COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Processo e Procedimento >
  4. A inusitada proibição dos recursos parciais pelo STJ

A inusitada proibição dos recursos parciais pelo STJ

quarta-feira, 14 de março de 2018

Atualizado às 08:51

Jorge Amaury Maia Nunes e Pablo Bezerra Luciano1

A proposta do presente artigo é examinar algumas repetidas condutas do Superior Tribunal de Justiça, especificamente no concerne à rejeição, in genere, de procedimentos recursais aparentemente hígidos, naquilo que parece ser mais um capítulo da chamada jurisprudência defensiva, cujo evidente objetivo é diminuir a carga do estoque de processos em exame nos chamados Tribunais Superiores.

Quando se discute a natureza jurídica do recurso, parece ser de trivial conhecimento no círculo dos curiosos do Direito, que recurso é simples continuação do exercício do direito de ação, em fase posterior do procedimento.

Essa caracterização prevalece no Direito brasileiro e enseja alguns interessantes desdobramentos, o mais importante dos quais relativo a certa classificação dos recursos. Com efeito, a doutrina costuma classificar os recursos em (i) ordinários e extraordinários; (ii) de fundamentação livre e de fundamentação vinculada; (iii) totais e parciais. Importa-nos, para os fins deste artigo, o último critério classificatório.

Pelo critério da abrangência, os recursos podem ser classificados em "totais" ou "parciais". "Total" é aquele recurso por meio do qual se impugna a totalidade da decisão recorrida; por sua vez, "parcial" é o recurso que impugna apenas parte da decisão2. Nas palavras de Barbosa Moreira, "classificar-se-á como parcial o recurso que, em virtude de limitação voluntária, não compreenda a totalidade do conteúdo impugnável da decisão"3.

Essa tradicional forma de classificação doutrinária dos recursos sempre ostentou amparo legislativo nos três Códigos de Processo brasileiros.

O Código de Processo Civil de 1939 (CPC/1939) previa, em seu art. 811, que "a sentença poderá ser impugnada no todo ou em parte, presumindo-se total a impugnação quando o recorrente não especificar a parte de que recorre". Semelhantemente, o Código de Processo Civil de 1973 (CPC/1973) consignava que seu art. 505 que "a sentença pode ser impugnada no todo ou em parte" e, no caput do art. 515, dispunha que "a apelação devolverá ao tribunal o conhecimento da matéria impugnada", e exclusivamente da matéria impugnada - acresce-se. Por fim, o Código de Processo Civil de 2015 (CPC/2015), atualmente vigente, repete as mesmas fórmulas ao dispor que "a decisão pode ser impugnada no todo ou em parte" (art. 1.002) e que "a apelação devolverá ao tribunal o conhecimento da matéria impugnada" (art. 1.013).

Tais disposições legislativas sobre a admissibilidade de recursos parciais, em rigor, não passam de um desdobramento lógico do princípio da demanda ou da iniciativa da parte, segundo o qual a jurisdição só pode ser exercida quando as partes se animarem a tanto, e nos limites por elas determinados4. O Judiciário, sendo inerte, não pode e não deve, ele mesmo, criar, ­nem mesmo estimular, direta ou indiretamente, a litigiosidade. Sendo o recurso um prolongamento do direito de ação, é então natural aplicar-lhe as mesmas diretrizes relacionadas à propositura da demanda, de modo que o órgão recursal encontra-se limitado tanto pela iniciativa como pelo conteúdo da insurreição da parte, não podendo nem devendo decidir fora do pedido recursal.

Todavia, esse não tem sido o entendimento de parcela considerável dos integrantes do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que, em função de uma compreensão extremamente alargada da dialeticidade recursal, tem entendido que o recorrente tem o ônus de impugnar todos os fundamentos das decisões recorridas, sem perquirir se o fundamento decisório se refere ou não à parte da decisão que efetivamente foi objeto do recurso. Essa postura jurisprudencial, como se demonstrará, longe de fomentar um ambiente jurídico-processual saudável, torna a caminhada processual uma via repleta de espinhos e insatisfações, e é responsável por criar litigiosidades absolutamente desnecessárias.

Não se desconhece nem se desconsidera que, em matéria de recursos, o processo civil brasileiro tradicionalmente não autoriza que decisões judiciárias sejam questionadas sem a devida fundamentação. Não basta pedir a reforma ou a anulação das decisões judiciárias. É preciso mais: o recorrente deve atacar especificamente os fundamentos das decisões recorridas, caso queira que seu recurso seja conhecido. É o que se conclui a partir da leitura do art. 514, II, do CPC/1973 e do art. 1.010, II, do CPC/2015, que impõem ao apelante (e de resto a todo recorrente) o dever de indicar os fundamentos/razões de sua insurgência. Assim, diante da improcedência de seu pedido, não deve o autor apelar mediante o expediente de reiterar os fundamentos da petição inicial, sem realizar adequada atividade crítica sobre o que foi escrito na sentença; e, do mesmo modo, diante da procedência do pedido, não pode o réu apelar, sem criticar a sentença. Exige-se dos recorrentes, na esteira do art. 514, II, do CPC/1973 e do art. 1.010, II, do CPC/2015, a satisfação da dialeticidade, a qual, em doutrina, é classificada como requisito recursal formal. A conferir o entendimento de Barbosa Moreira:

"Regularidade formal - Como os atos processuais em geral, a interposição de recurso há de observar determinados preceitos de forma, que variam de uma para outra figura recursal. Requisitos constantes são o da forma escrita (exceção: art. 523, § 3º, na redação da Lei nº 11.187) e o da fundamentação do recurso na petição de interposição, o qual se deve considerar implícito nos poucos casos em que a lei não o formula expressamente5".

Frise-se que esse dever de fundamentar o recurso é qualificado: há de se consubstanciar numa crítica ao ato judicial combatido. Outra não é a compreensão de Cândido Dinamarco e Bruno Lopes:

"A regularidade formal do recurso interposto está na observância dos requisitos impostos pela lei em relação às diversas espécies recursais. Como regra geral, todas as peças de interposição, ou razões recursais, devem nomear e qualificar as partes, desenvolver uma crítica objetiva à decisão recorrida, formular um concreto pedido de nova decisão etc (CPC, arts. 1.010, 1.016 etc.6)."

Cumpre ao recorrente, em suas razões, demonstrar que a decisão recorrida não é a mais correta. Para tanto, não lhe aproveita o expediente de meramente repetir os argumentos expendidos em anterior manifestação, quando não existia ainda uma decisão. Apelar por meio de remissões à exordial, à contestação ou a outra petição qualquer é expediente comodista e desidioso que dificulta a intelecção da instância ad quam dos contornos do inconformismo recursal, e que contribui para o atual estado descalabro processual brasileiro7.

Foi a compreensão sobre o significado da regra da dialeticidade recursal que levou a Corte Especial do STJ a aprovar, na sessão de 5 de fevereiro de 1997, o Enunciado nº 182 de sua Súmula de Jurisprudência, com os seguintes dizeres: "é inviável o agravo do art. 545 do CPC que deixa de atacar especificamente os fundamentos da decisão agravada". Esse correto entendimento jurisprudencial, que decorria de dispositivos como o do art. 514, II, do CPC/1973, veio em reação ao já citado expediente comodista e desidioso de muitos causídicos que, ao elaborar agravo de instrumento contra decisão de inadmissão de recurso especial ou agravo regimental contra decisão monocrática de relator no STJ, limitavam-se a transcrever a integralidade do recurso obstado, não conhecido ou desprovido, como se a decisão recorrida fosse um nada ou indigna de qualquer consideração específica e direta8.

Após a aprovação do enunciado  182 da súmula do STJ, o legislador, sensibilizado, houve por bem deixar fora de dúvidas a necessidade de satisfação, pelos recorrentes, da regra da dialeticidade, por meio da aprovação da Lei nº 12.322, de 9 de setembro de 2010, que, entre outras providências, com a nova regra do inciso I, do § 4º do art. 545 do CPC/1973, explicitou a possibilidade de negativa de seguimento a agravo em recurso especial e em recurso extraordinário que não houvesse atacado especificamente os fundamentos da decisão agravada.

Naturalmente, a imputação às partes do ônus da dialeticidade recursal não significa que o trânsito regular dos recursos esteja condicionado ao rebate de "todos" os fundamentos das decisões recorridas. Como são permitidos pela legislação positivada os chamados "recursos parciais", deve o recorrente se esmerar por atacar os fundamentos capazes de manter, por si sós, o capítulo decisório recorrido. Além disso, não é necessário, logicamente, impugnar aqueles fundamentos exemplificativos, ilustrativos, expletivos, acessórios ou subordinados ao fundamento decisório determinante, desde que esse seja integralmente rebatido pelo recorrente.

Entretanto, como se disse, para parcela considerável dos julgadores do STJ, a regra da dialeticidade recursal consubstanciada no enunciado 182 de sua súmula, é tão abrangente que torna virtualmente impossíveis os recursos parciais.

Esse entendimento jurisprudencial costumeiramente busca amparo nos dizeres do inciso I do § 4º do art. 544 do CPC/1973 e do § 1º do art. 1.021 do CPC/2015 (que reproduziu a orientação do Código revogado), bem como no já mencionado Enunciado nº 182 da súmula-STJ. Todavia, esse entendimento desgarra-se amplamente do CPC/1973, do CPC/2015 e mesmo do enunciado 182 da súmula-STJ, a começar pela circunstância de que nem as duas regras legislativas e nem a orientação jurisprudencial tiveram a impropriedade de exigir textualmente a impugnação de "todos" os fundamentos das decisões recorridas como condição para a admissibilidade de recursos.

Senão vejamos que, ao possibilitar ao relator do STF ou do STJ não conhecer o recurso de agravo em recurso especial ou em recurso extraordinário que não hajam logrado impugnar os fundamentos da decisão recorrida, o legislador do CPC revogado não utilizou a expressão "todos os fundamentos":

"Art. 544. Não admitido o recurso extraordinário ou o recurso especial, caberá agravo nos próprios autos, no prazo de 10 (dez) dias.

[...]

§ 4o No Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça, o julgamento do agravo obedecerá ao disposto no respectivo regimento interno, podendo o relator:

I - não conhecer do agravo manifestamente inadmissível ou que não tenha atacado especificamente os fundamentos da decisão agravada;"

Do mesmo modo, na regra do § 1º do art. 1.021 do CPC/2015 exige-se, singelamente, que em agravos internos haja impugnação dos fundamentos da decisão agravada, sem utilização da palavra "todos", verbis:

"Art. 1.021. Contra decisão proferida pelo relator caberá agravo interno para o respectivo órgão colegiado, observadas, quanto ao processamento, as regras do regimento interno do tribunal.

§ 1o Na petição de agravo interno, o recorrente impugnará especificadamente os fundamentos da decisão agravada."

Semelhantemente, não existe também a palavra "todos" na redação do enunciado 182 da súmula-STJ.

Seria realmente rebarbativo se o mesmo legislador que havia assegurado a viabilidade de recursos parciais houvesse estipulado uma regra antagônica a tal diretriz (até porque não se presumem antinomias entre os fragmentos de um mesmo codex), impondo aos recorrentes o ônus de rebater não somente aqueles fundamentos relacionados à parte ou capítulo decisório impugnado, mas também contra todos os demais fundamentos, inclusive quanto àqueles do capítulo não impugnado. E mesmo se o legislador houvesse cometido a impropriedade de utilizar a expressão "todos os fundamentos" no inciso I do § 4º do art. 544 do CPC/1973 ou no § 1º do art. 1.021 do CPC/2015, a única interpretação logicamente possível seria aquela que restringisse o conteúdo semântico da expressão, de modo a que se entender que o recorrente tem o ônus de rebater todos os fundamentos "do capítulo decisório impugnado". Do contrário, uma interpretação que se aferrasse à literalidade estrita da hipotética expressão "todos os fundamentos" reduziria a nada tanto a regra do art. 505 do CPC/1973 quanto a regra do art. 1.002 do CPC/2015. Em poucas palavras: seria interpretar o CPC/1973 e o CPC/2015 contra os ideais de cientificidade e sistematicidade de qualquer lei que se pretenda ser conhecida como um "código".

Com efeito, uma breve pesquisa jurisprudencial no sítio do STJ pela expressão "todos os fundamentos da decisão" começa por revelar que aparentemente o tribunal tem mesmo lido as regras do inciso I do § 4º do art. 544 do CPC/1973 e § 1º do art. 1.021 do CPC/2015 com a inserção da palavra "todos", pois, nos resultados obtidos, encontram-se assombrosos 1.631 acórdãos e 269.069 decisões monocráticas.

Uma pesquisa mais detalhada confirma essa primeira impressão, a exemplo do que se pode perceber da leitura do inteiro teor do acórdão unânime no Agravo Regimental (AgRg) no Agravo em Recurso Especial (AREsp) 68.639/GO, apreciado pela Segunda Turma, na sessão de 13 de dezembro de 2011, cujo relator foi o Min. Mauro Campbell Marques. Na ocasião, de acordo com sucinto relatório ofertado pelo Relator, a União apresentara agravo interno contra decisão monocrática que aplicara a diretriz do art. 544, § 4º, I, do CPC/1973 para negar conhecimento a agravo em recurso especial. De acordo com o relatório, a União sustentou no agravo interno que "houve combate à alegada incidência da súmula 7/STJ e que a Súmula n. 182/STJ só se aplica nas hipóteses em que existem duas ou mais fundamentações relativas ao mesmo tópico". Assim, pelo que é possível compreender do relatório, estávamos diante de um agravo que havia combatido apenas um ou alguns dos capítulos da decisão da origem que havia negado seguimento ao recurso especial, não impugnando outros capítulos decisórios. Todavia, a circunstância da pluralidade de capítulos decisórios foi tida como indiferente pelo Relator e, de resto, pelos demais membros da Segunda Turma, pois se entendeu que a parte teria o ônus de impugnar "todos os fundamentos da decisão agravada", senão, vejamos:

"Na ausência de combate específico aos argumentos da decisão agravada, incidem, no caso, a Súmula n. 182 desta Corte Superior (por analogia), segundo a qual '[é] inviável o agravo do art. 545 do CPC que deixa de atacar especificamente os fundamentos da decisão agravada' e o art. 544, § 4º, inc. I, do CPC.

A parte deve impugnar todos os fundamentos da decisão agravada, autônomos ou não, pois não existe identidade entre a lógica da Súmula n. 182/STJ e a da Súmula n. 283 do STF, uma vez que o conhecimento, ainda que parcial do agravo em especial, obriga a Corte a conhecer de todos os fundamentos do especial, inclusive os não impugnados de modo específico."

A intelecção do julgado acima não é tão fácil, na medida em que o Tribunal não indicou o fundamento normativo para a assertiva de que "o conhecimento, ainda que parcial do agravo em especial, obriga a Corte a conhecer de todos os fundamentos do especial, inclusive os não impugnados de modo específico". Não se sabe, por exemplo, qual dispositivo do CPC/1973 autorizaria essa regra. Por outro lado, não parece existir nenhuma incompatibilidade do princípio da demanda aplicado aos recursos, plasmado no art. 505 do CPC/1973, ao recurso de agravo em recurso especial. Assim, por exemplo, se inconformada com um acórdão em apelação, a parte apresenta recurso especial com alegações de violação à legislação federal e de divergência jurisprudencial, e o presidente do Tribunal recorrido nega seguimento ao recurso especial, apresentando fundamentos contra as duas alegações recursais, pode legitimamente o interessado apresentar agravo para destrancar seu recurso especial apenas quanto à alegação de violação à legislação federal, deixando preclusa a alegação de divergência jurisprudencial, porque, por exemplo, convenceu-se de que não tinha razão no recurso especial quanto a esse aspecto. Em tal caso, se o STJ vier a conhecer o agravo em recurso especial, não poderá apreciar a alegação de divergência jurisprudencial, pois a parte interessada não se interessou em devolver essa questão a um novo conhecimento judicial.

Situação bastante semelhante ocorreu em 5 de novembro de 2015, quando do julgamento, pela Segunda Turma, do AgRg no AREsp nº 701.404/SC, que contou com a relatoria da Min. Assusete Magalhães. Na oportunidade, pelo que se depreende do relatório, a presidência do Tribunal a quo havia negado seguimento ao recurso especial da Fazenda Nacional ao entendimento de que não teria havido violação ao disposto no art. 535 do CPC/1973 (que tratava dos embargos de declaração) e que, quanto à matéria de fundo, incidira o óbice do Enunciado nº 7 da Súmula-STJ, que impossibilita a apreciação de material fático-probatório em recurso especial. Inconformada, a Fazenda Nacional apresentou agravo para destrancar seu recurso especial apenas no que tange à matéria de fundo, tentando demonstrar que não incidira o Enunciado nº 7 da Súmula-STJ, deixando então de tentar anular o acórdão originário por infringência ao art. 535 do CPC/1973. Todavia, monocraticamente, o Min. Francisco Falcão negou seguimento ao agravo em recurso especial da Fazenda Nacional por considerar que seria indispensável impugnar também os fundamentos relacionados à ausência de violação ao disposto no art. 535 do CPC/1973, o que justificou a apresentação de subsequente agravo regimental, no qual se argumentou que "a impugnação apenas ao segundo fundamento, portanto, que é suficiente para modificar o acórdão regional, demonstra o interesse da Fazenda Nacional apenas na reforma do julgado". No julgamento turmário, a Segunda Turma negou provimento ao agravo regimental da Fazenda Nacional, repisando a aplicação ampliativa do Enunciado nº 182 da Súmula-STJ, uma vez que a decisão que não admitira o recurso especial na origem não fora integralmente objeto de impugnação em sede de agravo.

O caso do AgRg no AREsp 701.404/SC é bastante representativo, pois, bem ou mal, tornou-se praxe a inclusão pelos advogados em boa parte dos recursos especiais a alegação de que o tribunal de origem violou o dispositivo legal que trata dos embargos de declaração, ao rejeitá-los de modo padronizado com a clássica assertiva de que "não há omissão, contradição ou obscuridade; o que o embargante pretende é a reforma do julgado, o que não é possível de se obter em sede de embargos de declaração". Assim, para além da alegação de violação ao dispositivo X da lei federal Y, que, no entender do recorrente, deveria incidir para reger materialmente a situação controvertida, é comum vermos alegação preliminar relacionada a error in procedendo de violação ao disposto no art. 535 do CPC/1973 ou no art. 1.022 do CPC/2015, que deve ser objeto de deliberação também preliminar pelo órgão julgador.

Nessas situações, é bastante corriqueiro que o tribunal de origem, ao exercer o juízo de admissibilidade do recurso especial, negue a ocorrência de violação ao art. 535 do CPC/1973 ou ao art. 1.022 do CPC/2015, e diga também que o dispositivo legal de regência material da causa também não foi vulnerado. Assim, não é raro que os interessados, convencidos do acerto da decisão unipessoal ou cansados de postular em torno do art. 535 do CPC/1973 ou do art. 1.022 do CPC/2015, apresentem agravo em recurso especial com argumentos tendentes a desconstruir apenas a parte da decisão de inadmissão que havia apreciado a alegação de vulneração ao dispositivo legal que, no entender do recorrente, deveria incidir materialmente na causa, deixando preclusa a alegação de error in procedendo. Nessas situações, a inadmissão, no STJ, do agravo parcial em recurso especial é certa ou quase certa, na esteira de uma interpretação enormemente ampliativa do conteúdo do Enunciado nº 182 da Súmula-STJ, porque não houve impugnação dos fundamentos relacionados à ausência de vulneração do art. 535 do CPC/1973 ou do art. 1.022 do CPC/2015, o que, reflexamente, significa proibir a apresentação de recursos parciais.

Falou-se em inadmissão "quase certa" porque, em alguns julgados pontuais, essa interpretação enormemente ampliativa do Enunciado nº 182 da Súmula-STJ não ocorreu. Foi o que se registrou quando da apreciação dos Embargos de Declaração (EDcl) no AREsp nº 405.570/RJ, em 13 de maio de 2014, pela Quarta Turma, que contou com a relatoria e voto vencedor do Min. Luis Felipe Salomão, no qual se teve o cuidado de analisar se a decisão recorrida era ou não composta de capítulos autônomos, para então se decidir, num segundo momento lógico, se a falta de ataque desse ou daquele fundamento decisório justificaria a inadmissão do agravo em recurso especial9.

Na hipótese acima mencionada, excepcionalmente o STJ bem diferenciou "capítulo decisório autônomo" de "fundamentos autônomos", deixando de baralhar os dois conceitos inconfundíveis. Com efeito, assim como as demandas, que podem conter um, dois, ou vários pedidos, as decisões judiciais podem ser compostas de um, dois, ou vários capítulos. E cada capítulo pode conter um, dois ou vários fundamentos, autônomos ou subordinados entre si. Autônomo é aquele fundamento que sustenta, por si só, a conclusão. Subordinado é o fundamento que, sendo incapaz de sustentar, por si só, a conclusão, apenas reforça o argumento principal ou subordinante.

Quando uma determinada decisão é composta por mais de um capítulo autônomo, cada um desses pode dar ensejo a um tópico recursal próprio, sendo então indispensável que o recorrente impugne todos os fundamentos lançados na decisão que autonomamente possam sustentá-la na parte impugnada. Não precisa o recorrente rebater todos os fundamentos subordinados, desde que impugne o fundamento subordinante relacionado ao capítulo decisório impugnado. Optando por recorrer apenas parcialmente da decisão (art. 1.002 do CPC), não recai nem pode recair sobre o recorrente o ônus de rebater aqueles fundamentos decisórios pertinentes ao capítulo que não foi objeto de recurso, sejam esses fundamentos subordinados ou subordinantes.

Confusão conceitual à parte, parece que o STJ, na generalidade dos casos, não tem procurado fazer distinção entre "capítulo decisório" e "fundamento decisório". Diz-se "parece" porque a leitura do inteiro teor dos acórdãos não deixa evidente se a aplicação draconiana das regras do inciso I do § 4º do art. 544 do CPC/1973 e § 1º do art. 1.021 do CPC/2015, plasmadas no Enunciado nº 182 da Súmula do STJ, deu-se em contextos nos quais os recorrentes deixaram de rebater todos os fundamentos do capítulo decisório impugnado. Em geral, o que parece ocorrer é uma insensível contagem do número dos fundamentos decisórios em cotejo com o número dos fundamentos impugnados nos recursos, sem qualquer debate ou consideração sobre as regras do art. 505 do CPC/1973 e do art. 1.002 do CPC/2015, que legitimam expressamente os chamados "recursos parciais". Caso não haja impugnação do fundamento A relativo ao capítulo decisório X, na prática do STJ, segue-se a negativa de conhecimento do recurso que se limitou a impugnar todos os fundamentos do capítulo decisório Y.

Porém, cabe o registro de que, durante o julgamento do Agravo Interno no Recurso Especial 1.422.815/SP, concluído em 23 de maio de 2017, num raro caso em que um Relator veio a ser vencido, a Primeira Turma, pelo voto do Min. Sérgio Kukina que compôs a maioria vencedora, houve por bem iluminar a aplicação da regra do § 1º do art. 1.021 do CPC/2015 e do Enunciado 182 da Súmula-STJ pela regra do art. 1.002 do CPC/2015, refletindo que a falta de impugnação ao fundamento relativo à violação ao art. 535 do CPC/1973 não poderia ensejar o não conhecimento do agravo interno, na medida em que a alegação em questão teria se dado de forma apenas subsidiária. Senão, vejamos trecho elucidativo do voto do Min. Sérgio Kukina:

"A questão da incidência da Súmula 182/STJ, efetivamente, continua sendo objeto de debates neste Colegiado e, em situações como a versada nestes autos, tenho registrado que a circunstância de não ter havido ataque específico ao tópico da decisão que apreciou a preliminar de violação ao artigo 535 do CPC/73, autônoma em relação à questão de mérito suscitada no subjacente recurso especial, não impede que o agravo interno possa ser conhecido. No ponto, aliás, não se pode ignorar a regra reeditada no art. 1.002 do CPC/2015, segundo a qual 'A decisão pode ser impugnada no todo ou em parte'.

De fato, no caso dos autos, nada obstava que as agravantes, como acabaram por fazer, deliberassem devolver a este colegiado apenas a discussão relativa à incidência da Súmula 7/STJ.

Entretanto, não ouso emitir posição peremptória sobre o tema, pois aguardo a Corte Especial deste Tribunal concluir o conjunto julgamento dos EAREsp 701.404/SC e EAREsp 831.326/SP, ambos da relatoria do Ministro João Otávio de Noronha, iniciado em 5/4/2017, em que será definido o exato alcance a ser dado ao óbice processual contido na Súmula 182/STJ".

Conforme mencionado pelo Min. Sérgio Kukina, pendem de julgamento perante a Corte Especial os EAREsp 701.404/SC e 831.326/SP, ambos apresentados pela Fazenda Nacional, nos quais o STJ terá a oportunidade de interpretar as regras do inciso I do § 4º do art. 544 do CPC/1973 e do § 1º do art. 1.021 do CPC/2015 e do Enunciado nº 182 da Súmula-STJ, sem a inclusão da palavra "todos", e em harmonia com as regras dos arts. 505 do CPC/1973 e do art. 1.002 do CPC/2015, que, em desdobramento óbvio do princípio da demanda, reconhecem ao interessado a faculdade de recorrer no todo ou em parte das decisões.

Até lá, a aplicação automatizada e ampliativa do inciso I do § 4º do art. 544 do CPC/1973 e do § 1º do art. 1.021 do CPC/2015 e do Enunciado nº 182 da Súmula-STJ, é preciso reconhecer, já terá causado danos incomensuráveis ao ambiente jurídico-processual brasileiro, pois a criação de jurisprudência dita "defensiva" geralmente redunda na criação de uma advocacia também "defensiva", ambas extremamente maléficas à eficiência e legitimidade do sistema de justiça brasileiro. Nesse sentido, basta imaginar que, diante da proverbial dificuldade de se romper as muitas barreiras jurisprudenciais ao conhecimento de recursos especiais, mesmo eventualmente convencidas do acerto de certos capítulos de decisões de inadmissão dos recursos, as partes, por prudência, serão levadas a impugnar em agravo mesmo aqueles fundamentos relacionados ao capítulo decisório que, não fosse pela jurisprudência "defensiva" do STJ, ficaria precluso, tudo para garantir a sobrevivência daquela insurgência que o recorrente considera mais relevante. Trata-se de um enorme estímulo à eternização dos processos e à criação de insatisfações recursais meramente formais, que gera, como normalmente gera a jurisprudência dita "defensiva", mais litigiosidade e assoberbamento do próprio STJ.

__________

1 O autor bacharel em Direito pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e advogado.

2 Esse é o entendimento, por exemplo, de um dos autores deste trabalho: "antiga lição de doutrina classifica os recursos em totais e parciais, conforme esses defiram ataque contra todo o conteúdo da decisão recorrida que seja adverso ao interesse da parte ou apenas contra uma parcela da decisão desfavorável" (NUNES, Jorge Amaury. Art. 1.002. In: Streck, Lenio Luiz. NUNES, Dierle; CUNHA, Leonardo (orgs.). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva: 2016. p. 1319).

3 Comentários, , vol V. Rio de Janeiro: Forense, 3ª. edição, 1978, p. 287.

4 Vai nesse sentido a seguinte lição de Dinamarco, relativa ao que dispunha o Código de Processo Civil de 1973: "A mais severa das limitações que o devido processo legal impõe ao exercício da jurisdição é a rígida proibição de exercê-la sem iniciativa de um sujeito que peça a tutela jurisdicional (CPC, arts. 2º e 262). Essa exigência é imposta em atenção à necessidade de preservar a imparcialidade do juiz e à inconveniência social de realizar processos para uma possível tutela a quem não se animou a pedi-la" (DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. V. 2. 6ª ed. Malheiros: 2009, p. 42-3).

5 MOREIRA, José Carlos Barbosa. O Novo Processo Civil Brasileiro. 29 ed. São Paulo: Forense, 2012, p. 119.

6 DINAMARCO, Cândido; LOPES, Bruno Vasconcelos Carrilho. Teoria Geral do Novo Processo Civil. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 210-216.

7 Nesse sentido, não é de se espantar que a jurisprudência do STJ entenda corretamente pela necessidade de que os fundamentos das decisões recorridas sejam contrastados em sede recursal, sob pena de não conhecimento: REsp 199800247637, Rel. Min. Garcia Vieira, Primeira Turma, 14/09/1998; REsp 620558/MG, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, DJ 20/06/2005, p. 212; REsp 775.481/SC, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 20.10.2005, DJ 21.11.2005 p. 163; RESP 200801840194, Rel. Min. Eliana Calmon, STJ - Segunda Turma, 14/12/2009.

8 Eis os julgados indicados no rol daqueles que deram origem ao Enunciado nº 182 da Súmula do STJ: AgRg no Ag 60114 SP, Rel. Min. Cid Flaquer Scartezzini, Quinta Turma, julgado em 06/02/1996, DJ 04/03/1996; AgRg no Ag 86073 GO, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 28/11/1995, DJ 05/02/1996; AgRg no Ag 76947 RJ, Rel. Min. Demócrito Reinaldo, Primeira Turma, julgado em 22/11/1995, DJ 18/12/1995; AgRg no Ag 73965 MG, Rel. Min. Barros Monteiro, Quarta Turma, julgado em 21/11/1995, DJ 05/02/1996; AgRg no Ag 84567 GO, Rel. Min. José de Jesus Filho, Primeira Turma, julgado em 20/11/1995, DJ 05/02/1996; AgRg no Ag 85177 SP, Rel. Min. William Patterson, Sexta Turma, julgado em 20/11/1995, DJ 12/02/1996; AgRg no Ag 85146 SP, Rel. Min. José Dantas, Quinta Turma, julgado em 06/11/1995, DJ 27/11/1995; AgRg no Ag 74424 SP, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, Primeira Turma, julgado em 25/10/1995, DJ 04/12/1995; AgRg no Ag 68098 GO, Rel. Min. Claudio Santos, Terceira Turma, julgado em 26/09/1995, DJ 23/10/1995; AgRg no Ag 66788 GO, Rel. Min. Salvio de Fiqueiredo Teixeira, Quarta Turma, julgado em 08/08/1995, DJ 11/09/1995; AgRg no Ag 46262 SP, Rel. Min. Anselmo Santiago, Sexta Turma, julgado em 13/06/1995, DJ 30/10/1995; AgRg no Ag 52694 SP, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, julgado em 13/06/1995, DJ 21/08/1995; AgRg no Ag 65810 GO, Rel. Min. Waldemar Zveiter, Terceira Turma, julgado em 29/05/1995, DJ 07/08/1995; AgRg no Ag 34187 GO, Rel. Min. Antonio Torreão Braz, Quarta Turma, julgado em 28/02/1994, DJ 11/04/1994.

9 Na ementa desse julgado consta o seguinte trecho: "2. A Súmula 182/STJ e a nova redação atribuída ao art. 544, § 4º, inciso I, do CPC são pregoeiras do princípio da dialeticidade recursal, cujo conteúdo indica que, à falta de impugnação a fundamento suficiente para manter a decisão recorrida, esta subsiste por si só, tal como já constava na Súmula n. 283/STF: 'É inadmissível o recurso extraordinário, quando a decisão recorrida assenta em mais de um fundamento suficiente e o recurso não abrange todos eles'. Tais hipóteses se verificam quando há fundamentos sobrepostos, no mesmo tópico da decisão impugnada, suficientes à sua manutenção, de modo que o recurso deverá, obrigatoriamente, abranger todos eles. 3. Coisa diversa ocorre quando há capítulos autônomos na decisão recorrida, cada qual suficiente para desencadear um tópico recursal próprio, cujo acolhimento tem o condão de reformar o acórdão por completo ou parcialmente, independentemente de recurso contra os demais capítulos. Tal situação, ao reverso das hipóteses subjacentes às Súmulas n. 182/STJ e 283/STF, encontra-se disciplinada pelas Súmulas n. 292 e 528/STF."

LEIA MAIS