A regularização fundiária urbana como conquista dos cidadãos brasileiros
Com a REURB haverá maior dignidade a tais pessoas vulneráveis, pois tais imóveis, antes fora do mercado e que possuíam apenas contratos de gaveta, agora terão um viés de comercialização regular, através de escrituras pública e registros com o pagamento de IPTU, ITBI e ITCMD, saindo da economia subterrânea.
sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021
Atualizado às 14:33
Nas cidades, principalmente nas capitais do Brasil, verificamos inúmeros desabamentos de casas construídas em morros, enchentes, população morando em ruas ou embaixo de viadutos, crescimento vertiginoso de favelas, saneamento básico precário, invasões de áreas públicas e áreas de preservação permanente, poluição dos rios e nascentes, além de outras peculiaridades inerentes à moradia.
Existe um forte elo entre as cidades e as pessoas, já que as primeiras servem às últimas em suas necessidades básicas, como serviços, comércio, lazer, indústria, empregos, com o viés de preservar a dignidade da pessoa humana.
No que pertine à dignidade da pessoa humana, Nicola Abbagnano acentua:
Como princípio da dignidade humana entende-se a exigência enunciada por Kant como segunda fórmula do imperativo categórico: "Age de tal forma que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre com um fim e nunca unicamente como meio". Esse imperativo estabelece que todo homem, aliás, todo ser racional, como fim em si mesmo, possui um valor não relativo (como é, p. ex., um preço), mas intrínsenco, ou seja, a dignidade. "O que tem preço pode ser substituído por alguma outra coisa equivalente; o que é superior a qualquer preço, e por isso não permite nenhuma equivalência, tem dignidade". Substancialmente, a dignidade de um ser racional consiste no fato de ele "não obedecer a nenhuma lei que não seja instituído por ele mesmo" (ABBAGNANO, 2012, p. 326).
A dignidade humana possui claro elo com a moradia, e obviamente com a regularização fundiária:
A dignidade humana não autoriza mais que parcela significativa da população seja mantida na clandestinidade, na incerteza. A Regularização Fundiária ainda tem outro benefício, o de mitigar a manipulação da população envolvida, retirando dela a opção de escolher, pela sua própria vontade, o seu destino. A titulação e o alcance da propriedade oportunizam maior liberdade aos cidadãos beneficiados.
É certo que o Brasil passa por uma revolução sem precedentes no que concerne à publicidade. E isso é profícuo para o desenvolvimento do País. E transmutar a moradia para propriedade exige obrigatoriamente que se acesse o registro público imobiliário, ao qual está afeta ampla publicidade. A Regularização Fundiária também vai ao encontro de se mitigarem situações clandestinas, oportunizando ampla publicidade através da matriculação de cada parcela regularizada (C. SILVEIRA MARCHI, 2019, p. 27).
As cidades surgiram para as pessoas, contudo, ainda hoje, praticamente todas são planejadas não para as pessoas, mas sim para a melhor circulação de veículos, como nos explica Raquel Rolnik:
A realidade é que nosso modelo urbanístico de cidade estimula o uso do carro, consome um enorme espaço, público e privado, e não tem atendido às necessidades de circulação da população. Neste momento, em que a questão da (i)mobilidade urbana vem sendo tão discutida, não basta pensar em alternativas para a melhoria dos transportes e do trânsito. É necessário fazer uma reflexão mais profunda sobre o modelo urbanístico de nossas cidades, inclusive pela forma como a legislação que rege as construções da cidade trata o tema (ROLNIK, 2017, p. 88).
Portanto, havendo desorganização do poder público, ausência de planejamento para os cidadãos e falta de fiscalização quanto às construções irregulares, atualmente, a regularização fundiária é um tema muito importante para o Brasil, na medida em que há uma grande falta de moradia em nosso País, aliada à pobreza de grande parcela da população.
Nesta vertente é que após a Revolução Industrial na Inglaterra houve, inicialmente na Europa, uma grande migração dos camponeses para as cidades, em busca de empregos e melhores condições de vida nas fábricas, o quê gerou um grande êxodo rural e também ao crescimento irregular das cidades, precipuamente em áreas próximas às fábricas e também em áreas sem qualquer interesse econômico.
Maurício Mota nos ensina:
Desde a colonização, a ocupação do solo brasileiro foi marcada pela exploração econômica e a política excludente de forma que o acesso de forma que o acesso formal a terra era restrito aqueles detivessem o capital, gerando a mercantilização da propriedade privada com os seus efeitos perniciosos, de ocupação irregular do solo urbano, ao qual não havia interesse ao mercado.
Com avançar da industrialização e crescimento dos centros urbanos nacionais, agravam-se os problemas urbanos de violência e desemprego, de inundações e deslizamentos, de falta de equipamentos urbanos e inchaço da demanda por serviços públicos, trazendo a lume a questão do acesso precário à moradia e a necessidade de políticas habitacionais (MOTA, 2018, p. 2).
No Brasil, após a vinda da família real portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, e a abertura dos portos brasileiros para as importações, precipuamente para os produtos da Inglaterra, iniciou-se um destaque maior para as grades cidades, tais como São Paulo e Rio de Janeiro, embora outras também tenham crescido, como Salvador, Recife, Curitiba, Porto Alegre e Goiânia.
O termo favela surgiu em Canudos, onde os militares permaneceram num morro que chamava morro da favela, que nada mais é do quê uma planta típica da região.
Com o fim da guerra de Canudos, no sertão baiano, os militares que voltaram de tal guerra e iludidos com a esperança de que o Governo iria recompensá-los com casas na capital federal, o Rio de Janeiro, não viram tal sonho virar realidade e acabaram por se instalar provisoriamente em barracos no Morro da Providência, posteriormente denominados de favelas.
Assim o termo favela se disseminou pelo país para qualquer tipo de construção precária, geralmente em morros, sem infraestrutura mínima básica de moradia, tendo início então a partir do final do século XIX e início do século XX.
O problema das favelas não é apenas do Brasil, sendo uma questão mundial, como expõe Mike Davis:
A generalização espantosa das favelas é o principal tema de The Challenge of Slums (O desafio das favelas), relatório histórico e sombrio publicado em outubro de 2003 pelo Programa de Assentamentos Humanos das Nações Unidas (UN-Habitat). Essa primeira auditoria verdadeiramente global da pobreza urbana, que segue as famosas pegadas de Friedrich Engels, Henry Mayhew, Charles Booth e Jacob Riis, é o ponto culminante de dois séculos de reconhecimento científico da vida favelada, que teve início em 1805 com Survey of Poverty in Dublin (Estudo da pobreza em Dublin), de James Whitelaw. É também a contrapartida empírica há muito esperada das advertências do Banco Mundial na década de 1990 de que a pobreza urbana se tornaria "o problema mais importante e politicamente explosivo do próximo século (DAVIS, 2006, p. 31).
Temos assim um histórico de desorganização urbana, embora o art. 6º, caput da Constituição Federal, insira a moradia está entre os direitos sociais do Brasil, conforme artigo 6º, caput, que diz: "São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição (BRASIL, 1988).
Em regra, todos deveriam ter uma moradia digna para viver com sua família, em condições que pudessem trazer felicidade e respeito à sua condição humana - infelizmente, não é o que vemos diariamente.
Importante salientar que as reivindicações por terra tiveram grande aumento a partir do século XX, conforme dicção de Erminia Maricato:
Até o final do século XIX a questão fundiária não tinha ganhado muita importância no contexto urbano. O próprio universo urbano não era muito significativo. Alguns centros mais importantes, de influência regional ou nacional, funcionavam como pólos para a conexão entre os interesses externos e as regiões integradas à dinâmica internacional. Apesar disso, é importante lembrar a história que precede a generalização da terra (rural ou urbana) como mercadoria privada, para entender as raízes da formação do mercado fundiária urbano. Parte-se do princípio de que o desenvolvimento das cidades está articulado com a estrutura geral de produção dos bens e, portanto, também com o processo de produção no campo (MARICATO, 2004, p. 21).
A disputa pela terra urbana, a capitalização da terra e o parcelamento desordenado do solo colocaram em xeque as formas de moradia digna, que necessitam de formas de se regularizar para trazer capacidade de sobrevivência às pessoas.
Quanto aos loteamentos urbanos e visando acabar com os loteamentos clandestinos, veio à lume a lei 6.766/79, que embora tenha a finalidade de regularizar os loteamentos, dificultou a regularização por parte da população carente, o quê gerou vários loteamentos irregulares ou clandestinos.
Com o Estatuto das Cidades (lei 10.257, de 10 de julho de 2001), conforme o artigo 2º, inciso XIV, houve as seguintes diretrizes para a política urbana do Brasil, dentre elas: "regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais" (BRASIL, 2001).
Posteriormente, em 2009, a Lei do Programa Minha Casa Minha Vida, lei 11.977, de 7 de julho de 2009, os artigos 46 e 47 preceituavam (atualmente os artigos foram revogados pela lei 13.465/2017) formas de regularização fundiária urbana.
Posteriormente, a lei 13.465, de 11 de julho de 2017, surgida a partir da conversão da MP 759/2016 regulou inteiramente a matéria, desburocratizando a regularização fundiária.
Conquanto a lei 13.465/2017 tenha tratado da regularização fundiária urbana e rural, temos que a urbana é mais importante, dada a densidade populacional nas cidades, principalmente nas capitais brasileiras.
A REURB trata-se do "[...] processo de intervenção pública, sob os aspectos jurídico, físico e social, que objetiva legalizar a permanência de populações moradoras de áreas urbanas ocupadas em desconformidade com a lei para fins de habitação, implicando acessoriamente melhorias no ambiente urbano do assentamento" (ALFONSIN, 1997, p. 24).
Além disso, determina o "[...] resgate da cidadania e da qualidade de vida da população beneficiária" (ALFONSIN, 1997, p. 24), feita por fases. Inicia-se pelo requerimento dos legitimados, seguida pela elaboração do projeto, do processamento administrativo do requerimento, com oitiva dos titulares de direitos, confrontantes e terceiros interessados.
Importante mencionar que a REURB guarda objetivos nobres, inclusive garantir a prestação de serviços públicos aos ocupantes de tais áreas tidas como irregulares ou clandestinas, embora sua aplicação seja efetivada apenas para situações consolidadas até 22 de dezembro de 2016.
Luiz Guilherme Loureiro afirma, acerca da regularização fundiária:
A irregularidade fundiária, se refere a dois aspectos principais: a garantia da moradia digna, com a formalização da propriedade, e regularização de parcelamentos (e de condomínios edilícios) efetuados à margem da lei, com vistas à melhoria das condições de habitabilidade e ambientais. Visando regularizar os assentamentos urbanos clandestinos ou irregulares, foi editada a lei 11.977/2009, que foi em grande parte revogada pela lei 13.465/2017.
Segundo se conclui da exposição de motivos da medida provisória que deu origem a lei 13.465/2017, o legislador considerou conveniente a modificação do regime legal da regularização fundiária urbana prevista na Lei anterior por entender que esta era omissa no regramento jurídico específico de determinados temas e que as normas vigentes não respondiam às novas necessidades. Destarte, a nova lei estabelece o modelo substitutivo do instrumento de intervenção estatal para regularização fundiária, visando suprir as lacunas existentes, entendendo que propiciará maior dinamismo e simplificação ao processo de regularização fundiária urbana (LOUREIRO, 2019, p. 936-937).
Neste prisma, como não há condições financeiras do poder público construir grandes conjuntos habitacionais para todas as pessoas em situação de grande vulnerabilidade, verificamos que a regularização fundiária da lei 13.465/2017 surge como solução imediata para grande parcela da população que vivia à margem da lei, sendo uma verdadeira conquista da população mais carente de nosso país.
Além do fato de que haverá maior dignidade a tais pessoas, verifica-se que tais imóveis urbanos, antes fora do mercado (pela irregularidade) e que possuíam apenas contratos de gaveta, agora terão um viés de comercialização regular, através de escrituras pública pelo Tabelião e registro de imóveis perante as serventias extrajudiciais, além do pagamento de tributos como IPTU, ITBI e ITCMD, saindo da economia subterrânea.
Cabe agora ao poder público proceder aos desígnios da lei, com a finalidade de promover o maior número possível de regularizações fundiárias, para que se possa trazer mínima dignidade às pessoas que ali vivem.
Outrossim, deverá o poder público acompanhar, também, o momento pós regularização, no sentido de garantir condições de vida para as comunidades já regularizadas, seja através de saneamento básico, iluminação pública, asfaltamento, escolas, creches, mobilidade urbana, postos de saúde e atendimento social.
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ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 6ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.
ALFONSIN, Bethânia de Moraes. Direito à moradia: instrumentos e experiências de regularização fundiária nas cidades brasileiras. Rio de Janeiro: FASE, 1997.
BRASIL. Lei 6.766, de 19 de dezembro de 1979. Acesso em: 20 jan. 2021.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Acesso em: 20 jan. 2021.
BRASIL. Lei 10.257, de 10 de julho de 2001. Acesso em: 20 jan. 2021.
BRASIL. Lei 11.977, de 7 de julho de 2009. Acesso em: 20 jan. 2021.
BRASIL. Lei 13.465, de 11 de julho de 2017. Acesso em: 20 jan. 2021.
C. SILVEIRA MARCHI, Eduardo et. al. Regularização fundiária urbana. 1ª ed. São Paulo: YK Editora, 2019.
DAVIS, Mike. Planeta Favela. São Paulo : Boitempo, 2006.
GENTIL, Alberto. Registros Públicos. Rio de Janeiro: Forense, 2020.
LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros públicos: teoria e prática. 10. ed. Salvador: Jus Podivm, 2019.
MARICATO, Ermínia. Habitação e cidade. 7 ed. São Paulo: Atual, 2004.
MOTA, Maurício Jorge Pereira. Direito a moradia e regularização fundiária. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.
ROLNIK, Raquel. Territórios em conflito: São Paulo: espaço, história e política. São Paulo: Três Estrelas, 2017.