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Contratos conscientes: Um convite para uma nova via de acesso à justiça

Ao desmistificar a ideia de que o Judiciário é a única forma de acesso à justiça, estimulamos o uso de métodos extrajudiciais, comprovadamente mais ágeis, econômicos e benéficos para ambas as partes.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Atualizado às 16:11

 (Imagem: Arte Migalhas)

(Imagem: Arte Migalhas)

Como você imagina a sua vida daqui a cinco anos? Esse é o prazo médio de duração de um processo, de acordo com o último "Justiça em números 2020", o relatório anual do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Ao optarmos pelo litígio judicial, a reboque abdicamos desse bem tão precioso para nós que é o tempo. Como vivemos e o que deixamos de viver em 5 anos à espera da resolução de um conflito pelos caminhos judiciais?

Somos permeados pela cultura de litigiosidade, que cresce continuamente em nosso país. Tal fenômeno tem origem múltipla e não será objeto de análise nesta exposição, mas pode ser facilmente constatado pelos números trazidos pelo CNJ anualmente. Ao mesmo tempo, vemos o pífio desempenho dos procedimentos conciliatórios disponibilizados pelo Poder Judiciário. Apenas 12,5% dos processos solucionados em 2019 utilizaram esta via.

Trata-se de um retrato nu e cru de quem somos nos momentos de desafio e dos valores que estamos sustentando como sociedade. Percebo que, ao optarmos pela litigiosidade em tal magnitude, estamos abrindo mão do protagonismo na condução da solução dos nossos problemas. Com a estatização de nossos conflitos, acabamos contribuindo para o aumento dos gargalos do Poder Judiciário e a burocratização do acesso à justiça, com os quais padecemos tanto como cidadãos.

Passamos a encarar o conflito apenas como uma situação negativa e disruptiva. Uma circunstância para provarmos quem tem razão em determinado fato, sem que possamos efetivamente rumar para o real cerne da contenda. Nesta toada, enxergamos o Poder Judiciário como via única para acessar justiça.

O relatório do CNJ é uma radiografia completa do Judiciário em um período precedente à pandemia do novo coronavírus. Em todas as instâncias de nossas vidas, ainda estamos experienciando a hecatombe que tem sido esse período. Contudo, os desafios também nos forçaram a olhar para essa realidade e compreender algo particularmente importante: a litigiosidade vem se alastrando como fogo ano após ano, mas parece que nos acostumamos com a toxidade de sua fumaça.

O Judiciário não deve ser a única via para o acesso à justiça

O último ano se revelou implacavelmente diante de nós. Inseridos dentro de uma narrativa econômica, social e jurídica únicas, limitamos nossas possibilidades de ação diante do imponderável.

Arraigados em conceitos de certo e errado, normal e esdrúxulo, fomos seguindo a vida na crença de que padrões e estruturas nos dão estabilidade. Chegada à pandemia, as certezas já não puderam mais nos consolar.

De forma inexorável, fomos obrigados a rever nossas vidas. Isso de imediato teve reflexos no Poder Judiciário, que logo se viu assolado por novas demandas que clamavam por soluções para as novas urgências trazidas pela pandemia.

Assim sendo, devemos parar para refletir: por que estamos apenas vendo uma possibilidade para cuidar das nossas querelas? O Judiciário não deve ser a única via para o acesso à justiça.

Trago aqui as inspiradoras palavras da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, quando abordou em um TED Talks o que ela intitula "O perigo de uma única história". Ela nos diz: "É impossível falar sobre uma única história sem falar sobre poder. Há uma palavra da tribo Igbo que eu lembro sempre que penso sobre estruturas de poder do mundo. Nkali é um substantivo que livremente se traduz 'ser maior que o outro'. Como nossos mundos econômicos e políticos, histórias também são definidas pelo princípio do nkali. Como são contadas, quem as conta, quando e quantas vezes histórias são contadas, tudo realmente depende do poder. Poder é a habilidade de não só contar a história de uma pessoa, mas de fazer a história definitiva daquela pessoa".

Observo que estamos presos a várias únicas narrativas e, com isso, deixamos de construir as nossas próprias histórias. Não existe apenas uma alternativa para buscar o equilíbrio nas relações, independentemente da natureza destas.

É preciso ressignificar o conflito

As incontáveis demandas judiciais anteriores agora são engrossadas por todos os casos ocorridos durante a pandemia. Os noticiários foram inundados de reportagens e artigos com os membros das mais altas cortes do país conclamando pela busca de caminhos para a solução das demandas.

Se o tempo médio de uma demanda já era uma questão de aflição, no momento atual revelou-se algo inadiável de se enfrentar. O próprio Judiciário buscou alternativas fora do litígio, como a criação do CMC - Centro de Mediação e Conciliação, responsável pela busca de soluções consensuais no Supremo Tribunal Federal (resolução 697 de 6 de agosto de 2020).

Diante disso, vemos que expandir para novos paradigmas é uma realidade inexorável. Aqui, recorro às lições sistêmicas de Bert Hellinger, que ensina que os conflitos começam na alma, acontecem todos os dias e surgem quando precisamos impor-nos. Ajudam-nos a crescer, a encontrar soluções melhores e a ampliar nossas fronteiras.

Nesta perspectiva, comungo da ideia de que é impossível eliminarmos os conflitos, uma vez que os mesmos têm origem no encontro da minha autenticidade e diversidade com a do outro. Para alcançar a paz social, é preciso abraçar esse ciclo e conduzi-lo para a harmonia. Caso contrário, sofremos a pena de despender nosso precioso tempo no objetivo de neutralizar o embate para assegurar que minha perspectiva é mais válida do que a do outro.

A necessidade de justiça é comum a todos nós e proveniente do equilíbrio entre dar e receber, entre ganhos e perdas. Contudo, judicializar uma disputa é um caminho mais custoso, mais demorado e que pouco cuida da relação das partes.

Contratos Conscientes: da competição à cooperação

Após 20 anos no exercício de uma advocacia calcada na espera de um provimento judicial para a obtenção de justiça, precisei parar e olhar com distância para poder acolher a dor de me sentir responsável pela solução do conflito do meu cliente. Ao acatar essa impotência e compreender que nenhum terceiro pode trazer resposta para os problemas alheios de forma a confortá-lo inteiramente, os visionários ensinamentos de J. Kim Wright vieram ao meu encontro.

Em seu livro "Lawyer as peacemaker", a advogada estadunidense defende que "para um advogado holístico, todo o problema ou imagem incluiria mais do que apenas focalizar o 'outro lado' e sua contribuição para o problema. A análise geralmente inclui a função do advogado, a função do cliente no problema e na solução e o impacto do problema e da solução na comunidade". Por fim, ela conclui que "o praticante de Direito holístico olha para dentro e se esforça para se tornar íntegro, a fim de melhor auxiliar seus clientes no uso do processo legal para encontrar integridade".

Munida com esse espírito de conciliação entre a ferramenta da advocacia e o que sinto ser meu chamado de alma, mergulhei no universo dos Contratos Conscientes, uma abordagem relacional para documentos legais. Trazida ao mundo pela advogada estadunidense Linda Alvarez, em colaboração com J. Kim Wright, essa óptica aplaca os anseios daqueles que em suas parceiras de negócio estavam desenvolvendo projetos baseados em valores e propósito, e não viam nos tradicionais contratos a expressão das relações que sustentam suas empresas.

Vemos nascer um paradigma que reconhece a fenomenologia das relações, colocando-as no foco da elaboração dos contratos. Assume-se, aqui, que os relacionamentos não devem estar subjugados ao papel, mas o documento jurídico deve estar a serviço das partes, servindo como um guia para a relação.

Por meio dos Contratos Conscientes, as pessoas dão voz e vez às suas necessidades e aos seus propósitos, criando ações que possibilitem a reavaliação da relação contratual a todo momento. Assim, o contrato acompanha o ritmo da vida, cujas mudanças - como temos visto durante a pandemia - não obedecem a planos preestabelecidos.

Sem regras para serem quebradas, os Contratos Conscientes se propõem a criar acordos fundamentados em valores. Elaborados com os envolvidos, esses documentos trazem clareza sobre quem somos na interação com o outro e com isso podem sustentar elos reais para a relação que está no alicerce do negócio, ou de qualquer outra possibilidade contratual.

Com esse olhar sistêmico para os documentos legais, que são instrumentos que permeiam todos os atos de nossa vida, podemos diuturnamente estabelecer a Justiça em nossas relações, usando nossos próprios paradigmas. Sair da rigidez da forma e da ilusão de que nos encaixamos em modelos permite que a autorresponsabilidade, o engajamento e a confiança emerjam na relação contratual. Neste aspecto os Contratos Conscientes são um bálsamo de ousadia e inovação que vão ao encontro das expectativas daqueles que clamam por negócios de impacto social positivo.

Compreendo que a pandemia pode nos trazer uma grande oportunidade para olharmos o essencial: as nossas relações. A partir disso, podemos desenhar novas formas de cuidar dos nossos conflitos, para que possamos caminhar de um paradigma belicoso e dual e pavimentar uma estrada rumo a desenlaces que acolham, cuidem e regenerem os relacionamentos. Assim, deixamos gradativamente de fornecer provisão para o fogo que nos fere enquanto coletivo.

Os conflitos não podem ser eliminados, pois são instrumento de crescimento pessoal e coletivo. Assim, convido a todos para que possamos desbravar caminhos que tornem o acesso à justiça mais plural e acessível.

 

Fernanda Guerra

Fernanda Guerra

Advogada e pioneira na América Latina na abordagem de Contratos Conscientes. Idealizadora da SER Consultoria.

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