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Legitimação fundiária: conceito e requisitos

O moderno instituto jurídico de reconhecimento da propriedade dos ocupantes de terrenos públicos ou particulares pelo município.

quinta-feira, 17 de março de 2022

Atualizado às 13:52

 (Imagem: Artes Migalhas)

(Imagem: Artes Migalhas)

1. Introdução

A grande novidade inserida pela lei 13.465/17 é indiscutivelmente a "legitimação fundiária", instrumento que coloca sob a competência e responsabilidade do município reconhecer a posse e conferir o domínio aos ocupantes de bens particulares ou bens públicos municipais. A "legitimação fundiária" caracteriza-se pela posse do terreno pelo ocupante e o abandono dele pelo proprietário. Os principais fundamentos da "legitimação fundiária" para outorgar ao ocupante a propriedade da unidade imobiliária são: 

a) O município tem a obrigação de promover a regularização dos assentamentos e empreendimentos clandestinos ou irregulares, constituindo um "poder-dever", imposto pelo art. 30, VIII, da Constituição Federal, para o controle do uso, ocupação e parcelamento do solo urbano, atribuição amplamente reconhecida pela doutrina e jurisprudência, sob pena de omissão das autoridades públicas municipais;

b) A Constituição Federal assegura o direito de propriedade, mas também exige que essa propriedade cumpra sua função social, para ser utilizada em conformidade com os objetivos sociais impostos pelo município no plano diretor e em benefício da coletividade (art. 5º, XXII e XXIII, CF/88);

c) O proprietário de um imóvel particular tem inúmeras responsabilidades sobre o terreno, tal como o pagamento do IPTU, que pode estar atrasado, e a lei 13.465/17 menciona que o atraso por cinco anos presume o abandono do imóvel;

d) a limpeza do terreno, construção de muro ou cerca, geralmente são exigências contidas nas normas de posturas municipais e pode ser que o dono do imóvel jamais tenha observado isso, dando chance a ocupação ilegal;

e) a guarda da propriedade é um compromisso do dono, que deve protegê-la pelos meios legais e judiciais, propondo ação reivindicatória ou possessória logo que a propriedade é invadida, pois a sua omissão exatamente demonstra que não está interessado no imóvel, devendo ser preservada a função social atribuída a ele com a ocupação por terceiros;

f) o abandono do imóvel pelo proprietário provoca danos urbanísticos, ambientais e sociais, com grande reflexo na vida das pessoas e no orçamento público, o que evidencia ainda mais a responsabilidade do dono do terreno na proteção da propriedade. 

2. Conceito

A "legitimação fundiária" constitui forma originária de aquisição do direito real de propriedade, conferido por ato discricionário do pode público àquele que detiver1 área pública ou possuir área privada, integrante de núcleo urbano informal consolidado já existente em 22/12/06 (art. 23, caput, da lei 13.465/17). É um dos institutos jurídicos previstos exclusivamente para fins de regularização fundiária e será formalizada mediante a entrega do título de "legitimação fundiária" (art. 15, I, da lei 13.465/17). 

A "legitimação fundiária" é o mecanismo de reconhecimento da aquisição originária do direito real de propriedade sobre unidade imobiliária objeto da Reurb, onde o poder público entregará o título outorgando a propriedade ao ocupante do terreno (art. 11, VII, da lei 13.465/17).

Não se fala em "transferir" a propriedade, mas em "reconhecer" a propriedade do ocupante. E o poder público não irá conceder ou emitir, mas "conferir" a legitimação fundiária. Adota-se o verbo "conferir" no sentido de entregar ou outorgar a "legitimação fundiária".

Na "legitimação fundiária" o poder público identifica o imóvel ocupado, sob o qual é exercida a detenção ou posse, e declara o seu ocupante como o titular do imóvel, resultando na propriedade definitiva, imediata e incondicional do imóvel ocupado. Essa propriedade é definitiva pois uma vez registrada a "legitimação fundiária", o negócio jurídico não está sujeito a nenhuma cláusula resolutiva. É imediata pois, uma vez reconhecida a posse, entregue o título e registrado, o ocupante torna-se neste instante como o legítimo proprietário do imóvel. É incondicional a propriedade pois o registro do título de "legitimação fundiária" torna o ocupante o seu proprietário, que adquire o imóvel com todos os atributos da propriedade, podendo dele usar, gozar, dispor e reivindicar, não interessando mais ao poder público se o imóvel será usado para moradia, locação, comércio ou se será vendido, já que a tutela do Estado termina com a entrega e registro do título.

A "legitimação fundiária" é diferente da "legitimação de posse", prevista no art. 25, da lei 13.465/17. Embora a "legitimação de posse" também seja um instrumento de política urbana, nela o Poder Público não reconhece imediatamente a propriedade do ocupante, mas apenas reconhece a posse sobre o imóvel objeto da regularização fundiária, cuja posse será convertida em propriedade após o decurso do prazo de cinco anos contados do registro da "legitimação de posse", atendidos os requisitos do artigo 183, da Constituição Federal.

3. Requisitos

A "legitimação fundiária" exige, basicamente, quatro requisitos genéricos: a) procedimento de regularização fundiária; b) núcleo urbano informal consolidado; c) existente em 22/12/16; c) posse do beneficiário na unidade imobiliária.

A "legitimação fundiária" não é um instrumento de política urbana autônomo, que existe por si só, desvinculado de qualquer outro procedimento. A "legitimação fundiária" exige a existência de um procedimento administrativo de regularização fundiária, já que o art. 23, caput, estabelece que será conferida "exclusivamente no âmbito da Reurb". Não poderá, desse modo, ser conferida individual e isoladamente, para qualquer terreno ou em qualquer bairro, pois sempre será preciso qualificar e declarar o assentamento como núcleo urbano informal consolidado e instaurar o procedimento de regularização.

Exige-se, portanto, que seja núcleo urbano informal consolidado, conforme conceituação extraída do art. 11, incisos I, II e III, da lei 13.465/172. É um requisito inerente a instauração do procedimento de regularização fundiária. Caso o terreno não seja qualificado como consolidado, não será possível abrir o procedimento visando sua regularização e aplicar as normas da lei 13.465/17.

Deve-se demonstrar no procedimento administrativo de regularização fundiária a existência do núcleo em 22/12/16, data de assinatura da medida provisória 756/16 pelo ex-presidente Michel Temer, posteriormente convertida na lei 13.465/17.

Por fim, a "legitimação fundiária" será conferida ao ocupante da unidade imobiliária que estiver na posse do imóvel. O ocupante não precisa estar na posse do imóvel em 22/12/16, pois é o núcleo que precisa estar consolidado em 22/12/16, isso ficou expresso na parte final do art. 23, caput, da lei 13.465/17, ao dispor que o ocupante deve integrar "núcleo urbano informal consolidado existente em 22/12/16". Basta que o ocupante esteja na posse do imóvel no momento da regularização fundiária para que seja o beneficiário.

Além desses requisitos, os genéricos, existem os requisitos específicos para a regularização de interesse social. Em núcleo classificado como Reurb-S (interesse social), a "legitimação fundiária" será conferida desde que o beneficiário não seja concessionário, foreiro ou proprietário exclusivo de imóvel ou não tenha sido contemplado com "legitimação de posse" ou "fundiária" de imóvel urbano com a mesma finalidade, ainda que situado em núcleo urbano distinto (art. 23, §1º e 4º). Já para os núcleos classificados como Reurb-E, veremos mais adiante a interpretação sobre a admissão ou não na "legitimação fundiária".

Refere-se o legislador a "concessionário". Isso quer dizer que o ocupante do terreno não pode possuir uma "concessão de direito real de uso" ou "concessão de uso para fins de moradia". Caso seja concessionário, não poderá ser beneficiado com a legitimação fundiária.

Ao se referir a "foreiro", está invocando o antigo instituto da "enfiteuse", pois pode ser que alguns ocupantes possuam também aforamento em bem público imóvel, o que torna vedada a legitimação fundiária.

Também não poderá ser proprietário exclusivo de outro imóvel.

Houve uma inovação com o "programa casa verde e amarela", no qual foi incluído ao texto a palavra "exclusivo". Evidente que a intenção do legislador é compreender como exclusiva as unidades imobiliárias de uso privativo. Eventuais casas em condomínios ou apartamentos, são unidades imobiliárias privativas de seu respectivo condômino, são exclusivas. Se na casa ou no apartamento, há uma copropriedade da unidade imobiliária de uso privativo, duas ou mais pessoas são donas da mesma casa ou apartamento, aí abre o legislador uma exceção, e permite a legitimação fundiária.

É possível que o ocupante da unidade imobiliária integrante do núcleo urbano informal objeto de regularização use o imóvel para fins de moradia, mas é proprietário de outro imóvel utilizado por ele para finalidade comercial (dono de uma oficina mecânica, um restaurante, uma serralheria, uma confecção, entre outros). Do mesmo modo, pode ser que a unidade imobiliária a ser regularizada esteja ocupada para a finalidade comercial, mas o ocupante  seja proprietário de outro imóvel no qual exerce a moradia. Em ambos os casos apresentados, a "legitimação fundiária" poderá ser conferida ao ocupante, pois embora proprietário de outro imóvel, o uso empregado em cada um deles é diferente. Em um deles exerce a moradia e em outro a atividade comercial, de onde extrai a subsistência econômica de sua família. A regularização fundiária deve preservar as relações sociais e econômicas de cada ocupante com o assentamento, não estrando inserido dentro do interesse público excluir da regularização a moradia ou a atividade laboral do ocupante.

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 ¹ O Superior Tribunal de Justiça - STJ já decidiu que os bens públicos não estão sujeitos a posse por particulares, pois estes não a exercem como se fossem seus legítimos proprietários, exercendo parcial ou plenamente um dos poderes inerentes à propriedade (artigo 1.196, do Código Civil). Os bens públicos apenas estão sujeitos a chamada "detenção" pelos particulares, daí porque o legislador distinguiu no artigo 23 a detenção de bem público da posse de bem particular. A detenção decorre da tolerância ou permissão do Poder Público. Por serem públicos, não poderiam os ocupantes atribuírem-se proprietários ou posseiros, já que os bens públicos não podem ser adquiridos por usucapião (Súmula 340 - STF).

 ²  Art. 11. Para fins desta Lei, consideram-se:

I - núcleo urbano: assentamento humano, com uso e características urbanas, constituído por unidades imobiliárias de área inferior à fração mínima de parcelamento prevista na Lei nº 5.868, de 12 de dezembro de 1972 , independentemente da propriedade do solo, ainda que situado em área qualificada ou inscrita como rural;

 II - núcleo urbano informal: aquele clandestino, irregular ou no qual não foi possível realizar, por qualquer modo, a titulação de seus ocupantes, ainda que atendida a legislação vigente à época de sua implantação ou regularização;

 III - núcleo urbano informal consolidado: aquele de difícil reversão, considerados o tempo da ocupação, a natureza das edificações, a localização das vias de circulação e a presença de equipamentos públicos, entre outras circunstâncias a serem avaliadas pelo Município;

Jamilson Lisboa Sabino

VIP Jamilson Lisboa Sabino

Mestre e Doutor em Direito. Professor de Direito Urbanístico. Autor, dentre outros livros, de "Lei de Parcelamento do Solo comentada artigo por artigo".

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