telefônica elaborada pela Rural. Tal lista faria parte de outra maior editada pela Feist. A Rural negou a licença, mas percebeu que no ano seguinte a Feist passou a imprimir, coincidentemente, lista bastante parecida com a sua. A Rural demandou judicialmente contra a Feist por suposta violação de copyright - o nosso equivalente direito autoral, com algumas diferenças. Duas Cortes inferiores julgaram o pedido procedente, mas o destino da ação foi a Suprema Corte dos Estados Unidos que aceitou julgar o caso e estabeleceu uma linha de decidir, que é a mesma adotada no julgamento ocorrido no processo brasileiro mencionado acima. A suprema corte americana decidiu que uma compilação não é, por si só, objeto de proteção pelo copyright, afirmando ser imprescindível um resultado original na coordenação e disposição dos dados, posto não haver proteção sobre fatos ou ideias. Disse mais, instituiu que o investimento na produção de uma compilação por maior que seja, não é suficiente para gerar proteção. Cunhou a expressão swet of the brow, literalmente "suor do rosto", para afirmar que o esforço físico e o dispêndio de dinheiro para criar uma compilação não são requisitos para transformar alguém em titular de direitos na seara do copyright. O direito brasileiro segue a mesma linha. O esforço físico, o dispêndio de tempo e de dinheiro não são capazes, por si, de transformar alguém em titular de direito autoral. Para nós, uma obra somente é assim considerada e, portanto, capaz de gerar direitos se, na sua concepção, for identificada um esforço intelectual original e criativo. A originalidade, contudo, não é sinônimo de novidade. A obra pode ser original, mas não necessariamente nova. Novidade é requisito para a obtenção dos direitos relativos ao ramo da propriedade industrial (marcas e patentes) e não do direito autoral. Para uma obra ser original, afinal, importa saber se ela tem traços característicos próprios que a diferenciem de uma pré-existente. Se dois pintores que utilizam a mesma técnica, põem-se diante da mesma paisagem e, na mesma hora, pintam cada um a sua tela, teremos o nascimento de duas obras igualmente protegidas pelo direito autoral. Não importa se o tema é recorrente, o que importa é a peculiaridade de cada obra. Cada tela terá sua identidade, suas cores, seus traços. Há graus de originalidade. Uma criação pode conter mais ou menos originalidade de acordo com a capacidade criativa do autor, mas isso não importará em mais ou menos proteção. Para haver proteção autoral plena bastará que não seja cópia fiel ou disfarçada de outra anterior. O trabalho pode ter um mínimo de originalidade e receberá, sem restrições, todas as faculdades inerentes à autoria. Ter originalidade, explica Carlos Alberto Bittar, é possuir "componentes individualizadores de tal sorte a não se confundir com outra preexistente" (Bittar, p. 23). A análise para a certificação da tutela autoral com relação à originalidade vai depender da natureza da obra. Se a obra é musical a originalidade deve revelar-se na melodia, se científica na forma do texto, se de artes plásticas na singularidade dos traços adotados, apenas para citar alguns exemplos. Já com relação à criatividade no esforço intelectual, como se pode explicar que um telegrama de despedida não é protegido pelo direito autoral, enquanto que o poema A Carta de Manoel Bandeira é digno de receber o status de criação intelectual e a gozar de toda proteção da legislação autoral? É justamente nesse requisito que reside a resposta. Aqui se explica, enfim, que um ato mecânico de repetição não pode ser enquadrado como obra intelectual protegida pelo direito autoral por faltar-lhe um esforço de criador mínimo exigível. A criatividade não envolve análise meritória do autor ou de valor acerca da obra. Cabe apenas à crítica especializada, aos literatos e até ao público decidir se uma obra será ou não valorizada, se ela é boa ou ruim, se durará ou se terá uma passagem efêmera, se merecerá, enfim, ser lembrada ou cairá no esquecimento no mesmo rompante em que apareceu (Lipszyc, p. 66). O Direito é indiferente à fama ou à formação do autor, é irrelevante avaliação subjetiva de ser a obra boa ou ruim. Para o sistema autoral, o mérito não importa. Não se pode valer-se de algum juízo estético para avaliar se a obra é ou não protegida pelo direito autoral. Até aquelas de gosto duvidoso devem e serão protegidas pelo direito autoral, desde que contenha um mínimo de originalidade e de criatividade (Lipszyc, p. 67). A criatividade se revela no ato de criador e se traduz no detalhe que o autor acrescenta à realidade. José de Oliveira Ascensão explica que "quando é o objeto que comanda em vez de o papel predominante ser o da visão do autor saímos do âmbito da tutela", arrematando mais adiante: "por isso, dissemos já também que, se alguém deixar uma câmara de filmar aberta sobre o público, o filme daí resultante não é uma obra, é a tradução servil da realidade, sem haver marca pessoal na sua captação". (Ascensão, p. 57). Escrever repetindo a realidade não é ato capaz de produzir uma obra intelectual. A mera descrição de um fato é ato mecânico que não importa em esforço intelectual. Para Carlos Alberto Bittar, a criatividade exigida para a proteção autoral assim se traduz: "a obra deve resultar de esforço intelectual, ou seja, de atividade criadora do autor, com a qual introduz na realidade fática manifestação intelectual estética não existente (o plus que acresce ao acervo comum)" (Bittar, p. 23). A criatividade, em outras palavras, é o esforço intelectual que destaca a individualidade do autor. É o traço característico marcante da autoria. Com propriedade, Bruno Jorge Hammes afirma que "Não é protegível o efeito de um trabalho físico" (Hammes, p. 51). A mera repetição, a simples descrição não é o gerador da proteção. O que diferencia a criatividade da originalidade é que a primeira é o toque do autor para transformar o quase nada em obra intelectual. A originalidade, por seu turno, é o que vai diferenciar uma obra de outra já reconhecida, protegida e, portanto, preexistente. A criatividade está ligada a um elemento interno da obra (conteúdo), enquanto que a originalidade se revela na forma. Da conjugação das duas é que teremos a verdadeira obra intelectual protegida pelo direito autoral. Dessa união indissolúvel é que nasce a proteção. Voltando ao caso decidido no TST e por fim, vale lembrar que é possível conceber direito autoral daquele que coleciona com critério e agrupa em uma ordem outras obras. A tarefa, entretanto, precisa guardar um mínimo de criatividade e originalidade, que parece não ter havido no trabalho da empregada reclamante. O direito autoral, como dito, não recompensa o esforço físico, apenas o intelectual. Referências : Bittar, C. A. (1992). Direito de Autor. Rio de Janeiro: Forense Universitária. Hammes, B. J. (2002). O direito de propriedade intelectual (3 ed.). São Leopoldo: Unisinos. Lipszyc, D. (2001). Derechos de autor y derechos conexos. Paris: Unesco; Cerlalc; Zavalia.
Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio Malgrado as semelhanças advindas abstratamente dos ius utendi, ius fruendi e ius abutendi conferidos aos titulares, as diferenças entre os objetos dos dois tipos de propriedade1 produzem realidades bastante distintas tanto no plano deontológico (entre outros, regimes de aquisição da propriedade e os limites à propriedade) quanto no plano fenomênico, interessando-nos, aqui, especialmente este último. A fim de explorarmos a superfície dessa questão, analisemos inicialmente o fato de a criação intelectual corriqueiramente guardar uma íntima relação com o seu criador, diferentemente do que ocorre comumente com o bem puramente material. Imaginemos uma quinta de terra que tenha sido irrigada, arada e plantada por um agricultor, produzindo uma colheita de trigo. Ao ser introduzido no mercado, não se poderá posteriormente identificar em uma saca de grãos de trigo por quais mãos esses grãos vieram a existir. O grão de trigo, objeto da propriedade móvel tradicional, não carrega em si a marca indelével de seu originador, e é inquestionavelmente bem fungível, intercambiavel por qualquer semelhante. No outro extremo desse raciocínio, imagine-se um quadro de Toulouse-Lautrec, retratando as famosas dançarinas do Moulin Rouge, ou um Picasso de sua fase azul. Em praticamente qualquer contexto, essas obras poderiam ser identificadas como de autoria desses famosos pintores, o que revela a existência de um liame entre criador e criação que sobrevive à separação física entre ambos. Nos dois casos, ambos os originadores dos bens lhes apuseram seu contributo laboral2, sendo que no primeiro exemplo sobressai o caráter material e físico desse contributo (trabalho braçal), enquanto no segundo caso ressalta-se o contributo intelectual para o produto final. Neste, entretanto, o resultado fenomênico é um bem que, embora materialmente possa pertencer a pessoa distinta de seu criador, guarda com este um vívido liame (tido como criatividade ou originalidade) que os vincula de maneira virtualmente perene. Esse diferencial fenomênico é resultado de um dissídio ontológico entre uma e outra classe de bens que poderia, ao nosso ver, justificar a inaplicabilidade de determinadas teorias da propriedade tradicional aos bens intelectuais. Em seu Segundo Tratado Sobre o Governo Civil, John Locke apresenta a teoria de justificação da propriedade em função do trabalho do homem sobre os bens da natureza. "Podemos dizer que o trabalho de seu corpo e a obra produzida por suas mãos são propriedade sua. Sempre que ele tira um objeto do estado em que a natureza o colocou e deixou, mistura nisso o seu trabalho e a isso acrescenta algo que lhe pertence, por isso o tornando sua propriedade. Ao remover este objeto do estado comum em que a natureza o colocou, através de seu trabalho adiciona-lhe algo que excluiu o direito comum dos outros homens. Sendo este trabalho uma propriedade inquestionável do trabalhador, nenhum homem, exceto ele, pode ter o direito ao que o trabalho lhe acrescentou, pelo menos quando o que resta é suficiente aos outros, em quantidade e em qualidade"3. Ainda: "Sobre as terras comuns que assim permanecem por convenção, vemos que o fato gerador do direito de propriedade, sem o qual essas terras não servem para nada, é o ato de tomar uma parte qualquer dos bens e retirá-la do estado em que a natureza a deixou"4. Dois conceitos se extraem da teoria de John Locke: (i) o fato gerador do direito de propriedade é a aposição de um contributo laboral a um bem disponível na natureza, e (ii) esse raciocínio se aplica em uma situação de abundância de bens livres in natura, sendo que o caso da propriedade em uma realidade de bens escassos repousaria em um fundamento convencional, e não puramente natural. Se não se questiona o caráter laboral da atividade intelectual (e, de fato, não o questionamos), a validade dessa teoria para o surgimento de um direito de propriedade em relação a um bem imaterial qualquer dependeria, em primeiro lugar, de identificarmos se a matéria-prima sobre a qual o criador intelectual acrescenta seu trabalho é efetivamente um bem livremente disponível na natureza ou se o ponto de partida da criação intelectual poderá ser um objeto cultural, que por sua vez terá sido produto não da natureza, mas da elaboração de outro homem. Em segundo lugar, temos de analisar o requisito da abundância em cuja ausência a atribuição dos direitos dominiais teria de repousar, forçosamente, em um fundamento convencional. Vejamos o que afirma David Hume sobre o pensamento e o poder criativo da mente: "Mas, ainda que nosso pensamento pareça ter essa liberdade ilimitada, ao fazermos um exame muito mais detalhado nos damos conta de que, em realidade, nosso pensamento está reduzido a limites muito estreitos, e que todo esse poder criativo da mente não vem a ser mais que a faculdade de mesclar, transpor, aumentar os materiais que nos são fornecidos pelos sentidos e pela experiência"5. (tradução nossa) Se concordamos com Hume, concedemos que a matéria-prima da criação intelectual são os materiais que nos são fornecidos pelos sentidos e pela experiência, mas sabemos que esses materiais ora são, de fato, objetos no estado em que a natureza os colocou, ora são objetos que já sofreram elaboração intelectual por outro indivíduo. A célebre frase atribuída a Isaac Newton, em sua carta a Robert Hooke, aforiza este conceito: "If I have seen farther, it is by standing on the shoulders of giants"6. Essa primeira constatação, portanto, resulta em conformação apenas parcial ao primeiro conceito extraído da teoria de John Locke, na medida em que nem todos os bens apropriados originariamente por meio de direitos de propriedade intelectual são resultado de aposição de trabalho a objetos no estado em que a natureza os colocou, havendo enorme parcela (a maioria, arriscamo-nos a dizer) que deriva de reelaborações sobre objetos que não existem senão em razão do trabalho de outro homem. Em segundo lugar, temos o requisito da abundância7, já que o mecanismo descrito por John Locke se operaria "quando o que resta é suficiente aos outros, em quantidade e em qualidade"8. Os bens intelectuais, como já exploramos anteriormente, preservam uma espécie de liame com seu criador, especialmente os bens que são objeto de apropriação por meio de um dos tipos de propriedade intelectual, o direito autoral. Já para os inventos que são objeto de patenteamento, é requisito das convenções internacionais que regem a matéria e da lei brasileira, entre outros, a novidade, definida como não-pertencimento ao estado da técnica9. Em outras palavras, o invento, para ser apropriado, não pode existir em qualquer parte do mundo10, e, uma vez patenteado, só pode ser empregado com autorização do titular da patente. Sob um certo prisma, portanto, poderíamos dizer que um bem apropriado por meio de uma das espécies de propriedade intelectual carrega uma determinada infungibilidade, e o conceito de infungibilidade é incompatível com a idéia de abundância. Com efeito, patenteada uma invenção, criada uma obra, esta, especificamente, deixa de estar disponível durante o tempo de exclusividade concedido pela lei, e essa exclusividade é o fundamento econômico de valor desses bens intelectuais. Assim, o segundo requisito apresentado pela teoria de John Locke não encontra aplicabilidade imediata (embora talvez a encontre de maneira diferida no tempo, já que a expiração da exclusiva insere a criação no domínio público) para o caso dos direitos de propriedade intelectual sobre as criações humanas, incompatibilidade esta que deriva, como dito anteriormente, das diferenças ontológicas entre os bens apropriados em um e em outro tipo de propriedade. __________ 1Permitimo-nos aqui evitar o relevante tema terminológico em que se debate a aplicabilidade do termo propriedade aos bens intelectuais. 2Requisito e fundamento de concessão de direitos de propriedade. 3LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil e Outros Escritos. São Paulo: Editora Vozes, 1999. p.98-99 4Idem, ibidem. 5HUME, David. Investigación Sobre el Conocimiento Humano. Madri: Mestas Ediciones, 2003. p.33 6KOYRÉ, Alexandre. An Unpublished Letter of Robert Hooke to Isaac Newton. Isis, Chicago, v.43, n. 4, p. 312-337, Dez. 1952. Disponível em: . Acesso em 03 Mai 2014. 7José Reinaldo de Lima Lopes nos lembra que "[...] a famosa condição para a propriedade natural (a propriedade natural só pode ser legitimada numa situação de abundância, toda outra propriedade sendo convencional) raramente é lembrada". LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História: Lições Introdutórias. 1ª. Ed. São Paulo: Max Limonad, 2000. 8LOCKE, John. op. cit. 9Artigo 11 da Lei 9.279/96. A invenção e o modelo de utilizade são considerados novos quando não compreendidos no estado da técnica. 10Abrimos mão do detalhamento do conceito de novidade em benefício da clareza na explanação do raciocínio.
segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Duas palavras sobre autoria da obra audiovisual

Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio Conta-nos o professor André Bertrand que, em 10 de fevereiro de 1905, o Tribunal Civil de la Seine1 decidiu pela primeira vez um caso relacionado à autoria de uma obra audiovisual2. Um famoso cirurgião francês da época, Dr. Eugène-Louis Doyen, contratara um antigo operador de câmeras dos irmãos Lumière, Clément-Maurice Parnaland, para filmar uma de suas cirurgias, em que separaria duas irmãs siamesas. Descobriu o médico que Parnaland, depois de feito o trabalho, reproduzira-o em diversas cópias vendidas a cinemas no estrangeiro. A decisão do tribunal determinava que o autor do filme era, na verdade, o médico, que assumira na contratação um papel de produtor, e não Parnaland, responsável pela filmagem. Se nos parece um tanto impróprio que a autoria tenha sido atribuída a quem não fez senão idealizar um filme e arcar com os custos da filmagem, a verdade é que esse singelo caso representa, de maneira condensada e já na origem, um dos problemas que a invenção do cinema desencadearia na conformação de um conjunto de regras de direito autoral que pudesse equilibrar os interesses em um nascente ramo artístico que, em sua natureza, era bastante diferente daqueles que lhe antecederam, na medida em que convergem na obra cinematográfica de maneira muito intensa os aspectos artístico, técnico, e de empreendimento empresarial. Antonio Chaves, em seu Cinema, TV, Publicidade Cinematográfica, lembra-nos que "a obra cinematográfica é certamente uma obra de arte, e, como tal, uma criação intelectual. Mas, diferentemente das demais obras artísticas, não é somente o produto da atividade criadora de um ou mais artistas: é, ao mesmo tempo, uma obra técnica e um produto industrial"3. Com efeito, o envolvimento de uma plêiade de indivíduos cujas contribuições servem de matéria-prima para a criação da obra audiovisual é uma das mais marcantes particularidades desse segmento criativo. Atividades que gozam de indiscutível autonomia artística, como a música, a literatura e a fotografia amalgamam-se na elaboração da obra audiovisual final que, embora não prescinda dessas contribuições, com elas não se confunde, seja ontologicamente, seja mesmo pela diversidade de gênero. Sistemas há, como o brasileiro e o francês, fundados na concepção de droit d'auteur, que alocam a titularidade originária de direitos aos que diretamente concorreram na criação do produto artístico final, como o diretor do filme, desde que não se trate de obra coletiva4, situação em que a titularidade originária é concedida ao organizador5. Igualmente complexante é a dificuldade técnica de transmutar-se a ideia bruta da obra em registro passível de apreciação pelos seus destinatários. Se é verdade que há outras artes em que a fixação da criação exige um domínio técnico, como se verifica na escultura ou na pintura, também é verdade que nestas artes o conjunto de capacidades técnicas e artísticas normalmente se concentra na pessoa do criador, enquanto no cinema, ou no audiovisual em geral, muitas vezes a contribuição de extensa equipe técnica é indispensável. Oferece, ainda, complexidades, a característica de verdadeiro empreendimento empresarial que possui, em maior ou menor monta, a obra audiovisual, o que leva determinados sistemas de proteção, especialmente o sistema de copyright, a atribuir ao produtor da obra audiovisual a titularidade originária dos direitos autorais. Na lei estadounidense, por exemplo, as diversas contribuições artísticas que compoem a obra audiovisual são consideradas work for hire, obra sob encomenda, com titularidade e autoria concedidas ex lege ao contratante6. A existência desses sistemas distintos de atribuição de titularidade originária dos direitos patrimoniais expõe de maneira ilustrativa a heterogeneidade de fundamentos entre o sistema de droit d'auteur e o sistema de copyright. A tentativa de harmonizá-los aconteceu com algum vagar na conferência diplomática que deu origem à revisão de Estocolmo da Convenção de Berna, em 1967. Como produto das discussões ali desenvolvidas, à convenção adicionaram-se os seguintes termos, mantidos posteriormente na revisão de Paris, em 1971, e portanto em vigor no Brasil por obra do decreto 75.699 de 6 de maio de 1975: "ARTIGO 14 bis 2) a) A determinação dos titulares do direito de autor sobre a obra cinematográfica7 é reservada à legislação do país em que a proteção é reclamada. b) Entretanto, nos países da União nos quais a legislação reconhece entre estes titulares os autores das contribuições prestadas à realização da obra cinematográfica, estes últimos, se se comprometeram a prestar tais contribuições, não poderão, salvo estipulação contrária ou particular, se opor à reprodução, à distribuição, à representação e à execução públicas, à transmissão por fio ao público, à radiodifusão, à comunicação ao publico, à colocação de legendas e à dublagem dos textos, da obra cinematográfica. 3) A menos que a legislação nacional decida de outra maneira, as disposições do parágrafo 2) b) acima não são aplicáveis nem aos autores dos diálogos e das obras musicais, criados para a realização da obra cinematográfica, nem ao realizador principal da mesma. Entretanto, os países da União cuja legislação não contenha disposições prevendo a aplicação do parágrafo 2) b) precitado ao referido realizador deverão notificá-lo ao Diretor-Geral mediante uma declaração escrita que será imediatametne comunicada por este último a todos os outros países da União8. A solução atingida em Estocolmo para a obra cinematpográfica representou uma acomodação de interesses. Deixa a atribuição da titularidade dos direitos de autor da obra cinematográfica ao alvitre dos estados unionistas, mas cria uma presunção de legitimação do produtor (contratante das contribuições individuais) para utilizar essas contribuições, ressalvadas estipulações em contrário. É um influxo, ainda que modesto, do sistema de copyright para dentro do sistema de droit d'auteur. Vejamos dois dispositivos da nossa LDA para entendermos se esse sistema de atribuições funciona no país (que regulamentou o gênero, obra audiovisual): Art. 16. São co-autores da obra audiovisual o autor do assunto ou argumento literário, musical ou lítero-musical e o diretor. Art. 81. A autorização do autor e do intérprete de obra literária, artística ou científica para produção audiovisual implica, salvo disposição em contrário, consentimento para sua utilização econômica. Se o autor do argumento é autor de uma obra literária, e tanto o diretor quanto o autor do argumento musical ou litero-musical são autores de obra artística, então uma interpretação possível é a de que o artigo 81 cumpre a regra do artigo 14bis (3) da Convenção de Berna, estendendo-a para todas as obras audioviduais, impedindo aos co-autores da obra audiovisual que se oponham ao produtor quanto à utilização econômica da obra. Em uma realidade em que a maioria das produções audiovisuais ocorre ou em um sistema de contratação que prevê cessão de direitos patrimoniais ou em uma sistemática de obra coletiva, o raciocínio de recepção do regramento de Berna é dispensável, uma vez que a titularidade estaria já com o organizador da obra ou com o contratante. __________ 1T. civ. Seine, 10 févr. 1905, Doyen c/ Parnaland, DP 1905, J.389, apud BERTRAND, André R. Droit D'auteur. Paris: Dalloz, 2010, p.787. 2O termo "obra audiovisual" não era utilizado, por óbvio, naquela época, que assistia ao desenrolar dos primeiros anos da arte cinematográfica. Há uma evolução terminológica que culmina na adoção do termo "audiovisual" como gênero. "Antes discorríamos sobre o cinema, agora falamos genericamente do audiovisual, perante um collage de produtos e canais de difusão". DROGUETT, Juan. Griffando o sabor do Celulóide, in Juan DROGUETT e Flávio F. A. ANDRADE (orgs.), O feitiço do cinema. Ensaios de griffe sobre a sétima arte. São Paulo: Saraiva, 2009, p.23. Há críticas, como a do próprio BERTRAND, a respeito do tratamento uniforme concedido a obras tão variadas e diversas como a obra cinematográfica e outras espécies de obra audiovisual, como a com fins unicamente televisivos ou comerciais. 3CHAVES, Antonio. Cinema, TV, Publicidade Cinematográfica. São Paulo: Leud, 1987. p.12. 4Entendemos que a obra audiovisual nem sempre é obra coletiva, muito embora a praxis empresarial deste segmento funcione tipicamente sob um regime de obra coletiva 5Importa não se confunda autoria com titularidade originária de direitos. Assim, por exemplo, no Brasil, um filme realizado sob um regime de obra coletiva terá como autores o diretor, o autor do argumento e o autor da trilha sonora (por força do artigo 16 de nossa LDA), mas a titularidade originária dos direitos patrimoniais quedará com o organizador da obra. No sistema do copyright estadounidense, conforme já expusemos, a lei atribui a autoria mesma ao encomendante, e não meramente a titularidade de direitos patrimoniais, solução que, ao menos filosoficamente, parece-nos esdrúxula, uma vez que entendemos a autoria como relação de fato, de ordem causal, entre o criador e sua obra. Certamente a confusão entre autor e titular originário no sistema de copyright não ofereceu dificuldades práticas, considerando a histórica postura refratária desse sistema ao reconhecimento de direitos morais de autor. 6§101: "A "work made for hire" is (2) a work specially ordered or commissioned for use as a contribution to a collective work, as a part of a motion picture or other audiovisual work, as a translation, as a supplementary work."; §201: (b) Works Made for Hire.-In the case of a work made for hire, the employer or other person for whom the work was prepared is considered the author for purposes of this title, and, unless the parties have expressly agreed otherwise in a written instrument signed by them, owns all of the rights comprised in the copyright. 7A interpretação deste artigo, em tese, se aplica exclusivamente à obra cinematográfica, e não às demais do gênero audiovisual. 8A tradução, lamentavelmente, é ruim. Sanamos os erros de ortografia constantes do decreto, mas, mesmo assim, a escolha dos termos poderia ter sido mais esclarecedora ("realizador principal", por exemplo, quando a melhor tradução seria, certamente, "diretor principal"). O termo "realizador" é importado do francês realizateur, mas é fato que na linguagem corrente nos referimos ao Diretor do filme, e não ao realizador.
segunda-feira, 3 de novembro de 2014

O caso da marca Legião Urbana

Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá que, com Renato Russo, transformaram a Legião Urbana em um dos maiores ícones do rock nacional nas décadas de 80 e 90, litigam desde julho de 2013 para que possam utilizar o nome da banda em suas atividades profissionais. Na última semana, publicou-se decisão de procedência parcial que, na prática, representa uma vitória aos ex-integrantes. A marca Legião Urbana foi depositada em nome de Legião Urbana Produções Artísticas Ltda. em 19872, sendo que, à época, a empresa pertencia aos quatro integrantes da banda, com Renato Russo como sócio majoritário. Contam os integrantes3 que antes mesmo que pensassem em proteger de qualquer forma o nome, um outro depositante, sem relação com as atividades da banda, tentara obter o registro desta marca junto ao INPI, o que os teria forçado a disputa-la. A decisão de identificar a Legião Urbana Produções Artísticas Ltda. como titular teria sido fruto de uma estratégia para dar mais força ao pleito, já que a existência da pessoa jurídica com esse nome reforçava o presente uso da expressão nas atividades artísticas do grupo, que, de qualquer forma, já eram bastante sólidas na cena musical do país. No desenrolar da vida da banda, entretanto, apenas Renato Russo permaneceu no quadro societário da titular da marca, e os demais integrantes constituiram, cada um, sua própria empresa4. Com o falecimento do líder da Legião em 1996, essa empresa passou à administração da família, e, com isso, os ex-integrantes relatam dificuldades no exercício de suas atividades profissionais e uma série de empecilhos para a utilização do nome. A ação, ajuizada por Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá contra Legião Urbana Produções Artísticas Ltda., distribuída para a 7ª vara Empresarial da comarca da capital do Rio de Janeiro, instrumentalizava tanto uma pretensão indenizatória, fundada na alegação de que a interferência da titular da marca custara aos autores a perda de oportunidades profissionais, quanto uma cominatória, obrigando a Legião Urbana Produções Artísticas Ltda. a se abster de impedir que Dado e Marcelo façam uso da marca Legião Urbana no exercício de sua atividade. O juiz titular Fernando Cesar Ferreira Viana acolheu apenas a pretensão cominatória, sob pena de multa no valor de R$ 50.000,00 para cada tentativa de impedir o uso da marca pelos ex-integrantes. A análise da letra fria da LPI nos levaria, é certo, a uma decisão contrária à pretensão dos autores da ação: marca devidamente registrada de titularidade de determinada empresa não poderia ser utilizada sem sua autorização. Mas é certo, também, que essa solução deixaria em alguns um gosto amargo de injustiça, a despeito de sua irrepreensibilidade formal. O julgado apresenta especial interesse exatamente porque interpretou os fatos para além da LPI: "Contudo, parece que a análise do caso em tela não deve se restringir apenas na tecnicidade do uso da marca, mas sim demanda interpretação do tema à luz da interpretação Civil-Constitucional. Como se sabe, a Constituição da República não mais é vista como mera "folha de papel", passando-se a reconhecer a sua força normativa e, por conseguinte, a aplicabilidade de seus ditames inclusive às relações entre particulares. A imperativa eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas denota que a Constituição não é somente "do Estado", mas também do cidadão que pode provocar o Judiciário, para ver respeitadas as regras e princípios constitucionais, cuja normatividade é reconhecida. Nessa esteira, a propriedade da marca também deve orientar-se pela sua função social, consubstanciada no artigo 5º, XXIII, da Constituição da República. O direito ao uso da marca não deixa de ser correlato ao compartilhamento dos valores fundamentais pelo todo social. Com efeito, o uso necessário da marca relaciona-se à sua função de uso, de modo que sua não utilização pode provocar impacto no coletivo. Vale dizer, no caso em tela, a função social da propriedade da marca não compactua com a abstenção de seu uso pleno, o que obstaculizaria a difusão da cultura com a proibição dos shows pelos ex-integrantes da banda que, de fato, são responsáveis pela consolidação de seu nome. Como já decidido pelo STF, a Lei de Propriedade Industrial deve observar os princípios previstos pela Carta da República, sobretudo quanto a função social da propriedade marcária [...]. Assim, em respeito à função social da propriedade e ao reconhecimento do direito dos autores de fazerem uso da marca em suas apresentações, dada as suas reconhecidas participações para a consolidação da mesma, merece acolhimento a pretensão dos autoral." Ao mencionar o uso pleno da marca em um contexto de função social, entende o julgador que, uma vez à disposição dos ex-integrantes do grupo para uso em suas atividades profissionais, a marca Legião Urbana teria melhor utilidade5. Importante essa diferenciação uma vez que, estivesse o julgador analisando a caducidade da marca, faria um juízo simples sobre estar a marca em uso ou não. Neste caso, entretanto, fala em uso pleno da marca, utilizando o princípio da função social como elemento maximizador do requisito de utilidade6. A decisão, por outro lado, cria uma situação curiosa em que um registro válido de marca não pode ser oposto a um determinado grupo de pessoas, ainda que dentro de seu campo especial de aplicação. Dado e Marcelo poderão usar a marca para as suas atividade profissionais, sem autorização da titular, sem dever-lhe remuneração, e eventual empecilho gerado pela titular poderá ser objeto de multa. Criou a decisão uma espécie de licença gratuita e perpétua em favor dos ex-integrantes da banda. Não se trata de co-titularidade marcária (tema nebuloso no no direito pátrio) - é como se existisse um "carve out" ao exclusivo, fundado em decisão judicial7. Outra questão que nos parece interessante é a importância dada ao investimento pessoal dos autores na criação da marca e o uso que dela fizeram durante a existência da banda. Esses aspectos são claramente colocados em um patamar superior ao da formalidade registral e servem como elemento de conexão entre a função social da propriedade marcária e a extensão do direito concedido à empresa ré. Nosso sistema, malgrado atributivo, exibe portas e janelas para irrelevar, em determinados casos, o direito registralmente concedido. Vale dizer, ainda, que a parte dispositiva da decisão determina que "a parte ré se abstenha de impedir que os autores façam uso da marca 'Legião Urbana', no exercício de sua atividade profissional". Será importante, parece-nos, uma delimitação do termo "uso", que não se encontra integralmente delimitado no dispositivo. Não sabemos, da simples leitura, quais atividades profissionais os autores poderão desempenhar sob o signo Legião Urbana, e se essas atividades comportam um desdobramento comercial mais amplo como, por exemplo, a venda de materiais promocionais. __________ 1Sentença disponível no site do TJ/RJ (processo 0239202-41.2013.8.19.0001). 2As classes iniciais de depósito são a NCL(7)35, NCL(7)9, e 41:20, tendo o pedido nesta última classe sido indeferido e arquivado. 3Há um blog, que pertence a Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá, que conta esses detalhes e oferece seus pontos de vista acerca da justiça do caso. 4Legião Produções Artísticas Ltda., Urbana Produções Artísticas Ltda. e Zotz Produções Artísticas Ltda. 5Denis Borges Barbosa assim coloca a questão no contexto de fins sociais da marca: "É de notar-se que, também para o caso das marcas, seu uso social inclui um compromisso necessário com a utilidade (uso efetivo do direito, ou, não ocorrendo, a caducidade que lança o signo na res nullius), com a veracidade e licitudo, sem falar de seus pressupostos de aquisição: a distinguibilidade e a chamada novidade relativa". BARBOSA, DENIS. O direito constitucional dos signos distintivos. In: SANTOS, M.J.; JABUR, W.P, (Orgs). Sinais Distintivos e Tutela Judicial e Administrativa. São Paulo: Saraiva, 2007. p.21 6A visão dos princípios como normas maximizadoras das regras do ordenamento foi desenvolvida no modelo de princípios de Ronald Dworkin, em seu O Império do Direito. Em Dworkin, Alexy encontraria inspiração para o ferramental que desenvolveu para sopesar os princípios. 7A decisão enfrenta a alegação de que a competência para discutir-se o tema recairia sobre a Justiça Federal delimitando sua competência nos autos apenas ao pedido de fazer com que a ré se abstivesse de impedir o uso pelos autores. É curioso, entretanto, que a decisão acaba, parece-nos, reconfigurando o direito concedido pelo INPI, na medida em que reduz, na prática, seu campo de aplicação.
Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio Na última coluna, analisamos o papel dos temas da Propriedade Intelectual e da Inovação no programa de governo de Marina Silva1, e dedicaremos a coluna de hoje à análise desses mesmos temas nas diretrizes de governo de Aécio e Dilma, que disputarão o segundo turno dessas eleições presidenciais. Aécio Neves - Coligação Muda Brasil2 Os temas em questão vêm tratados nas diretrizes de governo de Aécio Neves3 nos seguintes subcapítulos: Comércio Exterior, Cultura, Desenvolvimento Sustentável da Agricultura Familiar, Empreendedorismo, Política Industrial e Ciência, Tecnologia e Inovação. Por serem diretrizes genéricas sem maior aprofundamento, é impossível, com algumas exceções, extrair elementos concretos que nos permitam entender como essas diretrizes seriam implementadas na prática, mas é possível perceber algumas tendências. Como no programa de Marina Silva, reconhece-se a necessidade de revisão do marco regulatório de direito autoral e de aprofundamento das discussões que o cercam, mas, diferentemente do programa do PSB, as diretrizes do PSDB e coligados apontam mais na direção da garantia dos direitos do que no sentido da flexibilização. A orientação genérica relacionada à inovação nos capítulo de CT&I, empreendedorismo e política industrial apontam claramente no sentido de reconhecer-se a importância não só da pesquisa de base, mas também da inovação tecnológica no mercado e desenvolvida também por empresas privadas, ressaltando-se a importância de colocar-se o estado como elemento de mitigação dos riscos inerentes a essa atividade. A modernização e melhoria do INPI como elemento fundamental desse processo é mencionada algumas vezes, ressaltando-se a necessidade de agilizar os procedimentos de obtanção de patentes, pleito constantemente feito no Brasil e que tem recentemente se traduzido na ampliação do número de examinadores do órgão. Anunciam-se duas novidades: o Sistema Brasileiro de Inovação, voltado a fomentar programas de incentivo à invação em empresas privadas e públicas, e a criação de um Programa Nacional de Parques Tecnológicos, integrando academia e setor privado em áreas chave como bioenergia e TICs. Menciona-se a necessidade de revisão do arcabouço legal relacionado a Ciência, Tecnologia e Inovação no país, mas sem nenhum detalhe sobre quais seriam essas mudanças ou em que sentido elas devem apontar. Destacamos os trechos a seguir: Comércio Exterior "1. Integração competitiva da economia brasileira ao mundo para reduzir o hiato tecnológico da nossa indústria e abrir caminho para uma estratégia de modernização, compatível com a dinâmica do sistema econômico internacional. 7. Reforço de instituições de regulação técnica e certificação de produtos, como INPI e INMETRO, para a redução dos prazos para a obtenção de patentes e a isonomia entre produtos importados e os produzidos localmente. A defesa comercial e a promoção comercial deverão ser aperfeiçoadas e integradas de forma coordenada na nova política comercial. 8. Exame da compatibilização com a legislação nacional das regras, normas e regulamentos técnicos que passaram a fazer parte dos novos acordos de preferências comerciais, afim de permitir a participação dos produtos nacionais em cadeias globais de valor." Cultura "4. Estabelecimento de políticas culturais que valorizem o patrimônio cultural material e imaterial, transformando os mesmos em elementos estratégicos para o desenvolvimento de uma Política de Economia Criativa. 11. Ampliação do debate sobre o direito autoral, com reconhecimento dos direitos dos autores." Desenvolvimento Sustentável da Agricultura Familiar "3. Apoio às inovações tecnológicas e à democratização do acesso às tecnologias relacionadas a sistemas de produção sustentáveis, sobretudo de base agroecológica." Ciência, Tecnologia e Inovação "[...]Pouca pesquisa, porém, se faz direcionada para o desenvolvimento industrial, da agropecuária e do setor de serviços. Em patentes, a participação do Brasil continua muito reduzida, sem prioridades. Reforçar a mola do desenvolvimento significa elevar a capacidade de inovação tecnológica do país. 6. Elaboração de um plano de elevação gradual dos investimentos - públicos e privados - em CT&I, buscando atingir, até 2020, um patamar de 2,0% do PIB - hoje investimos apenas 1,2%. Estabeleceremos metas para serem cumpridas nos quatro anos de mandato, com a diversificação das fontes públicas de custeio e incentivos para investimentos privados. 7. A inovação é o grande agente que transforma conhecimento em riqueza. Estabeleceremos programas que incentivem a pesquisa e a inovação nas empresas públicas e privadas, e promoveremos a modernização e a celeridade no sistema de registro de patentes do País, via revitalização do INPI. Apresentaremos proposta articulada no que virá a ser o Sistema Brasileiro de Inovação. 9. Promoção e manutenção de políticas públicas que incentivem a inovação em cadeias produtivas, integrando grandes, médias e pequenas empresas, assim como centros de pesquisa acadêmicos e tecnológicos nacionais e internacionais. 14. Reforma do arcabouço legal para CT&I. O Brasil não tem um arcabouço legal para CT&I e usa legislações inadequadas para regular essas atividades. Com isso, o País perde competitividade no cenário internacional. 15. Implantação do Programa Nacional de Parques Tecnológicos de âmbito nacional e regional, criando parques tecnológicos em temas prioritários, como bioenergia, química verde, TIC e fármacos, com foco em ambientes de cooperação universidade-empresa e com infraestrutura de apoio à P&D empresarial. 16. Apoio a incubadoras de empresas, com caráter de inovação, em articulação com as universidades." Empreendedorismo "3. Uso adequado dos recursos públicos destinados à inovação e ao empreendedorismo, reconhecendo o papel do estado como agente incentivador ao empreendedorismo e à inovação - não apenas à pesquisa cientifica - correndo riscos inerentes a estes processos. 4. Adoção de programas de apoio às "startups" no Brasil. 6. Incentivo ao empreendedorismo em universidades públicas e privadas, facilitando a cooperação das empresas nacionais e internacionais com os grupos de pesquisa científicos e tecnológicos. 9. Simplificação do processo e da legislação de propriedade intelectual para facilitar e reduzir o prazo médio para registro e obtenção de patentes no país." Política Industrial "5. Promoção de planos, junto ao setor industrial, de forma a decidir não apenas quais produtos manufaturados o país deve exportar mas, principalmente, de que forma esses produtos agregam valor por incorporar na sua produção inovação em produto ou processo, em design, em materiais especiais ou numa estratégia ligada ao desenvolvimento de marcas." Dilma Roussef - Coligação com a força do povo4 O programa de governo do PT e coligados5 é o que menos dedica espaço aos temas de propriedade intelectual e inovação. Menciona-o tão somente em um parágrafo: "A implantação das Plataformas do Conhecimento será uma das estratégias para acelerar a geração de inovação no Brasil. Elas preveem a criação de um ecossistema de inovação, no qual a interação entre cientistas, instituições de pesquisa e empresas permitirá, para áreas estratégicas ao desenvolvimento, permitirá acelerar a produção de conhecimento e sua transformação em produtos e processos inovadores, fundamental para o crescimento de competitividade de nossa economia." A tônica de todo o texto do programa nas diversas áreas que superficialmente aborda é a da continuidade das atuais políticas de governo, que é o que se espera na área de PI e inovação em eventual reeleição de Dilma. __________ 1Propriedade Intelectual e Inovação nos Programas de Governo - Marina Silva. 2PSDB, PMN, SD, DEM, PEN, PTN, PTB, PTC, PT do B 3Diretrizes Gerais - Plano de Governo - Aécio Neves - PSDB - 2014 4PT, PMDB, PSD, PP, PR, PROS, PDT, PC do B, PRB 5Mais Mudança, Mais Futuro - Programa de Governo Dilma Roussef 2014.
Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio A concessão de direitos de propriedade intelectual ocupa, há muitos anos, um papel de alta relevância na discussão das políticas econômicas e culturais em todo o mundo. Há um amplo espectro de posicionamentos, desde os raros, que entendem que esses direitos sequer deveriam existir1, até aqueles que defendem uma maximização da proteção das criações via propriedade intelectual como instrumento indispensável de incentivo às cadeias de inovação. Historicamente, o Brasil tem adotado posições no sentido de conceder e proteger esses direitos2, mas sua inclusão na pauta de discussões de política econômica é bastante recente, e ocorre a reboque do fortalecimento da noção de economia do conhecimento3, já velho no mundo, mas discutido com muito mais intensidade no Brasil da última década. Os setores da economia que mais intensamente trabalham com o desenvolvimento e aplicação de conhecimento técnico e científico apresentam, historicamente, taxas de produtividade e emprego que superam a média dos demais setores, constatação que indica um caminho possível para um crescimento sustentável de longo prazo, como o que tem sido experimentado, por exemplo, nos EUA. Além disso, a participação em cadeias globais de comércio exige de todos os setores da economia uma busca contínua por competitividade, sendo que o desenvolvimento técnico e o aumento da produtividade são dois caminhos obrigatórios para isso. Em razão da relevância do tema, destrinchamos os programas dos três principais candidatos à presidência para entender suas propostas nessa área tão importante para o desenvolvimento do país. A bem da verdade, façamos a ressalva de que somente Marina Silva, cujo programa é tratado neste primeiro artigo, efetivamente divulgou um documento a que se poderia chamar de programa de governo. Aécio Neves publicou diretrizes sem detalhamento, mas que mencionam o tema de maneira razoavelmente estruturada, e o documento de Dilma Rousseff não dedica mais de um parágrafo ao tema da inovação. Os programas destes dois últimos candidatos serão abordados, conjuntamente, na próxima semana. Marina Silva - Coligação Unidos Pelo Brasil4 O tema da propriedade intelectual surge, no programa de Marina Silva, nos seguintes contextos: acordos transnacionais, proteção dos saberes tradicionais e das expressões tradicionais de cultura5, potencial da economia do conhecimento, cultura digital e de compartilhamento, além das menções no capítulo de ciência, tecnologia e inovação. Acordos transnacionais e Aliança do Pacífico No item inaugural, que discorre, entre outros, sobre assuntos relacionados às propostas de política internacional, o programa se aproxima da questão da celebração de acordos comerciais regionais e bilaterais, defendendo a participação do Brasil nas cadeias globais de produção e inovação. Reconhece que isso pode significar participação em arranjos que elevem o piso mínimo do TRIPS6, mas ressalta a necessidade evidente de que adesões a esses arranjos devem propiciar uma posição vantajosa ao Brasil. "É importante ainda promover o debate com o empresariado e a academia sobre como o Brasil deve reagir ao impacto no comércio internacional da formação crescente de cadeias produtivas em escala global, que estão alterando os padrões tradicionais de transação de bens e serviços, sobretudo os de maior valor agregado. O intercâmbio de partes, componentes e serviços ocorre de modo cada vez mais intenso no interior de redes transnacionais de inovação, produção e comercialização. A regulamentação desse processo tem sido realizada por acordos regionais e bilaterais envolvendo os Estados Unidos, a União Europeia e alguns países asiáticos e latino-americanos. Comportam regras que costumam ir além do previsto nas normas da OMC sobre propriedade intelectual, garantia de investimento, serviços, movimentos de capital e cooperação aduaneira. Se, por um lado, o reclame por especialização em alguma etapa do processo produtivo pode suscitar reservas em países emergentes com parque industrial diversificado como Brasil, China, Índia e Rússia, é presente, por outro lado, o risco de marginalização dos fluxos de comércio tecnologicamente mais inovadores. Assim, é plausível supor que, com a densidade tecnológica de que já dispõe e o grau de internacionalização alcançado por suas empresas, o Brasil possa ajustar-se de forma vantajosa ao novo modelo."7 Além disso, o programa também menciona uma proposta de aproximação entre Mercosul e Aliança do Pacífico8, esta última o projeto de integração econômica entre Chile, Colômbia, México e Peru e que prevê, além da criação de um grupo técnico para estudo das regras de propriedade intelectual, uma cooperação entre os escritórios de patentes dos países membros. Em linhas gerais, o Protocolo de Cartagena, assinado entre os países da Aliança do Pacífico, menciona o acordo TRIPS como patamar mínimo a ser respeitado.9 Proteção dos Saberes Tradicionais e Expressões Tradicionais de Cultura Pelo contexto em que é apresentado, o termo "saberes tradicionais" é utilizado no programa de Marina Silva no sentido de "conhecimentos tradicionais associados", e pertenceria, em verdade, à área de ciência, tecnologia e inovação, e não ao capítulo de cultura. Trata-se da regulamentação da pesquisa que, normalmente voltada ao patrimônio genético10 brasileiro, serve-se de conhecimentos tradicionais de populações locais como ponto de partida para seu desenvolvimento. A proposta apresentada é que sejam implementados mecanismos que permitam que os povos detentores desses conhecimentos sejam beneficiários de divisas geradas nessas pesquisas. De fato, como menciona a proposta do PSB, o assunto é incompatível com o núcleo tradicional da propriedade intelectual, mas não porque os diplomas legais que o regulam são ruins ou insuficientes, nem em razão da distinção entre descoberta e invenção, como se alega. São matérias essencialmente distintas, que guardam entre si relação apenas tangencial. A proteção dos conhecimentos tradicionais associados já é objeto de norma pátria, a MP 2.186-16 de 23 de agosto de 2001, que determina repartição de benefícios. Há, sim, dificuldades operacionais que devem ser resolvidas para que o sistema funcione efetivamente, tema não comentado pelo programa. Já a questão das expressões tradicionais de cultura está bem localizada no programa e, parece-nos, bem articulada quanto às áreas a serem desenvolvidas. O decreto 3.551/2000, que estabelece o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial, embora efetivamente tenha dado um primeiro passo para que o Brasil possa mapear sua riqueza cultural tradicional, é insuficiente, segundo o texto, na medida em que não provê instrumentos de compensação nem garante sua promoção e divulgação. Acerta a candidata quando pretende dedicar legislação específica, fora do escopo de PI, às expressões tradicionais de cultura. "Um povo que não tem um acervo de conhecimentos e memórias está condenado a ser um mero receptor, nunca um criador. [...]. Nossas reservas naturais fazem parte desse patrimônio, assim como todo o conhecimento científico e tecnológico e o "saber fazer" transmitido de geração em geração. [...] Por situar-se na fronteira em que interesses econômicos entram em choque direto com a cultura, o patrimônio cultural precisa de legislação própria e acompanhamento constante, incluindo ações de fiscalização, repressão, prevenção e um conceito relativamente novo: compensação. Em 2001, criou-se o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, que inovou ao propor a identificação de bens de natureza processual e dinâmica. [...] Contudo, o reconhecimento oficial não garante que os bens registrados sejam promovidos, fortalecidos e divulgados. Além disso, os planos de salvaguarda ainda são lentos e tímidos, e a legislação de propriedade intelectual não serve aos conhecimentos tradicionais. A ideia de propriedade intelectual no Brasil baseia-se no conceito de autor como indivíduo, quando, no caso dos saberes e expressões tradicionais, o patrimônio é da comunidade. Outro problema é a distinção existente na lei atual entre "descoberta" (não protegida pela lei) e "invenção" (protegida). Privilegiam-se, assim, cientistas e indústrias, em detrimento de povos detentores de conhecimento empírico imemorial. Caso notório é a secreção cutânea do sapo verde (Phyllomedusa bicolor), utilizada por indígenas da Amazônia. Pesquisas de laboratórios internacionais revelaram que a secreção contém substâncias analgésicas, antibióticas e imunológicas. Os princípios ativos foram desmembrados em dez diferentes patentes internacionais, em prejuízo dos katukinas." Potencial da economia do conhecimento11 O tema da economia do conhecimento é tratado com bastante atenção no programa de Marina Silva, que lhe reconhece um papel central no desenvolvimento do país contribuindo com uma camada de atividade que complementa nossa base agrícola e industrial, conferindo-lhes nova dinâmica de agregação de valor. Eis algumas relevantes propostas da candidatura nessa área: "Realizar sistematicamente levantamentos estatísticos e estudos de cadeias, por meio de convênio com institutos e universidades, para identificar as indústrias criativas mais promissoras, seus gargalos e potencialidades, e usar os resultados para balizar diferentes programas e ações; Disponibilizar crédito para os empreendedores criativos desprovidos de garantias ou avalistas, por meio de bancos públicos e de fundos de aval que induzam o sistema financeiro a perceber oportunidades.; Criar certificação e licenciamento específicos para as indústrias criativas; Apoiar a atuação dos agentes criativos, diminuindo a burocracia e a tributação que incidem sobre as associações, cooperativas e empresas culturais, e desenvolvendo tecnologias que facilitem a organização em redes e coletivos."12 Cultura digital, cultura do compartilhamento e direitos autorais A internet e sua crescente penetração são reconhecidas como um instrumento importante de divulgação cultural, criação e de formação de novos públicos. Nesse contexto, menciona-se a necessidade de evolução da legislação e dos modelos de negócio para contemplar essa realidade13. A ausência de reforma da Lei de Direitos Autorais é citada como barreira à digitalização e à cultura de compartilhamento, e a recente modificação nas regras de gestão coletiva é considerada como positiva na visão proposta por Marina. O tom, parece-nos, é de flexibilização de direitos. "O potencial do Brasil na área é sabidamente grande. Por meio da internet, do software livre e da prática de compartilhamento, obras vêm sendo criadas e disponibilizadas aos usuários. Se bem usadas, as tecnologias digitais têm base e potencial para democratizar o acesso ao conhecimento, contribuir para a difusão de repertórios, formar públicos e gerar arte. Novos modelos de negócios - envolvendo a interface entre público e privado - e regras jurídicas se fazem necessários nesse contexto. Todo dia, programas de rádio e televisão, filmes, fotografias, histórias em quadrinhos, músicas e livros são digitalizados e distribuídos pela internet, inclusive conteúdos produzidos pelas indústrias proprietárias. [...] Duas leis carecem de atualização. A primeira é a de direitos autorais, de 1998, que não atende às condições da produção contemporânea, pautada no compartilhamento e na digitalização. Embora anunciada repetidas vezes, a reforma do direito autoral brasileiro atravessou gestões sem ser levada a cabo. Apenas uma primeira mudança obteve êxito: a aprovação da Lei da Gestão Coletiva14 (8.666)15, no final de 2013, redesenhando as formas de arrecadar e de distribuir os direitos autorais, o que devolveu aos artistas algum controle sobre os direitos autorais."16 Há, também, uma tendência a enxergar intermediários da indústria de conteúdo como algozes dos criadores. Vale mencionar uma imprecisão técnica: a despeito do que diz o programa, a digitalização de conteúdos, inclusive dos livros, não os desnatura. Um livro continuará sendo um livro, a despeito da digitalização, o mesmo se passando com outras obras digitalizadas. Contratos de licença são aplicáveis a obras intelectuais em geral, e não apenas aos programas de computador. "É preciso também avançar mais na proteção contratual dos verdadeiros criadores, que acabam tendo seus direitos suprimidos por intermediários em algumas modalidades, como e-books, considerados pela legislação como software regulado por licenciamento. Nesse cenário, urge acelerar a aprovação de mudanças na legislação de direitos autorais, já bastante discutidas pela sociedade." Ciência, Tecnologia e Inovação Por fim, o capítulo da antiga pasta de Eduardo Campos como Ministro no primeiro mandato de Lula apresenta uma visão de promoção da inovação vinculada ao aumento de investimentos públicos e incentivos ao investimento privado, prometendo elevar a taxa de investimento em P&D para 2% do PIB, um aumento significativo em relação aos 1.1% que apresentamos atualmente. "As 40 propostas que pretendemos implementar - agrupadas em duas categorias: aperfeiçoamento do sistema nacional de CT&I e novas oportunidades e desafios para o Brasil em CT&I - têm o objetivo de reforçar a centralidade e a transversalidade dos setores de Ciência, Tecnologia e Inovação em um projeto ousado e transformador, que contribua para desenvolver a economia e para reduzir as desigualdades, melhorando o nível de vida da população e colocando o país em lugar de destaque no cenário internacional."17 Algumas das importantes prioridades para esse investimento incremental são pesquisa de base, fortalecimento e expansão de institutos de pesquisa do governo federal, intercâmbio científico com referências estrangeiras, atração e retenção de capital humano para o Brasil, incremento dos mecanismos de apoio à inovação nas pequenas e médias empresas e incremento da infraestrutura de institutos de pesquisa e sistema universitário. A relação universidade-empresa é citada algumas vezes, e deve receber atenção caso a candidata seja eleita. No campo jurídico, apenas uma menção: "Reexaminar a Lei de Inovação quanto à segurança jurídica e as contradições legais existentes no texto, gerando subsídios para reestruturar os marcos legais de CT&I, tanto para os segmentos públicos como privados, de modo que os órgãos de fiscalização governamentais e as agências de fomento atuem alinhados à política nacional para a área."18 Não há um detalhamento de propostas de alteração da Lei de Inovação que nos permita vislumbrar quais seriam as contradições legais que a candidatura pretende atacar. __________ 1Exempificativamente, BOLDRIN, Michele; LEVINE, David. The case against intellectual property. University of Minnesota and UCLA. January 14, 2002. 2É signatário da Convenção de Paris desde 1883 e da Convenção de Berna desde 1922. Nosso Código Penal de 1830 já trazia disposições a esse respeito, e nossa primeira constituição republicana, de 1891, conferia aos autores o direito exclusivo de reprodução de suas obras. 3O termo é razoavelmente impreciso. Um definição possível se refere, amplamente, à "produção de bens e serviços baseada em atividades intelectuais de alta intensidade que contribuem para um ritmo acelerado de avanço científico e técnico, e rápida obsolescência. O componente chave de uma economia do conhecimento é sua maior dependência em relação às capacidades intelectuais que em relação às capacidades físicas ou recursos naturais." POWELL, Walter; SNELLMAN, Kaisa. The Knowledge Economy. Annu. Rev. Sociol. 2004. 30:199-220. Sobre a fluidez do conceito, ver SMITH, Keith. What is the knowledge economy? Knowledge Intensity and Distributed Knowledge bases. UNU/INTECH Discussion Papers. 2002. 4Plano de ação para mudar o Brasil, Coligação Unidos Pelo Brasil (PSB, REDE, PPS, PPL, PRP, PHS, PSL). 5Este último termo é um substituto politicamente correto para "folclore". 6Anexo 1C da Convenção da OMC, o TRIPS (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights) é hoje o padrão de regramento na área de Propriedade Intelectual internacionalmente. 7Programa, página 31 8Convém não confundir a Aliança do Pacífico com a T 9As reuniões de cúpula da Aliança têm producido documentos que reiteradamente mencionam o tema da propriedade intelectual. Exemplificativamente: DECLARACIÓN CONJUNTA PRESIDENTES DE LA ALIANZA DEL PACÍFICO, Cádiz, Espanha, 2012:"También destacaron la próxima creación de Comités de Expertos para discutir sobre la mejora regulatoria y la propiedad intelectual como parte del proceso de integración de la Alianza del Pacífico, y, en caso de existir una evaluación positiva y consenso, determinar el enfoque y los contenidos que podrían incorporarse en estas nuevas materias. De igual modo, anunciaron que se negociará y aprobará un capítulo de compras públicas de gobierno tomando como base la profundización de las disciplinas y compromisos ya existentes en esta materia entre algunos de los miembros de la Alianza del Pacífico."; o protocolo de Cartagena em si traz menções ao tema nas áreas de contratações públicas, comercio eletrônico, investimentos e em propostas gerais de integração. Link para o protocolo. 10Patrimônio genético: informação de origem genética, contida em amostras do todo ou de parte de espécime vegetal, fúngico, microbiano ou animal, na forma de moléculas e substâncias provenientes do metabolismo destes seres vivos e de extratos obtidos destes organismos vivos ou mortos, encontrados em condições in situ, inclusive domesticados, ou mantidos em coleções ex situ, desde que coletados em condições in situ no território nacional, na plataforma continental ou na zona econômica exclusiva. O tema, que não pertence ao núcleo duro da matéria de propriedade intelectual, está regulamentado no Brasil por meio da MP 2.186-16 de 23 de agosto de 2001, e pela Convenção Sobre a Diversidade Biológica. 11O posicionamento do tema parece-nos, também, equivocado, sendo nossa opinião que deveria integrar o eixo de ciência, tecnologia e inovação. 12Página 121 13Para uma abordagem do tema da revisão dos modelos de negócio sob perspectiva ampla, ver nosso artigo Por uma biblioteca de nossos tempos. 14Para um breve aprofundamento do assunto, ver nosso artigo O debate sobre as novas regras da gestão coletiva de direitos autorais - um relato da audiência pública e uma visão sobre sua essência. 15O texto do projeto está equivocado quanto ao número da lei. Trata-le, na verdade, da lei 12.853/13. 16Página 129 17Página 135 18Página 137
segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Propriedade Intelectual pelas lentes do Culturomics

Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio Como fruto do encontro entre uma pesquisa de doutorado em Harvard e a notória porosidade à inovação típica da Google Inc. surgiu, em 2011, uma área nova das ciências denominada Culturomics1, dedicada a estudar o comportamento humano e as tendências culturais de um modo quantitativo. A pretensão de realizar algo do gênero já existia2 havia muito tempo, mas faltavam dados fidedignos que permitissem que esse tipo de análise fosse levado a cabo. Afinal de contas, como reduzir algo tão complexo como a cultura humana a uma análise numérica? E, havendo essa possibilidade, onde estaria localizado esse registro cultural que pudesse ser submetido a tal investigação? Uma parte da resposta seria encontrada naquele que é o maior repositório digital concentrado de registros da cultura humana, a base de dados do Google Books3 que, em abril de 2013, contava já com mais de 30 milhões de livros digitalizados4 - algo próximo de 23% de todos os livros já publicados pela humanidade5. Se não se pode dizer que nossa cultura se reduz a nossos livros, já que o mero filtro editorial imprime ao corpus de obras publicadas uma certa visão do que merece ou não ser divulgado, é indiscutível que os livros são fidedignos guardiães de algumas idéias predominantes de uma determinada época. É certo que tanto quanto hoje se publicam inúmeros livros dedicados, exemplificativamente, ao estudo do fenômeno da internet, da sustentabilidade ambiental, das crises econômica atuais, notaremos também um aumento do número de livros sobre direitos do consumidor a partir de 1962, ano em que o presidente americano John F. Kennedy proferiu discurso sobre o tema ao congresso estadounidense6, ou sobre a União Européia logo após o Tratado de Roma, de 1957, e após o Tratado de Maastricht, de 1992. A presença de temas em livros, portanto, nos conta uma história própria, muitas vezes vinculada àquilo que é importante para a sociedade no momento de sua publicação. Michel e Aiden, estudantes de doutorado em Harvard, apostaram nessa percepção da história da cultura humana e desenvolveram pesquisa e ferramenta voltadas à utilização dessa imensa base de dados dos registros da produção impressa da humanidade, o Google Books, para construir aquilo a que chamaram de Ngram Viewer, um software poderoso que mede a frequência de termos escritos em toda essa base se dados. Com qual frequência (quantas vezes a cada 1000 mil palavras) o termo "Direitos Autorais" aparece em todos os livros da base do Google Books desde 1700? Essa frequência muda ao longo do tempo? Se muda, há eventos que contribuem para esse aumento ou diminuição? Mais: como se compara a frequência entre dois, três, dez termos nas publicações dos últimos 200 anos? Depois da construção do Ngram viewer, podemos, todos, tirar as nossas próprias conclusões. Utilizamos o Ngram viewer para, despretensiosamente, buscar termos de nossa área de modo a extrair dos resultados algumas conclusões interessantes, ou tentar comprovar idéias estabelecidas, como a supremacia do TRIPS em importância sobre as convenções de PI do passado. Vejamos os resultados7. Convenção de Berna, Convenção de Paris e o Acordo TRIPS A partir do início da Rodada Uruguai do GATT, em 1986, que culminou com a criação da OMC, discutiu-se a adoção de termos mínimos de proteção da propriedade intelectual por todos os países participantes dessa nova organização internacional. Esses termos mínimos foram agrupados no anexo 1C à convenção da OMC, denominado TRIPS (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights), ou ADPIC, que incorpora a maioria das normas internacionais substantivas sobre propriedade intelectual preexistentes - a Convenção de Berna sobre direitos autorais, e a Convenção de Paris, sobre propriedade industrial. A incorporação dessas normas ao TRIPS tornou-o o novo referencial de normas internacionais relacionadas à propriedade intelectual. Vejamos como isso se reflete em uma pesquisa que fizemos na base de livros do Google Books usando o Ngram viewer: A linha azul representa a frequência da soma de todas as aparições dos termos "Convenção de Berna" e "Convenção de Paris" desde 1850 na base do Google Books, enquanto a linha vermelha representa a frequência da soma dos termos "TRIPS" e "ADPIC"8. Fica claro como os termos TRIPS e ADPIC começam a surgir depois de 1986, ao mesmo tempo em que a nossas velhas e saudosas Convenções de Berna e Paris iniciam uma queda acentuada em frequência, rumo a um possível e aparentemente anunciado sumiço das páginas dos livros que publicamos atualmente. Pelas lentes dessa ferramente quantitativa de Big Data, vemos claramente como o TRIPS as supera em importância nas nossas publicações. Outras conclusões bastante interessantes podem ser tiradas dos aumentos bruscos na linha azul: os picos de frequência podem, todos, ser associados a revisões das convenções de Berna e Paris, e as duas guerras mundiais se fazem sentir com bastante clareza nos vales de frequência que a linha azul mostra até a metade da década de 1940. A doutrina do Fair Use Nos Estados Unidos, a doutrina do Fair Use deixou o common law e se tornou regra codificada a partir do Copyright Act de 1976. Sabemos que aquele país se baseia no sistema de common law até hoje, e que o precedente judicial tem enorme importância no estabelecimento de regras e interpretações da lei escrita, mas veja-se o efeito que a positivação teve sobre a importância do tema para a cultura jurídica daquele país. Proteção jurídica do software A questão da proteção jurídica do software não poderia existir antes que o próprio software como tal fosse um produto comercializável e presente no cenário tecnológico. O modelo inicial de distribuição de software era, evidentemente, o modelo de distribuição embarcada, em que se comprava a máquina, e se levava um conjunto de hardware e software. O surgimento de um modelo unbundled, que permitiu ao software um mercado autônomo, independente do hardware, começou a dar sinais de existência na década de 1960 e, a julgar pelos resultados dessa nossa pesquisa, a primeira idéia era que se protegesse o software via patentes (linha azul, software patent). Em 1972, o caso Gottschalk v. Benson9 arrefece as expectativas de um sistema patentário de proteção ao software nos EUA, e logo depois, em 1978, a Suprema Corte dos EUA decide Parker v. Flook10 em desfavor dos inventores. A hipótese que os dados do Ngram viewer nos oferece é que, a partir desses casos, a alternativa de proteção do software via copyright ganhou força e se apresenta claramente como idéia predominante nas publicações sobre o tema naquele país. Nota-se, entretanto, uma tendência de aumento às menções a software patent (linha azul) depois de 1981, data do julgamento do caso Diamond v. Diehr11 (julgado em favor dos inventores) e uma escalada íngrime a partir de 1994. Qual seria a razão? A história nos dá duas respostas: Bruce Lehman, chefe do USPTO convoca audiências públicas para debater o tema das patentes de software12 justamente em 1994, e neste mesmo ano o Federal Circuit profere importante decisão em favor do patenteamento no caso In re Alappat13. Uma potencial area de pesquisa para o Direito Não há um Ngram viewer para livros em português. A base, disponível para consulta (clique aqui), apresenta um arquivo de pesquisas de livros em inglês americano, inglês britânico, francês, alemão, hebreu, italiano, russo e espanhol, mas a "última flor do lácio" permanece fora das atuais possibilidades, talvez por questões regulatórias, talvez por não haver uma base relevante de obras digitalizadas em português para permitir uma análise relevante. Qualquer interessado no fenômeno jurídico seria incapaz de resistir à possibilidade de medir a penetração de ideias, temas, teses jurídicas em todo o corpus de conhecimento jurídico publicado em uma determinada época. Essa medição poderia resultar em inferências importantes, permitindo análises que nunca pudemos fazer sem acesso a esse mundo de dados que a digitalização de livros nos permite. Esperamos, ansiosamente, por essa possibilidade. __________ 1MICHEL, Jean-Baptiste; AIDEN, Erez Liberman. Quantitative Analysis of Culture Using Millions of Digitized Books. Science, 331 (6014). 2O artigo de MICHEL e AIDEN (nota 1) cita G.K. Zipf, The Psycho-biology of Language, de 1935, como um primeiro tiro nessa direção, sem que muito avanço fosse obtido pela ausência de dados relevantes à época. 3Google books. 4Há uma mistura entre livros já disponibilizados originalmente em formato digital ao Google, e outros digitalizados pela própria companhia, a partir de livros físicos de bibliotecas de universidades. 5A estimativa da própria empresa é baseada em uma pesquisa de mais de 150 bancos de dados de registros de livros, como o ISBN. Veja mais neste link. 6Deixo, neste ponto, um agradecimento ao Dr. Rodrigo Leme Freitas, com quem tanto tenho trocado idéias sobre projetos e temas jurídicos, e de quem tomei uma lição sobre história do direito consumerista. 7Todos os gráficos deste artigo foram extraídos de pesquisas realizadas no Ngram Viewer da Google Inc., disponível para consulta. Em seu livo Uncharted, Big Data as a Lens on Human Culture, Michel e Aiden solicitam que a utilização de gráficos do Ngram Viewer em publicações mencionem a seguinte referência bibliográfica: "Jean-Baptiste Michel, Yuan Kui Shen, Aviva Presser Aiden, Adrian Veres, Matthew K. Gray, The Google Books Team, Joseph P. Pickett, Dale Hoiberg, Dan Clancy, Peter Norvig, Jon Orwant, Steven Pinker, Martin A. Nowak and Eres Lieberman Aiden". "Quantitative Analysis of Culture Using Millions of Digitized Books", Science 331, no. 6014 (January 14, 2011; published online ahead of print December 16, 2010): 176-82. 8Fizemos a pesquisa na base dos livros em francês, para evitar uma contaminação do resultado pela palavra trips que, em inglês, é tambem a conjugação da terceira pessoa do singular do verbo "to trip" (tropeçar). 9Sobre o caso Gottschal v. Benson, ver nosso artigo. 10Sobre o caso Parker v. Flook, ver nosso artigo. 11Sobre o caso Diamond v. Diehr, ver nosso artigo. 12Para um excelente relato evolutivo, ver Will the Supreme Court Save us from software patents? 13In re Alappat.
segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Diamond v. Diehr

Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio Depois de nos debruçarmos sobre os casos Gottschalk v. Benson1 e Parker v. Flook2, dois precedentes indispensáveis para a compreensão do tema de patenteabilidade de software no direito estadounidense, devemos, para completar a análise daquilo que a doutrina costuma chamar de trilogia da patenteabilidade (patent-eligibility trilogy), avançar sobre o importante caso Diamond v. Diehr, de 1981. O interesse no estudo deste caso reside não apenas no fato de que se trata do primeiro julgado da U.S. Supreme Court a decidir em favor dos inventores, determinando judicialmente a concessão de uma patente a invenção implementada por software (Gottschalk v. Benson e Parker v. Flook se haviam julgado contrariamente à patenteabilidade), mas também porque, em conjunto com seus dois antecessores, Diamond v. Diehr compõe um conjunto de entendimentos que nos auxilia a conformar um marco inicial no desenvolvimento deste tema hoje bastante discutido na área de propriedade intelectual em todo o mundo. Um novo processo de cura da borracha sintética A fabricação de partes e componentes a partir da moldagem do polímero chamado borracha sintética3 envolve uma série de etapas, entre as quais está a acomodação do polímero em estado líquido a prensas térmicas que elevam a temperatura do material e o fazem conformar-se aos moldes desejados enquanto ocorre o processo de cura, induzido tanto por agentes catalisadores quanto pela temperatura e pela pressão aplicados ao material enquanto este se encontra na prensa. O tempo total de cura da borracha sintética varia segundo três fatores4: (i) uma constante de ativação, que é determinada previamente para cada lote submetido ao processo de cura, e que varia segundo a viscosidade do material; (ii) o formato do molde a que o polímero é submetido, já que uma tira fina de borracha tem cura mais rápida que um pneu, por exemplo e (iii) a temperatura mantida ao longo do processo. Enquanto os fatores (i) e (ii) eram passíveis de auferimento preciso antes que o polímero passeasse pelo processo de cura, a variável de temperatura eratratada como imprevisível, uma vez que cada nova introdução de material a ser curado exigia abertura e fechamento do maquinário, promovendo alterações térmicas. Essa variação não-controlada de temperatura ocasionava incidentes de imprecisão no ponto da cura, para mais ou para menos. O pedido de patente de James Diehr e Theodore Lutton5 buscava proteger um invento direcionado justamente à solução desse problema técnico, mas que envolvia uma etapa implementada por um software. Sensores instalados nos moldes alimentavam periodicamente um computador com informações instantâneas de temperatura, e esse dado é usado para re-calcular constantemente o tempo total de cura durante a realização do processo, sendo que quando esse periódo de tempo calculado e re-calculado fosse completado, o computador emitiria um sinal à prensa que interromperia seu funcionamento. Um claro avanço na maneira de se produzir borracha sintética, e que dependia inexoravelmente de um programa de computador. O trânsito do caso até a Suprema Corte O entendimento do examinador, posteriormente confirmado em recurso administrativo ao Board of Appeals6, foi de que a única etapa do processo que efetivamente constituía algo novo era a etapa de cálculo e re-cálculo do tempo de cura efetuada pelo algoritmo computacional. Com base no caso da Suprema Corte Gottschalk v. Benson, que considerara esse tipo de operação como excluída de patenteabilidade com base na doutrina dos mental steps, o processo, por se resumir essencialmente a isso, não mereceria proteção patentária. As demais etapas descritas no pedido de patente7 foram consideradas como pertencentes ao estado da técnica. "É nossa opinião que a única diferença entre os métodos convencionais de operação de uma prensa térmica e o método apresentado pelos apelantes repousa nas etapas reivindicadas entre o incidente de cálculo e a solução do problema matemático ou a fórmula utilizada para controlar a prensa térmica e sua abertura automática. Acreditamos que o contributo dos apelantes, independentemente do formato das reivindicações, é um programa de computador do tipo que a Suprema Corte já indicou, tanto em Flook quanto em Benson, encontrar-se para além dos limites do 35 USC 101".8 O caso foi então levado à apreciação judicial da United States Court of Customs and Patents Appeals (CCPA)9 que, seguindo o padrão dos outros dois casos, também reverteu a decisão10. Os principais argumentos dos inventores se resumem ao fato de que o método de medição constante da temperatura e re-cálculo periódico do tempo de cura não se encontravam no estado da técnica, e que suas reivindicações se dirigiam a uma aplicação específica daquela fórmula matemática, e não à fórmula matemática em abstrato. A decisão da CCPA faz uma primeira divisão de temas entre, de um lado, a análise da novidade de uma invenção e, de outro, as reivindicações se dirigirem ou não a matéria patenteável de acordo com a legislação americana. Essa distinção parece especialmente dirigida à confusão que a decisão da Suprema Corte havia feito no caso Parker v. Flook. Quanto a ser o invento matéria patenteável ou não, a CCPA aplica uma regra analítica de dois passos, com base um de seus próprios precedentes, In re Freeman, de 1978, segundo a qual deve-se primeiro entender se as reivindicações envolvem direta ou indiretamente cálculos matemáticos e, em caso afirmativo, deve-se então verificar se as reivindicações se dirigem a essa fórmula matemática em abstrato ou se a uma de suas aplicações específicas. Parece evidente que o processo de Diehr prevê uma aplicação especialíssima de um método matemático, e que seu eventual patenteamento não teria nenhum tipo de influência sobre a utilização do mesmo método matemático em outras configurações industriais específicas a não ser essa, da borracha sintética. "Seria uma grave distorção dizer que as reivindicações se dirigem essencialmente a cálculos. No caso Flook, por outro lado, as reivindicações não mencionam nada além do cálculo, acompanhado pela atividade que lhe segue e que consiste tão-somente na atualização de um limite de alarme para um novo valor, que não passa de um número novo. Aqui, o cálculo está intimamente ligado com o processo mencionado de cura da borracha. Portanto, os apelantes não estão reivindicando um processo para simplesmente gerar um número novo por meio de um cálculo".11 A reversão da decisão administrativa antes exarada pelo USPTO levou o então Comissioner of Patents, Sidney Diamond, a ajuizar um writ of certiorari12, exatamente o mesmo procedimento que levaram os dois casos anteriores à Suprema Corte. A decisão da Suprema Corte Apesar de este caso terminar, de maneira inédita, com a concessão da patente, a Suprema Corte esteve longe de chegar a essa decisão de maneira unânime, com quatro votos contrários aos inventores, e cinco, apenas um a mais, em seu favor. A parte final da decisão dispensa esclarecimentos: "A questão que temos hoje perante a corte é apenas se as reivindicações dos respondentes se encontram definidas como matéria patenteável sob o § 101. Vemos as reivindicações dos respondentes como tão-somente um processo de moldagem de produtos de borracha, a não como uma tentativa de patentear uma fórmula matemática. Reconhecemos, claro, que quando uma reivindicação indica uma fórmula matemática (ou um princípio científico ou um fenômeno da natureza), uma pergunta deve ser feita sobre se a reivindicação busca proteção patentária para essa fórmula em abstrato. Uma fórmula matemática como tal não goza da proteção da nossa lei de patentes, Gottschalk v. Benson, 409 U.S. 63 (1972), e este princípio não pode ser burlado por uma tentativa de limitar o uso da fórmula a um ambiente tecnológico específico. Parker v. Flook, 437 U. S. 584 (1978). Do mesmo modo, atividades que sucedem a utilização da fórmula mas que sejam insignificantes não transformarão um princípio não patenteável em um processo patenteável. [...] Por outro lado, quando uma reivindicação contendo uma formula matemática implementa ou aplica essa fórmula em uma estrutura ou processo que, considerado como um todo, desempenha uma função que as leis patentárias foram feitas para proteger (e.g. transformação ou redução de um artigo para um estado ou coisa diferente), então a reivindicação satisfaz os critérios do §101. Como não vemos as reivindicações dos respondentes como uma tentativa de patentear uma fórmula matemática, mas de aplicá-la em um processo industrial de moldagem de produtos de borracha, mantemos a decisão da Court of Customs and Patent Appeals)."13 Um desfecho para a trilogia da patenteabilidade de software Os casos que analisamos nesta coluna constituem os fundamentos da interpretação jurisprudencial sobre patenteabilidade de software nos EUA. Diamond v. Diehr funciona como um aglutinador dos conceitos explorados nos casos anteriores. Resume a doutrina dos mental steps, esclarece a questão da relevância das atividades que sucedem a etapa de aplicação computacional e fornece um exemplo bastante claro de invenção implementada por programa de computador. É importante ter em conta, igualmente, que, como já mencionado, nem todos os casos relacionados ao tema de patenteabilidade de software até 1981, ano do caso que ora analisamos, chegaram até a US Supreme Court. Um número considerável, com ricas análises, tiveram o CCPA como instância final ou nem sequer chegaram a deixar a instância administrativa. A conformação jurisprudencial em torno desse tema bastante espinhoso é o que orientou e ainda orienta a prática de exame do USPTO, sendo certo que essas bases influenciaram a prática de exame de outros escritórios de patente em outras partes do mundo. __________ 1Gottschalk v. Benson. 2Parker v. Flook. 3Material mais adequado que a borracha natural para uma infinidade de aplicações industriais 4Propriedades do processo de cura elaboradas a partir da equação de Arrhenius, notável cientista sueco agraciado com o Nobel de química em 1903. 5US Patent 4344142. 6203 USPQ 48. 7Ver nota número 5. 8"It is our view that the only difference between the conventional methods of operating a molding press and that claimed in appellants' application rests in those steps of the claims which relate to the calculation incident to the solution of the mathematical problem or formula used to control the mold heater and the automatic opening of the press. We think that appellants' contribution, regardless of claim format, is a computer program of the character which the USSC has indicated, in both Flook and Benson, is outside the bounds of 35 USC 101". 9A competência para julgar casos como este encontra-se, hoje, alocada para o Federal Circuit. A CCPA foi abolida em 1982, por meio do Federal Courts Improvement Act. 10In re Diehr and Lutton, 602 F.2d 982, 203 USPQ 44. 11"It would be a gross distortion to say that the claims on appeal are directed essentially to calculations. In Flook,by contrast, the claims recite nothing but the calculation, coupled with the post-solution activity consisting only of updating an alarm limit to the newly-calculated value which is merely a new number. Here, the calculation is intimately entwined with the rubber molding process recited. Therefore appellants are not claiming a process for merely generating a new number by a calculation." 12Para compreender o writ of certiorari, leia este artigo no Migalhas. 13Decisão da US Supreme Court.
Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio O bloqueio do acesso ao Pirate Bay (TPB) a partir do território argentino foi abordado na publicação passada sob o ponto de vista da efetividade. Questionávamos se medidas como esta são realmente capazes de servir o propósito de diminuir a quantidade de infrações de direitos autorais na internet, dada a perene disponibilidade de mecanismos para contorná-las tecnicamente. Diante desse questionamento, propusemos uma visão que, em lugar de buscar a solução perfeita, a bala de prata que - sabemos - não existe para um problema tão complexo como a pirataria, aceita a evetual imperfeição e busca compensá-la com outras medidas conjuntas, de natureza distinta, voltadas não só a dificultar a distribuição de conteúdos sem autorização, mas também a dificultar a sua produção e a diminuir a demanda do consumidor por conteúdo ilegal, fornecendo-lhe boas alternativas que remunerem os criadores. A coluna de hoje tem enfoque na decisão judicial1 e explora igualmente alguns conceitos introdutórios relacionados à tecnologia de compartilhamento facilitada pelo TPB, essenciais para compreensão do julgado. Napster, P2P, BitTorrent e Pirate Bay A tecnologia de compartilhamento de dados denominada P2P (peer-to-peer) se tornou bastante conhecida no meio jurídico com as decisões oriundas de processos da indústria fonográfica contra o Napster, nos Estados Unidos, no final da década de 19902. Trata-se de uma espécie de arquitetura de aplicação de rede que permite o compartilhamento de dados entre terminais, dispensando, em algum grau, a participação de estruturas de rede hierarquicamente superiores, como os servidores3. Quando acessamos um website como o portal do Migalhas através de nossos navegadores, a arquitetura de aplicação de rede em funcionamento por detrás do que vemos é denominada cliente-servidor: em algum lugar há um sistema contratado pelo periódico que abriga todo o conteúdo que lemos (servidor), sendo que em relação a esse sistema centralizado nossos navegadores são considerados clientes que solicitam ao servidor a exibição das informações. Sobre essa arquitetura fundou-se o que hoje conhecemos como World-Wide Web, a parte da Internet que funciona com base no protocolo HTTP4. Já a arquitetura tornada famosa pelo Napster à época, embora levasse à cabo justamente a transferência de dados entre terminais conectados à internet, fazia-o de uma maneira diferente: os bits e bytes se transferiam diretamente entre os usuários do serviço, e não a partir dos servidores do Napster, muito embora este último operasse um serviço chamado de diretório centralizado, que informava aos terminais conectados à rede em quais pares (peers) o objeto buscado poderia ser encontrado. Assim, o usuário que desejasse baixar uma gravação da música Refazenda, de Gilberto Gil, buscava pelo termo no serviço Napster, que lhe promovia uma conexão com outro usuário que tivesse esse objeto em seus arquivos. Vê-se, portanto, que embora a transferência se operasse diretamente entre usuários, era impossível obter um determinado conteúdo sem que o Napster indicasse qual caminho o computador de um usuário deveria seguir, e comprovação desse fato eventualmente levaria às decisões judiciais que forçaram o serviço a interromper suas atividades e a se moldar a um modelo de negócios legalmente aceitável. No mesmo ano em que o Napster era condenado pela Court of Appeals for the 9th Circuit5, Bram Cohen, fundador da BitTorrent Inc., desenvolveu e disponibilizou o protocolo denominado Bittorrent, que viria a se tornar responsável por mais de 40% do volume de dados compartilhados diariamente na internet6, justamente o protocolo de compartilhamento de dados utilizado pelos usuários do Pirate Bay. Naquele momento da história, outros protocolos P2P que prescindiam do modelo de diretório centralizado já haviam surgido, como o Gnutella e o KaZaA7, eliminando a fraqueza estratégica que o Napster apresentava, mas o BitTorrent, apesar de ainda depender na época de um serviço centralizado denominado tracker8, oferecia uma característica que o tornaria imbatível do ponto de vista de eficiência: os arquivos compartilhados são divididos em uma infinidade de partes, permitindo ao solicitante do conteúdo receber essas diversas partes, em qualquer ordem, a partir de qualquer um dos usuários conectados ao swarm9 que as possua. O Pirate Bay segue sendo o maior repositório de arquivos .torrent e magnet links que conhecemos, sendo que a enorme maioria desses referenciais10 serve o propósito de promover o download, a partir de dispositivos de outros usuários da rede, de conteúdo protegido por direitos autorais, de modo que o acesso ao catálogo do Pirate Bay ou de outro repositório do mesmo tipo é uma etapa indispensável à finalidade de operar o download de um conteúdo qualquer a partir dessa tecnologia. O julgado argentino Diversas empresas titulares de direitos autorais e as duas mais importantes associações argentinas representando compositores, editores e gravadoras - CAPIF e SADAIC - ajuizaram contra The Pirate Bay, na Cidade autônoma de Buenos Aires, ação pleiteando a concessão de uma medida autosatisfactiva11 inaudita altera parte com a finalidade de ver bloqueados, nos provedores de conexão12 do país, nomes de domínio e endereços IP (bloqueio de DNS e de IP) que permitem acessar o sítio a partir de território argentino. Alegaram, essencialmente, (i) que o website é um facilitador da violação de direitos autorais, uma vez que disponibilida para download um enorme catálogo de arquivos do tipo torrent13 que contêm a informação necessária para que usuários do mundo todo compartilhem obras sem autorização dos titulares de direito que sobre ela recaem; (ii) que ao menos 25% de todo o conteúdo que se pode acessar por meio dos dados disponibilizados no Pirate Bay são itens fonográficos, sendo que mais de 75% ainda se encontra em fase de distribuição comercial; (iii) e que, considerando-se que os dados acostados aos autos demonstram que, em outubro de 2010, 42 milhões de usuários do mundo todo visitaram o website, sua receita publicitária anual chega a um mínimo estimado de US$ 37 milhões de dólares, demonstrando que o sítio lucra e se enriquece ilegalmente às custas de direitos de terceiros. Em qualquer conjunto de casos de violação de direitos de propriedade intelectual na internet, será bastante comum encontrar-se o argumento da intermediação neutra14. O próprio caso Napster nos revela um embrião desse argumento, repisado posteriormente em um sem número de ocasiões em que um intermediário da internet se vê processado por titulares de direito em razão de a sua atividade proporcionar violações. Haverá casos nos quais, efetivamente, o intermediário não exerce nenhum tipo de ingerência prévia sobre o conteúdo disponibilizado por meio de seu serviço na internet, situação que, compatibilizada com o atendimento a eventuais requerimentos de retirada do ar partidos de titulares de direitos, tende a ser considerada pelo judiciário como tolerável, como temos visto em recentes casos levados ao STJ15. O caso do Pirate Bay, entretanto, é bastante diferente dessas situações: não só seus administradores controlam integralmente o conteúdo, como eventuais notificações partidas de titulares de direitos autorais, quando não ignoradas solenemente, são respondidas nem tão solenemente assim16. Além disso, é claríssimo auferimento de receitas advindas da publicidade em seu website sem que nenhum centavo seja revertido em favor dos criadores das obras que são compartilhadas ilicitamente com a inegável intermediação do serviço. Analisando esses aspectos, a decisão de procedência dos pedidos traz alguns elementos bastante interessantes do ponto de vista jurídico, explorando todo um espectro de possibilidades que levam à conclusão mandamental. O raciocínio do julgador explorou a atividade de facilitação desempenhada pelo Pirate Bay tanto sob o aspecto do enriquecimento sem causa quanto do abuso de direito. Na primeira análise, expõe o julgador: ".porque no es razonable participar en los beneficios trasladando las pérdidas. Esta antigua regla jurídica que nace en el derecho romano, es consistente en términos de racionalidad económica, porque este tipo de externalidades negativas deben ser soportadas por quien las genera y no por el resto de la sociedad" O motor de receitas do Pirate Bay é, principalmente, a venda de seus espaços a anúncios publicitários, que por sua vez são lucrativos em razão do enorme fluxo de visitantes às páginas do serviço. Mas esse enorme fluxo de visitantes só existe por um único motivo, que é o fato de lá ser possível encontrar-se um enorme catálogo de links e arquivos que permitem o download de conteúdo protegido por direitos autorais. Em outras palavras, ganha-se dinheiro exclusivamente porque, acessando-se o serviço, tem-se acesso a links e arquivos que possibilitam o download não-autorizado de itens de titularidade alheia. Tudo isso sem que o titular do sítio arque com as "externalidades negativas", os custos com remuneração dos titulares que adviria naturalmente da implementação de uma operação desse gênero. Trata-se, entendemos, de hipótese passível de enquadramento na legislação pátria sob a cláusula geral do artigo 884 do CC17. O julgado também explora a tese de constituir-se a atividade do Pirate Bay em abuso de direito: "También se ha expresado que la prohibición de abusar de los derechos no sólo amerita el haber incurrido en alguna de las tipologías calificadas como 'abusivas', sino también que de ellas se derive, o pueda derivarse, un perjuicio. Este último requisito es, de hecho, la razón de ser del instituto y, no en vano, este tiene su origen en los daños que se daban a raíz de ciertos usos cuestionables de prerrogativas legales (Prieto Molinero, Abuso del Derecho, op. cit., pág. 316). Así, The Pirate Bay no luce una intermediación inocua al proveer una plataforma y disponer una red de interconexión para la concreción del ilícito civil del que se trata acá." Muito embora o julgador tenha expressamente acatado a rasa ilegalidade em si da atividade de facilitação desempenhada pelo Pirate Bay, o que o isentaria de necessariamente explorar a tese de abusividade, entendeu por bem analisar a intermediação promovida pelo serviço exclusivamente do ponto de vista de seus efeitos. As teses de abuso de direito, como se sabe, ganharam força na esteira da interpretação funcional do direito, e buscam localizar no campo do ilícito instâncias de exercício de direitos subjetivos cujos efeitos se voltam contra o propósito mesmo de sua existência. Nessa linha, entendeu o julgador que ainda que se considerasse - como corretamente se considera - o provimento de uma plataforma de compartilhamento de arquivos como atividade lícita, e, portanto, permitida, o caso específico do Pirate Bay representa uma materialização abusiva desse direito, uma vez que seus resultados são prejudiciais a toda uma cadeia de criadores e titulares de direitos, hipótese abrangida pelo regramento de abuso de direito do código civil argentino18. Essa interpretação dos fatos é possível também à luz de nosso código civil19. __________ 1Decisão. 2A&M Records Inc. v. Napster Inc. 3É difícil chegar-se a uma terminologia integralmente precisa e ao mesmo tempo minimamente informativa. Teoricamente, o processo que inicia a comunicação é usualmente considerado como processo cliente, enquanto o processo que só inicia a comunicação depois de ser contactado é considerado como processo servidor. Essa definição faz sentido em um contexto de arquitetura cliente-servidor, mas em um contexto de arquitetura P2P, em que, apesar de não haver um nó centralizado, um "cliente" inicia a comunicação com um outro "cliente" (que, pode-se dizer, executa o "lado" servidor da comunicação), dizer que este último cliente pode ser considerado um "servidor" prejudica a explicação do conceito. Além disso, é inegável que a idéia de "servidor" carrega uma conotação de sistema centralizado, hierarquicamente superior aos clientes, de modo que preferimos a clareza ao preciosismo técnico no presente artigo. 4A Internet e a WWW não são a mesma coisa: aquela, difícil de definir em uma frase, abriga esta, mas abriga também uma infinidade de outros serviços e protocolos que estão fora da World-Wide Web. 5Ver nota de rodapé número 2. 6Informações obtidas em About BitTorrent. 7O protocolo Gnutella é considerado puramente P2P. O KaZaA também é um protocolo que independe de estruturas centralizadas mas, diferentemente do Gnutella, opera a criação de super-nós, elegendo pares com mais capacidade de processamento e banda como líderes de determinados conjuntos virtuais de compartilhamento, sendo que esses líderes passam a operar um diretório de informações a respeito de seus subordinados conectados. A diferença para o Napster é que o super-nó ou o líder não é mais que um usuário comum da rede que desaparece no momento em que se desconecta. 8O tracker, grosso modo, faz as vezes de um diretório centralizado, embora de maneira substancialmente diferente. O arquivo .torrent contém instruções que permitem ao usuário obter do tracker informações sobre IPs de usuários conectados que possuam os objetos buscados para compartilhamento. O Pirate Bay, além de um catálogo de arquivos .torrent, era também um tracker. 9Termo que significa "enxame". É um determinado grupo de usuários conectados que compartilham arquivos. 10Adotamos o termo "referenciais" para mencionarmos tanto os arquivos .torrent quanto os magnet links, uma vez que o conteúdo propriamente dito vem diretamente dos usuários da rede, e são nela encontrados por meio de instruções executadas no computador do usuário a partir de dados contidos ou nos arquivos .torrent ou no sistema de um outro usuário encontrado na rede a partir de um magnet link. Os dois termos referem-se a estágios diferentes da tecnologia BitTorrent, sendo este último o estado atual da técnica. Antes de seu desenvolvimento, a tecnologia dependia do download de arquivos do tipo .torrent, que continha instruções para que o cliente do usuário calculasse um hash (espécie de impressão digital do arquivo buscado) e buscasse no tracker informações sobre quais usuários conectados poderiam disponibilizar o objeto buscado. As duas tecnologias coexistem atualmente, mas a maior descentralização permitida pelos magnet links indica uma tendência à sua adoção mais ampla. 11A decisão traz um detalhamento bastante risco acerca dessa figura doutrinária e jurisprudencial do direito argentino denominada medida autosatisfactiva. Apesar da tentadora simplificação terminológica, buscamos não identifica-las com as cautelares satisfativas, também construídas jurisprudencialmente no direito brasileiro (e não sem muita polêmica), em razão de não se dirigir a autosatisfactiva à garantia da efetividade de um provimento futuro, da mesma maneira que fugimos da equiparação à antecipação de tutela, uma vez que a decisão na autosatisfactiva não é antecipação de uma tutela futura, mas sim a própria tutela, conferida em definitivo, malgrado a cognição sumária. ".es un proceso en sí mismo con una decisión que no abastece o anticipa una decisión jurisdiccional ulterior, sino que se concreta en ésta, pudiendo ser revisada en un proceso de conocimiento posterior más amplio incoado por el accionado, o mediante la interposición del recurso de apelación." (ver nota número 1) 12Terminologia harmonizada com o Marco Civil da Internet, artigo 5º., lei 12.965/14. 13O julgado menciona os magnet links, mas não os vê como suficientemente desligados da atividade do Pirate Bay para alterar sua avaliação acerca da ilicitude. 14 15Para referência, vero nosso artigo acerca deste tema. 16Este artigo contém a resposta padrão que o Pirate Bay envia a seus notificantes. 17Art. 884. Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários. 18Art. 1.071. El ejercicio regular de un derecho propio o el cumplimiento de una obligación legal no puede constituir como ilícito ningún acto. La ley no ampara el ejercicio abusivo de los derechos. Se considerará tal al que contraríe los fines que aquélla tuvo en mira al reconocerlos o al que exceda los límites impuestos por la buena fe, la moral y las buenas costumbres 19Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes
Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio A caçada ao The Pirate Bay ("TPB"), o maior diretório de magnet links e arquivos torrent1 do mundo, chegou ao território argentino. Na semana passada, o 64º Juzgado Nacional de Primera Instancia en lo Civil publicou interessante decisão2, de março de 2014, que determina aos provedores de conexão3 do país o bloqueio de nomes de domínio e endereços IP atribuídos ao famoso serviço que nos últimos dez anos se transformou em um ícone da violação de direitos autorais no mundo todo. Na prática, a execução da medida significa que terminais conectados à internet por meio dos provedores argentinos não conseguirão mais acessar os catálogos de arquivos do TPB nem tampouco dele se utilizar como tracker4, a menos que utilizem proxy sites5. Longe de ser inédita, a medida implementada na Argentina já havia sido perseguida anteriormente por titulares de direito em diversos países como Finlândia, Irlanda, Holanda, Itália e Reino Unido, mas é a primeira vez que se persegue essa estratégia em território americano. Considerações sobre a efetividade da medida A reação de ativistas6 à medida foi imediata, e não se limitou à crítica democrática nem se serviu de mecanismos judiciais. Em vez disso, confirmando o pendor antiestatal que sói revelar-se em alguns movimentos de suposta defesa da internet, o sítio de uma das autoras da ação, a CAPIF7, foi sequestrado por algumas horas, convertendo-se ele mesmo em um proxy de redirecionamento justamente ao sítio da TPB - uma manobra insustentável por longos períodos de tempo, mas cujo evidente objetivo não era manter permanentemente o Pirate Bay em funcionamento naquele domínio, e sim levar a cabo uma demonstração de poder, materializar irresignação, e sobretudo atestar que o mecanismo de controle implementado judicialmente não é perfeito. E, perfeito, de fato, ele não é. O caráter horizontal e descentralizado da internet sempre permite que alguma saída exista, ainda que manobras técnicas de alguma complexidade possam ser exigidas para frustrar eventuais bloqueios. No caso específico do Pirate Bay, essa manobra técnica contra a estratégia atual dos titulares de direitos, embora de relativa complexidade para quem a implementa8, é bastante simples para o usuário final do serviço. Basta que acesse um proxy site - uma localidade na internet, fora da faixa de IPs bloqueada pelos provedores de conexão, e registrada em um nome de domínio ativo em seu DNS9, cuja única finalidade seja redirecionar o usuário a um sítio do The Pirate Bay ainda em funcionamento. Ora, sendo a burla simples e disponível, e sendo certo que a estratégia não dá conta do problema como um todo, por que será que é perseguida por titulares de direitos autorais em todo o mundo? Haveria uma disposição à prodigalidade na indústria de conteúdo? Não sejamos pueris a ponto de imaginar que tempo, dinheiro e exposição pública seriam consistentemente investidos na questão se o bloqueio do TPB não tivesse valor no composto de táticas para recobrar um pouco do terreno perdido pelos titulares de direitos como um todo. Para entender esse conceito, entretanto, é preciso, antes, abandonar a idéia de que a pirataria é uma criatura mítica, uma besta-fera que só será abatida com uma certeira bala de prata. Não será. Nem o problema é tão simples que se o consiga delimitar claramente em um único corpo a ser atacado, nem há uma única arma fatal que, isolada, neutralize suas múltiplas causas. A viabilização de um mercado de conteúdo na internet depende de uma série de fatores, nenhum deles por si só definitivos, mas todos eles complementares uns em relação aos outros. A imperfeição de um desses fatores isoladamente não o transforma em peso morto no conjunto de estratégias, e suas ineficiências podem ser complementadas por fatores outros, só visíveis quando se pretende compreender o fenômeno do consumo de conteúdo na rede a partir de uma certa distância. A existência de um produto, pirata ou não, na rede ou fora dela, dependerá sempre e essencialmente de três condições: (i) produção (possibilidade técnica), (ii) distribuição e (iii) consumo. Assim, não havendo demanda por um determinado bem, sendo ele impossível de se distribuir, ou sendo impossível sua produção, esse bem ou não existirá, ou, existindo, não estará disponível aos consumidores, ou, se estiver, não será consumido. Todos os elos dessa cadeia são absolutamente inter-dependentes, e o rompimento de qualquer um deles levaria ao extermínio do produto no mercado. O mesmo raciocínio pode ser aplicado aos produtos de violação de direitos autorais. Se a cópia for impossível, se a distribuição for inviável ou se não houver demanda pelo produto pirata, simplesmente não haverá um problema, mas o mundo real traz contingências que impõem a constatação de que medidas em qualquer desses três seguimentos nunca são eficientes a ponto de perfeitamente suprimirem qualquer dos elos da cadeia. A estratégia de desestimular o (iii) consumo de cópias ilegítimas por meio do aprimoramento dos modelos de negócio de conteúdo é uma das que mais evoluíram nos últimos anos, primeiramente no mercado fonográfico e posteriormente no segmento audiovisual e de software. Ofertas de conteúdo via streaming e nuvem em plataformas de uso simples e interfaces gráficas invejáveis encontram-se, hoje, à disposição do mercado brasileiro a preços bastante acessíveis e que competem com o mercado pirata. O esforço para desestabilizar ou impedir a (ii) distribuição de conteúdos pirateados sofreu, igualmente, significativa evolução, tanto na radical mudança do enfoque de escoamento de bens tangíveis para a contenção da disseminação via internet, realidade mais do que assentada nos nossos tempos, quanto no desenvolvimento de estratégias próprias do ambiente e da realidade da rede como as medidas de asfixia econômica por meio da colaboração de provedores de pagamento online e a atuação dos titulares de direitos junto aos mecanismos de busca, que, atualmente, são o mais importante intermediário para a localização de conteúdos na internet. O pretendido desmonte do Pirate Bay certamente se localiza no contexto das medidas de desestabilização da distribuição de ilegal de conteúdos na internet. Por fim, o aprimoramento das defesas contra a (i) produção de cópias ilegítimas avançou consideravelmente em relação ao tradicional DRM para limitar, em determinados modelos, a viabilidade técnica da pirataria, especialmente na área de software. Quanto mais os programas de computador se convertem em um modelo de software como serviço em que o produto não é distribuído, permanecendo disponível exclusivamente na nuvem, menores são as possibilidades de uso não-licenciado daquele produto. Assim, por exemplo, exemplos como o do Salesforce.com, um amálgama de software e serviço acessível exclusivamente via internet por usuários licenciados, implicam redução do prejuízo aos casos em que as senhas de acesso são compartilhadas, e evitam a pirataria em massa que advém da distribuição do programa na internet. Nenhuma dessas três estratégias é perfeita, e é a soma de todas elas que produzirá resultados positivos. A crítica à parcial ineficiência de uma determinada medida normalmente deixa de contemplar que titulares de direito levam a cabo estratégias mais amplas de enfrentamento das violações a seus direitos, e que a imperfeição é a regra do jogo: ninguém acredita que bloquear acesso a um determinado sítio resolverá o problema da pirataria. Por outro lado, reconhecer esse fato está longe de significar inocuidade ou falta de importância. Na próxima quinzena, a segunda parte deste artigo analisará a decisão judicial prolatada pela justiça argentina em seus aspectos mais relevantes, especialmente nos temas de facilitação à infração e de abuso de direito. __________ 1O protocolo bittorrent se serve de arquivos do tipo torrent e magnet links para operar transmissão de dados diretamente entre usuários da rede, sem que esses dados precisem passar por qualquer infraestrutura centralizada. As informações acerca da localização dos dados desejados, quais usuários podem fornecê-los e a integridade comparada dos arquivos recebidos estão contidos nesses arquivos do tipo torrent que instruem um software denominado cliente bittorrent a realizar a transferência de dados para o solicitante. Os magnet links são uma evolução do arquivo torrent, em prescindem de um tracker para operar. Os trackers são os terminais ou sistemas que coordenam toda a operação de troca de conteúdo a partir das instruções em um arquivo .torrent. 2A decisão, divulgada em um site do Center for Internet and Society da Universidade de Stanford. 3Terminologia consistente com o Marco Civil da Internet. Em essência, provedores de conexão são todos aqueles intermediários que provêem conectividade ao usuário, ao passo em que provedores de aplicação são todos demais provedores de serviço na internet, sem prejuízo da potencial cumulatividade entre as duas cetegorias (há provedores de conexão que também são provedores de aplicação). 4Os trackers são os terminais ou sistemas que coordenam toda a operação de troca de conteúdo a partir das instruções em um arquivo .torrent. Sua importância diminuiu consideravelmente depois do desenvolvimento da tecnologia contida nos magnet links, que prescindem da operação de um tracker para organizar a identificação e troca de conteúdo entre pares conectados ao mesmo grupo de compartilhamento. 5Um website, fora da faixa de IPs bloqueada pelos provedores de conexão, e registrada em um nome de domínio ativo em seu DNS, cuja única finalidade seja redirecionar o usuário a um sítio, no caso, do The Pirate Bay, ainda em funcionamento. 6Clique aqui. 7Cámara Argentina de Productores de Fonogramas y Videogramas 8Criar um proxy site, por mais banal que pareça aos técnicos no assunto, é atividade impensável para o usuário corriqueiro da internet. Acessá-lo, porém, é equivale ao uso comum do serviço atacado. 9De maneira muito simplificada, DNS (Domain-Name System) é um sistema distribuído de tabelas que indicam a qual endereço IP um nome de domínio deve direcionar o usuário. Quando digitamos www.migalhas.com.br em nossos navegadores, esse sistema de tabelas recebe uma busca para que descubra a qual endereço IP deve dirigir-se. Convido o migalheiro curioso a fazer um teste: em seu navegador predileto, digite, em vez de um nóme de domínio, o seguinte endereço IP: https://74.125.225.151/.
segunda-feira, 16 de junho de 2014

Por uma biblioteca dos nossos tempos

Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio A sonhar um pouco nesta impassível segunda-feira, deixemo-nos imaginar brevemente o real potencial da digitalização de conteúdos e das tecnologias de rede quando aplicadas em conjunto a todo o acervo de conhecimento humano já produzido e que se encontre, hoje, em qualquer biblioteca do globo. Imagine: qualquer criação, de qualquer parte, acessível de maneira quase imediata por meio de preciosos mecanismos de busca que só na última década se aperfeiçoaram à utilidade, como a indexação de termos1 e a busca de imagens. Imagine também que todo esse conteúdo estivesse disponível não para compra, mas para consulta online. À semelhança do que ocorre quando visitamos uma biblioteca, todo o acervo digitalizado dessa Meca do conhecimento estaria disponível para consulta à distância, e até mesmo para que permanecêssemos com a obra emprestada em nossos dispositivos até que o prazo de devolução se cumprisse. Para termos uma vaga ideia do que isso representaria, tomemos como exemplo aquela que é considerada a maior biblioteca do mundo, a Library of Congress2. Lá hospedam-se cerca de 160 milhões de exemplares, entre os quais mais de 36 milhões de livros e impressos. Sua seção jurídica abriga quase três milhões de obras, colecionadas desde 1832 nesta que é considerada também a maior biblioteca jurídica do mundo. Sendo esta somente uma das centenas de grandes bibliotecas do mundo, vislumbre a grandiosidade que seria termos todas reunidas, transformadas em bits e bytes pesquisáveis. Pesquise o termo "statute of limitations" e todas as obras desse mundo de livros que contenham esse termo seriam listadas, lista esta que conteria também o número da página, em cada obra, em que o termo pesquisado aparece, bem como o número de vezes que o termo se repete. Organize, depois disso, a lista de resultados por data de publicação, biblioteca de origem, idioma, país, tipo de publicação. Mais um par de cliques e filtros, e as obras que você selecionou estão diponíveis integralmente para consulta, ou para retirada online. Percebam que, por mais que a internet e a disseminação de dispositivos já nos tenham presenteado com um salto quântico de acesso ao conhecimento em um grau verdadeiramente impensável há trinta anos, a ideia de termos o que se poderia chamar de uma biblioteca digital digna dos nossos tempos é ainda um devaneio, uma quimera, não somente pela magnitude do trabalho e pelos desafios técnicos, mas também pelas barreiras regulatórias e jurídicas envolvidas em um projeto desse gênero. Há, sim, sementes, ainda muito distantes dessa visão globalizante, mas que deram o primeiro passo nessa direção, como a Google Library3 e o Hathi Trust Digital Library (HDL)4. Uma das questões fundamentais a serem resolvidas para que uma ideia como esta seja efetivamente viabilizada é a dos direitos autorais, embora mais sob a perspectiva de seus fundamentos econômicos que sob a sua lógica interna, puramente jurídica. Essa questão, diga-se, sob o mesmo enfoque, é a que reiteradamente surge sempre que nos debruçamos sobre as mudanças a que a internet e a digitalização submeteram praticamente todos os modelos de negócio do segmento de conteúdo. Na venda de bens, a questão poderia ser vista como um falso paradoxo: um livro digitalizado é virtualmente imperecível, e pode ser distribuído e reproduzido a custos que, quando não tendem a zero, são muito inferiores ao da distribuição de exemplares em papel. Ceteris paribus, o modelo digital deveria, portanto, representar um ganho. Apesar disso, essa virtual imperecibilidade do corpus que materializa a criação e justamente os baixíssimos custos de distribuição e de reprodução potencializam a violação, transformando-a em um fenômeno que compete com a comercialização legítima das obras5. Em outras palavras, o digital, ao mesmo tempo em que gera benefícios, gera prejuízos, e promove uma mudança no equilíbrio de forças, já que aniquila limites do mundo físico que antes contribuíam para a manutenção do sistema de compensações6. Para o caso da nossa imaginária biblioteca, a consulta online de toda e qualquer obra do acervo por usuários de qualquer parte do globo, com possibilidade de retirada (empréstimo), mesmo que por prazo limitado, é um ideal de eficiência e disseminação de conhecimento, mas, no sistema de direitos autorais que temos hoje, certamente exterminaria o equilíbrio entre acesso e compensação. Os limites que existem para consulta e empréstimo do exemplar em papel nas bibliotecas do mundo offline - a necessidade de locomoção, o número limitado de exemplares, a inviabilidade prática de deslocamento para grandes distâncias - seriam, todos, como no exemplo da venda, aniquilados pelo digital sem limites. O resultado prático dessa mudança seria, uma vez mais, a criação de uma realidade que compete seriamente com a do mercado regular de obras, podendo prejudicá-lo a ponto de inviabilizá-lo. Desistiremos, então, de perseguir a viabilização extensa das admiráveis tecnologias que investimos anos de ciência para construir? Renunciaremos ao mandato de promover a disseminação do conhecimento? Certamente que não será esse o resultado final da constatação das dificuldades. Apesar de todas as mazelas, sabemos, usuários e titulares, que a ampliação do acesso é um objetivo a ser perseguido. O desafio, sempre maior com a passagem do tempo e a disseminação dos meios tecnológicos, é promovermos uma solução jurídica e econômica que não se volte contra sua própria razão de existir. Se é verdade que ainda não há projetos dessa magnitude em curso e que estatutos e modelos comerciais de hoje não dão conta da idéia vislumbrada, o tema da modelagem do direito autoral ao desejo de ampliação do acesso digital via bibliotecas está claramente na pauta do dia. Do ponto de vista legislativo, há, fora do país, exceções ou limites aplicáveis especificamente para bibliotecas cujo acervo esteja disponível para o público em geral, e não apenas para pesquisadores cadastrados ou membros de uma determinada entidade privada, como é o caso do §108 do estatuto estadounidense7 e do artigo 5(2)(c) da Diretiva 2001/29/EC da União Europeia8. O Brasil segue sem nenhum dispositivo legal voltado a essas entidades, embora o anteprojeto submetido a consulta pública em 2010 contivesse dois dispositivos relacionados ao tema que seguem as linhas mestras do regramento europeu: "Art. 46. Não constitui ofensa aos direitos autorais a utilização de obras protegidas, dispensando-se, inclusive, a prévia e expressa autorização do titular e a necessidade de remuneração por parte de quem as utiliza, nos seguintes casos: XIII - a reprodução necessária à conservação, preservação e arquivamento de qualquer obra, sem finalidade comercial, desde que realizada por bibliotecas, arquivos, centros de documentação, museus, cinematecas e demais instituições museológicas, na medida justificada para atender aos seus fins; XVI - a comunicação e a colocação à disposição do público de obras intelectuais protegidas que integrem as coleções ou acervos de bibliotecas, arquivos, centros de documentação, museus, cinematecas e demais instituições museológicas, para fins de pesquisa, investigação ou estudo, por qualquer meio ou processo, no interior de suas instalações ou por meio de suas redes fechadas de informática;"9 O tema é também objeto dos trabalhos do Comitê Permanente de Direitos de Autor e Direitos Conexos da OMPI, com vistas à elaboração de um instrumento jurídico internacional sobre exceções e limitações aplicáveis a bibliotecas e acervos. Ainda sem um volumoso progresso, o esse Comitê se reunirá novamente no próximo mês e deve voltar a debater a questão. No campo jurisprudencial, além da famosa decisão de primeira instância em favor do Google Books nos EUA, duas recentes novidades mantêm o tema na pauta do dia: a decisão do caso Authors Guild, Inc. v. Hathi Trust, nos EUA, e a publicação do parecer do Advogado-Geral Niilo Jääskinen ao Tribunal de Justiça da União Européia. No caso estadounidense10, diversas associações nacionais e estrangeiras que representam titulares de direitos, incluindo a Author's Guild11, ajuizaram ação contra diversas universidades e o Hathi Trust, entidade desenvolvedora e implementadora do sistema Hathi Digital Library (HDL), que conta com suporte de infraestrutura da empresa Google. O HDL, com base na digitalização integral de obras, permite que (i) o usuário de uma das bibliotecas participantes faça buscas que resultam em uma lista das obras que contêm aquele termo, além de identificar o número de vezes que o termo buscado ocorre, em em quais páginas, sem entretanto exibir partes da obra; (ii) o usuário que seja comprovadamente portador de uma deficiância que o impede de acessar a obra, seja motora, seja visual, consiga imprimir a obra em um formato que lhe seja adequado, como braile; (iii) bibliotecas participantes do sistema forneçam umas às outras, para reprodução, exemplares de obras que a biblioteca solicitante tenha, por algum motivo, perdido. O juiz da causa, em favor do Hathi Trust Fund, aplicando a doutrina do fair use, entendeu inteiramente legítima a operação. No caso alemão, objeto de consulta feita pelo Bundesgerichtshof ao Tribunal de Justiça da União Europeia12, a editora Eugen Ulmer KG ajuzou ação contra a Technische Universität Darmstadt diante da recusa da universidade à proposta de contrato regulando o manejo digital de obras de titularidade da editora em seu acervo. A opinião do Advogado-Geral submetida à apreciação do tribunal, que deve, em breve, prolatar seu entendimento, também favorece as universidades, entendendo pela possibilidade de os estados-membros concederem às bibliotecas e assemelhados o direito de digitalizar as obras de seu acervo para colocá-las à disposição do público nos terminais dedicados a essa finalidade dentro das bibliotecas, embora tenha sedimentado a interpretação de que a impressão ou cópia dessas obras em dispositivo USB não são permitidas. Progressivamente, portanto, parece configurar-se um cenário que prestigia a liberdade de manejo e o acesso, em bibliotecas, de obras protegidas por direitos autorais, enquanto pretere, nesses casos, a pretensão exclusivista do titular. Preservam-se certos limites, como no caso europeu, e o acesso extra-muros ao conteúdo digital das bibliotecas ainda não cabe nas exceções que temos à mão. Esse novo passo, talvez, dependa de um outro modelo de remuneração, ainda não pensado adequadamente. __________ 1No contexto editorial, a indexação é uma espécie de sucedâneo evolutivo das bases de dados. A indexação produz tabelas de localização de todas as palavras de um determinado texto antes mesmo da realização de uma busca, de modo que os resultados de busca são quase imediatos, porque o termo procurado será encontrado na tabela de indexação, e não no texto. Evidente que mesmo a antiga base de dados é, em si, um índice, mas o termo indexação não é mais usado naquele contexto inicial. 2Biblioteca do Congresso Estadounidense. 3Google Library Project. 4HDL. 5Analisamos o problema da exaustão de direitos autorais em exemplares digitais no artigo Quero Vender Meus Bits and Bytes, de setembro de 2013. 6Há inúmeras críticas aos modelos tradicionais de negócio dos produtos culturais que, procedentes ou não, não invalidam a análise. 7Limitations on exclusive rights: Reproduction by Libraries and archives. 8Diretiva Europeia. 9Anteprojeto. 10Íntegra da decisão. 11A Author's Guild acabou sendo excluída da lide por falta de legitimidade ativa. A decisão é interessante inclusive por essa questão. Com base na lei americana, o juiz entendeu que a Author's Guild não podia representar suas associadas diretamente em juízo, mas aceitou a litigância das associações estrangeiras com base no fato de que, em seus respectivos países de origem, as leis locais concedem às associações essa legitimação extraordinária. 12Parecer do advogado geral.
segunda-feira, 26 de maio de 2014

Parker v. Flook

Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio Nosso último artigo sobre patentes de software1 dedicou-se à analise do caso Gottschalk v. Benson, de 1972, primeiro julgamento da Suprema Corte estadounidense a respeito do tema. Seis anos depois, em 1978, outro invento chegaria àquele tribunal e seria, uma vez mais, decidido em desfavor do inventor, embora com fundamento distinto do utilizado no primeiro caso. Parker v. Flook adiciona um segundo pilar à construção jurisprudencial que, na década de 1980, viria a permitir o patenteamento de software naquele país. Limites para alarmes em conversões catalíticas A tecnologia desenvolvida por Dale Flook se destinava a uma das etapas da transformação industrial do petróleo, denominada conversão ou craqueamento catalítico, em que grandes moléculas de hidrocarbonetos são artificialmente quebradas em moléculas menores, permitindo posteriormente seu uso como combustível. Tanto a eficiência quanto a segurança desse processo dependem da medição e do controle de um número de variáveis como temperatura e pressão durante o craqueamento, de modo que é possível configurar alarmes que informam quando o valor dessas variáveis atinge os limites mínimos ou máximos desejados. O problema técnico de maior interesse, entretanto, é que os limites ideais de valor de uma variável não são permanentes ao longo de todas as etapas da operação química - etapas iniciais ou intermediárias podem requerer a definição de novos limites com base no histórico de medições daquela variável, definição esta que, no estado da técnica de então, era realizada por um engenheiro que observava as variáveis e atualizava manualmente os valores dos alarmes. Flook desenvolveu um método de atualização desses alarmes de maneira automática, com base em uma fórmula matemática que combina medições e alguns parâmetros pré-determinados permitindo chegar-se a um novo valor limite e atualizarem-se os alarmes para aquele momento do processo de craqueamento. Assim, o método de Flook trazia duas novidades: uma fórmula matemática que representava um avanço na operabilidade dos cálculos desse processo petroquímico e a efetiva atualização (efeito físico) dos alarmes utilizados no craqueamento de hidrocarbonos2 por meio de um computador . O trânsito do caso até a Suprema Corte O examinador da patente de Flook chegou ao que nos parece ser uma conclusão bastante ponderada: analisando-se o novo método como um todo, a única etapa que efetivamente constituía uma novidade se resumia ao cálculo matemático. Se, efetivamente, o método se resumia às etapas de (i) medição, (ii) aplicação do algoritmo (fórmula matemática, neste caso3) conforme parâmetros determinados e (iii) atualização do valor de um alarme, então, de fato, a novidade do método se encerra no algoritmo, e a patente neste caso "seria, na prática, uma patente da fórmula matemática em si"4. Esse entendimento se baseava no caso Christensen5, de 1973, que havia sido julgado pelo US Court of Customs and Patent Appeals (CCPA)6 como instância final. Em Christensen, o CCPA mantivera o entendimento das instâncias administrativas justamente no sentido de que a única novidade do invento em questão (um método de medição de porosidade que envolvia uma etapa computacional) que se distinguia do estado da técnica era justamente uma fórmula matemática que, em si, não podia ser objeto de exclusivo com base em Gottschalk v. Benson. Flook levou o caso ao Board of Appeals, instância de recurso administrativo contra decisões do USPTO7, mencionando entre seus argumentos que o fato de seu metodo prever a efetiva atualização dos limites dos alarmes (efeito físico) como último passo colocava seu invento em uma situação distinta da de Christensen: uma interpretação formalista da decisão em Christensen que, textualmente, diz "O problema em nossas mãos no presente caso é [...] o requerimento de patenteamento de um método em que a novidade é uma equação matemática a ser resolvida como o último passo do método..."8. Embora sem sucesso no Board of Appeals, Flook conseguiu reverter a decisão no CCPA com base exatamente no mesmo argumento, combinado com um entendimento dessa corte no sentido de que o caso Gottschalk v. Benson poderia ser interpretado para permitir o patenteamento de métodos que, embora envolvam a solução de etapas matemáticas, prevêem o que foi chamado de "post-solution activity" (atividades que sucedem a etapa de solução matemática). O problema principal em Gottschalk v. Benson, portanto, estaria resolvido para o CCPA na medida em que a utilização da fórmula matemática do método estaria circunscrito à sua aplicação ao processo de conversão catalítica de hidrocarbonetos, considerando-se que a atividade que sucede essa etapa de solução matemática é a atualização dos limites dos alarmes usados especificamente neste processo, distanciando-se da preocupação da Suprema Corte de evitar a concessão de patentes que resultariam em uma apropriação da fórmula matemática como um todo. A decisão pela concessão da patente no CCPA levou o então Comissário Interino de Marcas e Patentes, Lutrelle Parker, a ajuizar um writ of certiorari9, pedindo à Suprema Corte a cassação da concessão judicial da patente. A decisão da Suprema Corte Eis a ementa da decisão: "O método de atualização de limites dos alarmes durante processos de conversão catalítica em que a única característica nova é uma fórmula matemática não é patenteável nos termos do § 101 da Lei de Patentes. A identificação de uma categoria limitada de atividades úteis, mas comuns, que sucedem a etapa de solução matemática não faz com que o método seja patenteável [...]. Os processos químicos envolvidos na conversão catalítica são bem conhecidos, assim como o monitoramento de variáveis do processo, o uso de limites para disparar alarmes e o uso de computadores para o monitoramento automático de processos"10. Parece-nos que um conceito importante pode ser extraído desse posicionamento: métodos que envolvem a solução de fórmulas matemáticas como um de seus passos mas que contêm outras "características novas" que não se limitam a essa fórmula são patenteáveis. Essas etapas do método que excedem a fórmula matemática não podem ser óbvias, como o efeito físico de atualização de número. Essa interpretação da decisão da corte foi justamente repisada por dois votos divergentes11, que afirmaram', citando precedentes, que a existência de etapas não-patenteáveis em um determinado método não teria o condão de tornar o método como um todo imprestável para patenteamento. Mas a decisão, parece-nos, reconhece esse fundamento, embora entenda que o que há de novidade excedente à formula matemática não rompe a barreira da obviedade e não confere ao processo novidade suficiente que autorizaria a concessão da patente. Importância do precedente Em Gottschalk v. Benson12, vimos que a Suprema Corte firmou o entendimento de que propriedades numéricas e fórmulas matemáticas não poderiam ser patenteadas e se aproximavam do conceito de leis da natureza. Uma concessão de patentes sobre a aplicação irrestrita dessas propriedade numéricas permitiria, de maneira inconveniente, sua apropriação. O caso presente nos traz o exemplo de um processo que utiliza uma fórmula matemática nova, mas, diferentemente, não se resume a ela. Por esse ângulo, seu patenteamento não contrariaria o conceito firmado pela Suprema Corte no caso anterior. Apesar disso, define-se aqui que a novidade do processo não pode repousar exclusivamente na fórmula matemática, e que a atividade que sucede a solução da fórmula no processo não pode ser óbvia nem pertencer ao estado da técnica. Este caso, o segundo da série da Suprema Corte sobre patenteamento de software, compõe o que se costuma chamar Patent-Eligibility Trilogy (trilogia da patenteabilidade), utilizado como referência para determinar em quais situações o uso de um algoritmo pode compor um invento patenteável. No próximo artigo sobre o tema, analisaremos o terceiro caso dessa trilogia, Diamond. __________ 1Gottschalk v. Benson. Pretendem os colunistas, ao longo de uma série não-sequencial de artigos, descrever e analisar sucintamente os precedentes que levaram ao entendimento presente a respeito da patenteabilidade de software nos EUA. Este é o segundo artigo desta série, e segue uma estrutura semelhante ao primeiro, que se inicia pela descrição breve da tecnologia em questão, passa pelo trâmite processual e desemboca na análise jurídica e importância do julgado. 2Reivindicação número 1: "A method for updating the value of at least one alarm limit on at least one process variable involved in a process comprising the catalytic chemical conversion of hydrocarbons wherein said alarm limit has a current value of Bo + K, wherein Bo is the current alarm base and K is a predetermined alarm offset which comprises: (1) determining the present value of said process variable, said present value being defined as PVL; (2) determining a new alarm base B1 using the following equation; B1 = Bo (1.0-F) + PVL (F), where F is a predetermined number greater than zero and less than 1.0; (3) determining an updated alarm limit value which is defined as B1 + K; and, thereafter (4) adjusting said alarm limit to said updated alarm limit value". 3O termo algoritmo não é sinônimo de fórmula matemática, muito embora uma fórmula matemática possa encerrar os conceitos de um algoritmo. 4Parker, 437 U.S. 584, 587. 5In re Christensen, 478 F.2d 1392, 178 USPQ 35 (CCPA 1973). 6A competência para julgar casos como este encontra-se, hoje, alocada para o Federal Circuit. A CCPA foi abolida em 1982, por meio do Federal Courts Improvement Act. 7O equivalente ao INPI nos EUA, entidade cuja atribução é a concessão de privilégios. 8In re Christensen, 478 F.2d 1394. O leitor percebe que o sistema estadounidense de respeito aos precedentes é todo baseado em uma metodologia de aproximação ou distanciamento de casos anteriores, em que se um caso é materialmente idêntico a um precedente, a solução deve ser idêntica. Daí observar-se o esforço dos litigantes em demonstrar se seu caso específico é ou não é idêntico a um relevante anterior. 9Para compreender o writ of certiorari, leia o artigo publicado no Migalhas. 10Decisão da Suprema Corte estadounidense em Parker v. Flook, U.S. 584. . 11It is a commonplace that laws of nature, physical phenomena, and abstract ideas are not patentable subject matter. A patent could not issue, in other words, on the law of gravity, or the multip ication tables, or the phenomena of magnetism, or the fact that water at sea level boils at 100 degrees centigrade and freezes at zero-even though newly discovered. Le Roy v. Tatham, 14 How. 156, 175; O'Reilly v. Morse, 15 How. 62, 112-121; Rubber-Tip Pencil Co. v. Howard, 20 Wall. 498, 507, 22 L.Ed. 410; Tilghman v. Proctor, 102 U.S. 707, 26 L.Ed. 279; Mackay Radio & Telegraph Co. v. Radio Corp. of America, 306 U.S. 86, 94, 59 S.Ct. 427, 431, 83 L.Ed. 506; Funk Bros. Seed Co. v. Kalo Co., 333 U.S. 127, 130, 68 S.Ct. 440, 441, 92 L.Ed. 588. The recent case of Gottschalk v. Benson, 409 U.S. 63, 93 S.Ct. 253, 34 L.Ed.2d 273, stands for no more than this long-established principle, which the Court there stated in the following words: "Phenomena of nature, though just discovered, mental processes, and abstract intellectual concepts are not patentable, as they are the basic tools of scientific and technological work." Id., at 67, 93 S.Ct., at 255. In Benson the Court held unpatentable claims for an algorithm that "were not limited to any particular art or technology, to any particular apparatus or machinery, or to any particular end use." Id., at 64, 93 S.Ct., at 254. A patent on such claims, the Court said, "would wholly pre-empt the mathematical formula and practical effect would be a patent on the algorithm itself." Id., at 72, 93 S.Ct., at 257. The present case is a far different one. The issue here is whether a claimed process loses its status of subject-matter patentability simply because one step in the process would not be patentable subject matter if considered in isolation. The Court of Customs and Patent Appeals held that the process is patentable subject matter, Benson being inapplicable since "[t]he present claims do not preempt the formula or algorithm contained therein, because solution of the algorithm, per se, would not infringe the claims." In re Flock, 559 F.2d 21, 23. That decision seems to me wholly in conformity with basic principles of patent law. Indeed, I suppose that thousands of processes and combinations have been patented that contained one or more steps or elements that themselves would have been unpatentable subject matter. Eibel Process Co. v. Minnesota & Ontario Paper Co., 261 U.S. 45, 43 S.Ct. 322, 67 L.Ed. 523, is a case in point. There the Court upheld the validity of an improvement patent that made use of the law of gravity, which by itself was clearly unpatentable. See also, e. g., Tilghman v. Proctor, supra. The Court today says it does not turn its back on these well-settled precedents, ante, at 594, but it strikes what seems to me an equally damaging blow at basic principles of patent law by importing into its inquiry under 35 U.S.C. § 101 the criteria of novelty and inventiveness. Section 101 is concerned only with subject-matter patentability. Whether a patent will actually issue depends upon the criteria of §§ 102 and 103, which include novelty and inventiveness, among many others. It may well be that under the criteria of §§ 102 and 103 no patent should issue on the process claimed in this case, because of anticipation, abandonment, obviousness, or for § me other reason. But in my view the claimed process clearly meets the standards of subject-matter patentability of § 101. In short, I agree with the Court of Customs and Patent Appeals in this case, and with the carefully considered opinions of that court in other cases presenting the same basic issue. See In re Freeman, 573 F.2d 1237; In re Richman, 563 F.2d 1026; In re De Castelet, 562 F.2d 1236; In re Deutsch, 553 F.2d 689; In re Chatfield, 545 F.2d 152. Accordingly, I would affirm the judgment before us. 12Veja nosso artigo sobre este caso.
segunda-feira, 12 de maio de 2014

Os clássicos às machadadas*

Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio Há alguns dias, veio a público a iniciativa da escritora Patrícia Engel Secco de fazer edições simplificadas de obras consagradas da literatura brasileira. O projeto "Os Clássicos e a Leitura", desenvolvido com verba pública, aprovada pelo Ministério da Cultura, terá versões de "O alienista", conto de Machado de Assis publicado pela primeira vez em Papéis avulsos em 1882, e de A pata da gazela, romance de José Alencar que saiu em primeira edição em 1870. As duas narrativas serão publicadas juntas, com tiragem de 600 mil exemplares, e serão distribuídas gratuitamente pelo Instituto Brasil Leitor. Para o projeto, Secco conseguiu captar mais de 1 milhão de reais. Ela está trabalhando ao lado de dois jornalistas nessa reescritura.A polêmica foi imediata. Uma petição online, solicitando que o Ministério da Cultura impeça esse tipo de alteração de obras literárias, recebeu milhares de assinaturas. As críticas que Secco recebeu de especialistas em literatura e em educação foram muito duras. Mas o que está por trás de tudo isso? Um projeto como esse merece ser achincalhado ou ele pode incentivar a leitura? Reescrever uma obra literária, simplificando-a ao grande público, é digno de aplauso ou é uma excrescência? Vamos tentar discutir essas questões, tanto no âmbito literário, quando jurídico.Machado e Alencar são dois ícones da literatura brasileira. O primeiro é habitualmente considerado nosso melhor escritor, um dos nomes mais lúcidos de toda a cultura nacional1. O segundo é o artista que, de modo programado, mais lutou pela independência artística do país, em meio a dificuldades que o autor de Iracema chama de "rota aspérrima" que ele se sentiu obrigado a "abrir, através da indiferença e do desdém, desbravando as urzes da intriga e da maledicência"2. Dom Casmurro, Memórias póstumas de Brás Cubas, O Guarani, Iracema são obras então que fazem parte do processo de amadurecimento de qualquer um que chega ao Ensino Médio, época em que os estudantes começam a adquirir maior autonomia de leitura. A partir do segundo ciclo do Ensino Fundamental, o aluno já começa a tomar contato com obras literárias adultas e, no final da Educação Básica, ele passa a estudar a literatura de modo mais sistematizado, chegando aos nossos mais célebres escritores. Ler Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, Olavo Bilac, Gregório de Matos, Machado de Assis ou José de Alencar não é tarefa simples. Não se pode começar a formar um leitor exigindo domínio da obra desses escritores. É preciso criar uma sequência de leituras com aumento controlado do grau de dificuldade de interpretação, de modo que não haja saltos que desencorajem o leitor. Por isso, esses autores só são estudados, de fato, por jovens de 16 ou 17 anos, que já demonstram maior maturidade artística. Patrícia Secco, explicando por que resolveu reescrever "O alienista", afirma que ela entende o motivo de os "jovens" não gostarem de Machado de Assis: "Os livros dele têm cinco ou seis palavras que não entendem por frase. As construções são muito longas. Eu simplifico isso"3.Uma das coisas que ela faz é substituir certas palavras por outras: "sagacidade", por exemplo, torna-se "esperteza". Além disso, ela procura usar as palavras sem inversões sintáticas, privilegiando a ordem direta. Os problemas pedagógicos do projetoAqui, somos levados a dar crédito aos críticos dessa iniciativa. Em primeiro lugar, por uma razão linguística. A rigor, não existem sinônimos perfeitos em um idioma. Pelo princípio da economia dos meios de expressão, se duas palavras ou construções tivessem exatamente o mesmo sentido, uma delas teria a tendência a desaparecer. Por isso, as escolhas lexicais de qualquer obra devem ser respeitadas. No caso de "sagacidade" e "esperteza", os termos não são equivalentes: o primeiro substantivo, mais específico, remete a uma capacidade de perceber sutilezas, de reconhecer raciocínios finos, de apreender algo a partir de indícios; o segundo, mais genérico, pode até mesmo ter conotação negativa, designando a "ação desonesta para conseguir algo, tentando ludibriar alguém"4. Assim, trocar um pelo outro não facilita a compreensão do sentido original do texto; na verdade, impede-a. Em segundo lugar, deve-se pensar qual o público-alvo do projeto "Os Clássicos e a Leitura". Fosse algo dirigido a estudantes de dez anos de idade, ele poderia ter alguma validade. Mas, pelas declarações de Secco, ele se destina a jovens que devem ler Machado, mas não o entendem. Ora, isso acontece, sobretudo, no Ensino Médio. Donde questionamos: se o aluno de Ensino Médio precisa ler um Machado simplificado, em que outro momento da vida escolar ele lerá a obra original? Talvez nunca. Secco, que é autora de vários livros voltados para o público infantojuvenil, argumenta ainda que essa simplificação não traria mudanças significativas para o sentido global do texto. Diz ela sobre Machado: "A ideia não é mudar o que ele disse, só tornar mais fácil"5. Declarações assim novamente dão força às críticas que ela tem recebido. Parece que a visão que ela tem da literatura é bastante limitada, uma vez que, para ela, alterações no modo dizer as coisas não alteram o que está sendo dito. Ora, uma das características mais importantes da obra literária é justamente a relação indissociável que ela constrói entre o plano da expressão e o plano do conteúdo; um não existe sem o outro, uma vez que o sentido é produzido por esse jogo entre o o que se diz e o como se diz6. Surpresa com a recepção negativa de sua tentativa de descomplicar os clássicos, Secco disse: "Fiquei tão ansiosa com o que está saindo que fui para a rua fazer entrevista. Falei com o gari, com o menino do lava-rápido, com o manobrista do restaurante. Ninguém sabe quem é Machado de Assis. É para eles que estou fazendo esse projeto. Vejo mães discutindo, mas não é para os filhos delas. É para a faxineira delas - não é nem para o filho da faxineira que está na escola; é para ela. Quero o livro na casa dos mais simples. (...) Estou horrorizada. É muito triste pensar que algumas pessoas acham que Machado de Assis, o mestre da literatura brasileira, não pode ser lido pelo sr. José, eletricista do bairro do Espinheiro, que, apesar de gostar de ler, não cursou mais que o primário, ou pelo Cristiano, faxineiro de uma farmácia de Boa Viagem, que não sabe nem mesmo o significado da palavra boticário"7. Note-se que Secco mudou então o público-alvo de seu livro. O que antes era voltado, nas suas palavras, aos "jovens" que não entendiam Machado, agora se volta às pessoas das classes populares que estão fora da escola, mas gostam de ler. Mas será que o José ou o Cristiano não podem ser incentivados a ler obras que não foram mutiladas? Será que é preciso ler uma história remendada de Alencar e Machado? Também é possível formar leitores adultos, preparando-os para chegar aos textos literários mais sofisticados. Mas isso pode ser feito com obras já existentes, mais adequadas a essa finalidade. Não há nenhuma vantagem em oferecer-lhes um clássico pela metade.Indignado com o projeto de Secco, o professor de literatura brasileira da USP, Alcides Villaça, afirma ser "absurdo imaginar que a função da escola seja facilitar qualquer coisa, em vez de levar a trabalhar com as dificuldades da vida, da crítica e do conhecimento"8. De fato, para que os jovens adquiram autonomia de leitura e, por extensão, de aprendizado, não se pode pensar que essa presumível facilitação do texto traz algum ganho substancial para os estudantes. Paulo Freire falava sobre a necessidade de professores e alunos serem "criadores, instigadores, inquietos, rigorosamente curiosos (...) e persistentes". O docente, para Freire, deve ser menos "um repetidor cadenciado de frases e ideias inertes do que um desafiador"9. Secco parece que vai no caminho inverso dessas concepções. A favor da iniciativa dela, pode pesar a favor o fato de haver experiências bem sucedidas de facilitação de obras literárias. É o caso das edições que "traduzem" Shakespeare para o inglês moderno ou, por exemplo, narram a Odisseia em prosa. Nesses casos, porém, é preciso reconhecer a enorme distância temporal entre as publicações originais e os dias atuais, o que cria dificuldades linguísticas muitas vezes intransponíveis para um leitor comum. Trazendo o problema para a língua portuguesa, é por causa disso que nenhum aluno de Ensino Médio é capaz de ler Os Lusíadas sozinho e integralmente. No entanto, devemos lembrar que textos antigos longos, com linguagem arcaica, escritos em versos, são de uma dificuldade de intelecção muito maior do que "O alienista" ou A pata da gazela. Estes podem e devem ser lidos no original por jovens do Ensino Médio; aqueles justificariam tentativas de simplificação antes de o aluno chegar ao texto original, que continua a ser o objetivo final do percurso de estudo literário.Além disso, há textos literários que viram filmes, histórias em quadrinhos, peças de teatro ou que ganham versões voltadas para as crianças. Há algum problema nisso? Claro que não. Trata-se de novas obras, com outra linguagem, com outros objetivos, com outros pressupostos. Nenhuma delas tem a intenção de substituir as obras originais, como é o caso do projeto de Secco. A intenção nesses casos é dialogar com a obra original, recriá-la em outro universo artístico, sem que isso seja uma mutilação com finalidade supostamente didática.Pode ser que a escritora, ao captar recursos para suas publicações de clássicos "descomplicados", tivesse a melhor das intenções, a de aproximar o jovem dos clássicos da literatura. Mas o caminho escolhido foi completamente equivocado do ponto de vista pedagógico, sugerindo a validade da máxima de que nada é pior para uma boa causa do que maus defensores. Secco poderia ter investido energia numa edição comentada de "O alienista" ou de A pata da gazela, com notas explicativas, glossário e uma introdução contextualizadora, o que de fato poderia trazer vantagens para os leitores que precisam de auxílio para ler obras literárias mais complexas. Mas isso requer mais do que boa vontade.Domínio público, direitos morais e fontes da cultura nacional As obras de Machado de Assis e de José de Alencar encontram-se em domínio público10 o que significa que a exclusividade que sobre elas recaía deixou de existir, cumprindo-se uma das finalidades do direito de autor de permitir, por derradeiro, acesso livre às criações que compõem o acervo cultural do nosso grupo social. Apesar de não mais sob a guarda de um exclusivo autoral, o uso dessas obras não é completamente livre de qualquer regramento, porque, ao integrarem o o domínio público, seguem desfrutando de tutela do Estado quanto à preservação de sua autoria e integridade11. O delineamento preciso desses dois conceitos abstratamente considerados seria tarefa bastante delicada e exigiria percurso cuidadoso por um volume substancial de ideias e posições doutrinárias12. Basta-nos, aqui, esclarecer que a proteção da autoria se destina a preservar o vínculo material-causal entre o autor e sua obra, e que a proteção da integridade destina-se a evitar desfiguração prejudicial da criação. Ambos, autoria e integridade, a lei se dá a proteger durante toda a existência da criação, inicialmente como direito moral de titularidade do autor13, passando sua defesa aos herdeiros14 durante a vigência da proteção autoral e, depois de caída obra em domínio público a obra, ao Estado, em nome de um direito da coletividade15. Interessante notar que, nessa última etapa da proteção da integridade - sobre a qual nos concentraremos - verifica-se um cunho já distante do exclusivo caracterizador do Direito Autoral, como bem observa José de Oliveira Ascensão16, e voltado à proteção do patrimônio cultural, em sentido amplo, a legitimar a intervenção estatal: "(...) O art. 24 § 2.º, inserido no capítulo 'Dos direitos morais de autor', dispõe que 'compete ao Estado a defesa da integridade e autoria da obra caída no domínio público'. Significará isto que o direito pessoal se prolonga indefinidamente, agora em benefício do Estado? Também isso foi já defendido, e também sem nenhuma verossimilhança. O Estado não age como titular de direitos autorais, mas na sua função de defesa do patrimônio cultural imaterial."(Grifos nossos) Há muitas intervenções em obras de domínio público que fortalecem sua valorização e preservação, contribuindo para sua integridade, em associação à reputação da memória de seus autores. Mas, para os casos em que a intervenção prejudica a obra, quais seriam os limites da ação do Estado na tutela das obras em domínio público que impediriam uma defesa da obra que inviabilizasse o acesso? O que constuiria violação à integridade de uma obra em domínio público a autorizar a movimentação estatal? Se é indispensável reforçar a necessidade de garantir liberdade a expressões e criações que incorporam obras em domínio público17, sob pena de desnaturar-se a própria ideia de uso livre e prejudicar-se o suposto equilíbrio público-privado do sistema de propriedade intelectual, depreende-se que a proteção da integridade, garantida como é, limita-se ao que seria um escopo mínimo, que, no entanto, é difícil de ser definido em abstrato. Malgrado essa dificulade, qualquer que seja a definição desse escopo mínimo, é certo que deverá, sob uma visão constitucional do problema, assegurar o acesso às fontes da cultura nacional18, direito logicamente precedido pela necessidade de preservação dessas fontes19. Afinal de contas, haverá benefício em ampliar-se sobremaneira o acesso a um Machado de Assis se, ao final, o que se lê será uma desnaturação de sua obra, um arremedo de Machado que não é senão uma reelaboração simplificada de sua escrita por um terceiro? É o enredo das histórias ou a escrita de Machado o que efetivamente constitui bem merecedor de um esforço divulgador? A simplificada segue abrangida na categoria de fonte da cultura nacional? Neste tema de delinear-se o que constituirá ofensa à integridade da obra em domínio público a merecer intervenção estatal, veja-se a opinião lúcida de Eliane Y. Abrão20: "Explique-se: os textos de Gregório de Matos podem ser trazidos ao público atual sob a forma escrita, na sua integridade e com o respectivo crédito devido em respeito ao autor e à memória nacional. Entretanto, não estará exercendo legitimamente o Estado sua função se considerar a dramatização do texto, ou qualquer outra releitura, violadora de sua integridade. Portanto, a integridade ficará restrita à forma original da publicação da obra, estando fora do alcance do Estado suas transformações e adaptações." Para a autora, portanto, uma obra literária em domínio público comportará licitamente transformações que se materializem em formas distintas da publicação original, mas a intervenção realizada na forma original é ofensa à integridade. A transposição de gêneros e a mudança da mídia estariam fora da proteção à integridade, com o que se começa a esboçar uma proposta de delineamento da matéria. Obra derivada e adaptação Ao menos nos termos descritos, a pretendida "simplificação" das obras de Machado de Assis e José de Alencar não produziria obras derivadas, nos termos da LDA. A mera substituição de palavras no texto primígeno e a eventual simplificação sintática de determinados trechos não nos parecem atender suficientemente ao requisito mínimo de constituir-se criação intelectual nova resultante da transformação da obra21. Importante essa conceituação, uma vez que o Artigo 14 da LDA garante proteção autoral às chamadas transformações criativas das obras caídas em domínio público, categorizando-as em quatro modalidades principais22: adaptação, arranjo, orquestração ou tradução, cada qual com sua definição própria, consolidadas doutrinariamente. Não estamos, parece-nos claro, diante de nenhuma delas. Quanto à tradução, arranjo ou orquestração23 são dispensáveis maiores explicações - são modalidades muito específicas e conhecidas quanto à sua significação. Atenhamo-nos, assim, à adaptação, por ser este o termo usado nas notícias de jornal e demais comentários na mídia sobre o projeto "Os Clássicos e a Leitura" Vejamos a definição de Houaiss: "adaptação s.f. (1821) [...] 1.5 LIT transposição de uma obra literária para outro gênero 1.6. p.ext. M.COM. conversão de uma obra escrita em outra forma de apresentação"24 A definição dicionarizada do termo não se distancia do conceito jurídico conferido pelo Direito Autoral a esta modalidade de obra derivada. Veja-se a lição de Pontes de Miranda25: "Adaptações, pois, são transformações da obra anteriormente publicada pertencente a um determinado gênero, em obra de outro gênero, exceção feita aos arranjos musicais, que se situam dentro de um mesmo gênero, mas que o legislador considera uma transformação." (grifos nossos) Aliando-se essa definição de adaptação ao limite que se tentou traçar, no tópico anterior, quanto a o quê constituiria ofensa à integridade da obra, ter-se-ia que a adaptação, no seu conceito doutrinário, é, potanto lícita. Mas conclui-se, também, que o projeto de simplificação que comentamos não é uma adaptação, e invade a fronteira da integridade. Não nos resta outra conclusão possível senão a de corroborar o legítimo coro contra a concepção do projeto, que em nome de uma pseudodemocratização de acesso à cultura ajuda, na verdade, a disseminar versões desvalorizadas na sua essência, empobrecidas em significado e estilo, do que temos de mais relevante na cultura literária do país. *Artigo escrito pelos colunistas em coautoria com Eduardo Calbucci - formado em Jornalismo pela ECA/USP, com mestrado e doutorado em Linguística pela FFLCH-USP. É coautor do material de Português e Sociologia do Sistema Anglo de Ensino, professor do Anglo Vestibulares em São Paulo desde 1994. Ministrou aulas na USP em 2010, como professor convidado no Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA, na cadeira de "Cultura e literatura Brasileira". Tem também vasta experiência como professor no Ensino Médio. Publicou, em 1999, pela Ateliê Editorial, Saramago: Um Roteiro para os Romances, obra que está em segunda edição, e, em 2010, pela Nankin e pela Edusp, A enunciação em Machado de Assis. Atualmente, tem desenvolvido projetos no Museu da Língua Portuguesa, tendo sido o curador da exposição "Menas: o certo do errado, o errado do certo", e prestado consultoria na área de educação, com destaque para o trabalho desenvolvido no portal IG, no Instituto Paramitas e na TV Cultura.__________ 1Teixeira, Ivan. Apresentação de Machado de Assis. São Paulo: Martins Fontes, 1987, p. 1. 2Alencar, José. Como e por que sou romancista? Campinas: Ponte, 1990, p. 65. 3Disponível em Folha de S.Paulo. 4Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. 5Disponível em Folha de S.Paulo. 6Neste ponto, lembramos que o Direito Autoral protege, exatamente (e tão somente), a forma de exteriorização da criação, e não a ideia que a originou, reforçando o claro valor da forma de escrita das obras ora em discussão. 7Disponível em O Estado de S. Paulo. 8Disponível em Folha de S.Paulo. 9Freire, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1997, p. 29. 10Machado deixou-nos em 1908; Alencar em 1877. De acordo com a lei atual, de 1998, as obras caem em domínio público setenta anos contados a partir de primeiro de janeiro do ano subsequente ao de sua morte, mas a questão sobre qual lei é aplicável a essas obras é pouco óbvia, já que publicadas antes da nossa primeira lei autoral geral, que é de 1898 (lei Medeiros de Albuquerque), e antes mesmo de haver, no mundo, uma Convenção de Berna. Bem verdade que, como ressalta Denis Borges Barbosa, a primeira menção ao privilégio autoral encontra-se na lei de Criação das Faculdades de Direito de Olinda e São Paulo, de 11 de agosto de 1827, mas o privilégio aplicava-se exclusivamente aos compêndios elaborados pelos lentes. Estariam essas obras em domínio público já quando de sua publicação? De qualquer forma, não há dúvida sobre o fato de que encontram-se, hoje, em domínio público, qualquer que seja solução relacionada à lei aplicável. 11LDA (lei 9.610/98), Art. 24. São direitos morais do autor: I -o de reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra; II - o de ter seu nome, pseudônimo ou sinal convencional indicado ou anunciado, como sendo o do autor, na utilização de sua obra; IV - o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra; § 2o Compete ao Estado a defesa da integridade e autoria da obra caída em domínio público. 12Sobre autoria, recomendamos, exemplificativamente, SANTOS, Manoel Joaquim Pereira dos. A questão da autoria e da originalidade em direito de autor. In: SANTOS, M.J.P; JABUR, W.P. (Org). Direito Autoral. São Paulo: Editora Saraiva, 2014. 13LDA, Artigo 24, IV. Ver nota número 11. 14LDA, Artigo 24, §1º. Ver nota número 11. 15De acordo com a Lei 7.347/85, cabe ao Ministério Público, à União, aos Estados aos Municípios ajuizar ação de responsabilidade por danos morais e patrimoniais or danos a bens de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico. 16Ascensão, José de Oliveira . Digitalização, preservação e acesso ao património cultural imaterial. Direito da Sociedade da Informação, vol. IX, APDI, Coimbra Editora, 2011, p. 9-30. 17Neste sentido, também Denis Borges Barbosa: "A proteção da integridade pelo Estado não pode, contudo, abranger qualquer vedação à transformação criativa, sob pena de atentado à liberdade essencial de acesso à informação e à cultura. Nem pode importar em desapossamento de uma obra em domínio comum, mesmo para uso público dominial." BARBOSA, Denis Borges. Direito de Autor. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. p. 558. 18Constituição Federal, art. 215. 19Em um contexto distinto, de patrimônio cultural em sentido estrito, Allan Rocha de Souza: "...um patrimônio cultural pálido esvazia os direitos culturais, pois lhes retira a substância que intermedeia as relações culturais. Sua fragilidade contamina todo o conjunto de direitos culturais". SOUZA, Allan Rocha. Direitos Culturais no Brasil. Rio de Janeiro: Azougue, 2012. 20ABRÃO, Eliane Y. Direitos de Autor e Direitos Conexos. 2ª. Edição revista e ampliada. São Paulo: Editora Migalhas, 2014, p. 323. 21LDA, Art. 5º, VIII, g) derivada - a que, constituindo criação intelectual nova, resulta da transformação de obra originária; art. 14. É titular de direitos de autor quem adapta, traduz, arranja ou orquestra obra caída no domínio público, não podendo opor-se a outra adaptação, arranjo, orquestração ou tradução, salvo se for cópia da sua. 22Note-se que a lista de modalidades de transformações de obra em domínio público listadas no Artigo 14 da lei 9610/98 não esgota as possibilidades de obras derivadas de outras naturezas. O que protege o Direito Autoral neste dispositivo são quaisquer transformações criativas, merecedoras do direito de exclusivo na forma derivada da obra originária. Observe-se neste ponto o texto da Convenção de Berna, Artigo 2º, alínea 3: "São protegidas como obras originais, sem prejuízo dos direitos do autor da obra original, as traduções, adaptações, arranjos de música e outras transformações de uma obra literária ou artística". 23Esclarece-nos Eduardo S. Pimenta em seu "Código de Direitos Autorais e acordos internacionais", Editora Lejus, 1998, p. 65, ao comentar o Artigo 14 da Lei 9610/98: "(...) Lembramos a definição de tradução: é uma reprodução da obra intelectual em outro idioma. Quanto ao direito do tradutor: O Tradutor de uma obra caída em domínio público tem sobre seu produto intelectual os direitos autorais. Entretanto, não pode o tradutor opor-se à nova tradução, exceto se esta for reprodução da sua. O tradutor autorizado pelo escritor da obra original, tem também, sobre seu produto intelectual os direitos autorais. Adaptação é a troca de gênero da obra, isto é, criar uma obra que pertence a diferente gênero da originária. Arranjo é troca da forma externa da obra teatral, musical ou literária para um fim distnto do que tenha a obra original". 24HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. 25PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. Tomo XVI. Rio de Janeiro: Borsoi, 1956, p. 108, apud ABRÃO, op. cit.
Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio É comum que a progressão legislativa faça uso de categorias já existentes para acolher novas realidades do mundo fático, e a evolução do conceito de execução pública é um exemplo desse modus de evolução do direito posto. Nos Estados Unidos, a revisão do antigo estatuto de 19091 que gerou a lei hoje vigente2 teve que lidar, na década de 1970, com um novo ramo de exploração comercial, a tv a cabo, que surgira no país a reboque das ineficiências técnicas das emissoras de televisão. Como havia porções territoriais que os sinais das emissoras de televisão não conseguiam alcançar com boa qualidade, logo começou a surgir3 a oferta de um serviço de instalação comercial de uma antena, com maior capacidade de recepção, cujo sinal seria então redistribuído via cabo às casas que o desejassem. O serviço foi denominado CATV (community antenna television)4, e é o embrião histórico do atual pujante mercado de cabo. Titulares de direitos sobre obras audiovisuais que as haviam licenciado apenas para as emissoras de televisão não aceitaram o fato de que uma retransmissão das obras via cabo se fazia comercialmente, por terceiros, e sem uma nova licença, e esse conflito resultou em duas demandas julgadas pela suprema corte daquele país5 que, sem sucesso, tentaram enquadrar a retransmissão a cabo no conceito de execução pública da lei de 1909. Naquele ponto da história, a atividade das emissoras de televisão nos Estado Unidos já havia sido jurisprudencialmente classificada como execução pública6, segundo uma ficção que as comparava a exibidores de cinema, e seus telespectador à audiência das salas. Mas a Suprema Corte, ao julgar as tentativas de também inserir-se a atividade de retransmissão das CATV como execução pública, entendeu que elas não faziam mais do que estender a audiência, desempenhando um papel passivo de mera retransmissão do sinal, incompatível com a comissividade emanente do conceito de execução pública7. A palavra final da Suprema Corte deixou aos titulares de direito a única opção de promoverem um encampamento legislativo da atividade das CATV, e assim se fez. Alargou-se, como resultado, a abrangência do conceito de public performance no Copyright Act de 1976 para artificialmente incluir a atividade de transmissão ao público. A cláusula resultante dessa empreitada legislativa, chamada de Transmit Clause, tem hoje a seguinte redação (17 U.S.C. § 101): Executar ou exibir uma obra "publicamente" significa: (1) executá-la ou exibi-la em um local aberto ao público ou em qualquer local em que esteja reunido um número substancial de pessoas fora do círculo normal de uma família e seus conhecidos; ou (2) transmitir ou de qualquer forma comunicar a execução ou exibição da obra para locais especificados na cláusula (1) ou para o público, por meio de qualquer dispositivo ou processo, não importando se os membros do público capazes de receber a execução ou a exibição a recebem no mesmo local ou em locais separados, ao mesmo tempo ou em momentos diferentes" Quase meio século depois das decisões que isentaram as CATV da necessidade de obterem licenciamento para exercer suas atividades, a Suprema Corte estadounidense se pronunciará em junho próximo sobre o caso ABC Inc v. Aereo, em que está em disputa justamente a abrangência da Transmit Clause e do conceito de execução pública na lei americana. O caso, como veremos é uma reedição daquele conflito adaptada para o cabo que mais importa para os nossos tempos: o da internet. O que é e como funciona o serviço Aereo8 O sistema lançado pela Aereo permite que seus usuários "assistam" quase simultaneamente a canais abertos de TV via internet, em conjunto com uma função "gravar", que torna possível ao usuário assistir a programas de TV em tempo futuro9. Embora o conceito do serviço seja bastante simples e pareça, à primeira vista, enquadrar-se de maneira óbvia na definição de execução pública estatuída pela transmit clause acima transcrita, veremos que os mecanismos implantados pela Aereo para prestar esse serviço foram cuidadosamente pensados para contornar o texto legislativo e permitir a defesa de um determinado ponto de vista que localizaria o serviço fora do âmbito de aplicação da definição de public perfornace da lei presente. Para fazer o conteúdo chegar via internet aos computadores de seus assinantes, realizam-se, por meio do sistema da Aereo, os seguintes passos: (1) através de seu dispositivo conectado à internet, o usuário seleciona, entre os canais disponíveis, o programa a que deseja assistir, e clica no botão "assistir" ou "gravar"; (2) o sistema da Aereo, nesse momento, aloca ao usuário uma de suas milhares de mini-antenas, que sintoniza na frequência do canal para receber o sinal pertinente; (3) os dados recebidos via ondas são transformados em informações passíveis de armazenamento; (4) um conjunto de servidores de hospedagem contendo uma pasta para cada assinante do serviço começa a armazenar o programa de TV selecionado exclusivamente na pasta dedicada a esse usuário; (5) inicia-se um streaming desse conteúdo individual, via internet, para o dispositivo do usuário; (6) o conteúdo é eliminado da pasta do usuário ao se concluir o streaming, a menor que o usuário tenha selecionado a função "gravar", caso em que o conteúdo permanece disponível para streaming futuro. Para compreender o resultado das decisões judiciais deste caso até o presente momento, é importante atentar-se para um fato: a cópia que é transmitida via streaming ao usuário final, seja na função "assistir"10, seja na função "gravar", é única e acessível apenas por aquele usuário que a solicitou, e a transmissão que se opera para usuário parte exclusivamente daquela cópia única. Se milhares de usuários decidirem, por exemplo, gravar a partida final da copa do mundo de 2014 em sua pasta particular no sistema Aereo, serão feitas tantas cópias quantos milhares forem os usuários que as solicitarem. Um outro ponto potencialmente relevante para a compreensão dos casos é o fato de que se um usuário decide que quer gravar um programa enquanto o estiver assistindo e pressionar nesse ponto, o botão "gravar", o sistema gravará o programa apenas a partir daquele ponto específico, sendo impossível ao usuário ver o conteúdo desde o início. Esse conceito reforça a evidência de que cada cópia é, efetivamente, única, e não pode ser acessada por nenhum outro usuário que não o solicitante. O caso ABC Inc.11 v. Aereo Inc. Um grupo de empresas, incluindo a ABC Inc., ajuizou duas ações na District Court for the Southern District of New York (primeira instância para este caso) em que se pleiteia decisão liminar impedindo a Aereo de continuar provendo seus serviços em razão de não tê-los licenciado, presumindo se equadrarem na definição de execução pública da lei autoral americana. A liminar foi negada12 com base em dois motivos entre os quatro que devem ser analisados para concessão liminar de tutelas por aquele juízo: (i) as autoras não demonstraram haver probabilidade de sucesso no mérito da causa13, uma vez que não lograram convencer o juízo de que o caso da Aereo era substancialmente diferente do precedente vinculante da corte de apelação no caso Cablevisiom14, em que operações semelhantes foram consideradas como não abrangidas pelo conceito de execução pública, e (ii) os prejuízos suportados em razão do eventual deferimento do pedido liminar seriam muito maiores para a Aereo (fim do negócio) do que para as autoras, sendo que é requisito que o contrário aconteça. As autoras agravaram dessa decisão15, e novamente perderam16 na Court of Appeals for the 2nd Circuit (segunda instância neste caso), com base nos mesmos fundamentos, o que levou as autoras a levarem o caso17 à Suprema Corte estadounidense, que realizou audiência nos autos do caso na semana passada. Interessa-nos uma análise feita pelas instâncias inferiores ao debruçarem-se sobre a probabilidade de sucesso no mérito das ações propostas pelas autoras, uma vez que, neste ponto, exploram a fundo a abrangência do conceito de execução pública na lei americana. O precedente que vinculou o entendimento das duas instâncias que analisaram o caso até agora é o caso Cartoon Network LP, LLLP v. CSC Holdings, Inc, conhecido como o caso Cablevision18. Analisou-se neste precedente a tecnologia, hoje comumente disponível nos serviços de TV a cabo, que permitia que o usuário gravasse ou programasse a gravação futura de um conteúdo qualquer, para posteriormente assisti-la19. A questão aqui, superada a discussão sobre o direito de reprodução, era se havia ou não execução pública quando o usuário assistia ao conteúdo previamente gravado por meio do sistema da Cablevision, que também criava uma cópia particular e única, acessível apenas pelo usuário solicitante daquela gravação. O entendimento, reproduzido na decisão que ora comentamos, foi de que o fato de a cópia ser única, acessível apenas pelo usuário que solicitou sua gravação, colocava essa transmissão na condição de execução privada, e não de execução pública. A transmit clause, que coloca na categoria de execução pública as transmissões que são feitas para o público, não abrangeria este caso porque aquela cópia única e específica, feita pelo sistema da Aereo ou da Cablevision, nunca seria transmitida para o público, mas sempre unicamente para aquele usuário que a solicitou, o que, ainda que minimamente, diferencia esta situação daquela em que a mesma cópia é disponibilizada ou transmitida para pessoas diversas, ainda que em locais distintos. A audiência realizada na Suprema Corte no dia 22 de abril de 201420 revelou aparente ausência de uma posição firme já constituída no colegiado da corte, e ambos os causídicos foram colocados em situações difíces pelos juízes, de modo que é bastante difícil prever para qual lado da balança a decisão penderá. Eventual impacto para o mercado televisivo e para as tecnologias de cloud computing, e a possibilidade de um novo ciclo legislativo Uma decisão favorável à Aereo tem potencial de promover mudanças significativas no segmento de entretenimento nos EUA, especialmente no que diz respeito ao relacionamento entre emissoras de televisão e operadoras de TV a cabo. Se estas últimas puderem reproduzir a operação da Aereo, transmitindo conteúdo das TVs abertas sem serem obrigadas a pagarem uma licença para tanto, é certo que o impacto dessa mudança no seu custo de operação promoverá um rearranjo do mercado, rearranjo este que poderia, inclusive, redundar na manutenção da tecnologia que as TVs a cabo já têm, mas a custo zero. Outro desdobramento que poderia advir de uma confirmação da derrota das emissoras de televisão na Suprema Corte é o início de um novo ciclo legislativo, destinado a alargar ainda mais o conceito de execução pública e nele incluir modelos de negócio semelhantes ao do Aereo, tal como aconteceu na década de 1970 com as CATV. Uma questão que despertou bastante atenção dos juizes da Suprema Corte e foi objeto de algumas petições de amici curiae, inclusive a petição do próprio governo estadounidense21, foi o potencial impacto da decisão sobre os serviços de computação na nuvem. Se a decisão estabelecer, contra a Aereo, que a transmissão da cópia singular para o usuário que lhe promoveu a gravação constitui execução pública nos termos da Lei Americana, poderia esse conceito ser estendido para, por exemplo, serviços como o Dropbox, iCloud ou OneDrive? Essa decisão faria com que esses serviços tivessem que buscar uma licença de execução pública para continuarem a operar? Os desdobramentos, neste ponto, são incertos, e parecem depender do conteúdo específico de uma eventual decisão da Suprema Corte. __________ 1An act to amend and consolidate the acts respecting copyright. 2Copyright Act de 1976. 3Aparentemente, o primeiro sistema desse gênero surgiu em 1948, pelas mãos de John Walson (ver nota de rodapé seguinte). 4A história de John Walson merece uma leitura do migalheiro mais interessado. Tudo o que ele desejava era vender televisores, mas sua cidade era cercada por uma geografia montanhosa, que impedia a recepção de sinais. 5Fortnightly Corp. v. United Artists Television, Inc. - 392 U.S. 390 (1968) e Teleprompter Corp. v. Columbia Broadcasting - 415 U.S. 394 (1974). 6Traduzimos o termo public performance como execução pública, descuidando propositalmente de entrar no mérito das distinções entre comunicação ao público (gênero) e execução pública (espécie). 7"Held. Judicial construction of the Copyright Act, in the light of drastic technological changes, has treated broadcasters as exhibitors, who "perform," and viewers as members of the audience, who do not "perform," and, since petitioner's CATV systems basically do no more than enhance the viewers' capacity to receive the broadcast signals, the CATV systems fall within the category of viewers, and petitioner does not "perform" the programs that its systems receive and carry." (Fortnightly Corp. v. United Artists Television, Inc. - 392 U.S. 390) 8Há explicações bem detalhas no site da Aereo. 9A função gravar não é objeto de nenhum tipo de pleito relacionado ao direito de reprodução nas ações comentadas neste artigo em razão dos precedentes da Sony e da Cablevision, que entenderam que a cópia doméstica de conteúdo televisivo (cabo ou TV aberta) se encontrava abrangido no conceito de fair use. 10Mesmo na função "assistir", o conteúdo a que o usuário assiste é conteúdo que é primeiramente gravado no servidor da Aereo para posteriormente ser transmitido via streaming para o usuário final. O atraso entre a transmissão real e a recepção do streaming da gravação é, em média, de apenas 10 segundos. 11A ABC Inc. é uma companhia do ABC Television Group, que pertence à Disney Media Networks, divisão da The Walt Disney Company. 12Decisão da corte distrital. 13Um semelhante agravado do nosso fumus boni iuris, talvez até mais próximo da verossimilhança, esta última um requisito para antecipação de tutela em nosso sistema pátrio. 14Cartoon Network LP, LLLP v. CSC Holdings, Inc., 536 F.3d 121 (2d Cir. 2008). 15Interlocutory appeal. 16United States court of appeals 3 for the second circuit. 17Petição. 18Link na nota 14 supra. 19No caso cablevision, os temas relacionados ao direito de reprodução são analisados com bastante profundidade e retomam a decisão do caso Sony em que essa cópia doméstica foi considerada abrangida pelo fair use. 20Transcrição e gravação da audiência disponível nesta página da Suprema Corte. 21Disponível em.
segunda-feira, 7 de abril de 2014

Gottschalk v. Benson

Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio O posicionamento inaugural da Suprema Corte estadounidense a respeito da patenteabilidade de programas de computador se encontra no caso Gottschalk v. Benson1, de 1972, decidido em desfavor dos inventores. Essa disputa judicial é constantemente mencionada na literatura2 a respeito da evolução jurisprudencial na análise dos requisitos de patenteabilidade de software, e inaugura uma série de intervenções da Suprema Corte que, ao final, terminaram por reconhecer a possibilidade de patenteamento de software naquele país. Arábicos, binários, binários-decimais e o invento em disputa Benson e Tabbot, inventores da Bell Labs, desenvolveram um processo de conversão de numerais escritos em codificação binária decimal (BCD) para codificação binária pura, esta última a linguagem mais fundamental e elementar dos computadores. Parece complicado, mas mesmo os não-iniciados na engenharia computacional podem compreender os conceitos elementares envolvidos no caso. O sistema de numeração que os humanos usam no dia a dia é o sistema arábico, de acordo com o qual podemos formar números representando qualquer grandeza natural utilizando-nos de dez algarismos, de zero a nove, combinando-os a partir do nove para seguir aumentando as grandezas. Os computadores, diferentemente, processam informações utilizando um sistema denominado binário, que se serve exclusivamente dos números zero e um (por isso diz-se de base 2). É possível converter qualquer numeral no sistema arábico para o sistema binário puro seguindo uma lógica simples: no sistema arábico, aumentam-se as grandezas utilizando-se os dez numerais de que se dispõe, enquanto no binário só podemos utilizar os números zero e um, combinando-os em grandezas cada vez maiores. O sistema BCD (binário-decimal), utilizado em diversos equipamentos eletrônicos, especialmente para operar displays, é uma simplificação do sistema binário puro. A partir do equivalente ao número dez no sistema arábico (que é representado por dois algarismos), o BCD, em vez de seguir aumentanto o conjunto de zeros e uns, passa a representar em binário individualmente cada um dos algarismos que compõem o numeral arábico. Assim, para representar o número 533 em BCD, colocamos, lado a lado, em binários, o número 5 (101) e o número 3 (11). Enquanto no binário puro 53 seria 110101, no BCD 53 seria 101-11 (5 e 3 em binários. A tabela abaixo ilustra o método e as equivalências: Arábico ou Decimal Puro Binário Puro Binário-Decimal (BCD) 0 0 0 1 1 1 2 10 10 3 11 11 4 100 100 5 101 101 6 110 110 7 111 111 8 1000 1000 9 1001 1001 10 1010 1-0 11 1011 1-1 12 1100 1-10 13 1101 1-11 53 110101 101-11 O processo de conversão criado por Benson e Tabbot consiste em uma série de operações matemáticas que levam em conta a posição dos algarismos em notação BCD para chegar ao seu equivalente em binário puro. Esse método representava efetivamente um avanço, porque permitia uma simplificação significativa no processamento dessa conversão por máquinas que necessitavam desse procedimento4 para operarem5. As reivindicações patentárias que terminaram sendo objeto da decisão da suprema corte descreviam essas sequenciais operações matemáticas6. O trânsito do caso até a Suprema Corte O exame do pedido de patente no USPTO7 resultara em indeferimento, com a fundamentação de que as reivindicações rejeitadas8 não passavam de processos mentais e matemáticos, não patenteáveis nos termos da legislação estadounidense9. O caso foi então levado à United States Court of Customs and Patent Appeals (CCPA)10, que decidiu reverter a decisão11 sob o entendimento de que as reivindicações em questão, diferentemente de casos pretéritos também levados à CCPA12, ou envolviam efetivamente um processo levado a cabo por um dispositivo, ou envolviam um processo que só faria sentido prático quando implementado por um hardware, ainda que se tratasse de operações potencialmente realizáveis sem a ajuda de máquinas. Ressaltou-se também o fato de que as reivindicações em questão independiam da intervenção humana ou de outras tecnologias para sua operação - outra distinção em relação aos precedentes mencionados. Ficou afastada, para a CCPA, a doutrina dos mental steps neste caso particular. Essa reversão da decisão do USPTO levou o então diretor da entidade13, Robert Gottschalk, a peticionar14 à Suprema Corte dos EUA, buscando a evisão da decisão da CCPA. A decisão da Suprema Corte Em novembro de 1972, a Suprema Corte decidiu15, debruçando-se sobre o caso, que o método descrito por Benson e Tabbot em seu pedido de patente não se enquadrava na definição de processo da lei patentária estadounidense de 1952. Tratava-se da descrição de um princípio da notação BCD16. Sistemas numéricos possuem propriedades e correlações entre si que podem ser descobertas, mas não apropriadas. Outra questão analisada pela decisão, retomando o caso O'Reilly v. Morse, foi a amplitude das reivindicações, que não limitavam a aplicação do algoritmo a um processo específico, ou um resultado específico, mas pretendiam apropriação do método para qualquer finalidade, por mais distante da que originou o desenvolvimento da tecnologia. Entendeu a corte que essa apropriação limitaria futuras aplicações desse método para qualquer finalidade, prejudicando o desenvolvimento científico. Justice Douglas encerra a análise do tema com o seguinte perágrafo: "Sabe-se que não se pode patentear uma idéia. Mas, na prática, esse seria o resultado se a fórmula para a conversão de numerais no sistema BCD para o sistema binário puro fosse patenteada neste caso. A fórmula matemática aqui envolvida não tem substancial aplicação prática a não ser em conexão com um computador digital, o que significa que se o julgamento abaixo [referindo-se ao julgamento da CCPA] for confirmado, a patente geraria completa apropriação da fórmula matemática e, na prática, seria uma patente do próprio algoritmo. (tradução livre)" O significado do precedente Gottschalk v. Benson é, como dito, a primeira análise judicial específica do tema da patenteabilidade de software nos EUA. Os temas abordados pela corte nesta decisão foram repisados e reanalizados posteriormente em virtualmente todos os julgados importantes daquele tribunal sobre a mesma questão. Esses temas são a aplicação da doutrina dos mental steps, a definição de processo nos termos da legislação americana, a não patenteabilidade de fenômenos da natureza, a não-patenteabilidade de algoritmos considerados isoladamente. Apesar de ter sido interpretada como o fim da possibilidade de patenteamento de programas de computador nos EUA, o próprio texto da decisão desfaz essa interpretação: "We do not hold that no process patent could ever qualify if it did not meet the requirements of our prior precedents. It is said that the decision precludes a patent for any program servicing a computer. We do not so hold". A evolução dos precedentes da Suprema Corte eventualmente encontraria uma patente de software cujas características a fariam confirmar a juridicidade de sua existência17. __________ 1A decisão da Suprema Corte nesse caso (opinion of the court). 2Exemplificativamente: ABRANTES, Antonio Carlos Souza de. Patentes de invenções implementadas por computador e seu papel na promoção da inovação tecnológica. Revista Eletrônica do IBPI, Nr. 7; STOBBS, Gregory A. Software Patents. Wolters Kluwer Law and Business in New York. 2013; CAMPBELL-KELLY, Martin. Not All Bad: An Historical Perspective on Software Patents,11 Mich. Telecomm. Tech. L. Rev. 191 (2005); BURKE, Thomas P. Software Patent Protection: Debugging the Current System, 69 Notre Dame L. Rev. 1115, 1158 (1994); 3Para usar o mesmo exemplo mencionado nos documentos do caso concreto. 4Tanto que o método é operável utilizando-se um aparato simples chamado registrador de deslocamento. 5Um computador, para interpretar dados gerados em BCD, precisa operar essa conversão, de modo que o processo tem utilidade bastante relevante. 6Reivindicação número 8: The method of converting signals from binary coded decimal form into binary which comprises the steps of (1) storing the binary coded decimal signals in a reentrant shift register, (2) shifting the signals to the right by at least three places, until there is a binary '1' in the second position of said register, (3) masking out said binary '1' in said second position of said register, (4) adding a binary '1' to the first position of said register, (5) shifting the signals to the left by two positions, '(6) adding a '1' to said first position, and (7) shifting the signals to the right by at least three positions in preparation for a succeeding binary '1' in the second position of said register; Reivindicação número 13: A data processing method for converting binary coded decimal number representations into binary number representations comprising the steps of (1) testing each binary digit position '1,' beginning with the least significant binary digit position, of the most significant decimal digit representation for a binary '0' or a binary '1'; (2) if a binary '0' is detected, repeating step (1) for the next least significant binary digit position of said most significant decimal digit representation; (3) if a binary '1' is detected, adding a binary '1' at the (i 1)th and (i 3) th least significant binary digit positions of the next lesser significant decimal digit representation, and repeating step (1) for the next least significant binary digit position of said most significant decimal digit representation; (4) upon exhausting the binary digit positions of said most significant decimal digit representation, repeating steps (1) through (3) for the next lesser significant decimal digit representation as modified by the previous execution of steps (1) through (3); and (5) repeating steps (1) through (4) until the second least significant decimal digit representation has been so processed. 7Equivalente ao INPI brasileiro, entidade americana responsável pela concessão de privilégios. 8Ver nota número 6. 935 U.S.C. §101 10A competência para julgar casos como este encontra-se, hoje, alocada para o Federal Circuit. A CCPA foi abolida em 1982, por meio do Federal Courts Improvement Act. 11Decisão da CCPA. 12"We have decided a number of cases in the general field of computer science in addition to the Prater case, supra, since the briefs in this case were filed which we list here for convenient reference: In re Bernhart, 57 CCPA 737, 417 F.2d 1395, 163 USPQ 611 (1969); In re Mahony, 57 CCPA 939, 421 F.2d 742, 164 USPQ 572 (1970); In re Musgrave, 57 CCPA 1352, 431 F.2d 882, 167 USPQ 280 (1970); In re Foster, 58 CCPA -, -, F.2d -,169 USPQ 99 (1971). This is an appropriate place to point out a significant difference between most of those cases and the present case(omissis)" 13Na época, o cargo era denominado Commissioner of Patents. Atualmente, o mesmo cargo é denominado Under Secretary of Commerce for Intellectual Property - USC (IP). 14Utilizou-se de um procedimento do direito estadounidense denominado writ of certiorari. Para uma explicação do instituto, veja artigo no Migalhas. 15Benson, 409 U.S. 16Como muito bem fraseou Gregory A. Stobbs, "Previous Supreme Court decisions held that the discovery of a new and useful process was patentable subject matter; whereas, the discovery of a new and useful principle was not". Op. Cit, p.4-23. 17Diamond v. Diehr (1981)
Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio "Para todo mal há remédio. Mas, para o maldo remédio, que remédio há?" Atribuindo-a à antiga sabedoria ibérica, Dr. Sylvio Capanema proferiu a frase da epígrafe em seu discurso na semana passada para a audiência pública realizada com a finalidade de colher contribuições sobre a potencial inconstitucionalidade da Lei 12.853/13. Com essa solar simplicidade, o famoso professor, desembargador e causídico, contrário à norma, conseguiu sintetizar o ponto central da questão que levou artistas e especialistas a horas de explanação para municiar de informações o Min. Luiz Fux, relator das ADIs que atacam a lei1. O mal O mal que a lei nova pretendeu enfrentar é o mal de um ECAD sem controle nem supervisão, situação que levaria ao cometimento de abusos, entre eles a prática de uma taxa de administração de 25%, falta de transparência na distribuição da arrecadação, e prática de preços abusivos em razão do monopólio, estatuído por lei, de que a entidade desfruta. O senador Humberto Costa (PT), relator do projeto que originou a lei 12.853/13, descreveu em seu pronunciamento que a comissão parlamentar de inquérito que apurara denúncias contra o ECAD2 entre 2011 e 2012 concluiu que as decisões e práticas do escritório central se implementavam em benefício de quem não era titular de direitos, que associações eram excluídas arbitrariamente do ECAD, sendo privadas de participar de sua administração, que a entidade pagava prêmios a gerentes e diretores da entidade de maneira ilegal, e que o escritório central retinha valores não distribuídos de maneira irregular. Afirmou, também, haver falta de transparência e auditabilidade dos resultados. O caso Milton Coitinho, lamentável fraude cometida para levantar valores relacionados à utilização de obras falsamente atribuídas a um compositor que sequer sabia o que era o ECAD, foi mencionado pelo senador Randolphe Rodrigues (PSOL), propositor da CPI, em seu pronunciamento, que também acusou o escritório central de descumprir contratos, distribuir honorários de sucumbência aos diretores da entidade e substituir arbitrariamente empresas de auditoria interna. Com semelhantes apontamentos, falaram também em favor da lei a deputada Jandira Feghali (PCdoB), Aderbal Freire Filho, presidente da SBAT3, Paula Lavigne, pelo Procure Saber, Ronaldo Lemos pelo ITS e Frejat, pelo GAP. Frejat destacou que o acordo do escritório central com a SKY teria repassado apenas 43% do total acordado aos titulares de direitos, e sublinhou ineficiências advindas do sistema de aferição por amostragem utilizado pelo ECAD, apontando que o sistema de hoje é insatisfatório tanto para usuários quanto para titulares de direitos. A manutenção da existência em si do ECAD como entidade monopolista na gestão coletiva foi um consenso entre quase todos os expositores pelo ganho operacional e padronização que essa concentração traz, com exceção de Denis Borges Barbosa, que mencionou o sistema estadounidense como um exemplo de organização em que três entidades distintas cuidam da arrecadação e distribuição de valores obtidos a partir da execução pública de obras protegidas por direitos autorais. O representante do CADE na audiência Pública, Carlos Ragazzo, apesar de posicionar-se no sentido da necessidade da existência do ECAD como ente monopolista na arrecadação e distribuição de valores relacionados à execução pública, discorreu sobre a conveniência de combater, por meio de controles específicos, os eventuais males que adviriam da existência desse monopólio, emulando-se um ambiente de competitividade por meio desses instrumentos regulatórios da atividade do escritório central. O remédio Constituição Federal, artigo 5º, inciso XXVIII, alínea b - são assegurados, nos termos da lei, o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais e associativas A lei 12.853/134 apresenta mecanismos de controle da atividade de gestão coletiva de direitos autorais, elegendo o Ministério da Cultura como principal ator a operar o exercício desse controle. É uma transferência, portanto, ao estado, da tarefa de realizar o que, após o desaparecimento do CNDA5, havia permanecido exclusivamente nas mãos das associações de gestão coletiva, que são entidades privadas. A norma, depois de declarar que a atividade das associações possui munus publicum, traz um conjunto minucioso de regras entre as quais destacamos as seguintes: (i) direito de votar e ser votado nas associações exclusivamente a autores originários, sendo que o voto será obrigatoriamente pessoal, e nunca por procurador; (ii) cobrança proporcional ao grau de utilização das obras e fonogramas, considerando a importância da execução pública na atividade do usuário; (iii) banco de dados público contendo contratos, comprovação de titularidade e participações individuais em obras e fonogramas geridos, além de mecanismos para que o titular possa verificar o aproveitamento econômico da obra; (iv) taxa de administração proporcional ao custo operacional, sendo que a efetiva distribuição para os titulares não poderá ser inferior a 85% do valor arrecadado6; (v) mandatos de três anos aos dirigentes das associações, com direito a uma única recondução; (vi) voto unitário, independente da representatividade do catálogo na arrecadação da associação; (vii) habilitação prévia pela Administração Pública Federal para que a associação possa exercer a atividade de cobrança; (viii) atuação da Administração Pública Federal para a resolução de conflitos entre titulares e usuários por meio mediação e arbitragem; (ix) criação de uma comissão permanente no Ministério da Cultura para o aperfeiçoamento da gestão coletiva no país. Essas principais determinações da nova lei podem ser agrupadas em quatro categorias: (1) regras sobre o funcionamento interno das associações (regras operacionais), (2) regras de composição de preços e tetos de cobrança pelo serviço (regras econômicas), (3) obrigações mínimas de infra-estrutura e (4) implementação de um controle externo. Defendendo o remédio, Marcos Alves de Souza, Diretor de Direitos Intelectuais do Ministério da Cultura, abordou, três pontos: a natureza pública do serviço prestado pelas associações coletivas, a necessidade de habilitação prévia por via governamental para o funcionamento dessas entidades e a questão da proporcionalidade entre custos de arrecadação e taxas de administração. Quanto ao primeiro ponto, destacou que o ECAD é entidade privada exercendo monopólio legal, e que sua atividade afeta fortemente a coletividade como um todo, sendo sentida quase que como um imposto. Além disso, defendeu que a administração, pelas associações, de bens de terceiros, ressalta o munus publicum dessas entidades, demandando a necessidade de visibilidade do quanto se lhes passa internamente. Quanto à necessidade de habilitação prévia junto ao Ministério da Cultura, mencionou que, entre os diversos diplomas legais que conhece, o Brasil é o único país em que qualquer grupo de titulares pode unir-se livremente para exercer a atividade de arrecadação sem qualquer tipo de habilitação governamental. Já no terceiro ponto relativo à proporcionalidade entre custos e taxas de administração, afirmou que o custo operacional não acompanha linearmente o aumento de arrecadação, de modo que mais arrecadação não implica necessariamente aumento de despesas, o que destaca a necessidade de supervisão desse ponto. Defendeu também que a presença ou ausência de supervisão estatal das associações é opção legislativa. A existência pretérita do CNDA até 1998 é comprovação disso. O mal do remédio Constituição Federal, artigo 5º, inciso XVIII - a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento; O fundamento mais saliente das ADIs7 ajuizadas em face do Supremo Tribunal Federal é o da incompatibilidade da intervenção estatal com a gestão privada das entidades de gestão coletiva. Princípios como o da livre iniciativa e da liberdade de associação são explorados pelas autoras dos pleitos. Os grupos de regras que mencionamos infringiriam ora um, ora outro, eivando a lei de inconstitucionalidade. As manifestações do grupo que combate a constitucionalidade da nova norma exploraram de maneira bastante ampla o receio de que a proposta de supervisão e regulamentação se degeneraria em intervenção, subraindo dos particulares a autonomia na gestão dos próprios direitos, que interessariam, sobretudo, aos titulares, muito mais que ao governo, aos usuários ou a qualquer outro órgão. Combateram também as acusações de ineficiência ou de falta de transparência, trazendo à audiência pública informações de caráter técnico para apoiar seus posicionamentos. Houve, inclusive, uma notável apresentação de Luiz Sá Lucas, do IBOPE, corroborando os critérios utilizados pelo ECAD para conduzir seus cálculos de arrecadação e distribuição. Fernando Brant, presidente da UBC, atacou de maneira bastante veemente o movimento legislativo que redundou na edição da lei 12.853/13, imputando aos grandes meios de comunicação uma articulação política para que as associações não recebam o que acham justo pela utilização das obras que representam. Afirmou que o Ministério da Cultura está tomado por um grupo opositor dos direitos autorais, e que a norma foi, de maneira suspeita, aprovada em uma semana, já que o projeto que deu origem à lei não era igual ao que resultou da CPI do ECAD. Criticou, também, o descompasso entre a amplitude temporal do debate que levara à edição da lei 9.610/98 (dez anos) e a celeridade com que se aprovou a recente alteração. Brant afirmou que o modelo de gestão coletiva implementado no país opera segundo os mais altos padrões internacionais, motivo pelo qual a UBC ocupa a vice-presidência da CISAC8. A lei demonstraria, em sua opinião, um completo desconhecimento por parte de seus redatores sobre o complexo sistema de gestão coletiva. Glória Braga, Superintendente Executiva do ECAD, depois de atacar a condução da CPI, revelando que o acesso aos documentos do inquérito parlamentar só foi franqueado aos advogados do ECAD depois de liminar concedida pelo Min. Celso de Mello, fez uma defesa técnica da eficiência do ECAD no desempenho de seu papel de arrecadação. Marcelo Falcão, presidente da Universal Music Publishing do Brasil, concentrou-se na exclusão dos editores da direção das associações, regra trazida pela nova lei. Afirmou que os editores são o maior alimentador do banco de dados utilizado pelas associações para a distribuição de valores relativos à execução musical, atestando que cerca de 90% das obras musicais, nacionais e estrangeiras, registradas no ECAD, são editadas, de modo que o resultado prático da operação será a retirada da gestão das associações justamente dos maiores titulares (originários ou derivados) de direitos legitimamente adquiridos no ramo musical. O pronunciador da epígrafe que dá estrutura a este escrito, Dr. Sylvio Capanema, afirmou que, embutida na idéia de controle estatal da arrecadação e distribuição de direitos, está a noção equivocada de que a gestão será mais eficiente ou mais transparente se dirigida pelo governo, defendendo que é justamente o contrário que se verifica na prática. Outras personalidades contrárias à regulamentação como Roberto Mello, ex-presidente da Abramus, uma das entidades que compõem o ECAD, Juca Novaes, músico, Luis Cobos, maestro e presidente da FILAIE e Lobão exploraram, em resumo, os mesmos argumentos. Lobão, com sua tradicional contundência, encarnando o politicamente incorreto, afirmou que a nova lei entrega o galinheiro às raposas, já que o Governo Federal, em razão da afirmada existência de uma dívida de 2,5 bilhões de reais da Radiobrás, é a maior devedora de direitos do país. Disse também que a gestão de direitos ficaria a cargo do governo mais corrupto da história, posicionando-se contrariamente à manutenção da norma. Alguma ponderação Mais importante que as características particulares de um sistema de gestão coletiva de direitos é que ele efetivamente funcione o mais perfeitamente possível. Eis o inaudito santo graal que não habita senão a melhor intenção de todos os envolvidos na discussão do tema em questão. Movimentos pendulares que emprestam um caráter mais ou menos estatizado ao desempenho de atividades econômicas em qualquer país do mundo são, muitas vezes, mais um produto da conjuntura política do que propriamente da busca da melhor solução. Talvez assim seja porque a agigantada complexidade de determinados temas faz com que seus problemas comportem a materialização dessas conjunturas na forma de diferentes possíveis soluções, todas potencialmente eficazes desde que certos limites (quais seriam é o desafio) sejam respeitados. Na infeliz inexistência do Emplasto Brás Cubas, "destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade", lembremos que os abusos sempre existirão, e sempre gerarão insatisfações tendentes a promover mudanças. É a eterna busca do cão por sua própria cauda. O desafio, aqui, é tentar ponderar até que ponto o abuso é só abuso, e a partir de onde revela-se sintoma de um sistema estruturalmente ineficaz. Essa pergunta, por hora, continua sem resposta. Acompanhemos de perto o desenrolar dessa nova fase de gestão de direitos no país. __________ 1Ajuizadas, uma, pelo ECAD e diversas das associações que o compõem, e, outra, pela UBC, que também compõe o ECAD. 2Relatório final da CPI. 3Sociedade Brasileira de Autores Teatrais 4Lei 12.853, de 14 de agosto, de 2013. 5Conselho Nacional de Direitos Autorais 6A lei determina que, inicialmente, o mínimo será de 77,5%, devendo chegar a 85% em 4 anos. 7ADI 5062 e ADI 5065 8Confederação Internacional das Sociedade de Autores e Compositores, que congrega mais de três milhões de compositores e editores do mundo todo, bem como 227 associações, que distribuíram, em 2011, mais de 7.6 bilhões de euros a seus associados em 2011.
segunda-feira, 10 de março de 2014

Reprodução Parcial e Usos Livres

Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio O direito de reprodução, uma das faculdades concedidas ao autor de obra intelectual, é o mais proeminente dos direitos patrimoniais de autoria. Por reprodução entende o legislador nacional a cópia em exemplares tangíveis de obra literária, artística, cientifica, ou de fonograma, "inclusive qualquer armazenamento permanente ou temporário por meios eletrônicos" (art. 5º, VI da lei 9.610/98, a lei que regula os direitos autorais - LDA), ou em qualquer outro modo de fixação a ser inventado1. Sobre reproduções, que dependem de prévia e expressa autorização do autor ou titular de obra protegida, seja ela integral ou parcial, exerce o titular controle total, cabendo a quem reproduzi-la a responsabilidade de manter os registros que lhe permitam "a fiscalização do aproveitamento econômico da exploração". (art. 30, §2º, LDA). Há exceções à regra? Sim. As reproduções integrais poderão ocorrer, licitamente, sem a necessidade de autorização prévia: se objeto das licenças compulsórias previstas em Berna (art. 11 bis, alínea 2, e art. 13, alínea 1); quando forem temporariamente convertidas para o meio digital ou "quando for de natureza transitória e incidental, desde que ocorra no curso do uso devidamente autorizado da obra, pelo titular" (§ 1º, art. 30, LDA); para uso exclusivo de deficientes, visuais (art. 46, I, d); quando utilizadas, em estabelecimentos comerciais para demonstração à clientela (art. 46, V); no caso dos discursos pronunciados em público (art. 46, I, b); quando ocorridas no ambiente familiar, ou para fins exclusivamente didáticos, ou para servir de prova judiciária ou administrativa (art. 46, VI e VII); e, no caso especifico da obra de arte plástica, desde que situadas em logradouros públicos e que a reprodução em si não seja o objetivo principal normal da obra reproduzida, nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores (art. 46, VIII). Esta última, a famosa regra dos três passos, que na linguagem mais sucinta de TRIPs e Berna ficou reduzida a dois (art. 13 no TRIPs, e art. 9.2 em Berna). Dúvidas, inexistem, portanto, em relação aos usos livres das reproduções integrais, uma vez que a lei claramente os especifica. Mas surgem várias no cenário jurídico no caso das reproduções parciais, mais especificamente quando estas tangenciam os usos isentos de autorização prévia: quando uma reprodução parcial pode ser considerada lícita diante das derrogações ao principio da autorização prévia em nome do interesse público, neste embutidos a informação, o conhecimento, a liberdade de expressão? Pois é em nome destas garantias, afinal, que se limitam os direitos exclusivos dos autores. Na atual LDA, deles tratam os incisos II, III e parte do VIII, do art. 46. Como o legislador não quantifica a extensão da citação ou do pequeno trecho - que pode variar caso a caso para que esse tipo de reprodução parcial cumpra a sua função, a de agregar conhecimento ao usuário - o titular do direito não raro ameaça vetá-lo, alegando violação de seus direitos exclusivos, quando a considera, a seu talante, extensa. Com efeito, o legislador autoriza a livre reprodução, sem intuito de lucro (art. 46, II), de pequenos trechos para uso privado do copista. E, no caso da citação, na medida justa, de "passagens" de qualquer obra para fins de estudo, crítica ou polêmica. Tampouco o delimitam as normas técnicas (NBR10520/2002, da ABNT), ou os códigos éticos de associações profissionais. Associação criada para defender os direitos dos editores gráficos sugeriu a máxima de uma página de uso livre em qualquer tipo de publicação, incluindo as didáticas, enquanto que universidades (USP e PUC) autorizam, na prática, o uso livre das obras existentes, em domínio público ou ainda dentro dos prazos de proteção, mas esgotadas, integrantes de suas bibliotecas, com a reprodução de até um capítulo. Preocupam-se estes com acesso ao conhecimento, que não pode ser calculado por uma página, enquanto aqueles medem apenas quantitativamente o uso, dentro de um raciocínio unicamente econômico: para ter acesso a mais páginas livres, o usuário deve adquirir a obra completa. O problema, portanto, repousa especialmente sobre o traçado de um limite que marcaria onde termina o uso que deve ser livre, independente autorização, e onde começa o uso que, sem autorização do autor, configuraria violação. A medida justa da reprodução só pode, no nosso sistema legal, ser fruto de análise casuística, e regras gerais de uso como as propostas em âmbito administrativo e privado estão fadadas ou a, em certos casos, serem por demais restritivas, ou em outros serem insuficientes à proteção do autor, além de não valerem como lei. Vejam-se, apenas como exemplos, alguns extratos de decisões que se debruçaram sobre casos em que o tema da reprodução não autorizada estava em pauta. Os arestos citados foram extraídos de casos em que se discutia a existência ou não de plágio. O plágio, para configurar-se, pressupõe apropriação parcial ou integral de obra alheia por omissão na identificação de sua autoria, e difere-se, portanto, substancialmente, do direito de citação, que é objeto do presente artigo. Mesmo assim, como a natural defesa do plagiário é recorrer justamente ao direito de citação, essas decisões terminam por tentar traçar limites. "Ora, são apenas sete trechos que motivam este longo feito, com quatro volumes e quatro apensos, contra uma obra em três volumes e 2365 páginas..." (STJ, 2013 - AgRg no AgRESP 198.310, citando trecho da sentença de primeira instância) "Não se pode olvidar, porém, que não constitui ofensa aos direitos autorais nos termos do artigo 46, inciso VIII, da lei 9.610/98: a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores." - destaquei em negrito. Assim, é permitida a utilização de fragmentos de criações preexistentes, contanto que não sejam substanciais e não ocasionem prejuízo à obra original." (TJSP, 2013 - Apelação 9157027.78.2009.8.26.0000) "Ao contrário do que sustenta o réu, não se trata de mera reprodução de conjunto de ideias, pois houve plágio também da forma e das palavras utilizadas para expressá-las. Da comparação entre os documentos de fls. 18/20 e fls. 49/52 verifica-se que toda a obra do requerente foi transcrita no livro do réu. Não houve cópia de um trecho ou outro, mas de todo o texto, apresentando, inclusive, a mesma disposição dos parágrafos e os mesmos destaques em negrito. Frise-se que o artigo 7º, inciso I da lei 9.610/98 protege de forma expressa os textos de obras literárias, artísticas e científicas. Por esse motivo, não há que se falar em pequena dimensão da violação. A reprodução foi integral, configurando contrafação, nos termos do artigo 5º, inciso VII do supracitado diploma legal." (TJSP, 2013 - Apelação 9000187-79.2006.8.26.0506) "No mérito, nega o suposto plágio. Aduz que o texto reproduziu apenas 08 (oito) parágrafos do artigo do autor, parcela que, nos termos do inciso VIII do artigo 46 da Lei 9610/98, não constitui ofensa a direito autoral. [...] Ademais, inova indevidamente o apelante quando, no recurso, sustenta licitude da publicação nos termos do inciso VIII, do artigo 46, da lei 9610/98, vez que em contestação, limitou-se a defender que se tratava de mera citação. De qualquer forma, a exceção trazida pelo artigo evocado pelo apelante, permite a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer natureza, ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores. Contudo, não é essa a hipótese dos autos, porque clara a violação de direito autoral com apropriação indevida de vários trechos da obra original, sem qualquer citação da fonte." (TJSP, 2013 - Apelação 0316909-80.2009.8.26.0000) O caso brasileiro é de legislação que traz rol não-exaustivo2 de hipóteses de limites aos direitos de autor. Estão ali definidos, com alguma margem interna de interpretação, casos que se encontram para além do exclusivo concedido ao criador da obra intelectual. É esse o sistema geral em território latino-americano3. O sistema de fair use vigente nos EUA é fonte riquíssima de complexidades nessa seara pelo fato de não haver, ao contrário do sistema brasileiro, definição estatutária de casos de uso autorizado, mas apenas de critérios abertos4. Serão considerados para definir-se se o uso é permitido e lícito, independentemente de autorização do titular, quatro critérios: (1) o propósito e a natureza do uso, inclusive se o uso é de natureza comercial ou se destina a fins educacionais não-lucrativos; (2) a natureza da obra protegida; (3) a quantidade e representatividade da porção utilizada em relação à obra protegida como um todo; e (4) o efeito do uso sobre o mercado potencial da obra e sobre o seu valor de mercado. A interpretação desses critérios é deixada nas mãos do usuário que tem, ele mesmo, de fazer uma análise de risco para decidir se a utilização depende de autorização e potencial remuneração ou não. Veja-se que, portanto, não havendo rol taxativo nem exemplificativo de casos, os limites são ainda mais nublados, tornando ainda mais difícil a tarefa de identificar o uso justo, ou a localização do traçado do limite. Se, no caso brasileiro, a dificuldade vem do fato de não haver delimitações claras dentro dos casos permitidos, nos EUA sequer os casos permitidos são identificados, aumentando-se a insegurança jurídica quanto ao permitido5. Há de um lado, quem argumente que o sistema de fair use é mais adequado a uma realidade de evolução constante das práticas de uso, reprodução e distribuição6, e que sua constituição aberta permitirá ao intérprete subsumir-lhe qualquer casos concreto com possibilidade conclusiva. A prática judicial estadounidense, malgrado a suposição, tem mostrado o contrário. Há, de outro, quem defenda que o sistema de numerus clausus é mais seguro, e que a evolução legislativa (dever-ser) virá, bem ou mal, a reboque da revolução fática (ser) nesses usos de material protegido. A prática legislativa latino-americana é exemplo que infirma essa suposição. Não temos, até agora, a fórmula balanceada de regramento desses temas, nem jurisprudência sólida que nos oriente. *Artigo escrito em parceria com a dra. Eliane Y. Abrão __________ 1Em sentido semelhante, as principais leis latino-americanas. A chilena, sem atenção à tangibilidade do meio, define reprodução como la fijación permanente o temporal de la obra en un medio que permita su comunicación o la obtención de copias de toda o parte de ella, por cualquier medio o procedimiento (ley 17336-70, artigo 5º, alínea (u), introduzida pela Ley 20435-2010); a lei mexicana a define como la realización de uno o varios ejemplares de una obra, de un fonograma o de un videograma, en cualquier forma tangible, incluyendo cualquier almacenamiento permanente o temporal por medios electrónicos, aunque se trate de la realización bidimensional de una obra tridimensional o viceversa (Ley Federal Del Derecho de Autor, artigo 16, inciso VI); a uruguaia, como a chilena, esclarece que la facultad de reproducir comprende la fijación de la obra o producción protegida por la presente ley, en cualquier forma o por cualquier procedimiento, incluyendo la obtención de copias, su almacenamiento electrónico - sea permanente o temporario - que posibilite su percepción o comunicación. As leis argentina e colombiana não trazem definições peremptórias, assim como a estadounidense, mas utilizam o termo amplamente. 2Denis Borges Barbosa, exemplificativamente, entende-o não-taxativo. José Oliveira Ascenção, fazendo crítica à terminologia "limites", delineia fronteiras extrínsecas ao exclusivo, decorrentes do obrigatório sopesamento constitucional de garantias. 3México, Uruguai, Colômbia, Brasil e Peru, exemplificativamente. 4A lei autoral americana traz casos específicos como os das bibliotecas, mas mantem essa cláusula geral aplicável a todos os casos não expressamente mencionados no texto legislativo. 5Mesmo a interpretação judicial dos casos naquele país é indecisa. Em artigo publicado em 2003, o professor David Nimmer, um dos maiores autoralistas estadounidenses, publicou estudo chamado "Fairest of them All" And Other Fairy Tales of Fair Use, em que analisa objetivamente todas as decisões da suprema corte americana até aquele momento em matéria de fair use. Sua conclusão foi pela permanência da imprevisibilidade como regra. 6Entenda-se como distribuição a disseminação genérica, por ausência de termo técnico mais adequado.
segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Considerações sobre o termo pirataria

Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio Alguma história No sentido que pertine ao tema da propriedade intelectual, o primeiro registro brasileiro de uso na imprensa que encontramos está na edição de 24 de junho de 1893 do jornal O Estado de S. Paulo. O periódico publicava parecer de Nilo Peçanha que seria apresentado à Câmara Federal, questionando decisão da Comissão de Diplomacia no sentido de rejeitar convenção literária proposta ao Brasil pela França, em 18901. "Mas fazer represalia, rejeitando o tractado litterario, quando a nossa legislação interna vae além do seu dispositivo2; subtrahir o voto brasileiro no reconhecimento internacional de um direito sagrado e que atravessa numa acclamação todos os povos policiados; organisar pela lei a pirataria scientifica, quando o producto do trabalho intellectual é mais plenamente uma propriedade que os productos do trabalho corporal, pode ser o temperamento de reacções indiscretas, a singular aggravação dos nossos creditos e das nossas difficuldades, mas não é por certo o voto do Brasil Republicano..." (O Estado de S. Paulo, 24 de junho de 1893). A pirataria no século XIX era, evidentemente, uma grande preocupação do transporte marítimo de mercadorias, e o termo isolado pirataria teve, até o século XX, denotação predominante de pilhagem, apropriação forçosa de bens materiais em trânsito. O qualificador scientifica, no texto acima transcrito, sublinha a transposição do conceito ao campo da propriedade intelectual, o que ademais se deduz pelo contexto em que é utilizado, para significar apropriação indevida de conteúdo protegido por direito autoral. Outros exemplos do termo piraterie scientifique3 encontrados em obras francesas do século XIX revelam uma preocupação não apenas dirigida à reprodução não autorizada mas, especialmente, à ausência de atribuição de autoria quando informações de pesquisa eram utilizadas se menção à fonte. O mesmo procedimento qualificador do termo se verifica antes com o uso de piraterie litteraire e literary piracy, recorrentes ao longo do século XVIII4, e de press-piracy, este último usado por Daniel Defoe em ensaio publicado em 17045, e que de fato parece ser o mais antigo registro escrito dessa transposição. Eis o trecho em que Defoe o utiliza, extraído de An Essay on the Regulation of the Press: "I think in Justice, no Man has a right to make any Abridgment of a Book, but the Proprietor of the Book; and I am sure no Man can be so well qualified for the doing it, as the Author, if alive, because no Man can be capable of knowing the true Sense of the Design, or of giving it a due Turn like him that compos'd it. This is the first Sort of Press-Piracy, the next is pirating books in smaller Print, and meaner Paper, in order to sell them lower than the first Impression." Uso O século XX viu a palavra distanciar-se quase que completamente de seu sentido original, sendo que, hoje, o uso isolado, sem qualificação, como nos textos mais antigos, faz referência direta justamente ao sentido derivado. Falar em pirataria, na linguagem corrente, é falar em violação de toda e qualquer propriedade intelectual e delitos assemelhados, sendo que não se preservou nem mesmo a antiga vinculação semântica à violação de direito autoral6. Descaminho, contrabando, contrafação de marca, violação de direito autoral, falsificação - tudo ficou guardado, no uso corrente, sob o gênero do termo. Vejam-se alguns poucos trechos extraídos de jornais do país e que demonstram essa amplitude: "Além de sonegar milhões em direitos intelectuais de inventores, artistas e autores, a pirataria elimina empregos, afugenta capitais e inviabiliza a competição com empresas sérias..." (O Estado de S. Paulo, 16 de agosto de 2004, página B7, artigo de Ethevaldo Siqueira) "...atualmente o que vem incomodando o setor, seja entre pequenos estilistas, seja entre as marcas consolidadas, é a concorrência desleal resultante da cópia de produtos. A cópia é diferente da pirataria, que é quando uma peça de roupa que não foi produzida por uma marca é vendida como se fosse dela." (Folha de S. Paulo, 15 de dezembro de 2012, página B9) "Biopirataria atinge floresta amazônica. Laboratórios europeus e dos EUA patenteiam substâncias de plantas da Amazônia e usam conhecimentos indígenas para pesquisas sem pagar nada ao país, contrariando convenção da ONU. Mercado Mundial de remédios baseados em plantas movimenta US$ 32 bilhões ao ano." (Folha de S. Paulo, 1º. de junho de 1997, capa) "Os países participantes do Mercosul (Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai), em conjunto com Bolívia, Chile e Peru assinaram um acordo para o combate à pirataria no continente. A partir de agora, as sete nações vão trocar informações sobre essa prática e atuar em operações mistas de fiscalização. A ação será coordenada e encabeçada pelos ministros da Justiça de cada um dos países e envolverá a composição de um diagnóstico da situação em cada uma das áreas. O acordo inclui também o controle da pirataria de cigarro e a parceria entre os serviços de inteligência." (Correio Braziliense, 30 de novembro de 2004, Seção Informática) Veja-se o seguinte trecho extraído do relatório final da CPI da Pirataria, documento que, supõe-se, teria vocação mais técnica que os demais exemplos citados: "Eis, pois, o foco da apuração da CPI, que, porém, apenas inicia este trabalho hercúleo, posto que a pirataria abrange, na realidade, toda espécie de adulteração e falsificação de produtos, promovendo com isto incalculáveis prejuízos ao consumidor e estupendo desvio de impostos que poderiam ser revertidos em serviços públicos visando ao bem-estar da população brasileira."7 O fenômeno do emprego a-técnico de termos com definição jurídica própria não é incomum. No uso leigo, qualquer tributo é imposto, e chama-se de multa aquilo que é indenização; o furto é roubo, o inquérito é processo, a vara é tribunal ou fórum, e o cartorário é oficial de justiça. Esses usos a-técnicos ou leigos, quando não há dúvida jurídica quanto ao seu conteúdo, não são, evidentemente, problemas a serem enfrentados pela ciência jurídica. A descrição do substrato fático a que a palavra erronamente se refere, revela, para o jurísta, a verdadeira categoria a que aquela situação do mundo concreto pertence em um dado momento. No caso do termo pirataria, entretanto, a verdade é que seu sentido, mesmo para a ciência jurídica, não se dispõe de definição fechada, e talvez a origem emprestada da palavra seja a raiz de sua vagueza ou imprecisão semântica. Vejamos, ainda que com escopo limitado, como o direito tem tratado a questão. Legislação Os indicativos legais de que dispomos são bastante escassos, mas normalmente colocam o uso do termo pirataria mais em contexto de violação de direito autoral que de descumprimento de outros mandamentos legais ou como referência de violação de outros tipos de propriedade intelectual. O TRIPs, por exemplo, traz definições de counterfeit trademark goods e de pirated copyright goods para fins de sua própria interpretação8. Na tradução, o legislador brasileiro optou por "bens com marca contrafeita" e "bens pirateados". Vê-se, aí, claramente, a opção pela utilização do termo pirataria em um contexto de violação de direito autoral, sem, entretanto, oferecer-lhe definição fechada, o que, ao menos no texto original em inglês, fica claro pela possibilidade de intercambiarem-se os adjetivos. Afinal de contas, teriam deixado de existir os counterfeit copyright goods ou os pirated trademark goods em razão dessa definição do TRIPS? Tanto não foi essa a intenção que o termo contrafação é usado de maneira ampla, referindo-se a todos os bens de propriedade intelectual, na introdução do próprio acordo9 TRIPS. Neste ponto particular, acreditamos que a internalização do acordo internacional, por meio do decreto presidencial 1355/94, andou mal ao traduzir pirated copyright goods como "bens pirateados". Essa tradução, acompanhada da definição que a vincula a violações de direito autoral, dá a entender que o adjetivo "pirateados" só deveria ser utilizado para violações de direito autoral, enquanto o texto em inglês permite a conclusão de que os copyright goods encontram-se, naquele texto, adjetivados pelo termo pirated, sem que seja impossível adjetivá-los com o termo counterfeit. A tradução, portanto, acabou por restringir indevidamente o significado, permitindo induzir-se a existência de definição peremptória quando esta, no texto original, não existe. Esse tendência de instituir uma separação entre contrafação e pirataria cristalizada claramente no TRIPS, verifica-se claramente também na legislação européia, que destina normalmente a primeira aos casos de violação marcária, e a segunda aos casos de violação autoral10, muito embora admita, para esta última, emprego relacionado à violação de desenho industrial. Veja-se abaixo a definição encontrada em reguamento comunitário relacionado ao trânsito alfandegário: "Mercadorias-pirata", ou seja, as mercadorias que sejam ou contenham cópias fabricadas sem consentimento do titular do direito de autor ou dos direitos conexos, de um direito relativo aos desenhos ou modelos, independentemente do registo nos termos do direito nacional, ou de uma pessoa autorizada pelo titular do direito no país de produção, quando a realização dessas cópias viole o direito em questão nos termos do Regulamento (CE) 6/2002 do Conselho, de 12 de dezembro de 2001, relativo aos desenhos ou modelos comunitários (5), ou pelo direito do Estado-Membro em que é apresentado o pedido de intervenção das autoridades aduaneiras; (Regulamento (CE) 1383/2003 do conselho de 22 de julho de 2003) Em território nacional, essa tendência não encontra respaldo legislativo, tanto que a própria lei de regência da materia autoral contem uma definição de contrafação que lhe é aplicável. Lembremos, também, que há uma definição do termo pirataria no decreto 5.244/2004, que cria o Conselho Nacional de Combate à Pirataria e Delitos Contra a Propriedade intelectual: Art. 1o O Conselho Nacional de Combate à Pirataria e Delitos contra a Propriedade Intelectual, órgão colegiado consultivo, integrante da estrutura básica do Ministério da Justiça, tem por finalidade elaborar as diretrizes para a formulação e proposição de plano nacional para o combate à pirataria, à sonegação fiscal dela decorrente e aos delitos contra a propriedade intelectual. Parágrafo único. Entende-se por pirataria, para os fins deste Decreto, a violação aos direitos dautorais de que tratam as Leis nos 9.609 e 9.610, ambas de 19 de fevereiro de 1998. Evidente que a disposição normativa restringe-se aos fins de interpretação desse decreto, mas revela preferência técnica para utilização do termo no contexto autoral e auxilia eventual tentativa de interpretação sistemática da norma. O mesmo diga-se do TRIPS, que claramente limita a definição que apresenta como norte interpretativo de seu próprio texto, sem a pretensão de estabelecer definição peremptória extra legem. A redefinição como regra de uso técnico Apontados os problemas, parece-nos acertado retomar, neste ponto, a lição de Tércio Sampaio Ferraz Jr., quando esclarece os pontos de oposição entre o enfoque essencialista da língua e o enfoque convencionalista11. Enquanto o primeiro acredita que a linguagem teria o condão de designar a realidade, revelando-lhe eventual essência12, o segundo descarta completamente o problema da essência, e entende que esse conteúdo subjacente à linguagem é definido, de modo arbitrário, pelo homem, levando-se em conta o emprego da língua no mundo real. Nessa investigação dos usos linguísticos, observam-se termos que comportariam uma definição lexical, ou seja, palavras cujo uso revela a possibilidade de submetê-las a um juízo verdadeiro/falso quanto ao seu conteúdo. As palavras de uso muito corriqueiro normalmente se enquadram nessa possibilidade de definição. Há, entretanto, um outro tipo de definição, chamada estipulativa, que deve ser utilizada em casos em que a palavra analisada revela, pelo seu uso, um conteúdo por demais vago, e, portanto, imprestável para análises puramente técnicas. É exatamente este o caso do termo pirataria. Seu uso para referir-se extensamente a diversos tipos de violação faz nascer uma necessidade de estipular-lhe o sentido, operação de cunho decisório, orientado pela "funcionalidade, o que depende, obviamente, dos objetivos de quem define"13. Quando essa estipulação, em vez de inovar completamente, seleciona um entre os usos comuns, aperfeiçoando-o por meio da definição precisa, tem-se o que se denomina redefinição. Parece-nos, portanto, para um uso técnico, que o termo pirataria deve ser objeto de redefinição, especificando-se-lhe o sentido sempre que necessário para alcançar uma definição útil ao contexto em que é empregado. A tendência para essa finalidade é clara na legislação européia e no TRIPS, embora o uso comum ainda permaneça vago e impreciso. O que fazem esses estatutos ao estabelecer os limites do termo é justamente adotar esse enfoque convencionalista, redefinindo-o, com vistas à funcionalidade operativa do termo naquele contexto. Um ponto importante nessa operação, entretanto, é não termos a pretensão de fazer com que os demais sentidos que a palavra tem no uso comum desapareçam, nem que outras redefinições, mais úteis a contextos diferentes, sejam taxadas como errôneas. O propósito convecionalista será sempre o da funcionalidade. __________ 1Em razão do escopo do artigo, não nos aprofundamos na pesquisa sobre os detalhes desta convenção. A de Berna já existia desde 1886, ainda sem ratificação brasileira. O periódico menciona que, na ocasião, a decisão de não aprovar o tratado Brasil-França tinha função de represália ao tratamento alfandegário de bens brasileiros quando internados naquele país. 2Referência ao Código Penal de 1890, que continha dispositivos de repressão à cópia não autorizada. Art. 345. Reproduzir, sem consentimento do autor, qualquer obra litteraria ou artistica, por meio da imprensa, gravura, ou lithographia, ou qualquer processo mecanico ou chimico, emquanto viver, ou a pessoa a quem houver transferido a sua propriedade e dez annos mais depois de sua morte, si deixar herdeiros: Penas de apprehensão e perda de todos os exemplares, e multa igual ao triplo do valor dos mesmos a favor do autor. 3O termo piraterie scientifique já era utilizado havia um bom tempo, e é possível encontrá-lo em publicações de todo o século XIX. Uma, de 1802, Code diplomatic, contendo os tratados assinados pela República da França entre 1792 e 1802 contem o seguinte trecho no prefácio: "Au moment où je m'élève contre cette espèce de piraterie scientifique, on ne manquera pas de m'objecter que mon ouvrage, surtout la partie statistique, n'est qu·un composé de citations. Oui sans doute, j'ai cité et toujours cité; et si ce premier essai a un mérite, il ne l'empruntera que du rapprochement de ces citations mêmes: car je n'ai pas eu d'autre dessein, que le faire ressortir, par-là, les calculs, tantôt trop exagérés, tantôt trop affaiblis, sur l'état de la méme puissance". 4Exemplificativamente, ver The dictionary historical and Critical of Mr. Peter Bayle, v.2., p. 773, de 1735, e L'esprit de L'encyclopédie, v.9, p.96. "La piraterie littéraire ne ressemble point du tout à celle des armateurs: ceux-ci se croient plus innocens, lorsqu'ils exercent leurs brigandage dans le nouveau monde, que s'ils l'exerçoient dans l'Europe; les auteurs, au contraire, arment en course bien plus hardiment pour le vieux monde que pour le nouveau.", de 1798. 5Veja-se o excelente artigo que retoma as origens do uso do termo em SANTOS, Manoel Joaquim Pereira dos. Contrafação e Plágio como violações de direito autoral. In: SANTOS, Manoel Joaquim Pereira dos; JABUR, Wilson Pinheiro (Coords.). Direito Autoral. 1. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. 6Definição número quatro do vocábulo no dicionário Houaiss, edição de Janeiro de 2009: "ato de copiar ou reproduzir, sem autorização dos titulares, livros ou impressos em geral, gravações de som e/ou imagens, marcas ou patentes, software, etc., com deliberada infração à legislação autoral." 7Relatório final da CPI da pirataria, concluído em 2003. 8Nota ao artigo 51: For the purposes of this Agreement: (a) "counterfeit trademark goods" shall mean any goods, including packaging, bearing without authorization a trademark which is identical to the trademark validly registered in respect of such goods, or which cannot be distinguished in its essential aspects from such a trademark, and which thereby infringes the rights of the owner of the trademark in question under the law of the country of importation; (b) "pirated copyright goods" shall mean any goods which are copies made without the consent of the right holder or person duly authorized by the right holder in the country of production and which are made directly or indirectly from an article where the making of that copy would have constituted 9"Recognizing the need for a multilateral framework of principles, rules and disciplines dealing with international trade in counterfeit goods". 10É comum a separação dentre mercadoria-pirata e mercadoria de contrafação na legislação comunitária européia, a exemplo da distinção adotada em TRIPS: "A fim de melhorar o funcionamento do sistema relativo à entrada na Comunidade e à exportação e reexportação da Comunidade de mercadorias que violam certos direitos da propriedade intelectual, instituído pelo Regulamento (CEE) n.o 3295/94 do Conselho, de 22 de Dezembro de 1994, que estabelece medidas destinadas a proibir a introdução em livre prática, a exportação, a reexportação e a colocação sob um regime suspensivo das mercadorias de contrafacção e das mercadorias-pirata (2), convém tirar as conclusões da experiência adquirida com a sua aplicação. Por uma questão de clareza, o Regulamento (CE) n.o 3295/94 deve ser revogado e substituído." 11FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Introdução so Estudo do Direito - Técnica, Decisão, Dominação. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1994, p. 34-38. 12E, aqui, relembramos as saudosas preleções do Prof. Alaor Caffé Alves, no Largo São Francisco, em que este conceito era encerrado como "a existência da mesidade da mesa, ou a colheridade da colher", a significar a existência de um conceito essencial platônico que pode ser retomado por meio de um signo linguístico. 13FERRAZ JR., idem, ibidem.
Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio A notícia sobre um livro1 contendo a palavra judeu repetida seis milhões de vezes chamou atenção na semana passada2, marcada pelo Dia Internacional da Memória do Holocausto3. Contendo 1.250 páginas idênticas, cada uma com 40 colunas e 120 linhas, somam-se 4.800 "judeus" por página, dispostos de maneira idêntica, página após página. And Every Single One Was Someone4, título da obra, convida-nos a olhar para cada uma daquelas palavras e imaginar um nome, um rosto, uma pessoa, seu círculo de amizades, família, emprego, desejos e aspirações, gostos, personalidade. Convida-nos, portanto, a pensar a pessoa por trás do rótulo judeu, realizando um processo inverso e antagônico àquele de massificação pelo gênero, fundamento primeiro de qualquer genocídio, que suprime todos esses caracteres em razão do pertencimento a um grupo que, por interesse do dominador, deve ser exterminado. Essa personificação da vítima do genocídio lentamente transforma obra de Phil Chernofsky em um protesto universal e o distancia da concretude singular do genocídio judeu da segunda guerra, permitindo-nos refletir sobre a reumanização do indígena ao tibetano, do armênio ao bengali assassinado pelo ou depois do mesmo processo de generificação odiosa que se conduziu na alemanha nazista. Há alguma dúvida sobre a gritante característica artística dessa obra que, embora composta pela singeleza da repetição de uma única palavra, contem um mundo de significados e desperta uma avalanche de pensamentos, sentimentos e discussões? Todos se lembrarão do poema Luxo/Lixo de Augusto de Campos, publicado em 19655. Compõe-se, à primeira vista, de uma única palavra, "Lixo", que, no entanto, se observada com cuidado, revela que cada uma das letras dessa palavra principal é composta de repetições, em tamanho reduzido, da palavra "Luxo" em tipografia rebuscada6. A brilhante composição nos permite extrair diversos significados possíveis a partir dessas duas palavras - o desvalor do luxo, a relatividade do mundo que se molda à perspectiva do observador, o inexorável ciclo que descarta e tritura o que é puramente material, entre muitos outros. A evocação de múltiplos significados a partir de duas simples palavras transforma-as, em razão de sua disposição, em objeto artístico inquestionável7. Os dois casos mencionados são exemplos de criação artística que, apesar de não se constituirem em exemplos clássicos e simples de obra autoral como um romance típico, são indiscutivelmente criações originais do espírito. Será que merecem proteção autoral? Outra questão, paralela à da proteção como obra e, ao mesmo tempo, dela decorrente, é a do grau de apropriação do material protegido: considerando-se que determinada obra deve ser protegida por direitos autorais, em que medida a reprodução de partes ou trechos viola o direito do criador8? Perceba-se que, nos casos mencionados, este problema se agrava e ganha especial relevo, já que a proteção de um poema de duas palavras e de um livro contendo uma única não poderia, por óbvio, garantir uso exclusivo dessas duas palavras ao criador. Vejamos. Do ponto de vista legislativo, tem-se que o conjunto de normas aplicáveis à matéria em território nacional traz rol exemplificativo de obras intelectuais9, estabelecendo tão-somente que serão assim consideradas e protegidas as (i) criações do espírito que se encontrem (ii) expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível10. Quanto ao requisito de serem criações do espírito, a doutrina normalmente aponta a restrição da proteção autoral àquilo que (a) é produto da criação humana e (b) se caracteriza pela originalidade; quanto à exigência da expressão ou da fixação, dir-se-á que cristaliza o conceito autoral de proteção à forma, ao produto da idéia revestida de corporificação passível de percepção, e não à idéia em si. A perquirição do conteúdo do requisito de (b) originalidade é relativamente trabalhosa, mas, entendemos, importante para orientar o estabelecimento da amplitude de apropriação decorrente da concessão de proteção. Identifica-se, neste requisito, dois elementos: (b.1) um, objetivo, compatível com o conceito de novidade do direito de propriedade industrial (existência ou não de criação idêntica prévia), e outro, subjetivo, a que gostaríamos de chamar (b.2) originalidade propriamente dita, representativo do concurso do autor no produto final objeto da criação autoral. Em alguma medida, a originalidade propriamente dita será grau da novidade12, determinando-lhe o distanciamento em relação ao quanto já foi criado. Sob o prisma desses requisitos, parece-nos claro que as obras de Augusto de Campos e de Phil Chenofsky devem desfrutar de proteção autoral. São novas, trazem em si indelével traço de criação que lhes foi aposto por seus autores e encontram-se expressas, fixadas em suporte que permite sua apreciação por meio dos sentidos. Além disso, e a despeito de o julgamento do mérito das obras não constituir prova a que se deve submetê-las a fim de determinar se são ou não passíveis de proteção, claro está que em caráter artístico se distanciam em muito de textos meramente descritivos, informativos e despidos de maior criatividade. Quanto ao segundo questionamento, tentemos identificar qual é o grau de apropriação que essa proteção proporciona. Será que estamos todos proibidos de utilizar a palavra judeu em nossos escritos, já que concluímos que a obra que a repete seis milhões de vezes é digna de proteção autoral? O que dizer das palavras luxo ou lixo - ferimos os direitos de Augusto de Campos ao publicá-las? No caso de Chenofsky, lembremos que a originalidade propriamente dita da obra decorre não da utilização do termo comum judeu, mas da sua repetição em número equivalente à estimativa de judeus mortos na segunda guerra, além da disposição alinhada e repetida à exaustão ao longo de suas páginas, característica que evoca o tratamento dos prisioneiros judeus como apenas números, animais massificados nas incontáveis fileiras dos campos de concentração. A obra, portanto, em sua completude (porque daí decorre sua originalidade específica), tal como se encontra, é passível de proteção autoral, mas não concedeu ao Rabino a cerebrina exclusividade sobre o uso das partículas que a compõem. A reprodução do livro idêntico, neste caso, sem autorização do autor ou da lei, constituirá violação, mas não a reprodução parcial. O mesmo se diga do poema de Augusto de Campos. Aquela fixação específica da constituição das letras da palavra LIXO pelas palavras LUXO, em tipografia reduzida e rebuscada, reificação da originalidade autoral é que não poderá ser reproduzida, permanecendo evidentemente livre o uso dos termos particulares que, somados, compõem a obra13. Uma reprodução do poema como graficamente representado constituirá, se não autorizada ou permitida por lei, violação. Esses exemplos revelam casos em que a originalidade propriamente dita da obra decorre de seu conjunto e de sua inteireza, sendo impossível decompô-las em partes menores que, isoladas, seriam passíveis de proteção. No caso de obras literárias mais comuns, como romances ou poemas não-concretos, é possível que delas se extraiam partes que, em si, carregam originalidade suficiente, ainda que separadas do todo a que pertencem. O limiar da violação será ultrapassado, portanto, quando o conjunto reproduzido sem autorização legal ou do autor se revestir de novidade e originalidade propriamente dita suficientes para que sejam protegidas. Aquém desse limite estariam, portanto, as partículas que, independentes e isoladas, não são passíveis de apropriação. A análise casuística, aqui, será indispensável na maioria das vezes para determinar, no caso concreto, os limites da proteção autoral. Relembre-se, apenas para rechaçá-lo, o mito do limite de oito compassos copiados para que uma composição seja considerada como plagiária de outra já existente. Haverá casos em que vinte compassos não constituirão reprodução não autorizada, porque destacados do todo não se revestem de originalidade suficiente a sustentar proteção autônoma, e encontrar-se-ão exemplos em que um conjunto de notas de um mesmo compasso poderá infringir direito alheio. Quem não se lembra da sequência sonora celebrizada no filme Contatos Imediatos de Terceiro Grau? Assunto complexo, que merece sempre a mais atenta observação. __________1And Every Single One Was Someone, de Phil Chernofsky. Geffen Publishing House, 2013.2Holocaust Told in One Word, 6 Million Times327 de janeiro marca a liberação dos prisioneiros remanescentes de Auschwitz, em 1945, pelo exército vermelho. A data comemorativa (ou, melhor dizendo, a data memorial) foi estabelecida como tal por meio da Resolução da ONU 60/7, de 3 de novembro de 2005. Por ocasião dessa 60ª Assembleia Geral, o representante brasileiro Ronaldo Mota Sardenberg deu a seguinte declaração, relatada indiretamente no texto da ata: "The Jewish Holocaust had been a paradigm of genocide, a crime that, until then, lacked definition and did not allow for legal recourse. The Hague Treaties had not mentioned genocide. Massacres prior to the Holocaust could not be properly judged, and their perpetrators could not be punished, including the crimes committed against the indigenous peoples of the Americas during the colonial period, along with the practice of slavery. The profound impact of the Holocaust prompted the international community to attempt, through the United Nations, to define genocide as an international crime and to bring its perpetrators to justice. In 1948, the United Nations approved the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide and, more recently, the crime was incorporated into the Rome Statute of the International Criminal Court. He said the fight against the crime of genocide would only be complete when States adhered to and implemented human rights instruments in both the domestic and international spheres. In remembering the Holocaust, the international community not only renewed its indignation and rejection of the actions committed, but also renewed its commitment to fight oppression and prejudice wherever it took place".4E cada um era alguém.5Um fato curioso que merece ser mencionado: Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari, precursores do movimento concretista brasileiro, estudaram, na década de 1940, na gloriosa Faculdade de Direito do Largo São Francisco. É opinião modesta deste articulista que seus nomes deveriam fazer companhia aos de Castro Alves, Álvares de Azevedo e Guilherme de Almeida nas portadas ou colunas da velha e sempre nova academia. 6Uma busca pelo termo "Luxo/Lixo" em qualquer buscador revelará a imagem-poema.7poesia concreta: [...] a poesia concreta começa por tomar conhecimento do espaço gráfico como agente estrutura. espaço qualificado: estrutura espácio-temporal, em vez de desenvolvimento meramente temporístico-linear, daí a importância da idéia de ideograma, desde o seu sentido geral de sintaxe espacial ou visual, até o seu sentido específico (fenollosa/pound) de método de compor baseado na justaposição direta - analógica, não lógico-discursiva - de elementos. "il faut que notre intelligence s'habitue à comprendre synthético-ideographiquement au lieu de anlytico-discursivement" (apollinaire). eisenstein: ideograma e montagem. Plano-Piloto para Poesia Concreta. Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Décio Pignatari. Noigrandes, 4, São Paulo, 1958.8Este tema específico será objeto mais detalhado de um artigo atualmente em gestação, em conjunto com a Dra. Eliane Y. Abrão, cuja parceria muito nos honra.9Termo por demais abrangente. Rol e requisitos do artigo 7º. da LDA.10Critérios iguais ou semelhantes são comumente encontrados em estatutos autorais em todo o mundo. No México, artigo 13 da Ley Federal Del Derecho de Autor (DOF 10-06-2013); no Chile, artigos 1º. e 3º. Da Ley 17.336, que não põe requisito geral de fixação mas o menciona nas exemplificações de obras protegidas; no Uruguai, artigo 5º da Ley 9.739, conforme modificações introduzidas pela Ley 17.616; na Colômbia, artigo 2º da Ley 23 de 1982 (nivel nacional); na Argentina, artigo 1º da Ley 11.723; nos EUA, parágrafo 102, capítulo 1, Título 17 do United States Code.11Parte da doutrina (especialmente, Eliane Y. Abrão) adiciona o requisito de estar a obra dentro do prazo legal de proteção aplicável à época de sua publicação. Concordamos, mas sem explorar o tema, em razão de não se relacionar ontologicamente com a figura da obra protegida.12Esta posição, que identifica a originalidade propriamente dita como grau da novidade é uma proposição original que não se baseia em nenhuma construção doutrinária previamente conhecida pelos autores. Como tal, não foi ainda submetida a um debate que permitiria o aperfeiçoamento de sua essência ou mesmo seu descarte como tentativa teórica. Afigura-se-nos válida como ferramenta de análise.13O direito marcário é contraexemplo desse conceito. As concessões de marcas nominativas representam, efetivamente, uma apropriação da palavra, respeitando tão somente a restrição da especialidade.
segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Marketing de Emboscada - conceito e fundamentação

Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio Em tempos de Copa de Mundo e Jogos Olímpicos, se o avanço das discussões e de projetos de lei envolvendo PI fica um pouco incerto, certamente não faltarão debates em torno do chamado (e já tão divulgado) marketing de emboscada (ambush marketing). De forma geral, considera-se marketing de emboscada toda publicidade paralela que evoque, esteja relacionada ou de alguma forma associada a eventos ( esportivos, no caso em questão) sem a devida autorização do realizadores para tanto1 . Os detentores de direitos exclusivos para o uso dos símbolos oficiais, das marcas, da alusão direta aos eventos - in casu, os Jogos Olímpicos e a Copa do Mundo - são o Comitê Olímpico Internacional (e suas extensões nacionais) e a FIFA, primariamente. E, de forma, secundária - oficialmente autorizados por tais entidades, as empresas patrocinadoras oficiais de tais eventos, que investem grandes quantias para tornar possível a sua realização. Em contrapartida, recebem a exclusividade do uso - e exploração comercial - direta dos eventos. O meio jurídico especializado há muito vem alertando o mercado quanto à necessária atenção a ser dedicada pelas empresas patrocinadoras na vigilância e ação para fazer cessar o ato violatório e pelos não-patrocinadores na cautela e resguardo dos limites de suas campanhas publicitárias a bem de não cruzar a linha da exclusividade detida pelos primeiros, enriquecendo-se indevidamente. A tarefa não é fácil. É natural que todo o mercado esteja com os olhos voltados para as oportunidades de negócios que surgem da associação de seus esforços de divulgação e estratégias de marketing à Copa do Mundo e aos Jogos Olímpicos. Vejamos, assim, o que os dispositivos legais atualmente disponíveis, específicos ou gerais podem ser aplicados ao assunto ora em questão. De início, cumpre ressaltar que a partir da lei 12.663/12 (lei geral da Copa) contamos com uma definição legal da expressão, bem como com uma classificação em dois tipos, conforme artigos 32 e 33: Marketing de Emboscada por Associação Art. 32. Divulgar marcas, produtos ou serviços, com o fim de alcançar vantagem econômica ou publicitária, por meio de associação direta ou indireta com os Eventos ou Símbolos Oficiais, sem autorização da FIFA ou de pessoa por ela indicada, induzindo terceiros a acreditar que tais marcas, produtos ou serviços são aprovados, autorizados ou endossados pela FIFA: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano ou multa. Parágrafo único. Na mesma pena incorre quem, sem autorização da FIFA ou de pessoa por ela indicada, vincular o uso de Ingressos, convites ou qualquer espécie de autorização de acesso aos Eventos a ações de publicidade ou atividade comerciais, com o intuito de obter vantagem econômica. Marketing de Emboscada por Intrusão Art. 33. Expor marcas, negócios, estabelecimentos, produtos, serviços ou praticar atividade promocional, não autorizados pela FIFA ou por pessoa por ela indicada, atraindo de qualquer forma a atenção pública nos locais da ocorrência dos Eventos, com o fim de obter vantagem econômica ou publicitária: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano ou multa. Art. 34. Nos crimes previstos neste Capítulo, somente se procede mediante representação da FIFA. Como se vê, a lei geral da Copa, além de definir marketing de emboscada por associação e intrusão, tipifica tais condutas como crimes passíveis de punição de 3 meses a um ano de prisão, ou multa. O mesmo diploma legal determina - dentre outras regras - um perímetro máximo de 2 (dois) quilômetros de exclusividade em torno dos estádios dos jogos para a comercialização e a promoção (publicidade) de produtos e serviços dos patrocinadores oficiais do evento. Vale lembrar que, embora já tenhamos no Brasil em vigor desde 2009 a Lei das Olimpíadas (lei 12.035/09, mais conhecida como "Ato Olímpico"), esta não traz qualquer menção ao "marketing de emboscada"2 , de forma que o conceito adotado para situações de potencial ilicitude envolvendo os Jogos Olímpicos - tudo indica - será mesmo o inserido na mencionada lei da geral Copa, até que venha regulamentação acerca deste tema. Apesar disso, traz determinações importantes para o tema, como por exemplo a atribuição às autoridades federais3 do dever de controle, fiscalização e repressão de atos ilícitos que infrinjam os direitos sobre os símbolos relacionados aos jogos Rio 2016, listando tais símbolos (Rio 2016, Rio Olimpíadas, Jogos Olímpicos, Jogos paraolímpicos - dentre outros - e suas variações), além de outras determinações relacionadas a publicidade em aeroportos e outras áreas de interesse entre julho e setembro de 2016. Na instância administrativa, a lei geral da Copa também determinou que o INPI - Instituto Nacional da Propriedade Industrial promovesse a anotação de uma lista de marcas e símbolos da FIFA como marcas de alto renome e notoriamente conhecidas4 , passando as mesmas a gozarem, automaticamente, desta proteção especial. Tal status confere à FIFA uma proteção aumentada contra atos de titulares que tentem se apropriar de qualquer signo semelhante ou que possa ser indevidamente associado à Copa do Mundo5. Não nos esqueçamos, porém, que as leis da Copa e das Olimpíadas acima mencionadas não são os únicos recursos de que se podem valer as entidades organizadoras e os patrocinadores oficiais dos eventos na defesa de seus direitos. Outros remédios - já existentes na legislação pátria - podem ser considerados no combate ao marketing de emboscada, tanto na esfera judicial como administrativa. Na esfera administrativa, importante referência deve ser feita ao Conar - Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária e seu conjunto de regras e decisões. Embora se trate de um órgão de autorregulamentação, criado para equilibrar e orientar do ponto de vista ético-concorrenciais as empresas de propaganda, desfruta de grande respeito e credibilidade no Poder Judiciário, sendo o seu código de condutas e suas decisões parâmetros importantes, amplamente utilizados para pautar decisões judiciais envolvendo o tema, como fonte subsidiária à legislação que regula a publicidade e a propaganda no país. Ademais, as decisões proferidas pelas Câmaras de julgamento do Conar são, em sua maioria, muito bem aceitas e respeitadas pelas partes, sendo raramente verificadas condutas posteriores que contrariem ou desafiem o que os órgãos julgadores do Conselho fixaram. Os princípios gerais aplicáveis às propagandas em que se baseiam as decisões do Conar são - ao nosso ver - úteis e adequados a embasar o combate ao marketing de emboscada, visto que abarcam, dentre outros: a honestidade; decência, respeitabilidade, progaganda comparativa; a identificação publicitária, o respeito aos direitos autorais e marcas, todos pilares básicos a que a serem respeitados pelo mercado, e que se aplicam igualmente na regulação da propaganda em tempos de Copa e Olimpíadas6 . Dentre os princíos acima merece especial atenção o artigo 31 do referido Código, que trata da identificação publicitária e reprime, especificamente, a "carona" no investimento alheio através da publicidade: "Artigo 31 Este Código condena os proveitos publicitários indevidos e ilegítimos, obtidos por meio de "carona" e/ou "emboscada", mediante invasão do espaço editorial ou comercial de veículo de comunicação. Parágrafo único Consideram-se indevidos e ilegítimos os proveitos publicitários obtidos: a. mediante o emprego de qualquer artifício ou ardil; b. sem amparo em contrato regular celebrado entre partes legítimas, dispondo sobre objeto lícito; c. sem a prévia concordância do Veículo de comunicação e dos demais titulares dos direitos envolvidos." Para além do completo parâmetro ético que provê o Código do Conar, entendemos aplicáveis à prevenção e ao combate do marketing de emboscada as regras de proteção da propriedade industrial, previstas na lei 9.279/96, inclusive e especialmente as regras de repressão à concorrência desleal. Com efeito, condutas caracterizadas como marketing de emboscada poderão muitas vezes se enquadrar em tipos ali previstos, como por exemplo a reprodução desautorizada de marca registrada de terceiros, ou o emprego de meio fraudulento para desviar em proveito próprio ou alheio a clientela de outrem (ato de concorrência desleal)7 . Não menos importante, temos ainda aplicável a vertente dos direitos dos consumidores, certamente adequada às hipóteses de marketing de emboscada por meio dos dispositivos contidos no CDC brasileiro (lei 8.078/90) que proíbem a propaganda abusiva e enganosa, esta última assim considerada quando inteira ou parcialmente falsa ou capaz de de induzir o consumidor a erro quanto à natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço ou qualquer outra informação relacionada aos produtos e serviços divulgados. Por fim, façamos referência à regra geral de repressão ao enriquecimento sem causa. Como princípio basilar, em conjunto com o da repressão à concorrência desleal, os artigos 884 e seguintes do CC fornecem fundamento genérico de combate à prática de marketing de emboscada, em conjunto com todos os demais dispositivos já mencionados. Em conclusão, gostaríamos de chamar a atenção para a grande mobilização das entidades organizadoras dos eventos esportivos que se aproximam em coibir as práticas prejudiciais ao investimento dos patrocinadores oficiais e de seus próprios esforços na organização dos jogos. O COI - Comitê Olímpico Internacional, o COB - Comitê Olímpico Brasileiro e a FIFA - vêm demonstrando posisiocinamento rigoroso e pró-ativo no combate a tais práticas ilícitas - enviando Notificações Extrajudiciais, ajuizando ações, promovendo debates e esclarecimentos, enfim protegendo e defendendo suas marcas e símbolos, de forma a garantir o retorno dos grandes investimentos realizados pelos patrocinadores oficiais. Dificilmente um aproveitamento ilícito passará ileso, e é certo que o tema visitará nossos tribunais país afora em conjunto com esses eventos nos próximos anos. _________________ 1 - É uma espécie de "carona grátis" (free-riding) no investimento das entidades organizadoras e seus patrocinadores oficiais, que possuem exclusividade na exploração comercial dos referidos eventos. Caracteriza-se não só pela utilização indevida dos símbolos oficiais dos eventos mas também pelo aproveitamento camuflado da atenção que eles geram, como através da fixação de placas de publicidades nos locais onde os jogos se realizam. 2 - A Lei das Olímpíadas será possivelmente regulamentada e um dos pontos a serem definidos, acredita-se, é a inclusão de regras de repressão ao marketing de emboscada, similares às existentes na Lei Geral da Copa. 3 - Determinação importante se considerarmos que a competência da Polícia Federal para atuação em crimes contra a propriedade imaterial é bastante controversa na legislação pátria. 4 - Artigos 3º e 4º da lei 12.663/12. 5 - Este reconhecimento administrativo tem dois efeitos práticos relacionados à proteção conferida às marcas da FIFA: (i) impede que sejam registradas, por terceiros, em qualquer classe marcária, ainda que não relacionada à atividade da FIFA (não se pode registrar a marca Copa do Mundo para distinguir, exemplificativamente, um modelo de cadeira, ainda que a atividade moveleira não tenha nenhuma relação com a atividade da FIFA), e (ii) impede que terceiros se sirvam do sistema atributivo brasileiro (first come, first served) maliciosamente, depositanto pedidos de marca pertencentes alhures à FIFA mas que se encontram vacantes, no Brasil, em razão da limitação territorial do privilégio marcário. 6 - Capítulo II do Código de Autorregulamentação Publicitária. https://www.conar.org.br/ 7 - Lei 9279/96: (..) "Artigo 189 - Comete crime contra registro de marca quem: I - reproduz, sem autorização do titular, no todo ou em parte, marca registrada, ou imita-a de modo que possa induzir confusão; ou (...) Artigo 195 - Comete crime de concorrência desleal quem: (...)III - emprega meio fraudulento para desviar, em proveito próprio ou alheio, clientela de outrem; (...) Artigo 209 -Fica ressalvado ao prejudicado o direito de haver perdas e danos em ressarcimento de prejuízos causados por atos de violação de direitos de propriedade industrial e atos de concorrência desleal não previstos nesta Lei, tendentes a prejudicar a reputação ou os negócios alheios, a criar confusão entre estabelecimentos comerciais, industriais ou prestadores de serviço, ou entre os produtos e serviços postos no comércio. § 1º - Poderá o juiz, nos autos da própria ação, para evitar dano irreparável ou de difícil reparação, determinar liminarmente a sustação da violação ou de ato que a enseje, antes da citação do réu, mediante, caso julgue necessário, caução em dinheiro ou garantia fidejussória."
segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

2014 em PI

Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio Se, por um lado, 2014 apresenta claro potencial para ser um ano de debates e definições importantes para o país na área de propriedade intelectual, temos, por outro, o maior espetáculo futebolístico do mundo acontecendo no quintal de casa, seguido por nada menos que as eleições presidenciais. Não há dúvidas de que as forças políticas da nação terão agendas influenciadas por esses dois eventos, o que nos deixa com uma perspectiva incerta sobre o espaço para o debate que esse novo ano reservará à pauta de propriedade intelectual, ainda que o conteúdo dessa pauta pareça bastante claro e seja autoevidente quanto à sua importância. Anteprojeto de Alteração da Lei de Direitos Autorais Em 2010, o Ministério da Cultura, na gestão de Juca Ferreira, publicou texto1 de anteprojeto de alteração da Lei 9.610/98, a nossa Lei de Direitos Autorais para consulta pública. O texto era fruto de uma longa gestação, ao que parece iniciada nos idos de 2006, quando Gilberto Gil era titular da pasta, com uma tônica de flexibilização de direitos. A gestão subsequente, de Ana de Hollanda, deu sinais de que não entendia como urgentes as alterações propostas, e o anteprojeto deixou de movimentar-se, o que mudou depois que Marta Suplicy assumiu o ministério. Presente na abertura da XVI Bienal do Livro do Rio em agosto de 20132, a ministra confirmou que o projeto se reavivou. A expectativa é de que o texto anteriormente submetido a consulta pública ressurja significativamente transformado, e seja trazido a público, para nova consulta, em 2014. Um dos pontos nevrálgicos desse novo anteprojeto será, possivelmente, o regramento brasileiro da retirada do ar de conteúdos publicados indevidamente na internet, cumprindo a incumbência que lhe foi deixada pela mais recente versão de Marco Civil da Internet. Debate, evidentemente, de lege ferenda, e não de lege lata. Mudança de comando no INPI Encerrando uma virtuosa gestão de sete anos à frente do INPI, Jorge Ávila deixa a presidência do Instituto, dando lugar a Otávio Brandelli, nomeado pelo ministro Fernando Pimentel (MDIC) em dezembro de 2013. Diplomata de carreira, Brandelli foi Conselheiro da DIPI - Divisão de Propriedade Intelectual do Ministério das Relações Exteriores, cargo de chefia atualmente ocupado por Kenneth Nóbrega. Em artigo publicado em 2007 em conjunto com o diplomata Roberto Jaguaribe3, antecessor de Jorge Ávila na presidência do INPI, os autores listam o que entendem como desafios internos para o Brasil na área de propriedade intelectual, como integrar a política de propriedade intelectual à política industrial do país, gerar e disseminar uma cultura própria, brasileira, na área de propriedade intelectual no executivo e no judiciário, modernizar e melhorar o desempenho do INPI e atrair investimentos para inovação. Propoem, igualmente, um decálogo de recomendações relacionada à área que merece ser consultado, e que parece traduzir o entendimento do diplomata acerca da função desempenhada pela propriedade intelectual na estratégia desenvolvimentista do país. A tônica é de adoção de política pública específica para o caso brasileiro nesta área, enxergando-se com cautela a concessão de direitos. Parece que, de imediato, o maior desafio que o INPI continua carregando é mesmo o backlog de patentes. Dependendo do tipo de tecnologia, 12 anos podem colocar-se entre o depósito do pedido e a concessão do privilégio. Este primeiro ano de gestão deve revelar se a orientação política do INPI (que guia o exercício de sua discricionariedade) será substancialmente alterada, ou se a toada será de continuidade. Esperamos que a disposição para o diálogo que marcou a gestão anterior permaneça, e desejamos muito boa sorte ao novo presidente! Projeto de Alteração da Lei de Propriedade Industrial De autoria dos deputador Newton Lima (PT-SP) e Dr. Rosinha (PT-PR), o PL 5402/20134 traz alterações significativas à Lei 9.279/96, quase todas no sentido de limitar direitos de propriedade intelectual e aumentar o rigor na análise que antecede sua concessão. O projeto - atualmente sob análise na CCJ da Câmara - foi acompanhado de estudo realizado pelo Centro de Estudos e Debates Estratégicos da Câmara dos deputados5, que inclui, para além do PL, uma sugestão de decreto para criação de um órgão administrativo denominado CODIPI, subordinado à Casa Civil, com poderes para emitir polêmicas orientações vinculantes a órgãos da administração, inclusive o INPI. Anteprojeto de Novo Código Comercial - Nome Empresarial e Nome de Domínio Devem avançar em 2014 as discussões que cercam a proposta de um novo código comercial para o Brasil. O anteprojeto aprovado por comissão de juristas no dia 18 de novembro de 20136 traz, como não poderia deixar de ser, disposições importantes para a área de PI, entre elas um capítulo específico sobre nome empresarial, com disposições tendentes a encerrar discussões doutrinárias e jurisprudenciais persistentes nessa seara. Assim, por exemplo, o anteprojeto traz definição clara sobre o âmbito de proteção do nome empresarial: passaria a ser nacional, independentemente de arquivamento em juntas comerciais de outros estados da federação. Estebelece-se também um requisito de novidade absoluta do nome empresarial, exigindo de qualquer registro idêntico a outro preexistente alteração que o distinga, propostas que, no nosso entender, mereceriam mais cautela e mais debate, seja pelo mérito, seja pela factibilidade operacional. O mesmo se diga das disposições relacionadas a nome de domínio. O anteprojeto estabelece que a reprodução de marca registrada em nome de domínio configura parasitismo concorrencial, resguardando o princípio da especialidade para quem também for titular de marca. Como ficaria o pré-utente de boa-fé, ou mesmo o depositário em classe marcária completamente diversa? Será que só porque não detem ainda o registro ficaria impedido de registrar domínio? Importantes temas, enfim, que devem ser melhor explorados conforme os debates avançam, inclusive sob o ponto de vista da necessidade ou não de legislar sobre temas de enfrentamento extralegal já bastante satisfatório. ADI contra a Nova Lei do ECAD Em 15 de agosto de 2013, publicou-se a lei 12.853/13, que altera, adiciona e suprime dispositivos da vigente Lei de Direitos Autorais. Os dispositivos da lei nova estabelecem renovada disciplina para o sistema de arrecadação e distribuição coletivas de valores relativos a direitos autorais, criando um conjunto extenso de obrigações às associações encarregadas de gerir esses direitos. Estabelece-se uma possibilidade de supervisão das atividades por parte do Ministério da Cultura, que passa a deter o poder de autorizar ou desautorizar o funcionamento das associações coletivas, que passam a ter, por força de lei, um munus público. As associações que compõem o ECAD, em sua maioria, e o próprio ECAD, ingressaram, em 04 de novembro de 2013, com Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5062), distribuída ao Min. Luiz Fux, tendo por fundamento entre outros e basilarmente o da incompatibilidade da intervenção estatal com a gestão da propriedade privada levada a cabo pelas associações de gestão coletiva. Figura como amicus curiae a UBEM. Uma semana depois, a UBC - União Brasileira de Compositores, que também compõe o ECAD mas não participou como autora na primeira ADI, ingressou com outra Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 5065), distribuída, por prevenção, ao mesmo relator. A Advocacia Geral da União e a Procuradoria Geral da República7 já se manifestaram nos autos da primeira ação pela improcedência dos pedidos. A segunda ação aguarda parecer da PGR. Com vistas à relevância do tema e para, nos termos do despacho do Min. Luiz Fux, que a decisão se revista de maior legitimidade democrática, convocou-se audiência pública a ser realizada em 17 de março de 2014. Trans-Pacific Partnership (TPP)8 No plano internacional, deve ganhar destaque a negociação do TPP, tratado internacional entre Australia, Brunei, Canadá, Chile, Japão, Malásia México, Nova Zelândia, Peru, Singapura, EUA e Vietnã. O acordo contem um capítulo sobre propriedade intelectual duramente criticado por entidades como a Electronic Frontier Foundation9, porque supostamente estabeleceria um padrão mínimo de responsabilização e de mecanismos de retirada de conteúdo infrator na internet à moda do DMCA americano10. Essas entidades relacionam o projeto com as propostas legislativas SOPA e PIPA nos Estados Unidos, e a discussão deve aumentar de volume em 2014. Marco Civil da Internet Deve resolver-se em 2014 o impasse de aprovação do Marco Civil11. A relevância do projeto para a área de propriedade intelectual está, especialmente, na autorização para criação de um regime especial (a ser definido pela LDA, conforme explanação supra) para a indisponibilização na internet de conteúdo que infringe direitos autorais. Biografias Por último, mas não menos importante, um ano comum de um país comum teria chances de ver o deslinde do tema das biografias. Entre uma ADIN e um PL, é difícil prever o pendor da balança - se para a liberação das biografias, para a continuidade do atual regime ou para um sistema intermediário, seja do ponto de vista de autorização, seja de remuneração. Como se vê, assunto não falta. Basta saber se entre um gol aqui e um discurso ali, haverá, efetivamente, tempo hábil para tanta discussão. Um excelente ano aos nossos leitores! ____________1Neste link [https://www2.cultura.gov.br/consultadireitoautoral/lei-961098-consolidada/] o texto do anteprojeto. 2Neste link [https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2013/08/1333897-na-abertura-da-bienal-editoras-cobram-e-marta-acena-com-nova-lei-de-direito-autoral.shtml] notícia sobre a abertura da Bienal. 3"Propriedade intelectual: espaços para os países em desenvolvimento". In Propriedade intelectual: tensões entre o capital e a sociedade. Fábio Villares (org.). São Paulo: Paz e Terra, 2007, pp. 277 a 290. Disponível neste link. [https://fido.rockymedia.net/anthro/pi_espaco_para_os_paises_em_desenvolvimento_jaguaribe_brandelli.pdf] 4Veja aqui [https://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=57296] 5Estudo disponível neste [https://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/14796/revisao_lei_patentes.pdf?sequence=4] link. 6Veja aqui a migalha a respeito do tema e confira a íntegra do anteprojeto. 7Íntegra do parecer da PGR aqui [https://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoPeca.asp?id=3838564&tipoApp=.pdf]. 8Suposto texto do TPP publicado no Wikileaks disponível aqui [https://wikileaks.org/tpp/]. 9Ver página da EFF [https://www.eff.org/issues/tpp] 10Digital Millenium Copyright Act. Para mais detalhes, ver no nosso artigo neste link [https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI184194,51045-Uma+Anedota+Bulgara+um+panorama+dos+procedimentos+de+retirada+de].b 11Para uma análise mais completa do tema, ver nosso artigo aqui [https://www.migalhas.com.br/PI/99,MI190554,81042-Violacoes+de+Direito+Autoral+no+posmarco+civil+da+internet].
segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

Uma má notícia para os fora da lei

Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio A nova versão do Marco Civil1, apresentada na quarta-feira passada2, estabelece que provedores de aplicações de internet serão obrigados a armazenar registros de acesso por um prazo mínimo de seis meses3. Essa obrigatoriedade de guarda existia no texto anterior apenas para provedores de conexão, e a novidade despertou críticas4 que sugerem que se o texto for aprovado, os internautas perderão sua privacidade na rede e serão constantemente monitorados, transformando o Marco Civil em Marco Criminal da internet. Não nos parece que as críticas são acertadas. Para que se possa pondera-las, entretanto, é necessário que aclaremos alguns conceitos técnicos e algumas definições criadas por essa proposta legislativa. Os conceitos não são triviais para os não iniciados na matéria. O Marco Civil cria duas categorias para abarcar todos os provedores envolvidos no ecossistema de atividades relacionadas à internet: (i) provedores de conexão, que são aqueles responsáveis por fazer com que um terminal qualquer (computador, celular, etc) se conecte à internet e esteja online, conferindo-lhe um número de IP5, e (ii) provedores de aplicações, que são os fornecedores de toda e qualquer funcionalidade acessada por meio de um terminal que já esteja conectado à internet6. Os provedores de e-mail, hospedagem e conteúdo, portanto, são todos, provedores de aplicações. O novo texto estabelece que estes últimos, os provedores de aplicações, passarão também obrigatoriamente a guardar registros de acesso a seus serviços. O que isso significa? Para mencionar um exemplo simples, quando você, migalheiro, acessar este website para ler nossa coluna, o número de seu IP, data e hora do acesso ficarão registrados nos servidores de Migalhas por seis meses. O mesmo acontecerá quando você acessar seu e-mail, um serviço de downloads, ou quando você for assistir a um vídeo na internet. Entretanto, malgrado o desejo de nos aproximarmos cada vez mais de nossos leitores, isso não significa que saberemos quem você é, porque um número de IP não revela a identidade de seu usuário7. Não é seu nome, endereço ou telefone que será capturado pelos servidores deste rotativo quando você nos conceder a indulgência de sua visita, mas tão somente o seu número de IP, data e hora da visita. Se realmente quisermos saber sua identidade, de posse dessas informações técnicas teremos que ajuizar uma ação para que o seu provedor de conexão (normalmente a companhia telefônica ou de cabo) nos diga quem estava utilizando aquele IP, naquele dia, naquele horário. Na prática, portanto, os provedores de aplicações não terão mais que uma lista de números que, isoladamente, não se prestam à identificação de ninguém. Com esse aclaramento técnico, parece difícil vislumbrar na mudança do texto a face do Grande Irmão. Além disso, lembremos que o texto anterior a essa nova versão, apesar de não obrigar os provedores de aplicações a guardarem os registros de acesso, permitia aos que desejassem que assim fizessem, de modo que se as críticas fossem procedentes agora, seriam também procedentes antes da recente alteração, já que dirigidas a um procedimento integralmente autorizado, embora não obrigatório, na versão anterior. Merece também cautela o termo "monitoramento", pelo peso semântico. Afirmar que a guarda de registros de acesso a aplicações de Internet equivale a um monitoramento que violaria a presunção constitucional de inocência parece também um certo exagero. O que passa a ser possível com a medida, se o projeto for aprovado como confirmação legislativa do que já se vivencia na prática nos dias de hoje, é a rastreabilidade de uma ação implementada na internet. E há uma diferença bastante grande entre rastreabilidade e monitoramento. Rastreabilidade, aqui, é a possibilidade de se identificar, a posteriori, a origem de um ato que já se afigura como ilícito no momento em que se decide pelo rastreamento. Monitoramento tem sentido de permanente vigília e em tempo real, para fins de configuração de ilícito. Naquela, como regra, o conteúdo ilícito já se revelou, sem intervenção técnica, à vítima e à autoridade, que empreenderá esforços para a descoberta da autoria; neste, conteúdo lícito ou ilícito são observados, sem critério algum e sem evidência prévia da prática de ilícito. A escolha lexical, portanto, parece querer induzir a um alarmismo que não se revela necessário diante do novo texto. Ao contrário, há inúmeros aspectos positivos na alteração. Tentemos observar essas novas provisões com olhos de prevenção à prática de ilícitos civis ou criminais na rede. A obrigatoriedade de guarda de dados de acesso a aplicações de Internet permite que, por um período de tempo determinado, ilícitos cometidos na internet sejam rastreáveis até sua conexão de origem, possibilitando às investigações concluírem sobre sua autoria. Retirar essa possibilidade das mãos das autoridades é alijar-nos todos de mecanismos para coibir a ilicitude na rede, garantindo aos mal-intencionados um território livre de responsabilização. Não temos, como sociedade, nada a ganhar com isso. O sistema permite abusos? Certamente que sim. Mas tendo nas mãos uma solução potencialmente positiva, não se proíba o uso pelo medo do abuso8, especialmente quando a alternativa é consolidar o anonimato da ilicitude e sua consequente impunidade. __________ *Este artigo foi escrito exclusivamente pelo colunista Ygor Valerio. 1PL 2.126 de 20112Nova proposta do relator Alessandro Molon (PT/RJ) para o PL 2126/2011, que veio a público em 11 de dezembro de 2013, em substituição à de 05 de novembro de 2013.3Já nos manifestamos brevemente sobre a questão há cerca de um mês, apontando as dificuldades do sistema antigo neste ponto específico. 4Exemplificativamente.5Todos os terminais conectados à internet possuem um número único, chamado de número de IP (acrônimo de Internet Protocol). Esse número normalmente varia a cada novo acesso à internet, e, de maneira simplificada, é atribuído pelo provedor de conexão que coloca aquele terminal na rede.6Nos termos do artigo 5o., incs. V e VII e VIII, respectivamente, da proposta de Marco Civil da Internet, "V - conexão à internet: habilitação de um terminal para envio e recebimento de pacotes de dados pela internet, mediante a atribuição ou autenticação de um endereço IP", "VII - aplicações de Internet: conjunto de funcionalidades que podem ser acessadas por meio de um terminal contectado à Internet" e "VIII - registros de acesso a aplicações de Internet: conjunto de informações referentes à data e hora de uso de uma determinada aplicação de Internet a partir de um determinado endereço de IP".7O único caso em que um número de IP pode ser convertido em um nome é aquele em que o número de IP a partir do qual se acessa uma aplicação (i) é fixo, e não dinâmico e (ii) encontra-se assignado a uma pessoa jurídica. Nesse caso, um procedimento chamado DNS Lookup revelará o nome da empresa para quem aquele número de IP está assignado, mas nunca a identidade da pessoa física que estava usando a conexão naquele momento. A hipótese de blocos de IP assignados a pessoas físicas é cerebrina, e não merece maior atenção. A realidade dos usuários de internet no mundo todo, especialmente pessoas físicas, é a dos IPs dinâmicos (ou seja, a cada vez que nos conectamos à internet, ganhamos um novo número de IP) detidos e atribuídos por uma operadora de cabo ou telefonia, de modo que um DNS Lookup revela tão somente quem é o provedor de acesso, e não a pessoa que estava utilizando a conexão. 8"Não é pelo medo do abuso que se vai proibir o uso". Min. Carlos Ayres Britto.
Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio Foi a revisão de Berlim, de 1908, da Convenção de Berna1, que mencionou o cinema pela primeira vez. Treze anos já se contavam desde que os irmãos Lumière haviam feito a famosa exibição considerada simbolicamente como o nascimento do cinema, em 28 de dezembro de 1895, e o desenvolvimento da cinematografia começava a apresentar alguns desafios para os detentores de direitor autorais. Especialmente após 19032, ganha relevância a narrativa e perde espaço a mera experimentação técnica característica da primeira fase da história do cinema, de modo que os diretores passam a dar maior importância para a história contada. Nesse momento, começam a se servir de romances e peças teatrais já escritas como mote de seus filmes, além de criarem histórias próprias. Entre 1903 e 1918, Hamlet, de Shakespeare, teve nada menos do que vinte adaptações cinematográficas, e Oliver Twist, de Dickens, oito versões3. Estima-se que na primeira década do século, cerca de 60% de tudo o que foi filmado pertence a esse gênero de adaptação, o que demonstra sua importância para o cinema. Nesse cenário, era de se esperar que os autores das obras originais que eram adaptadas para o cinema tenham ficado insatisfeitos com o fato de que essas adaptações eram feitas sem sua autorização, e sem que recebessem nenhuma remuneração por isso. Na França dessa época, algumas ações civis com base nessa questão acabaram chegando aos tribunais, o que fez com que a delegação francesa que participou da revisão da Convenção de Berna de 1908, em Berlim, levasse uma proposta de texto que protegesse os autores das obras primígenas. Uma ação específica, julgada pelo Tribunal Civil de la Seine, 1er Chambre, teve sua decisão reproduzida nos anais da conferência de Berlim, e resolvia um caso de adaptação cinematográfica sem autorização do Fausto de Gounoud. Havia, entre as delegações, participantes da conferência um entedimento de que, independentemente de uma nova norma específica relacionada ao cinema, a prática de adaptar uma obra protegida por direitos autorais sem autorização constituía "apropriação indireta", já considerada ilícita nos termos do artigo 10 do texto original da convenção. Mesmo assim, entendeu-se que haveria benefício na previsão expressa. Surgia, assim, o artigo 14 da Convenção de Berna, com o seguinte texto: Artigo 14 Autores de criações literárias, científicas ou artísticas terão o direito exclusivo de autorizar a reprodução e a apresentação pública de suas obras por meio de cinematografia. Produções cinematográficas serão rotegidas como obras artísticas ou literárias, se, pelo arranjo da forma de atuação ou pelas combinações dos incidentes representados, o autor conferiu à obra um caráter original e pessoal. Sem prejuízo dos direitos do autor da obra original, a reprodução por meio de cinematografia de uma obra literária, artística ou científica será protegida como obra original. As disposições acima se aplicam às produções ou reproduções efetuadas por quaisquer outros processos análogos ao da cinematografia. Nessa mesma conferência, como se vê, reconheceu-se, pela primeira vez, de maneira explícita, que a filmagem cinematográfica comporta elementos de criação e de produção intelectual, relacionadas com a elaboração das cenas, criação do tema e com a direção dos atores, entendendo-se que esse direito era independente daquele direito garantido ao autor da obra em que se baseou o filme, confirmando-se proteção a ambas. Percebe-se, na revisão de 1908, entretanto, que os regramentos relacionados ao cinema como arte autônoma buscavam muito mais uma proteção contra a pirataria do que propriamente conferir ao cinema uma categoria equiparada à das outras artes. De qualquer forma, esse reconhecimento seminal abriu espaço para que a proteção da obra cinematográfica se robustecesse mais a cada nova revisão da convenção. Complemento: A construção da uma linguagem cinematográfica O cinema nasceu para o mundo como não mais que uma curiosidade técnica. A famigerada exibição ofertada pelos irmãos Lumière na Paris de 18954, apesar da enorme repercussão, era absolutamente incapaz de permitir antecipar a grande arte autônoma que acabaria surgindo daquela milagrosa máquina que parecia reproduzir a realidade. Não é por outro motivo que o primeiro artigo sobre cinema publicado no jornal O Estado de São Paulo, em 17 de agosto de 1896, vinha-nos sob a rubrica "Um Pouco de Sciencia - A photographia animada - Kinetoscopio e Cinematographo". Nesse artigo, Jorge Viloux contava, com riqueza de detalhes, sua experiência ao assistir à exibição dos Lumiére. "Graças a esse novo aparelho, a synthese do movimento acha-se desta vez realizada e da maneira mais absoluta, de modo que não há scena, por mais complicada, cuja reprodução não possa ser obtida e apresentada simultaneamente a numerosos espectadores. Na verdade, não é possível sonhar espetáculo que mais impressione". São diversos parágrafos dedicados à explanação técnica da maravilha cinematográfica para, apenas ao final, vislumbrar-se uma influência do cinema sobre o teatro, sem, entretanto, imaginá-lo como arte específica: "À arte theatral, sem dúvida alguma, fornecerá os elementos de uma verdadeira renovação". De fato, os primeiros registros cinematográficos, em sua maior parte, não são mais do que simples capturas de cenas do quotidiano, e não inspiram nenhuma apreciação artística. Lutas de boxe5, um homem espirrando6, a chegada de um trem, crianças dando remédio a um gato7, trabalhadores saindo de uma fábrica, um cavalo galopando8, um bombeiro realizando um salvamento9, um cavalo atravessando a ponte - nada que se assemelhe ao que conhecemos hoje como cinema. Apesar disso, foi justamente nessa primeira fase do cinema, na sua primeira década de existência, que uma linguagem cinematográfica se desenvolveu e tomou corpo por meio de técnicas ainda indispensáveis nos dias de hoje. Foi nessa primeira fase rudimentar que os diretores aprenderam a contar histórias por meio de seus cinematógrafos. Perceber essa evolução na narrativa cinematográfica é, antes de tudo um exercício de desconstrução para quem não viveu em uma época em que a narrativa audiovisual fixada simplesmente não existia. Os fluentes nessa linguagem cinematográfica (que é, hoje, igualmente, a televisiva), precisam despojar-se do entendimento já construído para perceberem a dificuldade que a vanguarda dessa arte enfrentou para desenvolvê-la. Sem explicar textualmente, como se faz para que o espectador entenda que duas cenas distintas estão acontecendo ao mesmo tempo ou uma depois da outra? Ou que duas filmagens em espaços diferentes representam uma sequência de eventos? A simples junção de uma tomada em close com uma tomada aberta permite que o espectador compreenda que o diretor quis mostrar um detalhe do que estava acontecendo ou isso precisa ser explicado? Alguns diretores tiveram especial importância no desenvolvimento desse idioma visual do cinema: R. W. Paul, criador da técnica conhecida como travelling, em 1899, em que se coloca a câmera em movimento enquanto se filma; G. A. Smith, que não só criou a sequência de tomadas para representar dois eventos acontecendo ao mesmo tempo mas foi também o primeiro a utilizar os primeiros planos de forma fluente, em 1903, técnica em que se enfoca de perto, preenchendo a tela inteira ou boa parte dela, o objeto que se quer destacar, para depois (ou antes) filmar a cena desde uma perspectiva aberta; Georges Méliès, que foi possivelmente o mais fantasioso diretor dos primeiros anos do cinema, contribuindo com a coragem ficcional, e Edwin Porter, com sua segmentação espacial no filme The life of an American Fireman, de 1903, em que filma um bombeiro resgatando duas pessoas de dentro de uma casa em chamas, justapondo tomadas sequenciais de dentro e de fora da casa. Esta última inovação de Porter, concretizada em 1905, é um marco importante, juntamente com the Horse that Bolted de Charles Pathé. Percebeu-se a possibilidade de agregar tomadas sequenciais feitas em espaços diferentes, sem que o público deixasse de entender que se tratava de eventos simultâneos ou sequenciais. Esse ferramental narrativo, criado na primeira fase de experimentação do cinema, foi o que permitiu, ao final, que a grande tela fosse capaz de contar histórias. E, ao contar histórias, os filmes ganharam, segundo a estética da época, relevância artística para além da mera experimentação técnica que lhe marcou a fase inicial, permitindo-lhe avançar como arte no século XX. __________ 1A Convenção de Berna, cuja primeira versão é de 1886, é a primeira e mais importante convenção internacional a tratar de um piso mínimo de proteção autoral entre os países signatários. Teve diversas versões que se lhe sobrepuseram após a inicial, inclusive esta que se comenta. 2Mark Cousins, em sua divisão dos períodos históricos do cinema, aponta a fase compreendida entre 1903 e 1918 como aquela em que o cinema deixou a mera experimentação técnica para se debruçar sobre a narrativa, dando maior importância à história contada que ao efeito técnico. Evidentemente, não há unanimidade entre os teóricos quanto aos períodos (em contrário, por exemplo, Robert Stam), e há filmes bastante narrativos antes de 1903, como o Le voyage dans la lune, de Georges Méliès, que é de 1902. 3COUSINS, Mark. Historia del Cine. Blume, 2011, p.45. 4Aos geniais irmãos Lumière, responsáveis pela divulgação do cinema mundo afora, pode-se atribuir apenas um de muitos passos dados no desenvolvimento da tecnologia incorporada no cinematógrafo. Thomas Edison, por exemplo, desempenhara um importante papel com o seu Kinetograph, de 1884, e depois com o patenteamento da tecnologia de perfuração das bordas da película fílmica para que a captura e reprodução das imagens acontecesse de maneira mais firme, sem que a película se movimentasse lateralmente sobre o rolo. George Eastman, por sua vez, inventou o rolo de película fílmica em 1884 que tornaria o Kinetograph de Edison possível. Otway e Gray Latham, como outro exemplo, resolveram um problema técnico de rompimento das películas fílmicas, enrolando-as, no interior da câmera, de maneira que ficassem frouxas, e não esticadas. Foram diversas, portanto, as contribuições sequenciais que nos levaram àquela que ficaria marcada como a data de nascimento do cinema para o mundo. 5The Corbett-Fitzsimmons Fight, 1897, de Enoch Rector 6Fred Ott's Sneeze, 1894, de W.K.L. Dickson 7The Sick Kitten, 1903, G. A. Smith 8The horse that bolted, 1907, de Charles Pathé 9The Life of an American Fireman, 1903-1905, de Edwin S. Porter
Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio A mais recente versão1 do proposto Marco Civil da Internet foi apresentada pelo deputado Alessandro Molon (PT/RJ)2, relator do projeto, no dia cinco de novembro passado. Desde então, e apesar de trancar a pauta, a promessa de votação tem sido repetidamente adiada sob o argumento de que não há consenso sobre alguns pontos do texto, em especial com as representações do setor de telecomunicações na câmara. E a vontade, parece, é que o texto seja submetido a votação somente quando puder ser aprovado, de modo que o governo trabalha para construir um consenso entre os parlamentares que permita esse resultado. Se aprovado como está, o Marco Civil trará mudanças gerais importantes para a disciplina do combate a violações de direito autoral na internet, embora deixe para a lei específica3 o polêmico tema da indisponibilização de conteúdo infrator e da responsabilização dos provedores de aplicações por conteúdo gerado por terceiros. Sem a pretensão de esgotar as possíveis ramificações da aprovação do projeto, vejamos alguns de seus pontos importantes para a área de direitos autorais. (a) Orientações principiológicas relevantes para as violações de direitos autorais na rede Art. 2º A disciplina do uso da Internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão, bem como: II - os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais; VI - a finalidade social da rede Art. 3º A disciplina do uso da Internet no Brasil tem os seguintes princípios: I - garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição; VI - responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades, nos termos da lei; Parágrafo único. Os princípios expressos nesta Lei não excluem outros previstos no ordenamento jurídico pátrio relacionados à matéria, ou nos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. Art. 4º A disciplina do uso da Internet no Brasil tem os seguintes objetivos: II - promover o acesso à informação, ao conhecimento e à participação na vida cultural e na condução dos assuntos públicos; Art. 6º Na interpretação desta Lei serão levados em conta, além dos fundamentos, princípios e objetivos previstos, a natureza da Internet, seus usos e costumes particulares e sua importância para a promoção do desenvolvimento humano, econômico, social e cultural. Sabe-se que os monopólios concedidos por meio do reconhecimento dos direitos de propriedade estabelecem um conflito entre os polos do interesse individual e do interesse coletivo, tensão abstrata projetada para resolver-se ao cabo do prazo limitado de duração desses monopólios, quando o uso daquilo antes protegido por um exclusivo passa a ser livre. A concretização dessa tensão abstrata em casos da vida prática muitas vezes encontra roupagem em alguns desses fundamentos, princípios e objetivos eleitos pelo legislador como atinentes ao uso da internet no país. O polo do interesse coletivo muitas vezes se vale justamente dos argumentos da liberdade de expressão, da liberdade de manifestação do pensamento, do acesso ao conhecimento e à cultura para fundamentar seu posicionamento; o pólo do interesse individual comumente se apóia na garantia constitucional dada às criações intelectuais, na visão da criação autoral como extensão da personalidade do autor, na importância da manutenção dos direitos de propriedade intelectual como motor propulsor da atividade criativa. Embora fique clara a orientação pró-coletivo do Marco Civil nesse equilíbrio de forças, não é tarefa fácil imaginar quais desdobramentos advirão da estampagem desses fundamentos, princípios e objetivos no capítulo introdutório se o projeto efetivamente se tornar lei. É de se questionar, inclusive, o motivo pelo qual princípios absolutamente claros na Carta Constitucional, como o da liberdade de expressão e o da privacidade, foram reproduzidos no arcabouço principiológico do projeto. Qualquer interpretação, entretanto, que se dê a essa construção legislativa, certamente não será procedente aquela segundo a qual alguns princípios gerais do ordenamento se aplicariam ao uso da internet no Brasil e outros não, porque, evidentemente, os princípios de hierarquia constitucional, inclusive o de proteção à criação autoral, aplicar-se-ão às questões que surgirem no bojo do uso da rede independentemente de sua reprodução em norma infraconstitucional. Não prosperaria um regime de exceção à Constituição para regular o que se passa na internet. Além disso, nota-se que o capítulo das Disposições Preliminares foi claro ao prever, separadamente, três categorias: fundamentos, princípios e objetivos. Se não resta dúvida sobre a diferenciação entre princípios e objetivos, não é clara a contraposição ou segmentação entre a categoria fundamentos e a categoria princípios. Seriam os fundamentos um certo ethos da construção legislativa, com função puramente informativa, diferentemente dos princípios4, que orientariam a atividade interpretativa das regras do Marco Civil? Não sabemos. E não sabemos, igualmente, qual será a função prática dessa distinção nos tribunais. (b) Vedação ao sistema de graduated response Há alguns anos ganhou força em alguns países uma proposta apresentada pela indústria fonográfica que estabelece um sistema denominado graduated response (resposta gradativa). Segundo esse sistema, infratores contumazes de direitos autorais na internet recebem respostas cada vez mais duras às infrações cometidas, sendo que, ao final, depois de receber multas, notificações e ter sua velocidade de conexão reduzida, se não deixarem de violar direitos autorais na rede, podem ser punidos com a interrupção temporária de seu acesso à internet. Esse sistema vigorou até recentemente na França, com a famosa Lei Hadopi, e permanece em vigor, com particularidades de cada localidade, em alguns poucos países como a Nova Zelândia e a Coréia do Sul. Se aprovado, o Marco Civil impedirá a implementação de um sistema com essas características, em razão das seguintes disposições presentes no capítulo dos direitos e garantias do usuário: Art. 7º O acesso à Internet é essencial ao exercício da cidadania e ao usuário são assegurados os seguintes direitos: IV- à não suspensão da conexão à Internet, salvo por débito diretamente decorrente de sua utilização; V - à manutenção da qualidade contratada da conexão à Internet; (c) Vedação do traffic shaping Outra estratégia estudada e usada a partir do final dos anos noventa, quando a explosão da internet como ferramenta de violação de direitos tomou força, foi a de degradar a velocidade dos pacotes de dados transmitidos em protocolos tipicamente usados no compartilhamento não-autorizado de arquivos de música e de filmes. Boa parte do conteúdo que transita sem autorização na internet é compartilhado mediante a utilização de protocolos peer-to-peer5 como o BitTorrent, o Gnutella e o E-Mule, entre outros. Sabendo disso, os interessados em diminuir o volume de infrações na internet desenvolveram estratégias segundo as quais os provedores de conexão reduziriam a velocidade do tráfego de dados6 que se servissem desses protocolos para serem compartilhados. Em outras palavras, tudo o que fosse trocado via BitTorrent, por exemplo, trafegaria muito lentamente pela rede, de modo a desincentivar a prática delitiva. Essa estratégia interessava também aos provedores de conexão, na medida em que o tráfego de dados por meio desses protocolos de compartilhamento chegava, não raro, a superar o volume do tráfego de dados de todos os outros protocolos reunidos7. A destinação de um volume menor de banda a usuários desses protocolos representaria, portanto, um ganho de eficiência para os provedores de conexão. A estratégia foi duramente criticada porque prejudicaria o uso lícito dessas tecnologias de compartilhamento de dados, e especialmente porque se transformou em um flanco aberto a ameaçar um dos sustentáculos da existência da internet que é a neutralidade da rede. Afinal, se o provedor de conexão pode examinar os pacotes que transitam na rede e determinar qual pode viajar mais rapidamente e qual deve ser refreado, vislumbra-se o risco futuro de esses provedores venderem preferência de trânsito a quem mais pagar, o que de fato representaria um mau passo na evolução da internet. Com o seguinte texto, no capítulo da neutralidade, ficará vedado no país a persecução desse tipo de estratégia: Art. 9º O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação. § 1º A discriminação ou degradação do tráfego será regulamentada por Decreto e somente poderá decorrer de: I - requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações; e II - priorização a serviços de emergência. § 2º Na hipótese de discriminação ou degradação do tráfego prevista no § 1º, o responsável mencionado no caput deve: I - abster-se de causar dano aos usuários, na forma do art. 927 do Código Civil; II - agir com proporcionalidade, transparência e isonomia; III - informar previamente de modo transparente, claro e suficientemente descritivo aos seus usuários sobre as práticas de gerenciamento e mitigação de tráfego adotadas; e IV- oferecer serviços em condições comerciais não discriminatórias e abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais. § 3º Na provisão de conexão à Internet, onerosa ou gratuita, bem como na transmissão, comutação ou roteamento, é vedado bloquear, monitorar, filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de dados. (d) A não-obrigatoriedade da guarda de dados pelos provedores de aplicação Na terminologia do projeto de Marco Civil da Internet, há dois tipos de provedores: os de conexão8 e os de aplicações, sendo que todo e qualquer provedor que não forneça conectividade aos usuários da rede se enquadra no segundo tipo. A proposta legislativa prevê que os provedores de aplicação não terão nenhuma obrigação de guardar os registros de acesso, a não ser que o requeira a autoridade policial, administrativa, o Ministério Público, ou uma ordem judicial. A mudança trazida por essa regra talvez seja uma das mais significativas da nova sistemática proposta pelo Marco Civil, na medida em que violações de qualquer gênero que já houverem sido perpetradas podem não contar com absolutamente nenhum tipo de registro guardado pelo provedor de aplicações, restando impossível sua punição ou indenização nelas baseada. Apenas para ilustrar um entre os exemplos de complicação que a regra traz, imaginemos pedofilia perpetrada por meio do envio de mensagens eletrônicas com fotos anexadas. Se o criminoso enviou as fotos a partir de um provedor de e-mail9 que não armazena dados de registro, não haverá, em lugar algum, informações sobre a origem das mensagens criminosas. Se o crime for investigado, a autoridade poderá requerer que esse provedor de passe a guardar dados de registro daquela conta de e-mail específica a partir do momento em que receber o requerimento ou a ordem judicial, mas as infrações cometidas no passado com aquela mesma conta não contarão com nenhum tipo de identificação. Se o infrator não mais acessar aquela conta, terá cometido o crime perfeito. Assim, percebe-se que basta que o infrator crie uma nova conta de e-mail a cada nova infração para que permaneça completamente a salvo de ser identificado. O mesmo raciocínio se aplica a violações de direito autoral na rede. Infrações já cometidas, se perpetradas por meio de provedores de aplicações que tiverem por regra não guardar registros de acesso, restarão potencialmente impunes, cível ou criminalmente, pela virtual impossibilidade de identificação de uma violação praticada no passado. Se aprovado o texto com essa redação, vislumbra-se muito em breve o oferecimento de serviços de armazenamento de conteúdo na núvem cujo maior atrativo seja justamente o pleno exercício da faculdade, garantida pelo Marco Civil, de não guardar informações de acesso dos usuários, com a garantia de sigilo e anonimato aos grandes fornecedores de conteúdo ilícito na internet. O trecho do substitutivo que estabelece esse regime é o seguinte: Art. 17. Ordem judicial poderá obrigar, por tempo certo, os provedores de aplicações de Internet a guardarem registros de acesso a aplicações de Internet, desde que se tratem de registros relativos a fatos específicos em período determinado, ficando o fornecimento das informações submetido ao disposto na Seção IV deste Capítulo. Art. 18. Ressalvadas as hipóteses previstas nesta Lei, a opção por não guardar os registros de acesso a aplicações de Internet não implica responsabilidade sobre danos decorrentes do uso desses serviços por terceiros. (e) Responsabilização dos provedores de aplicações por danos decorrentes infrações de direitos autorais perpetradas por usuários de seus serviços Art. 20. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de Internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário. § 1º A ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material. § 2º A aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor ou a diretos conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da constituição federal. Vê-se que o regramento da responsabilização dos provedores de aplicação por violações de direitos autorais cometidas por seus usuários não foi estabelecido no Marco Civil, e ficou relegado à legislação específica10. Vale mencionar que tem recebido cada vez mais ampla aceitação no país a interpretação do tema formada por algumas decisões do STJ11, que estabelecem, em linhas gerais, que o provedor de aplicações pode ser responsabilizado por violações cometidas por meio de seus serviços sempre que, sendo notificado acerca dessa infração, deixe de tornar indisponível o conteúdo infrator12. Essa interpretação, do STJ, portanto, afasta a aplicação da Teoria do Risco para violações por meio de provedores de aplicação mas reconhece sa responsabilização quando deixar de fazer cessar violação de que tomou ciência inequívoca. Na ausência de disposição específica no Marco Civil sobre esse tema e, ainda sem uma LDA reformada, a tendência é que siga ganhando espaço essa interpretação do Superior Tribunal de Justiça e que ela influencie as política de provedores de aplicações no país. __________ 1- Substitutivo ao PL 2.126, de 2011. 2- Os trechos da proposta de Marco Civil da Internet reproduzidos neste artigo constam exatamente do relatório de 5/11/2013. Não se sabe sequer se será este o texto final a ser apresentado para votação, e muito menos se sabe se será este o texto aprovado. Crê-se, entretanto, que eventuais alterações tendem a ser mínimas, e que a maior parte do substitutivo será mantido como está. 3- Essa lei Específica é a LDA-Lei de Direitos Autorais (9.610/98). A atual, claro, não traz nenhuma linha específica sobre o tema, mas sabe-se que assa no forno do Ministério da Cultura uma proposta de reforma da LDA, substitutiva da última apresentada em 2010, com capítulo específico sobre a questão. Como é prato de lentíssimo cozimento, a expectativa é de que tenha gosto estarrecedor. 4- Relembramos, aqui, a conceituação feita por Robert Alexy em seu A Theory of Constitutional Rights: princípios são normas de otimização, que determinam que uma regra seja realizada em seu máximo grau possível. Os limites desse máximo grau possível são, justamente, princípios e regras opostas.(ALEXY, Robert. A Theoy of Constitutional Rights. Oxford, 2002. p.47-49.) 5- As redes P2P, que têm no famoso Napster sua origem mais remota, independem da existência e manutenção de um servidor centralizado a partir do qual o conteúdo pode ser baixado, permitindo que se busque o conteúdo desejado nos computadores dos demais usuários conectados. 6- Comcast has been well-behaved ever since the FCC smacked it down over BitTorrent throttling 7- Internet sutdy 2008/2009 8- Artigo 5o., inciso V do PL: "V - conexão à Internet: habilitação de um terminal para envio e recebimento de pacotes de dados pela Internet, mediante a atribuição ou autenticação de um endereço IP"; 9- Que é um provedor de aplicações, na terminologia do PL 10- Ver nota de rodapé número 3. 11- Exemplificativamente, STJ/AREsp 259482. Veja-se, igualmente, publicação de 13 de novembro. 12- A esse respeito, ver artigo de nossa autoria.
segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Pirataria, adequação social e insignificância

Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio O entendimento do STJ sobre a criminalização do mercadeio de produtos que infringem direitos autorais acaba de ser sumulado a partir de um conjunto de 11 decisões recentes da Corte que afastam a aplicabilidade do princípio da adequação social para esses casos. A súmula 502 veio a público com o seguinte teor: "Presentes a materialidade e a autoria, afigura-se típica, em relação ao crime previsto no art. 184, § 2º1, do CP, a conduta de expor à venda CDs e DVDs piratas". As diversas decisões2 de varas criminais e tribunais estaduais que absolviam vendedores de mercadoria irregular reclamavam a aplicação do princípio da adequação social com fundamento na alegação de que as autoridades públicas haveriam deixado de reprimir o crime de pirataria país afora, e que a sociedade já não via como passível de reprimenda o comércio desses produtos ilegais. A aplicação desse princípio permitiria, em tese, ao juiz, negar vigência ao dispositivo criminalizante para absolver o réu, mesmo que sua conduta perfizesse com exatidão o comportamento sancionado na norma penal. O compêndio de decisões3 a fundamentar a súmula 502, entretanto, revela outro entendimento nesses dois pontos centrais da discussão: rechaça a alegação de que o crime tipificado no 184, § 2º, do CP já não é mais objeto do exercício da persecução penal por parte do Estado, e retira do princípio da adequação social a capacidade de revogar norma penal. Ou seja, não só o STJ afirma que o crime segue sendo reprimido pelo Estado como declara que, ainda que assim não fosse, o princípio da adequação social não poderia, por si, revogar o tipo penal. O Supremo Tribunal Federal, em recentes decisões também tem demonstrado esse entendimento relacionado à tipicidade do crime em questão, ressaltando três dimensões de implicações advindas de sua prática: a do titular do direito autoral violado, a dos cofres públicos e a dos comerciantes que legitimamente desempenham a atividade de distribuição4. Em conjunto com a afirmação de que a conduta do artigo 184, § 2º, do CP segue sendo objeto de represão estatal, menciona esses itens como aptos a infirmar a tese de que estaríamos diante de um tipo que se tornou letra morta. Ainda que brevemente, analisemos alguns aspectos da adequação social como princípio, seus fundamentos e funcionamento ao lado do princípio da insignificância para levantarmos questões relacionadas à sua aplicabilidade no ordenamento pátrio. O princípio da adequação social5, que, como visto, tem servido de tábua de salvação aos comerciantes de itens produzidos em violação a direitos autorais, é um dos princípios limitadores da pretensão punitiva do Estado, ao lado de outros como o princípio da insignificância, da reserva legal, da fragmentariedade do direito penal, da humanidade das penas e da irretroatividade da lei penal, todos moldados na esteira do desenvolvimento histórico do garantismo penal e das salvaguardas do indivíduo contra o Estado. Seus fundamentos são de simples enunciação: a aceitação social de uma conduta revela-lhe um conteúdo valorativo incompatível com a criminalização de um delito. A reprovação social, portanto, deveria ser um patamar de valoração negativa mínimo para que determinada conduta pudesse ser punida pelo direito penal. Alguns doutrinadores nacionais mencionam como exemplo de aplicação desse princípio o fato de que a conduta de furar o lóbulo da orelha de uma criança para enfeita-la com um brinco não é passível de punição, embora formalmente se enquadre no tipo penal de lesão corporal. A construção do princípio também tem relação com a definição do conceito de tipicidade material. Enquanto a tipicidade puramente formal se esgota na execução dos comportamentos descritos no tipo penal, a tipicidade material investiga a existência de valoração negativa daquela conduta concretamente analisada e do resultado que ela produz, buscando um vínculo entre conduta e lesão ao bem jurídico tutelado pela norma penal. Um dos problemas apontados pela doutrina na aplicação desse princípio em qualquer caso é a sua vagueza6. Como se mediria a aceitação social de uma determinada conduta? Como se chega à conclusão de que um determinado comportamento passou a ser aceito socialmente? Com que segurança a aplicação da norma seria afastada? Essa imprecisão é um dos motivos pelos quais parte respeitável da doutrina internacional nega aplicabilidade consistente ao princípio6. Outro ponto bastante relevante a ser considerado na eventual aplicação desse princípio como catalizador da descriminalização de certas condutas é a investigação dos motivos que desaguam na aceitação social. Trata-se efetivamente de uma mudança estrutural no sistema de valores de um determinado grupo social ou concorreram fatores indesejados como a incapacidade estatal de efetivamente aplicar o direito penal? A livre perpetração de uma determinada atividade ilícita em sociedade pode, muitas vezes, ser o reflexo da incapacidade de repressão dessa conduta pelo Estado em um dado momento de sua história, muito embora a sociedade ainda perceba na conduta um enorme desvalor. Assim, a prática reiterada de um crime não significa necessariamente que ele se tornou socialmente adequado. Se tem sido reiterada e impunemente praticado sem atuação efetiva do Estado, e, em nome dessa impunidade passa-se a considerá-lo socialmente adequado, cria-se uma situação em que um bem jurídico que o Estado decidiu proteger quando estatuiu as normas penais perde proteção criminal pela ineficácia de atuação do próprio Estado. Autoriza-se que a política criminal e sua ratio deem lugar à ineficácia de sua execução. Não nos parece que andaríamos bem. Outra questão que decorre da impunidade crônica é a perda cumulativa dos efeitos secundários da aplicação da pena na percepção social da punibilidade de um determinado delito. Bem se sabe que uma das funções da pena é a prevenção geral - o crime punido representa um desestímulo à perpetração da conduta. A ausência dessa punição motiva sua prática sempre que o delito representar ganhos de algum gênero ao delinquente. Assim, se atingimos um ponto em que uma determinada conduta típica aparenta ser socialmente aceita, é bom que antes de descriminaliza-la verifique-se efetivamente se esse movimento representa uma estrutural mudança valorativa da conduta ou se esta-se diante de uma situação causada por externalidades indesejadas que não advêm de uma nova ordem social, mas antes a transformam e influenciam na direção oposta daquela previamente planejada. Caminhando sempre lado a lado com o princípio da adequação social, encontramos o princípio da insignificância que, assim como seu congênere já delineado, limita a capacidade estatal de punir conduta tipificada que, perfeitamente praticada do ponto de vista formal, não encontra suficiente materialidade delitiva para merecer a remprimenda estatal. Essa falta de substância delitiva que no princípio da adequação social era ausência de valoração negativa, é, no princípio da insignificância, ausência de lesividade. Assim, ainda que um determinado tipo seja praticado, se a conduta concreta não causou lesão minimamente relevante ao bem jurídico que a norma buscava proteger, o princípio determina que não há tipicidade material na conduta, sem prejuizo da constatação da tipicidade formal. É o famoso crime de bagatela. Não se trata, entretanto, de declarar-se determinado tipo como deslocado da realidade valorativa da sociedade em um determinado momento, e não se trata de indicar tendências normativas abstratas. O princípio da insignificância tem, ao contrário, vocação absolutamente casuística. Seu reconhecimento em um caso não determinará a exclusão de uma conduta qualquer da esfera de incidência do tipo penal. Os critérios balizadores da aplicação desse princípio foram lançados doutrinariamente e consolidados na última década na interpretação normativa do STF. Em voto estrutural7, o ministro Celso de Mello fala em quatro vetores que o orientam: (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a ausência de periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada. Vejam-se alguns exemplos de análise do princípio em casos de violação de direito autoral: "Sem embargo, não se pode admitir, em primeiro lugar, que a ação analisada possa ser afastada em nome do princípio da insignificância. Equivocado, no ponto, o argumento de que o impacto econômico da conduta seria apenas de R$320,00 (trezentos e vinte reais), valor obtido a partir do preço cobrado pelo próprio infrator da norma penal. Em verdade, o impacto econômico da violação ao direito autoral deve ser medido pelo valor que os detentores das obras deixam de receber ao sofrer com a "pirataria", e não pelo que os falsificadores obtêm com a sua atuação imoral e ilegal. Nesse cenário, inviável afirmar que a conduta da paciente apresente diminuta lesividade, a qual somente se sustenta sob a ótica distorcida da linha defensiva". (STF HC 115.986/ES Rel Min. LUIZ FUX - JUN/2013) "HABEAS CORPUS . PENAL. VIOLAÇÃO DE DIREITO AUTORAL (ART. 184, § 2º, DO CÓDIGO PENAL). VENDA DE CD'S E DVD'S PIRATEADOS. ADEQUAÇÃO SOCIAL DA CONDUTA. INEXISTÊNCIA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICAÇÃO. INVIABILIDADE. PRECEDENTES DO STJ E DO STF. 1. O tão-só fato de estar disseminado o comércio de mercadorias falsificadas ou 'pirateadas' não torna a conduta socialmente aceitável, uma vez que fornecedores e consumidores têm consciência da ilicitude da atividade, a qual tem sido reiteradamente combatida pelos órgãos governamentais, inclusive com campanhas de esclarecimento veiculadas nos meios de comunicação. 2. A quantidade de mercadorias apreendidas (90 DVD's e 130 CD's) demonstra a existência de efetiva lesão ao bem jurídico tutelado pela norma penal, afastando a possibilidade de aplicação do princípio da insignificância. 3. Ordem denegada". (HC 159.474/TO, Rel. Min. LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, DJe 06/12/2010). "Reconhecidas a reincidência e a habitualidade da prática delituosa, a reprovabilidade do comportamento do agente é significativamente agravada, sendo suficiente para inviabilizar a incidência do princípio da insignificância. Precedentes". HC 100.240/RJ Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA, SEGUNDA TURMA, 7/12/2010) Há, evidentemente, muito de política criminal na aplicação do princípio da insignificância, que deve permitir ao legislador e ao judiciário manterem um corpo ordenativo capaz de atingir os objetivos do Estado em um dado momento. Assim, por exemplo, passando-se a reiteradamente considerar uma determinada conduta como abrigada nos limites do princípio da insignificância, a eventual multiplicação descontrolada dessa conduta certamente passará a representar lesão significativa ao bem jurídico tutelado se considerado amplamente, autorizando-se o judiciário a evoluir seu entendimento para deixar de considerar atípica determinada situação. __________ 1Art. 184. Violar direitos de autor e os que lhe são conexos: Pena - detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa. § 1o Se a violação consistir em reprodução total ou parcial, com intuito de lucro direto ou indireto, por qualquer meio ou processo, de obra intelectual, interpretação, execução ou fonograma, sem autorização expressa do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor, conforme o caso, ou de quem os represente: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. § 2o Na mesma pena do § 1o incorre quem, com o intuito de lucro direto ou indireto, distribui, vende, expõe à venda, aluga, introduz no País, adquire, oculta, tem em depósito, original ou cópia de obra intelectual ou fonograma reproduzido com violação do direito de autor, do direito de artista intérprete ou executante ou do direito do produtor de fonograma, ou, ainda, aluga original ou cópia de obra intelectual ou fonograma, sem a expressa autorização dos titulares dos direitos ou de quem os represente. 2Mencionem-se os tribunais do Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Acre, Mato Grosso, Goiás e Minas Gerais como prolatores de decisões que acolhem o entendimento de aplicabilidade do princípio da adequação social para eximir vendedores de produtos piratas da aplicabilidade do artigo 184. 3Nesse sentido, particularmente relevantes os seguintes trechos: "O fato de, muitas vezes, haver tolerância das autoridades públicas em relação a tal prática, não pode e não deve significar que a conduta não seja mais tida como típica, ou que haja exclusão de culpabilidade, razão pela qual, pelo menos até que advenha modificação legislativa, incide o tipo penal, mesmo porque o próprio Estado tutela o direito autoral. [...] Destaque-se, ainda, que a "pirataria" é combatida por inúmeros órgãos institucionais, como o Ministério Público e o Ministério da Justiça, que fazem, inclusive, campanhas em âmbito nacional destinadas a combater tal prática. [...] Na mesma linha de pensamento, colaciono os ensinamentos de Cezar Roberto Bitencourt: (...) a eventual tolerância das autoridades ou a indiferença na repressão criminal, bem como o pretenso desuso, não se apresentam, em nosso sistema jurídico penal, como causa de exclusão da tipicidade. A norma incriminadora não pode ser neutralizada ou considerada revogada em decorrência de desvirtuada autuação das autoridades constituídas (art. 2º, caput, da LICC)". (BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Especial . vol. 4. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 162)". (REsp 1.193.196 - MG 2010/0084049-5) 4EMENTA: DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO CONSTITUCIONAL EM HABEAS CORPUS (CRFB, 102, II, a). CRIME DE VIOLAÇÃO DE DIREITO AUTORAL (CP, ART. 184, §2º). VENDA DE CD'S E DVD'S "PIRATAS". ALEGAÇÃO DE ATIPICIDADE DA CONDUTA POR FORÇA DOS PRINCÍPIOS DA INSIGNIFICÂNCIA E DA ADEQUAÇÃO SOCIAL. IMPROCEDÊNCIA DA TESE DEFENSIVA. NORMA INCRIMINADORA EM PLENA VIGÊNCIA. RECURSO ORDINÁRIO NÃO PROVIDO. 1. Os princípios da insignificância penal e da adequação social reclamam aplicação criteriosa, a fim de evitar que sua adoção indiscriminada acabe por incentivar a prática de delitos patrimoniais, fragilizando a tutela penal de bens jurídicos relevantes para vida em sociedade. 2. O impacto econômico da violação ao direito autoral mede-se pelo valor que os detentores das obras deixam de receber ao sofrer com a "pirataria", e não pelo montante que os falsificadores obtêm com a sua atuação imoral e ilegal. 3. A prática da contrafação não pode ser considerada socialmente tolerável haja vista os enormes prejuízos causados à indústria fonográfica nacional, aos comerciantes regularmente estabelecidos e ao Fisco pela burla do pagamento de impostos. 4. In casu, a conduta da recorrente amolda-se perfeitamente ao tipo de injusto previsto no art. 184, §2º, do Código Penal, uma vez foi identificada comercializando mercadoria pirateada (100 CD's e 20 DVD's de diversos artistas, cujas obras haviam sido reproduzidas em desconformidade com a legislação). 5. Recurso ordinário em habeas corpus não provido". (STF HC 115.986/ES Min. Luiz Fux - JUN/2013) 5O desenvolvimento do princípio é atribuído a Hans Welzel em seu Studien zum system des strafrechts de 1939. 6O sempre excepcional Cezar Roberto Bitencourt, em seu Manual de Direito Penal, menciona como detratores Zaffaroni, Rodriguez Mourullo, Muñoz Conde e Jescheck (BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal. V1. São Paulo, Saraiva, 2000. p18). 7HC 84.412 min. Celso de Mello, DJ 19.11.04
Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio   Aos migalheiros, um apelo: proíbam imediata e irrevogavelmente seus clientes de dizerem por aí que detêm direito autoral sobre a própria vida e sobre a própria imagem. Podem, inclusive, fazê-lo sem temor da pecha de censores ou de intransigentes, porque não haverá Paula Lavigne que possa desafiá-los nessa lúcida e temperada assertiva. Para além do debate moral ou político, essa recomendação é, como se verá, de ordem puramente técnica.Sejamos ou não a favor da irrestrita liberdade de biografar e independentemente de nossas posições acerca de poder-se ou não falar sobre outrem independentemente de remuneração, fato é que o enfrentamento dessas questões se dá em um terreno que não é propriamente o da propriedade intelectual, mas sim o dos direitos da personalidade.A famigerada biografia não-autorizada de Roberto Carlos, por exemplo, que se encontra recolhida e impedida de circular, foi fulminada por temas que não possuem relação direta com o tema da propriedade intelectual (ainda que seu autor seja naturalmente titular de direitos sobre essa obra), mas sim aos direitos da personalidade tal como previstos hoje.Estão positivados no nosso estatuto civil e garantidos constitucionalmente1 o direito à honra, à intimidade, à vida privada e à imagem, além de a disposição infraconstitucional restringir atualmente seu uso não autorizado, em qualquer caso, a fins não-comerciais. É nessa pedra fundamental - nos direitos da personalidade, portanto - que se sustenta o Procure Saber; e justamente a esta base é que estão amarradas as dinamites do debatido projeto de lei.Mas a potencial mistura entre alhos e bugalhos tem lá a sua razão de existir, e convém explorar por que os dois temas apresentam, desde há muito, enorme propensão à confusão. A área dos direitos da personalidade apresenta segmentos bastante próximos ao tema da propriedade intelectual em geral. Há, inclusive, quem os entenda como domínios conexos, e parte da doutrina vê a ambos como componentes de um grupo maior denominado propriedade imaterial2. Debrucemo-nos topicamente sobre as relações entre os direitos da personalidade e os direitos de propriedade intelectual, aproveitando a onda midiática que cerca o tema, ainda que um pouco para longe dele nos permitamos divagar. (a) Direitos da personalidade e direito autoral Do ponto de vista prático, verifica-se, de início, que ao contar a história de uma vida, o biógrafo fará sua criação vir ao mundo sempre sob a forma de um objeto passível de proteção autoral. Seja um livro, seja um artigo de revista, seja uma obra audiovisual, a biografia como obra será bem sobre o qual recaem direitos de autor, estando aí a primeira conexão entre esses dois ramos. O mesmo acontece com a imagem pessoal, já que sua captura muito comumente dará ensejo à proteção autoral da fotografia ou do filme que a registram3.Não se confunda aqui, entretanto, o direito do biografado ou do fotografado (direitos da personalidade à vida privada, à imagem, e potencialmente à honra, se denegritória a biografia) com os direitos que surgem a partir da criação de uma obra biográfica ou de um retrato.É possível, entretanto, que o vínculo mais profundo entre os direitos da personalidade e os direitos de autor esteja não nessa constatação pragmática, mas na disciplina dos denominados direitos morais de autor4. São eles, no nosso ordenamento, o direito à paternidade da obra, o direito de atribuição de autoria no uso da obra, o direito de inédito, o direito à integridade da obra, o direito de modificá-la, o direito de retirada da obra de circulação, e o direito de acesso a exemplar único e raro. Sua existência revela o histórico entendimento da obra autoral como projeção da personalidade do autor.Desde a Revisão de Roma de 19285 estão os direitos morais previstos sistematicamente na Convenção de Berna. Uma análise dos anais dessa revisão revela a mesma linha de raciocínio que até hoje promove a vinculação teórica entre direitos da personalidade e direitos morais do autor.Dois trechos merecem transcrição, não só pelo valor histórico, mas pela atualidade do raciocínio6: "...o autor é titular de um direito, ou de um conjunto de direitos estritamente inerentes à sua pessoa, que são instransferíveis e ilimitados no tempo, e que dizem respeito, principalmente, a seu direito absoluto de publicar ou não publicar a obra, de ter sua autoria reconhecida e de, por fim, proteger a integridade da obra" (Trecho da proposta apresentada pela delegação italiana na Conferência de Roma para a Revisão da Convenção de Berna, 1928)"...embora sejam bens econômicos que desfrutam de privilégio exclusivo de publicação e reprodução, as obras da mente são distintas de todos os outros bens porque são o produto de atos de criação intelectual e, em razão disso, têm caráter representativo da personalidade de seus autores. Dizer que o autor 'vive em sua obra' não é integralmente metafórico: em verdade, a idéia literária, científica ou artística contida na obra ou, no mínimo, a forma literária, artística ou científica de que o autor revestiu essa idéia para apresentá-la ao público revelam e refletem sua personalidade e portanto seu grau de capacidade intelectual, sua cultura, seus pendores espirituais ou morais..." (E. Piola Caselli, Vice-Presidente e Relator-Geral da Conferência de Roma para a Revisão da Convenção de Berna, 1928) Sendo a obra autoral uma expressão da personalidade do autor, e servindo como referência desta personalidade para o público que atinge, permanecerá incessantemente como representação dessa personalidade, fundamento da decretação desses direitos morais do autor. (b) Direitos da personalidade e propriedade industrial Bem se sabe que o ramo amplo da propriedade intelectual comporta um recorte, um sub-ramo denominado propriedade industrial7, formado pela disciplina jurídica das marcas, patentes e desenhos industriais. Também aí encontra guarida a dimensão da personalidade do criador intelectual.Não é por outro motivo que nossa Lei de Propriedade Industrial garante ao inventor sua nomeação como tal, devendo seu nome constar obrigatoriamente da carta-patente8. Essa disposição legal se repete para o caso do desenho industrial9, com adaptações unicamente de nomenclarura - autor em vez de inventor; registro no lugar de carta-patente.Percebe-se, portanto, a concessão ao inventor e ao autor de desenho industrial do direito de ter seu nome associado às suas criações, da mesma forma como se dá no direito moral de autor, já explorado neste artigo. Trata-se claramente do reconhecimento da criação intelectual, seja em que campo for, como materialização exterior da personalidade de seu criador, preservando-se essa vinculação entre inventor e invento, autor e desenho industrial, por meio da obrigatória referência nominal.Não há, para o caso das marcas, nenhum tipo de obrigatoriedade desse gênero, mas entendemos que trata-se de caso distinto, a merecer outro tipo de entendimento e aborgagem. A marca é resultado de construção social que comporta outros fatores para além de um simples ato criador de suas características10. Esses outros fatores, como a reputação da marca, inclusive, são muito mais importantes que sua materialização sensitiva, e resumem efetivamente o valor que esse direito imaterial carrega. Haverá, entretanto, uma vinculação entre a personalidade da pessoa jurídica e o sinal distintivo que lhe é próprio, como veremos adiante. (c) Direitos da personalidade, pessoa jurídica e as marcas Nosso atual diploma civil reconhece, de maneira expressa, direitos da personalidade às pessoas jurídicas11. Essa atribuição, que pode parecer estranha à primeira vista, é decorrência lógica da existência da personalidade jurídica para além da natural, e confere garantias elementares para que, reconhecida essa ficção jurídica que é a personalidade jurídica, possa esta se desenvolver plenamente para atingir seu objeto. Assim, inegável que a pessoa jurídica terá sempre direito ao nome, tal como a pessoa natural, e à honra, embora, em nosso entendimento, apenas à honra objetivamente considerada, que nada mais é senão a reputação de que goza junto à sociedade.Os sinais distintivos e as marcas encontram-se vinculados intrinsecamente à honra objetiva da pessoa jurídica na medida em que, no decorrer de sua vida, convertem-se estes sinais em repositórios de referências e qualidades que lhe são diretamente relacionadas. Ao entrar em contato com determinado sinal distintivo, o indivíduo recupera na memória esse conjunto de características, boas ou ruins, que havia previamente atribuído a tal sinal, e passa a naturalmente transferir essas qualidades à pessoa jurídica representada pela marca ou sinal distintivo. Fácil, portanto, concluir que a denigrição de uma determinada marca, sinal ou de um produto ou serviço com ela assinalado tem repercussões diretas sobre a reputação, a honra objetiva da pessoa jurídica, ensejando-lhe direito a reparação moral. (d) Para não dizer que não falei das flores - alguns comentários técnicos sobre o polêmico projeto A proposta de lei 393/2011 contra a qual o Procure Saber e outros artistas se posicionaram prevê a inserção de um parágrafo no artigo 20 do Código Civil que apagaria a necessidade de autorização para biografias com fins comerciais ou denigritórias se o biografado for pessoa notória ou estiver envolvido em fato de interesse da coletividade. Assim ficaria o regramento da matéria se o PL fosse aprovado: Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.§ 1° omissis§ 2° A mera ausência de autorização não impede a divulgação de imagens, escritos e informações com finalidade biográfica de pessoa cuja trajetória pessoal, artística ou profissional tenha dimensão pública ou esteja inserida em acontecimentos de interesse da coletividade.§ 3° omissis A maneira como se encontra redigido o parágrafo oferecerá, certamente, desafios aos seus intérpretes.Embora o caput mencione os verbos divulgar, transmitir e publicar para casos diferentes, o parágrafo proposto menciona exclusivamente o núcleo divulgar. Foge-nos o propósito pelo qual o legislador escolheria termo vago quando poderia, de maneira mais técnica, ter utilizado as expressões publicação, transmissão ou distribuição, todos definidos na Lei de Direitos Autorais. Outra questão que certamente será debatida será a indeterminação das dimensões do termo com finalidade biográfica. As imagens poderão, desvinculadas de qualquer texto, considerar-se com finalidade biográfica? Um documentário sobre a vida de Caetano Veloso prescindirá de qualquer autorização sua para usar suas imagens? A imagem que dispensará autorização é somente se obtida licitamente? Ou a ilicitude na obtenção das imagens derrotaria a primazia do interesse público expresso nesta norma?O interesse da coletividade é de que tipo? A mera curiosidade de conhecer a vida do artista servirá como suficiente interesse da coletividade para justificar a ausência de autorização?Já do ponto de vista mais sistemático, notamos duas questões. Primeiramente, a obra comprovadamente mentirosa e inverídica, ainda que dê ensejo a eventual reparação de danos, poderá continuar a circular? Ou a mentira evidente desconstituiria a finalidade biográfica e recolocaria a obra na posição anterior? Em segundo lugar, o fato de a divulgação não poder ser impedida significa, necessariamente, que ao biografado será vedado pleitear remuneração em juízo? Ou seja, se o interesse do biografado for simplesmente ser remunerado, terá ação que lhe resguarde?Seria salutar que essas perguntas pudessem ser debatidas antes dos próximos movimentos legislativos. Aproveitando o centenário de Vinícius, digamos que sabemos muito bem o que é ter uma jaboticabeira no quintal. __________ 1São diversas as classificações dos direitos da personalidade. A doutrina nacional tem, exemplificativamente, em Rubens Limongi França, Carlos Alberto Bittar, Elimar Szaniawski e Claudio Luiz Bueno de Godoy exemplos de desenvolvimento substancioso dessa área de estudo. 2"A propriedade imaterial constitui-se, pois, em um termo genérico abrangente, que comporta tanto os bens e direitos da personalidade (direito à liberdade, inclusive à liberdade de expressão, de consciência, de imprensa, direito à privacidade e à intimidade) como os bens intelectuais, a propriedade derivada do esforço da inteligência humana, que inclui os direitos autorais..." (VIEGAS, Juliana L.B. Aspectos Legais de Contratação na Área da Propriedade Industrial in SANTOS, Manoel J. Pereira e JABUR, Wilson Pinheiro. Contratos de Propriedade Industrial e Novas Tecnologias, São Paulo: 2007, p.3. 3Importante excluir desse raciocínio as imagens capturadas sem nenhuma originalidade, requisito essencial para que uma determinada criação seja passível de proteção autoral. Assim, por exemplo, as câmeras de segurança que, sem nenhum olhar artístico, simplesmente capturam imagens para fins de vigilância não produzem material passível de proteção pela via de direito de autor. O mesmo dir-se-ia, por exemplo, das fotos mecanicamente realizadas por um satélite. A originalidade é justamente a vinculação entre obra e personalidade. 4Encontram-se positivados na lei 9610/1998, Título III, Capítulo II, arts. 24 e ss. 5Tratado seminal de harmonização dos direitos autorais, assinado em 1884. Verdade que a Revisão de Berlim de 1908 continha um embrião de direitos morais em seu nono artigo, que dizia que "With the exception of serial stories and tales, any newspaper article may be reproduced by another newspaper unless the reproduction thereof is expressly forbidden. Nevertheless, the source must be indicated". Mas foi a revisão de Roma de 1928 a que realmente discutiu sua inserção como sistema de direitos morais no no tratado a partir da proposta de diversas delegações e da criação de um grupo de trabalho para discutir a questão. 6Os dois trechos apresentados foram extraídos dos estudos dos anais da Revisão de Roma da Convenção de Berna de 1928 e traduzidos livremente pelos autores. 7Há extensa evolução histórica de denominações, classificações, e debates doutrinários que precedem o momento presente. A própria denominação "propriedade industrial" só se sustenta com algum desapego semântico, pelo mesmo motivo que fez evoluir a disciplina do "nome comercial" para "nome empresarial". 8Artigos 6, §4o. e artigo 39 da lei 9279/1996. 9Artigo 107 da lei 9279/1996. 10Sem prejuízo de estas características estéticas receberem proteção autônoma independentemente do direito marcário, como a proteção autoral da logomarca. 11Artigo 52. Aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade.
segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Quero vender meus bits and bytes - Parte 3

Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio "It seems passé today to speak of 'the Internetrevolution'. In some academic circles, it is positivelynaive. But it should not be. The change brought aboutby the networked information environment isdeep. It is structural. It goes to the very foundations of how liberalmarkets and liberal democracies have coevolved foralmost two centuries" Yochai Benkler, The Wealth of Networks Há pouco mais de trinta anos se iniciava a revolução proporcionada pela popularização da tecnologia, com o "um PC em cada mesa1". Há quase vinte anos temos vivenciado uma estrutural mudança que a conectividade cada vez maior nos impõe2. Sobre os impactos na esfera jurídica dessa radical transformação, encontramos um espectro de opiniões que vão desde aquelas que não lhes conferem muita importância até aqueles que entendem, como o professor Benkler, que são profundos e estruturais, espraiando-se amplamente por todos os ramos e demandando, portanto, nossa mais atenta consideração. Precedentes jurisprudenciais decidindo conflitos surgidos a partir de atos praticados por meio da internet muitas vezes nos parecem um retrato dessa tensão conceitual. São muitas as decisões que ignoram realidades completamente novas, tentando aplicar-lhes velhas fórmulas sem a releitura que essas situações comportariam, e notamos, tanto nos julgados quanto na doutrina, um constante esforço argumentativo que torce e retorce categorias jurídicas para que abarquem situações que não lhes são típicas. Mas talvez seja esse mesmo o modus evolutivo do direito, lento e dialético, e talvez as mudanças no plano fático tenham que atingir um determinado grau (insondável a priori, evidentemente) antes que a evolução se faça sentir no plano deontológico3. Os acertos sempre nos parecem ter mais chance de acontecerem quanto maior for a disposição do julgador para se permitir analisar a situação nova com olhos de justiça material, com ânimo de exceder a mecânica atividade de tentar encaixar fatos novos nas fôrmas antigas para, buscando exercer o papel mais importante de intérprete do ordenamento, chegar à solução justa, sem abrir mão da eficácia dos de seus provimentos. Essas decisões de caráter mais holístico tendem justamente a ser as que, em conjunto evolutivo, terminam por se impor, seja em razão de sua própria força lógica e natural, que lhes confere um certo poder de aumentar a resignação dos jurisdicionados que atingem, seja por sua atratividade como paradigma para casos futuros. Situações novas exigem uma dimensão de raciocínio que ultrapassa o da simples subsunção, e que efetivamente se debruçam sobre os fatos (muitas vezes tecnicamente complexos) para buscar as regras que melhor se lhes aplicam sob um prisma de justiça, sem descuidar dos princípios. Nos últimos quinze anos assistimos a uma evolução no ramo jurídico impulsionada por essas novas realidades, e ainda se impõe diuturnamente a tarefa de solucionar questões que não encontram no ordenamento nenhuma resposta pré-fabricada. Segue sendo de grande importância a tarefa do causídico na proposta de visões alternativas. Neste derradeiro artigo sobre o tema ora explorado4, estudamos algumas decisões relacionadas ao tema da exaustão de direitos na esfera dos direitos autorais com vistas a ilustrar como têm decidido algumas cortes quanto ao assunto da aplicabilidade ou não do princípio da exaustão de direitos para os conteúdos obtidos digitalmente. No caso brasileiro, em que faltam precedentes, procuramos extrair princípios dos posicionamentos de nossas cortes sobre o tema da exaustão de direitos lato sensu, incluindo casos particulares da esfera da propriedade industrial. (iii) Cenário das discussões que cercam a exaustão de direitos no espaço virtual (a) O caso Capitol Records, LLC x ReDigi Inc. nos EUA Em outubro de 2011, surgia, nos EUA, o ReDigi5, um serviço online de revenda de conteúdo digital. Oferecia a seus usuários que não mais desejavam manter suas faixas musicais adquiridas de serviços lícitos como o iTunes a possibilidade de subi-las para a nuvem do ReDigi, onde ficariam disponíveis para outros usuários que desejassem adquiri-las. Assim que a revenda se realizasse, um software permanentemente instalado no computador do usuário-revendedor garantiria que aquele arquivo específico não voltaria a ser por ele utilizado, sob pena de não poder mais acessar os serviços do ReDigi. Uma parte do valor da revenda ficaria retido pelo intermediário comissão. Cerca de três meses depois, em janeiro de 2012, a Capitol Records, um dos mais tradicionais selos de música do mundo, ajuizou ação perante a Corte Distrital do Southern District de Nova York6 contra a ReDigi alegando que a revenda de faixas de sua titularidade lhe violava direito exclusivo de autorizar a reprodução, a distribuição e a execução pública7 dessas fixações, o que garantiria pretensão reparatória e cominação impeditiva. ReDigi se defendeu com base em diversos argumentos mas, principalmente, com base na aplicação da doutrina ou do princípio da exaustão de direitos, a first-sale doctrine, segundo a qual "o proprietário de uma cópia ou de um registro fonográfico específico legalmente produzido nos termos deste capítulo, ou qualquer pessoa por este autorizada, terá o direito de, independentemente de autorização do titular do direito autoral, vender ou de outra forma dispor da posse daquela cópia ou registro fonográfico"8. Em 30 de março de 2013, o juiz Richard J. Sullivan, julgando antecipadamente parte da lide que independia de comprovação fática, acolhe os pedidos da Capitol Records, com base em um raciocínio definidor de todas as demais conclusões a que o julgado9 chega após minuciosa análise: o envio de um arquivo via internet é, na verdade, uma cópia, uma reprodução desse mesmo arquivo que termina por fixar-se na memória do aparelho destinatário, e não simples transito do mesmo exemplar adquirido originariamente. Não há identidade ontológica entre o exemplar obtido na primeira venda e aquele que se destinaria ao segundo comprador, o que, no entendimento do juiz, inviabiliza a aplicação da doutrina. Durante o julgamento do caso, a ReDigi, pressentindo a iminente dificuldade de manutenção do seu negócio, lançou uma versão 2.0 do sistema que supostamente não realizaria nenhum tipo de cópias de arquivos. O julgado em questão não se debruçou sobre essa nova versão, e esse fato é expressamente reconhecido pelo juiz, de modo que a ReDigi mantem-se viva e agora com a promessa de lançar um serviço também para a revenda de outros conteúdos digitais como ebooks e vídeos. Prometeu igualmente apelar da decisão de primeira instância. O caso é importantíssimo não só pelo precedente concreto, mas pelas implicações das construções que faz ao longo da análise traçada pelo juiz. Ao contrário da diretiva européia, que chegou a um direito de colocar à disponibilização do público e evitou a inserção da transferência via internet como um ato de distribuição, o precedente estadounidense enxerga a transferência online como uma reprodução do conteúdo. E o é, certamente, do ponto de vista das leis da física, como bem frisou o magistrado, já que exemplar nenhum como tal trafega internet afora. Um outro tópico explorado pelo juiz é o da violação ou não do direito exclusivo de distribuição dessas obras detido pela Capitol Records. Baseado no precedente London-Sire Records vs. John Doe10, que entende na transferência eletrônica de um arquivo o preenchimento do conceito de distribuição, ele entende que esse direito foi também violado pela ReDigi, na medida em que promove a transferência das faixas do computador do usuário-revendedor para a nuvem do ReDigi, e posteriormente para o disco rígido de que adquiri-las. (b) Julgados brasileiros São em número razoável os julgados brasileiros relacionados ao tema da exaustão de direitos na seara da propriedade industrial, concentrando-se especialmente no tema da importação paralela. Nenhum, entretanto, no âmbito do direito autoral, que se debruçe sobre o tema dos conteúdos digitais. Desconhecemos, igualmente, conflitos levados ao judiciário que versem sobre essa problemática. O único caso dos tribunais superiores que nos parece poder ter alguma serventia para um futuro elaborar de conceitos que cercam a distribuição de conteúdos digitais pela internet é um Recurso Especial, relatado pela Min. Maria Isabel Gallotti11, em que a julgadora entende (embora pouca dúvida houvesse) a divulgação da obra em formato eletrônico como ação que implica necessariamente o perfazimento de uma publicação. No contexto do caso, o conceito foi utilizado para demonstrar que a veiculação pela internet da obra sem autorização pelo autor violava seu direito moral de manter sua obra inédita, causando-lhe danos morais. Entre os tribunais estaduais, um caso que tangencialmente se aproxima da questão é uma apelação já vintenária julgada no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro12 que, debruçando-se sobre a possibilidade de importarem-se paralelamente exemplares de um software distribuído no Brasil com exclusividade, conclui, no voto vencedor, pela legalidade dessa conduta13, posicionamento que não nos pareceria adequado à luz de nossos diplomas atuais, já que o item se adquirira externamente sem autorização para internação no país. Na ausência de casos específicos do nosso tema e com vistas a eventual transposição dos conceitos para uma disciplina genérica da exaustão de direitos no ordenamento brasileiro, importa notar, ainda que apenas no ramo contíguo ao autoral, quais posicionamentos as decisões14 analisadas refletem no campo das marcas e patentes. Verifica-se, em geral, nas decisões sobre exaustão de direitos de propriedade industrial, uma reafirmação da opção legislativa brasileira de adotar o princípio do esgotamento nacional de direitos. A introdução no mercado do bem que materializa o direito marcário ou patentário tem que se dar no Brasil com autorização do titular, não bastando que tenha sido legitimamente adquirido no exterior. Variam as decisões acerca do momento dessa autorização e da necessidade de ser direta ou indireta, sendo que a maioria entende que um distribuidor estrangeiro que esteja autorizado (ou não expressamente proibido contratualmente) a remeter bens para o Brasil serve satisfatoriamente para cumprir essa exigência. Outra preocupação bastante clara da maioria dos julgadores é a preservação da higidez concorrencial e a prevenção de potenciais abusos que podem advir do exercício amplificado do instrumento do contrato de exclusividade. Há um conjunto de decisões que entendem que o compromisso de exclusividade de distribuição se encontra circunscrito à realidade inter partes, não servindo como instrumento apto a impedir importação legítima advinda de terceiro que, embora sediado no exterior, tenha autorização para exportar para o Brasil ou não esteja impedido de fazê-lo. Ou seja, no sopesamento entre distribuição exclusiva e exaustão de direitos, prevaleceria este último como corolário da livre circulação de bens. Exsurge do conjunto de julgados outra questão, esta relacionada à eventual manutenção das marcas apostas a produtos introduzidos em mercados de segunda mão. Reconhece-se a insegurança que essa realidade gera do ponto de vista consumerista, considerando a expectativa do consumidor de obter prestações típicas da relação de consumo diretamente do titular da marca, e não do revendedor de segunda mão, situação agravada ainda mais quando esses bens passam por algum processo de remanufatura, sem garantia de controle de qualidade. Esgotamento nacional, higidez concorrencial e proteção aos consumidores e às expectativas que lhes desperta a reputação que as marcas carregam: eis o que se extrai como tendências gerais desse conjunto razoavelmente amplo de decisões estudadas. São linhas suficientemente abstratas para comportarem eventual tradução para a seara dos direitos autorais em eventual esforço interpretativo. Com esse brevíssimo panorama, encerramos essa tríade de artigos sobre o tema da exaustão de direitos para conteúdos digitais. Não havia, desde o início, pretensão de, com o perdão do trocadilho, esgotar a questão, mas apenas de oferecer um certo olhar sobre as questões que permeiam essa importante discussão na seara autoral. Continuamos sem saber ao certo se podemos vender nossos bit and bytes. Não há dúvidas de que um futuro próximo nos oferecerá a resposta. Até breve! __________1The Telegraph 2Em 2011, a penetração média de linhas de telefonia móvel no mundo era de 85/100 habitantes, segundo informações do Banco Mundial. Essa distribuição, evidentemente, não é equânime, e variava, à época, de 3/100 em Mianmar a 243/100 na China. No Brasil, a penetração era de 124 linhas por 100 habitantes. A ITU, International Telecommunications Union, agência da ONU especializada em TICs, estima que 90% da população tenha acesso a internet 2G em seus celulares, segundo estudo de 2011. Ambos os sítios mencionados nesta nota foram acessados em 18 de julho de 2013. 3O saudoso professor Antonio Junqueira de Azevedo lecionava que "Antes de mais nada, é preciso compreender que o direito, na verdade, não é em si um sistema autônomo; integrado na sociedade, ele é um sistema de segunda ordem, algo assim como o sistema nervoso nos seres vivos (Maturana e Varela)". 4As partes 1 e 2 deste conjunto de três artigos se encontram, respectivamente. 5ReDigi 6Apesar do nome, trata-se de uma corte pertencente ao sistema de justiça federal estadounidense, submetido à jurisdição, em segunda instância, do Second Circuit. Nos Estados Unidos, assim como no Brasil, há uma mistura de competências para diferentes "justiças", sendo que uma das competências ratione materiae das cortes federais é a de julgar violações ao estatudo de direitos autorais (copyright, em verdade). 7O julgado não explora a classificação de public performance (execução pública) como uma espécie do gênero comunicação ao público. Parece-nos não existir identidade entre execução pública e streaming de música. 8Tradução livre do trecho ".the owner of a particular copy or phonorecord lawfully made under this title, or any person authorized by such owner, is entitled, without the authority of the copyright owner, to sell or otherwise dispose of the possession of that copy or phonorecord." - 17 U.S.C. § 109. 9United States district court southern district of New York 10São comuns no direito americano as ações ajuizadas contra parte ainda incerta no momento do ajuizamento da ação. Quem advoga em assuntos relacionados à internet concordará que um expediente desse gênero faz falta no nosso ordenamento jurídico. 11Resp 1.201.340-DF 12Ação, na origem, número 0045347-35.1992.8.19.0001, comarca da capital. 13"...de um lado, não há proibição legal alguma de que um interessado adquira no exterior um equipamento, só porque esse equipamento seja de distribuição exclusiva no brasil. De outro lado, os direitos autorais referentes aos "softwares" das autoras foram a estas devida e comprovadamente remunerados". 14Buscas realizadas nos sítios do STF, STJ, TJRJ, TJSP e TJRS. A única menção ao tema em decisões do STF se encontra em um AREsto de lavra da Min. Carmen Lúcia que, entretanto, nega seguimento a um agravo por inidência da súmula 279 do STF. No STJ e nos tribunais mencionados há um conjunto decisório razoavelmente rico em conceituações.
segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Quero vender meus bits and bytes - Parte 2

Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio No artigo inaugural desta coluna1, apresentamos algumas indagações que cercam a criação de um mercado de segunda mão de obras em formato digital sob o ponto de vista do direito da propriedade intelectual. Depois de obter livros, faixas musicais e aplicativos via internet, poderíamos, genericamente, passá-los adiante, como nos permite o instituto da exaustão2 de direitos no mundo offline, ou estaríamos presos a limitações que afastam a aplicação do instituto? Propusemo-nos abordar a questão sob três enfoques. O primeiro, de caráter mais econômico, já explorado no texto exordial, identificava características instrínsecas desses bens digitais3 que gerariam um severo desequilíbrio caso a sistemática da exaustão ou esgotamento de direitos lhes fosse aplicada sem adaptações. Já neste segundo texto, enfrentaremos, sem proposta sistemática de estudo, temas jurídicos relacionados ao regramento do instituto e sua aplicação para o caso proposto, deixando para o terceiro e último texto do tema inicial da coluna PI Migalhas4 alguns comentários sobre julgados que contribuem para a identificação de tendências. (ii) Aspectos relacionados à exaustão de direitos autorais sobre conteúdos digitais (a) Tratados Internacionais Constituindo-se em importante princípio do sistema, era de se esperar que o esgotamento estivesse estampado na Convenção de Berna, arcabouço seminal do tratamento internacional dos direitos autorais. Não há aí, entretanto, uma palavra sequer sobre o tema. Já o acordo TRIPS5 o menciona para esquivar-se de regulamentá-lo de maneira sistemática, trazendo entretanto disposições incidentais que promovem a retenção, pelos autores e produtores, do direito de permitir ou não o aluguel comercial de exemplares de programas de computador, obras cinematográficas e fonogramas6. (b) Lei brasileira e interpretação (exaustão em geral) Nossa lei de Direitos Autorais - LDA (Lei 9.610/98) padece da mesma ausência de regramento claro do tema. Não há dispositivo que textualmente confirme ou infirme a existência ampla da sistemática geral de exaustão de direitos nesta seara no país7. Há, sim, algumas janelas interpretativas, embora nenhuma delas de correção cristalina. Observem-se o artigo 93, II, da LDA, que preserva para o produtor de fonogramas a faculdade de autorizar ou não a distribuição de exemplares da reprodução por meio de venda ou locação, e o artigo 2º, §5º da lei de Software (lei 9.609/98), que mantem com o titular o direito de permitir ou não o aluguel posterior à colocação do exemplar no mercado. O resguardo desses direitos ao produtor de fonograma e ao titular de direito autoral de software constitui exceção ao que seria uma sistemática de exaustão de direitos. Se a regra geral determinasse que, depois de colocado o exemplar no mercado, romper-se-ia o vínculo entre o titular e os exemplares físicos que incorporam a obra, então uma regra que permite autorizar ou não o aluguel ou revenda desses exemplares constituiria, evidentemente, exceção ao sistema de exaustão. Denis Borges Barbosa vê a existência dessa explícita exceção na lei como confirmação da presença genérica da regra do esgotamento de direitos autorais para todos os demais casos8. Se a lei teve a cautela de excepcionar a exaustão para essas hipóteses, isso seria sinal da aplicabilidade do instituto como regra geral. Do contrário, a menção específica seria desnecessária, já que as regras dos artigos 11 e 14 do TRIPS se encontrariam plenamente abarcadas em um sistema que não alberga o esgotamento. Essa interpretação é estritamente racional e plausível, mas entendemos ser indispensável a igual consideração de dois temas: a regra hermenêutica de interpretação restritiva das limitações a direitos, e a regra positivada de interpretação restritiva dos negócios jurídicos sobre direitos autorais. A primeira tem fundamento distante no princípio da reserva legal (CF, artigo 5º., inc. II); a segunda vem explícita no artigo 4º da LDA. Quanto a esta última, analisemos o caso do software. Se é verdade que o uso de software no país será objeto de contrato de licença e que os negócios jurídicos sobre direito autoral se interpretam restritivamente9, um contrato de licença de uso não poderia ser interpretado como exaurindo para seu titular os direitos sobre a distribuição em razão da interpretação sistemática de um princípio restritivo de direitos. Parece-nos um passo demasiado largo para o regramento que temos posto. Outro tema que parece importante é o fato de serviços online permitirem a celebração do contrato diretamente entre usuário e autor (titular dos direitos autorais). (c) Obras em formato digital x software Outro tema que poderá gerar alguma dificuldade, inclusive com implicações tributárias, é a definição ampla de software que nos oferece a Lei 9.609/98. Seu artigo primeiro traz a seguinte definição: "Programa de computador é a expressão de um conjunto organizado de instruções em linguagem natural ou codificada, contida em suporte físico de qualquer natureza, de emprego necessário em máquinas automáticas de tratamento da informação, dispositivos, instrumentos ou equipamentos periféricos, baseados em técnica digital ou análoga, para fazê-los funcionar de modo e para fins determinados". Ao pé da letra, a definição parece acobertar qualquer arquivo eletrônico. De outro lado, temos que as obras intelectuais protegidas pela LDA podem se encontrar fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, sendo absolutamente inquestionável que não perdem sua qualidade de obra no momento em que se digitalizam. Fugindo da definição escorregadia, busquemos compreender se a digitalização da obra atrairia a aplicação da lei de software. Entendemos que não. Não deixam de ser obras literárias, artísticas ou científicas no momento em que se digitalizam, e se forem criadas diretamente por vias computacionais isso tampouco lhes retira o caráter que é requisito da lei autoral para conferir-lhes proteção. Alguma dúvida poderia haver quanto a programas de computador, como jogos eletrônicos, que incorporam obras audiovisuais e literárias. Não deixam de ser programas de computador na sua completude, gozando da proteção específica. Mantem-se, entretanto, a proteção autoral autônoma das obras audiovisuais e literárias que lhe foram incorporadas. Apps em geral, portanto, inclusive games, são programas de computador, e obedecem ao regramento da Lei 9.609/98, independentemente de eventual proteção autônoma das criações artísticas que se lhe forem incorporadas; e-books, faixas e vídeos em formato digital mantêm sua natureza de criação artística, apesar do formato digital. (d) A análise para itens digitais Nossa breve incursão neste tema revelou dificuldades e imprecisões jurídicas. Entretanto, parece-nos possível estabelecer alguns parâmetros para que formemos individualmente nossas convicções. Para além da análise primordialmente econômica, de inviabilidade para o sistema de propriedade intelectual da aplicação da exaustão para a compra de conteúdo online, vejamos, à luz do ordenamento, se há conclusões possíveis. Primeiramente, inexiste clara determinação normativa do sistema de exaustão de direitos para a seara autoral como existe para a LPI. Chegar-se-ia à sua existência ou por meio da constatação do costume de tratamento desses bens no mundo tangível, ou por meio de interpretações sempre questionáveis sob algum aspecto, o que não lhe dá força, ao nosso ver, para derrubar disposições contratuais em vigor. Em segundo lugar, para o tema específico de fonogramas (e, por extensão, dos videofonogramas), parece-nos que resta clara a inaplicabilidade da exaustão, seja para os suportes tangíveis, seja para o ambiente eletrônico. Exegese do artigo 93, inciso II da LDA, que vai além da determinação do TRIPS, que previa unicamente a retenção, pelo produtor, do direito de autorizar ou não o aluguel posterior. Por fim, para programas de computador, a lei de Software confere ao titular dos respectivos direitos autorais a faculdade de autorizar ou não a locação do exemplar licenciado. Exegese do artigo 2º, §5º da lei 9.609/98, cumprindo a regra determinada no acordo TRIPS. Não parece, entretanto, haver outros elementos que confirmem a exaustão no caso de licenciamento de uso, feito mediante contrato de licença e sujeito à regra da interpretação restritiva dos negócios sobre direitos autorais. De modo geral, portanto, parece-nos não haver norma cogente no ordenamento que force a aplicação de um preceito geral de esgotamento de direitos para os bens digitais. Evidente, entretanto, que trata-se apenas de hipótese conclusiva, formada sobre conceitos extraídos de um ordenamento não totalmente adaptado para a realidade de hoje. No próximo e derradeiro artigo desta primeira série de três, apanharemos alguns julgados nacionais e estrangeiros para ilustrar as tendências do judiciário no tratamento desses casos. Até breve! __________ 1Quero vender meus bits and bytes - Parte 12No artigo inicial, sintetizamos a conceituação do instituto da seguinte maneira: "[...] exaustão ou esgotamento de direitos, também denominado nos EUA de first-sale doctrine. Uma vez que o titular do direito tenha colocado no mercado determinado bem que de alguma forma incorpora seu direito intelectual, exaure-se o direito de controlar a posterior distribuição daquele suporte físico específico, retendo-se tão-somente o direito de controlar a nova reprodução da obra. O conceito, intuitivo para os bens tangíveis, permeia os direitos de propriedade intelectual como um todo, materializando, embora não sem limites, o princípio de livre circulação de bens e mercadorias".3O leitor com uma mirada mais apurada pode ter-se incompatibilizado com a utilização livre de uns poucos termos não muito técnicos no primeiro texto. Evidente que não existe categoria denominada bens digitais no código civil, nem tampouco há uma realidade paralela denominada mundo eletrônico ou virtual. A despeito disso, esses termos servem como aforismos que nos permitem fazer referência a certos elementos ou conceitos de maneira concisa. A imprecisão técnica, sem abrir mão da competente transmissão do conceito, é preferida ao enfado verborrágico. 4Fossem os autores mais hábeis na arte, poderíamos estar diante de um assemelhado ao romance de folhetim, contendo eletrizantes (!) temas jurídicos. Ávidos migalheiros aguardariam, ansiosos, o fim da contagem regressiva do relógio que marca a disponibilização do exemplar diário na homepage deste poderoso rotativo, momento em que um silêncio impenetrável se estabeleceria em bancas jurídicas por todo o país, enquanto causídicos devorariam as aguardadas cenas do novo capítulo. 5Decreto 1355/94. Artigo 6: "Para os propósitos de solução de controvérsias no marco deste Acordo, e sem prejuízo do disposto nos Artigos 3 e 4, nada neste Acordo será utilizado para tratar da questão da exaustão dos direitos de propriedade intelectual". 6Artigo 11 - Um Membro conferirá aos autores e a seus sucessores legais, pelo menos no que diz respeito a programas de computador e obras cinematográficas, o direito de autorizar ou proibir o aluguel publico comercial dos originais ou das cópias de suas obras protegidas pelo direito do autor. Um Membro estará isento desta obrigação no que respeita a obras cinematográficas, a menos que esse aluguel tenha dado lugar a uma ampla copiagem dessa obras, que comprometa significativamente o direito exclusivo de reprodução conferido por um Membro aos autores e seus sucessores legais. Com relação aos programas de computador, esta obrigação não se aplica quando o programa em si não constitui o objeto essencial do aluguel. Artigo 14 (4) - As disposições do Artigo 11 relativas a programas de computador serão aplicadas mutatis mutandis aos produtores de fonogramas [omissis].7A proposta legislativa submetida a consulta pública em 2010 pelo Ministério da Cultura, cujo substitutivo encontra-se, hoje, em processo de revisão no mesmo Ministério, trazia um dispositivo genérico com o seguinte texto: "Art. 30-A. Quando a distribuição for realizada pelo titular dos direitos da obra ou fonograma, ou com o seu consentimento, mediante venda, em qualquer Estado membro da Organização Mundial do Comércio, exaure-se o direito patrimonial de distribuição no território nacional do objeto da venda". Parecia, portanto, consagrar a doutrina da exaustão nacional de direitos, tal qual ocorre com a Lei de Propriedade industrial. Apesar disso, mantinha a exceção para os produtores de fonogramas.8"Meu entendimento, de outro lado, é que tal disposição penal e civil, em sua especialidade, sublinha a inexistência de igual direito para as obras não corporificadas em fonogramas. Ou seja, para todos outros tipos de obra, inclusive as cartográficas ou fotográficas, a primeira alienação esgota os direitos do autor sobre o corpus mechanichum". Restrições ao uso do corpus mechanicum de obras intelectuais após a tradição: exaustão de direitos em direito autoral. 9Exegese dos artigos 9º. da lei 9.609/98 e 4º. da LDA.
segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Quero vender meus bits and bytes - Parte 1

Ygor Valerio e Gabriela Muniz Pinto Valerio O Sebo Ornabi1 causava aos visitantes a aparência de não ter fim. Na rua Benjamin Constant, a poucos metros da entrada do Largo São Francisco, era digno de dias seguidos de visita, e sua confusa sequência de salas e andares o transformava em algo orgânico, com vida própria. Seu simpático proprietário, o Sr. Luiz, permaneceu por mais de sessenta anos na atividade de comprar e revender livros usados, e montou um acervo digno de nota, que chegou a contar com 300 mil volumes, muitos deles raros e antigos. Certamente sem a mesma aura da Ornabi, não é novidade que livrarias nacionais oferecem vastos catálogos de e-books com mais de um milhão de exemplares que podem ser acessados em uma questão de segundos por meio de nossos smart devices. As demais indústrias de conteúdo também navegam esse mundo do conteúdo digital já há alguns anos, e o último relatório da IFPI - International Federation of the Music Industry, relata que 35% da receita da indústria global de música é auferida a partir de canais digitais. O instituto Gartner de pesquisa informa que, somente em 2012, foram 45 bilhões de downloads de aplicativos (apps), dos quais cerca de 7% foram adquiridos onerosamente. Correndo o risco de cometer o repisado erro de utilizar raciocínios típicos da realidade anterior à era digital para sobre esta opinar, interessa-nos um problema que o futuro próximo certamente não se esquivará de resolver. Poderá existir uma Ornabi de conteúdo digital? Será possível a revenda e sequencial distribuição eletrônica de bens protegidos por direitos autorais? O instituto jurídico que permitia ao velho sebo conduzir seu negócio na mais perfeita legalidade e sem infringir direitos de propriedade intelectual é o da exaustão ou esgotamento de direitos, também denominado nos EUA de first-sale doctrine. Uma vez que o titular do direito tenha colocado no mercado determinado bem que de alguma forma incorpora seu direito intelectual, exaure-se o direito de controlar a posterior distribuição daquele suporte físico específico, retendo-se tão-somente o direito de controlar a nova reprodução da obra. O conceito, intuitivo para os bens tangíveis, permeia os direitos de propriedade intelectual como um todo, materializando, embora não sem limites, o princípio de livre circulação de bens e mercadorias2. Se aplicarmos puramente essa sistemática ao regime de regulação dos conteúdos digitais, também passíveis genericamente de proteção autoral, teremos que, após a compra de um e-book ou de uma faixa digital, o titular dos direitos autorais incorporados a esse bem não poderia exercer mais controle sobre sua posterior distribuição3. Estaria o adquirente livre para revender esse conteúdo, contanto que deixasse de utilizá-lo no momento em que o passasse adiante. Estaríamos diante da possibilidade de criarmos uma Ornabi que sucederia a original mas, com pés fincados no mundo virtual. Um empreendedor tão astuto quanto o sr. Luiz buscaria usuários que já leram seus livros digitais ou não querem mais seus aplicativos, faixas e afins e os revenderia, agregando-os em um novo website, por um preço significativamente inferior ao que pudesse ser obtido diretamente do titular de direitos. Mas quando nos debruçamos sobre os contratos utilizados pelos maiores atores desse mercado, percebemos que os distribuidores de conteúdo digital on-line normalmente trazem proibições contratuais que vedam expressamente essa possibilidade aos seus usuários. Ao menos contratualmente, portanto, esse plano de negócios não é viável. Um exemplo são os termos de uso do Google Play, em que se lê a seguinte cláusula: "Venda, Distribuição ou Transferência para Terceiros. Você não poderá vender, alugar, arrendar, redistribuir, difundir, transmitir, comunicar, modificar, sublicenciar ou transferir seus direitos a produtos para terceiros sem autorização, incluindo o download e quaisquer produtos que venha a obter através do Google Play4. A busca em todos os demais atores importantes desse mercado revelou contratos com termos semelhantes, que restringem o manejo posterior do conteúdo, em desatenção à ideia de first-sale doctrine. Será que o papel da doutrina de exaustão de direitos no sistema de propriedade intelectual continua sendo bem desempenhado quando traduzido integralmente e sem adaptações à sistemática dos conteúdos puramente digitais? O regramento da exaustão é claro no direito autoral brasileiro? Se for claro, trata-se de norma cogente ou de norma afastável contratualmente? Há precedentes judiciais para essas questões? Como se posicionam os demais países a esse respeito? Essas restrições contratuais são justas? O tema, como se vê, merece uma análise mais aprofundada sob diversos aspectos que buscaremos explorar nesta série de três artigos, mais flanando sobre os problemas e questões oriundos desse choque entre a economia de bens digitais e o sistema de propriedade intelectual do que tentando uma resposta definitiva. São três os enfoques que nos propusemos explorar sequencialmente: (i) o desequilíbrio pró-sociedade no sistema de propriedade intelectual derivado de características inerentes dos bens digitais; (ii) aspectos relacionados à exaustão de direitos autorais sobre conteúdos digitais; (iii) cenário internacional das discussões que cercam a exaustão de direitos no espaço virtual. O primeiro item será tratado no presente artigo, e os dois demais nos subsequentes. (i) O desequilíbrio pró-sociedade no sistema de direito de autor derivado de características inerentes dos bens digitais Tomando por pressuposto que a atribuição de direitos de propriedade intelectual pode ser vista dentro de uma proposta sistêmica, temos que o fundamento do exclusivo que se confere ao autor é o benefício que a sociedade obterá não só em razão da vinda a público de uma criação, mas da ulterior expiração desse monopólio de que até então gozava o autor. Há, portanto, na essência do sistema, uma tensão constante entre o interesse do autor, de maximizar seus ganhos com a obra durante o período do exclusivo, e o interesse da sociedade, de obter livre acesso a esses bens intelectuais. O equilíbrio entre essas duas tensões contrapostas é indispensável para a higidez do sistema, uma vez que um fortalecimento exagerado de qualquer um dos extremos pode significar o aniquilamento de seu contraposto. Se não houver retribuição de algum gênero ao criador, deixará este de criar; se não houver retribuição de algum gênero à sociedade, o monopólio perde sua justificação econômica, vez que não faz senão privar a sociedade do livre acesso5. Para a manutenção desse equilíbrio, há alguns mecanismos de balanceamento entre esses dois interesses contrapostos que servem para operar uma sintonia fina do sistema, entre eles o licenciamento compulsório, os limites ao direito autoral e, justamente, a doutrina da exaustão de direitos. O sistema de exaustão de direitos é um vetor pró-sociedade no equilíbrio de forças que descrevemos, libertando dos constrangimentos típicos do exclusivo um exemplar tangível, que incorporou direitos intelectuais, por sua simples colocação autorizada no mercado de consumo. Egresso de uma realidade oitocentista, muito anterior à economia a que estão submetidos os bens digitais que consumimos hoje, constituiu-se em instituto importante para manter aquele equilíbrio almejado pelo sistema. Com efeito, a simples ideia de que não se poderia tomar um livro emprestado de um colega porque seu autor assim o determinou se nos afigura uma distorção no exercício desses direitos. Entretanto, é indispensável que nos questionemos se esse fundamento perdura para os nossos ebooks, apps e faixas digitais. É dizer, se traduzida diretamente para a economia de bens digitais, continua a exaustão de direitos cumprindo seu papel de balanceamento do sistema? Entendemos que há características inerentes aos bens digitais que colocam a aplicação não adaptada desse instituto não mais como um elemento de equilíbrio e razoabilidade do sistema de propriedade intelectual, mas como um vetor de profundo desequilíbrio na direção pró-sociedade. Sem a pretensão de esgotá-las, enumeraremos três dessas características intrínsecas dos bens digitais que, ao nosso ver, recomendam adaptações à doutrina do esgotamento de direitos: (a) sua virtual imperecibilidade no tempo; (b) virtual ausência de custos para sua distribuição; (c) ausência de custos e de controle sobre a sua reprodução. Assim, primeiramente, se a doutrina do first-sale nos permite emprestar, doar, revender bens materiais que incorporam direitos imateriais sem que o titular destes direitos a isso se oponha, essa faculdade do adquirente está naturalmente limitada pela perecibilidade do bem. Outro aspecto da perecibilidade é a depreciação do valor do suporte físico ao longo do tempo, de modo que os vendedores de segunda-mão não competem diretamente com o titular de direitos, porque seus exemplares terão, naturalmente, menor atratividade, obrigando-os a reduzir os preços. O exemplar físico se danifica e, por óbvio, está sujeito à ação da natureza. Já no mundo digital, os bens são virtualmente imperecíveis, e um exemplar de segunda-mão é idêntico em aparência e qualidade a um exemplar obtido diretamente do titular, eliminando esse limite intrínseco que a própria constituição do suporte corpóreo apresenta. Ademais, para alcançarem grande penetração no mercado de consumo, bens materiais dependem de grande capilaridade de seus canais de distribuição, além de um investimento no efetivo transporte desses bens até que chegue ao seu destinatário final. O estabelecimento de um concorrente de peso no mercado de segunda mão, portanto, no mundo físico, custa razoável investimento. Não é assim, como sabemos, no mundo digital. Qualquer website, com custo mínimo, pode ter a mesma eficiência de distribuição6 de um grande revendedor de livros, de modo que uma venda de segunda-mão terá, neste ponto, não só um produto tão bom quanto o exemplar primígeno, mas também uma rede de distribuição tão confortável e eficiente quanto o titular pode ter, podendo com ele competir diretamente. Por fim, a terceira característica intrínseca desses bens digitais que queremos explorar é a virtual ausência de custos de reprodução dos bens digitais e a inviabilidade de um controle de cópias que garanta que uma revenda desse bem digital seria seguida de deleção garantida do suporte do primeiro comprador. Se no mundo tangível a cópia idêntica é cara, e a revenda do exemplar original autoexecuta a indisponibilidade daquele mesmo exemplar para o comprador original, sabemos que no mundo eletrônico essa realidade não existe. O revendedor torna-se, potencialmente, portanto, fonte inesgotável de exemplares, tal qual o titular dos direitos intelectuais. Essas três características intrínsecas dos bens digitais alargam sobremaneira o vetor pró-sociedade proposto pelo mecanismo de exaustão de direitos de propriedade intelectual, convertendo-o não em um fator de equilíbrio, mas de descompasso de forças, porque investe o comprador primário de poderes que em realidade o colocariam muito próximo da condição de titular dos direitos intelectuais, e não de simples apoderado sobre o suporte físico da obra. É indevida transformação de um mecanismo de balanceamento do sistema em ameaça ao próprio exclusivo garantido constitucionalmente, de modo que nos pareceria razoável que a tradução dessa doutrina para a economia de bens digitais sofresse adequada adaptação, sob pena de colocarmos em cheque a viabilidade econômica desse modelo digital. Nas partes II e III deste artigo, a serem publicadas sequencialmente, debateremos aspectos específicos da doutrina de exaustão de direitos e o cenário internacional dessa discussão. Até lá! __________ 1Há um interessante documentário sobre o Sr. Luiz e o Sebo Ornabi no TV Migalhas. Tivemos o prazer de compartilhar boas horas com essa personagem da vida quotidiana do centro de São Paulo, que em qualquer momento do dia podia ser encontrada em uma escrivaninha encrustrada em meio a seus livros raros, ouvindo jazz e folheando ad aeternum algum belo exemplar. 2A nossa lei de Propriedade Industrial (lei 9.279/96) positiva o conceito nos artigos 43, IV, e 132, III, quando diz que o titular da patente ou da marca não poderá impedir a livre circulação de produto que diretamente colocou no mercado ou que foi colocado no mercado com o seu consentimento. 3É verdade que a doutrina autoralista se refere à distribuição como algo que só se passaria com exemplares "materiais", e que as discussões que antecederam o tratado da OMPI, apesar de chegarem à ideia de colocação à disposição do público, acomodaram a transmissão de obras online no gênero de comunicação ao público. Parece-nos (e muito bem acompanhados estamos nesse parecer), entretanto, uma figura que não se encaixa perfeitamente em nenhuma categoria de uso previamente existente, já que nela se combinam características presentes em todos os grandes grupos de direitos do autor. No download, há fixação da obra no suporte físico do destinatário e transmissão dessa obra à distância. Há também reproduções meramente técnicas no curso da transmissão. Assim, para a análise zetética da exaustão de direitos feita neste artigo, não poderíamos sair com a simplista afirmação de que se não há distribuição, não há exaustão, porque com a insuficiente peneira das definições abstratas pretenderíamos tampar um sol de inegáveis concretudes que as infirmam. 4Consultamos, igualmente, termos e condições das lojas da Apple, Amazon, Microsoft e Kobo. 5São incontáveis as simplificações do encerramento deste conceito, mas a ideia mestra da ideia da propriedade intelectual somo sistema está preservada nessas breves linhas. 6Vide nota de rodapé número 4 para um esclarecimento terminológico e para entender a motivação da liberdade de uso deste termo.