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As natimortas resoluções Conama 302 e 303/02 e a segurança jurídica

A catástrofe lamentada nos últimos dias simplesmente não existe e não existirá, porque o arcabouço legislativo assim não permite.

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Atualizado às 16:07

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Desde a última segunda-feira, dia 28.9.2020, quando na 135ª reunião ordinária do CONAMA foram expressamente revogadas as suas resoluções 302 e 303, ambas de 2002, um dos temas mais comentados e repetidos (sem muitas reflexões) é que estão sendo sacrificados os manguezais e as restingas e que ficarão desprovidos de proteção com o decaimento das ditas resoluções.

É claro que algumas medidas que vêm sendo adotadas no âmbito governamental, sobretudo a intensificação de legislar por medidas provisórias, instruções normativas, entre outras, têm gerado uma certa desconfiança. Mas nesse momento é importante separarmos o joio do trigo e analisarmos do ponto de vista jurídico, especialmente se queremos manter a nossa Constituição em pé.

Pode ser verdade também que o Conama é hoje formado por maioria do Governo. Mas isso, por si só, não pode servir de argumento para se tirar a importância e a legitimidade da decisão exarada por aquele Conselho. Aliás, embora algumas medidas do Governo possam ser questionadas, neste caso, analisando-se estritamente o aspecto técnico-jurídico, essa medida foi das mais acertadas possíveis.

Uma das falácias que vêm sendo repetidas aos quatro ventos nos últimos dias é que o Governo forçou a votação em regime de urgência. Um simples acesso ao sítio do Conama e é possível se confirmar que se tratou de reunião ordinária, com pauta previamente estabelecida e publicada.

E, amparando a recente decisão do colegiado, encontra-se um parecer muito bem fundamentado da Advocacia Geral da União, que sugeriu a revogação expressa, apontando inclusive que todos os temas abordados pelas resoluções já são regulados por outras normas hierarquicamente superiores (leis, senhoras e senhores), o que torna aquelas resoluções totalmente desnecessárias. Ou seja, a área jurídica da União também se posicionou pela prescindibilidade de tais normas.

Além disso, dezenas de juristas, assim como nós, já discorreram sobre os desígnios inconstitucionais e ilegais de alguns artigos das citadas resoluções. Com efeito, em brevíssimas linhas, exemplificativamente, a resolução Conama 303/02 é ilegal e inconstitucional, porquanto ao regulamentar o antigo artigo 2º, alínea f, da então vigente lei Federal 4.771/65, inovou e ampliou o seu conceito. Segundo o artigo da lei, "caracterizavam-se como de preservação permanente as florestas e demais formas de vegetação natural 'nas restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues". Enquanto isso, a resolução trazia como APP também o espaço situado nas restingas "em faixa mínima de 300 metros, medidos a partir da linha de preamar máxima" (artigo 3º, inciso IX, alínea a, da resolução). Ou seja, se para a lei a condição para a caracterização de um determinado espaço como APP dependia da verificação da função - de fixação de dunas ou de estabilização de mangues -, para a resolução, além dessa hipótese, o conceito estaria alargado para todo e qualquer espaço dentro dos 300 metros litorâneos com presença de vegetação de restinga, independentemente da função de tal vegetação.

Ora, se a restinga (em seu sentido geomorfológico, de acordo com o texto da lei Federal 12.651/2012) exerce função de fixação de dunas ou de estabilização de mangues, não há que se falar em APP apenas nos 300 metros a partir da preamar, mas em toda a extensão em que se apresentar. De outro modo, se a lei (e tanto o Código Florestal de 1965 quanto o de 2012 vão nesse sentido) vincula a existência de função de fixação de dunas ou de estabilização de mangues para a caracterização das chamadas APPs de restinga, não seria uma resolução (ato normativo hierarquicamente inferior à lei federal) que poderia desvincular esse requisito, ampliando o conceito e, assim, criando novas restrições a direitos subjetivos, notadamente o de propriedade.

Acrescente-se que o Conama, ao inovar na ordem jurídica, desbordou de sua competência, pois, como órgão regulamentador, à luz da Constituição Federal, não lhe é dado editar normas com força de lei, o que é de incumbência do Poder Legislativo.

Nunca é demais lembrar que, segundo o princípio constitucional da legalidade: "Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;" (art. 5º, II, CF). Esta, aliás, a razão de o ADTC da CF/1988 estabelecer que após 180 dias de sua promulgação estavam revogados todos os dispositivos legais que atribuíam ou delegavam a órgão do Poder Executivo competência para ação normativa.

Por fim, com a superveniência do novo Código Florestal, instituído pela lei Federal 12.651/2012, que regulamentou por completo as hipóteses de área de preservação permanente, houve expressamente a revogação do fundamento de validade da aludida resolução (conforme seu artigo 83) que apoiava o nascimento e a sobrevida do referido ato infralegal. Fato é que perdeu ela toda e qualquer eficácia, não mais subsistindo no ordenamento jurídico.

Nesse contexto, a quem serviria o silêncio em lugar da revogação expressa das ditas normas? A discussão sobre o tema, com a pretensão de proibição de ocupação e até mesmo de demolição de edificações já erigidas em supostas APPs nos 300 metros litorâneos, é objeto de incontáveis casos em trâmite no Judiciário Brasil afora. A revogação expressa de tais atos é apenas um dos passos dados na direção da tão almejada e necessária segurança jurídica.

A par de há anos virmos sustentando a ilegalidade e a inconstitucionalidade das ditas resoluções, é fato que merece ser esclarecido a todos que tanto os manguezais continuam protegidos (Código Florestal - Lei 12.651/2012) como as restingas seguem à prova de sacrifícios (Lei da Mata Atlântica), mesmo sem as famigeradas resoluções vigorando. A catástrofe lamentada nos últimos dias simplesmente não existe e não existirá, porque o arcabouço legislativo assim não permite. Só não vê quem não quer ou tem outros motivos para querer ver diferente.

E a julgar pelas repercussões que já estamos vendo no Judiciário desde a revogação, a novela ainda está longe de acabar.

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t*Édis Milaré é advogado do escritório Milaré Advogados, professor e consultor em Direito Ambiental. Doutor e mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP. Foi secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo (1992/1994) e 1° coordenador das Promotorias de Justiça do Meio Ambiente do Estado de São Paulo.



t*Juliana Flávia Mattei é advogada do escritório Milaré Advogados, mestre em Direito Ambiental pela Universidade de Caxias do Sul. Especialista em Direito Processual Civil e Constitucional pela UFRGS. Graduada e especialista em Direito Ambiental pela UFPel.

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